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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
NOVEMBRO
1958

esponderemos

ANO I
ÍNDICE
Pac
I. FILOSOFÍA E RELIGIAO

1) "Pódese admitir haja alguma religi&o revelada por Deus ?


E, caso a haja, por que sinais poderla ser reconhecida ? Os
milagres merecem. pouco crédito em nossos dias .'" 435

2) "Covi que fundamento se diz que o esperanto, lingua interna


cional, tem significado quase religioso, destinándose a ser o
idioma da humanidade confraternizada sobre novas bases
espirituais ?" 4W

II. DOGMÁTICA

3) '-Que é o AGNUS DE I ?

E que crédito se pode dar as maravilhosas promestsas anexas


ao sen uso ? Nao se assemelham as dos bentinhos e dentáis
objetos mágicos ? Pelo fato de serem aprovadas por um cen
sor eclesiástico, qttal a autoridade que compete a essas pro-
viessas ?" 4*6

III. SAGRADA ESCRITURA

4) "A Igreja terá algnina vez proibido a leitura da Biblia ?" .. 452

5) "Se se afirma que a Lei de Moisés foi ab-rogada por Cristo,


porque ainda se inavite na observancia dos mandamentos do
J)ecál<>i/u? Mcsmu v.nlrc vnIch, tina é feito das prnacricóex con
cernen-tes ao sábado e as imagenss ? QuiU é afimü o criterio
para se distinguir o que foi ah-rogado e o que ainda tem
valor de lei?" ¿5*

IV. DIREITO

6) "Quais os impedimentos dirimentes do matrimonio ?" 459

7) "Em que consiste o chamado 'privilegio paulino' evocado na


neparaeáo de algunx casáis ?" 404

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

ti) "Como proceden a Igreja no caso matrimonial de Napoleüo


Bonaparte ? Nao terá consentido no divorcio jielo fato de que
o interessado era um monarca poderoso ?" 466

9) "Quem sao os 'Cardeais Negros'?" 406

10) "Como se justifica o casamento religioso do rei de Portugal


D. Pedro II com sua cunhada, esposa do seu irmüo o rei
D. Afonso VI, ainda em vida diste ?" 470

CORRESPONDENCIA MIÚDA 474

COM -APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano I — N' 11 — Novembro de 1958

1. FILOSOFÍA E RELIGIÁO

M. M. S. (Sao Paulo) :

1) «Pode-se admitir haja alguma religiao revelada por


Dcus ?

10, «iso a liaja, por .jiic sinais podcria ser m-.ouhc.cida ?


Os milagros merecem pouco crédito em nossos días!»

Procedamos por etapas em nossa resposta.


Antes do mais, verificamos que as questoes ácima, pelo seu
enunciado mesmo, pressupóem a existencia de um Deus pessoal,
distinto do mundo, tal como o pode provar o raciocinio filosófico.

Antes de Cristo, já Platao e Aristóteles na Grecia nos íorneceráín


essa prova, que se poderia resumir nos seguintes termos :
O mundo consta de seres essencialmente contingentes e mutáveis. •
Ora o contingente e mutável, por definicáo, nao possui o ser por si
(o contingente e mutável que se explicasse por si, seria urna contradi-
ciío), mas tom a razáo do sua existencia lora de si, num ente que deve
ser Absoluto e Imutável.
Donde se segué que, se existe o contingente e mutável (ou tempo
ral), deve existir o Absoluto, Imutável (ou Eterno). E tal é Deus, Deus,
que por conseguinte nao se pode identificar com o mundo.
Ésse Deus distinto do universo há de ser o Autor ou Criador do
mundo, pois, em caso contrario, o mundo seria um Absoluto, e a unici-
dade de Deus estaría destruida. Ulteriormente, concluir-se-á que há de
ser dotado de inteligencia (sabedoria) e vontade (amor), pois estas sao
notas características de urna personalidade criadora.

Pergunta-se agora se ésse Deus se revelou explícitamente


aos homens, comunicando-lhes alguma forma de Religiáo. É esta
mais ou menos a dúvida dos filósofos chamados «deístas» ou
«enciclopedistas do séc. XVIII». Até tal época o fenómeno re
ligioso, dentro e fora do Cristianismo, foi geralmente associado
a urna revelacáo divina primordial (cada grande sistema reli
gioso da humanidade tem seus livros sagrados, depositarios do
que os respectivos fiéis julgam ser a Palavra de Deus).
Abaixo proporemos um esbógