O Sonho do Tio
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Fiódor Dostoiévski
Fiódor Mijailovich Dostoievski; Moscú, 1821 - San Petersburgo, 1881) Novelista ruso. Educado por su padre, un médico de carácter despótico y brutal, encontró protección y cariño en su madre, que murió prematuramente. Al quedar viudo, el padre se entregó al alcohol, y envió finalmente a su hijo a la Escuela de Ingenieros de San Petersburgo, lo que no impidió que el joven Dostoievski se apasionara por la literatura y empezara a desarrollar sus cualidades de escritor. En 1849 fue condenado a muerte por su colaboración con determinados grupos liberales y revolucionarios. Tras largo tiempo en Tver, recibió autorización para regresar a San Petersburgo, donde no encontró a ninguno de sus antiguos amigos, ni eco alguno de su fama.
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O Sonho do Tio - Fiódor Dostoiévski
centaur.editions@gmail.com
CAPÍTULO I
Maria Alexandrovna Moskalev é a senhora mais importante de Mordasov. Esta afirmação não admite discussões. Conduz-se com inteira independência, como se todo o mundo lhe obedecesse. É verdade que quase ninguém gosta dela e que muitos a odeiam sinceramente, mas não é menos certo que todos a temem e é isto o que ela deseja, revelando com isso os seus altos dotes diplomáticos. Só assim se compreende que, perante o seu majestoso porte, a ninguém ocorra considerá-la a maior mexeriqueira do mundo, ou pelo menos de Mordasov, uma mulher que morre por intrigas e que não pode dormir tranquila no dia em que se deita sem saber qualquer novidade.
Dir-se-ia, pelo contrário, que toda a mexeriquice cessa na sua presença, que as mulheres mais desbocadas coram e tremem, como colegiais apanhadas em travessura flagrante pelo professor, e desviam a conversa para assuntos mais elevados. Sabe coisas tão graves e escandalosas de alguns vizinhos que, se algum dia se decidisse a contá-las, a torná-las públicas, como só ela o sabe fazer, produziriam em Mordasov um terramoto como o de Lisboa; mas mantém-se sempre muito reservada sobre tais segredos e só em casos extremos os confia às suas mais íntimas amigas. Habitualmente, contenta-se com amedrontar as pessoas, aludindo ao que sabe, e prefere conservar um homem ou uma mulher em contínua ansiedade a aniquilá-los com um golpe decisivo.
Aquilo é que é inteligência e diplomacia! Maria Alexandrovna distinguiu-se sempre entre nós pelo seu inatacável comme il faut, que todos procurávamos imitar. Nesse particular não tem rival em Mordasov. Pode, por exemplo, matar, destroçar, aniquilar um adversário com uma só palavra, façanha de que todos temos sido testemunhas, e, no entanto, dir-se-ia que a pronunciou sem dar conta disso. Como é sabido, esta habilidade é um elemento característico da mais alta fidalguia.
As suas relações são inumeráveis. Muitos personagens que visitaram Mordasov e gozaram as delícias da sua hospitalidade continuam a corresponder-se com ela. Houve até quem lhe fizesse versos que Maria Alexandrovna nos recitava com orgulho. Um literato dedicou-lhe uma novela que lhe ia lendo durante os serões, o que produziu uma impressão enternecedora. Um sábio alemão, que veio de Karlsruhe com o fim exclusivo de estudar uma espécie rara de vermes cornúpetos que vivem na nossa terra e sobre os quais escreveu quatro volumes in-quarto, ficou tão encantado com a amável hospitalidade de Maria Alexandrovna que ainda hoje mantém com ela correspondência num tom elevada mente moral e respeitoso.
Chegou até a comparar-se, sob um certo aspeto, Maria Alexandrovna com Napoleão. Claro que se trata de uma brincadeira dos seus inimigos, posta a correr mais por sarcasmo do que por amor à verdade. Admitindo a inexatidão da comparação, quero permitir-me uma pergunta ingénua: por que é que Napoleão sentiu vertigens quando atingiu o ponto mais alto da sua carreira? Os partidários da antiga dinastia costumam atribuir isso ao facto de Napoleão não ser de sangue real nem sequer de elevada nobreza. Daí — diziam eles — o ter-se alarmado ao ver-se em posição tão elevada. Apesar de tão engenhosa explicação, digna da época em que a corte de França brilhava em lodo o seu esplendor, aventuro-me a acrescentar por conta própria: por que é que Maria Alexandrovna não perdeu a cabeça em nenhuma circunstância e continuou a ser sempre a dama mais importante de Mordasov? Houve ocasiões em que dizíamos a nós próprios: «Vamos a ver o que faz Maria Alexandrovna em tão difíceis circunstâncias». Mas, quando a situação complicada aparecia, era vencida e superada sem que nada se desse; tudo continuava na mesma ou melhor do que antes. Toda a gente se recorda como seu marido, Afanasy Matveich, perdeu o seu lugar por causa da sua inépcia e imbecilidade, o que provocou as iras de um inspetor da capital, e todos esperavam que sua mulher se mostraria abatida, humilhada, suplicante; mas, longe disso e compreendendo que nada conseguiria com súplicas, manteve a sua altivez tão sabiamente que aquele episódio em nada diminuiu o seu prestígio social, e a sua casa continuou a ser a mais importante de Mordasov. Ana Nicolaevna Antipov, mulher do delegado e sua inimiga declarada, apesar da sua aparente amizade, já cantava vitória; mas, quando vimos que não era fácil confundir Maria Alexandrovna, verificámos que eram muito mais profundas do que supúnhamos as raízes da sua dignidade e supremacia.
Digamos de passagem, já que nos referimos a ele, quatro palavras sobre seu marido, Afanasy Matveich. É um homem de maneiras irrepreensíveis e de bons princípios; mas, em casos difíceis, desconcerta-se facilmente como um cordeiro diante da porta de um redil que nunca viu. Tem um porte majestoso, sobretudo quando põe a sua gravata branca nos jantares de cerimónia; mas todo o seu ar de dignidade e a sua compostura se desvanecem quando começa a falar. Então não há como a gente tapar os ouvidos com algodão. Realmente não é digno de Maria Alexandrovna e, segundo a opinião geral, conserva a sua posição graças aos raros méritos da mulher que, em minha opinião, já o devia ter posto como espantalho numa horta. Ali, e só ali, poderia ser de alguma utilidade para os camponeses. Maria Alexandrovna procedeu admiravelmente em mandá-lo para a aldeia de cento e vinte servos, que possuíam a duas milhas e meia da cidade, e que era o único património, a única fortuna com que ela mantinha o esplendor da sua casa. Todos compreenderam que tinha suportado o marido em atenção ao seu cargo e ao ordenado que recebia do governo... além de outros emolumentos. Agora que já não ganhava nem sabia angariar outros lucros, desfazia-se dele, afastando-o e arrumando-o como um traste inútil. Toda a gente louvava a clara inteligência e o temperamento decisivo de tal dama.
Afanasy Matveich vivia na abundância. Fui vê-lo ao campo e passei com ele uma hora deliciosa. Prova constantemente as suas gravatas brancas, engraxa as botas ele próprio, não por necessidade mas por amor à arte e por gostar de as ver luzidias, toma chá três vezes por dia, adora os banhos e está encantado com a vida.
Recordam-se do formidável escândalo que se armou em redor de Zinaida Afanasyevna, filha única de Maria Alexandrovna e de Afanasy Matveich? Zinaida é de uma formosura indiscutível e de esmerada educação, embora tenha chegado solteira aos vinte e três anos. Entre as razões aduzidas para explicar este facto, avulta poderosamente o vago rumor sobre certas relações misteriosas que manteve há cerca de ano e meio com um pobre mestre de escola — rumor que ainda corre. Fala-se também de uma carta amorosa, escrita por Zina, que andou de mão em mão; mas eu gostava de saber quem viu essa carta. Se andou de mão em mão, onde é que para? Todos ouviram falar dela mas ninguém a viu. Pelo menos, nunca encontrei ninguém que a tivesse visto com os seus próprios olhos. Se se faz alguma alusão a essa carta na presença de Maria Alexandrovna, ela não se dá por achada. Mas suponhamos que tenha havido alguma coisa, que Zina escreveu a carta amorosa, como eu próprio admito que o tenha feito. Como se destaca em tudo isso o talento de Maria Alexandrovna! Com que destreza se conduziu ela neste assunto escandaloso, para afastar o perigo e vencê-lo! Sem deixar vestígios, nem o menor indício! Maria Alexandrovna finge ignorar essa baixa calúnia e, não obstante, só Deus sabe quanto lhe custou a salvar a honra da filha da mais leve beliscadura. Quanto ao facto de Zina não se ter casado, é perfeitamente natural: não há para ela um partido decente. Zina só pode contrair matrimónio com um príncipe reinante. Já viram, por acaso, mais bela mulher? É certo que é demasiado orgulhosa. Diz-se que Mozglyakov pediu a sua mão, mas é muito pouco provável que chegue a obtê-la. Quem é Mozglyakov? É jovem, na verdade, bem parecido, elegante, proprietário de cento e cinquenta servos, não tem nada hipotecado e foi educado em S. Petersburgo. Mas, como sabem, não tem a cabeça muito no seu lugar; é atordoado, fala pelos cotovelos e mostra simpatia pelas ideias avançadas. Agora digam-me o que vale uma fortuna de cento e cinquenta almas, especialmente quando se tem ideias avançadas. O casamento não se realizará.
***
Tudo o que o amável leitor acaba de ler escrevi-o há cinco meses, unicamente por capricho, ainda que — apresso-me a confessá-lo, — levado por uma certa admiração por Maria Alexandrovna, desejasse fazer o elogio de tão magnífica dama, em forma de carta a um amigo, no estilo das que são publicadas pelo Northern Bell e outras revistas dessa idade de ouro que, graças a Deus, não voltará. Mas, como não tenho quem me apadrinhe, e me domina, em assuntos literários, uma timidez inata, deixei o escrito numa gaveta da minha mesa, como primeira tentativa literária e agradável recordação de horas de ócio e bem-estar.
Tinham-se passado cinco meses quando, repentinamente, se deu em Mordasov um acontecimento extraordinário. Um dia, de manhã cedo, chegou o Príncipe K. e hospedou-se em casa de Maria Alexandrovna. As consequências desta visita iam ser incalculáveis. Só três dias permaneceu o Príncipe em Mordasov, mas esses três dias deixaram graves e indeléveis recordações. Direi mais: o Príncipe produziu na nossa cidade uma revolução, ou pouco menos, e o relato desta revolução constitui um dos mais interessantes capítulos dos anais de Mordasov. São essas páginas que, depois de grandes hesitações, me decidi a juntar, dando-lhes forma literária para as submeter ao julgamento do respeitável público. Conterão a completa e maravilhosa história da exaltação, glória e decadência de Maria Alexandrovna e de sua família — digno e sedutor assunto para um escritor. Mas, para descrever a maneira admirável como o Príncipe K. chegou à nossa cidade e se hospedou em casa de Maria Alexandrovna, vejo-me obrigado, antes, a dizer algumas palavras a respeito do próprio Príncipe. Além disso a biografia deste personagem é absolutamente indispensável para o lógico desenvolvimento da nossa história. Começo, portanto, por aí.
CAPÍTULO II
Tenho que dizer antes de mais nada que o Príncipe K. não era extraordinariamente velho, mas estava tão decrépito, tão gasto, que, ao vê-lo, pensar-se-ia que cairia aos pedaços quando menos se esperasse. Em Mordasov corriam de boca em boca as coisas mais fantásticas acerca do Príncipe, chegando a dizer-se que não tinha o juízo todo. Ninguém compreendia que o dono de uma propriedade com quatro mil servos, membro de uma família distinta, que podia ter, se quisesse, grande influência na província, vivesse retirado nas suas propriedades como um ermitão. Muitos que conheciam o Príncipe, quando esteve em Mordasov, há seis ou sete anos, asseguravam que não podia estar sozinho um momento, nem se parecia, em nada, com um eremita.
Eis os dados que consegui obter de pessoas autorizadas:
Na sua juventude, já longínqua, o Príncipe teve na sociedade um acolhimento brilhante, divertiu-se muito, namoriscou, viajou pelo estrangeiro, cantou romanças, contou anedotas e nunca se distinguiu pelos dotes brilhantes da inteligência. Não é preciso dizer, portanto, que dissipou toda a sua fortuna e foi surpreendido pela velhice sem um chavo. Alguém o aconselhou então a visitar a sua propriedade, que tinha começado a vender em hasta pública. Fez a viagem e chegou a Mordasov, onde passou seis meses. A vida de província agradou-lhe muito, e nesses seis meses gastou o que lhe restava até ao último centavo, empregando o tempo a jogar e em intrigas com as damas da província. Era, além disso, de um feitio excelente, não isento de certo ar principesco, o que em Mordasov se considerava o sinal da mais alta aristocracia, e de que todos gostavam em vez de se molestarem. As senhoras, sobretudo, não saíam do êxtase que lhes provocava um hóspede tão encantador.
A esse respeito conservam-se em Mordasov curiosas recordações. Dizia-se, entre outras coisas, que passava a maior parte do dia em frente do toucador e que o seu corpo se compunha de várias peças, ou pelo menos assim parecia, e ninguém percebia como ele tinha chegado àquela ruína física.
Usava cabeleira, bigode, suíças e pera, tudo postiço, até ao último pelo, e de um negro magnífico. Pintava-se e punha pó de arroz todos os dias. Dizia-se também que escondia as rugas da cara, por meio de pequenas molas, escondidas com uma arte especial debaixo dos pelos. Assegurava-se além disso que usava espartilho, por ter perdido uma costela ao saltar, com pouca destreza, de uma janela, numa das aventuras amorosas que tivera em Itália. Coxeava da perna esquerda e havia quem afirmasse que essa perna era postiça, uma perna de cortiça de modelo especial, que substituía uma que partiu em Paris, numa aventura do mesmo género. Mas o que é que o mundo não é capaz de dizer? O certo é que o seu olho direito era de vidro, embora maravilhosamente imitado, usava dentadura postiça e passava o dia a lavar-se com águas medicinais, perfumando-se e pondo pomadas.
É preciso prevenir que, nessa altura, o Príncipe começou a enfraquecer a olhos vistos e se tornou insuportavelmente loquaz. Parecia ter chegado ao fim da sua carreira. Toda a gente o sabia arruinado. De súbito, inesperadamente, um dos seus mais próximos parentes, uma velha que passara muitos anos em Paris e de quem ele não esperava nada, morreu um mês após o falecimento do seu único herdeiro. O Príncipe encontrou-se, inesperadamente, na posse de uma grande fortuna, herdando uma propriedade magnífica de quatro mil servos, a quarenta milhas de Mordasov. Imediatamente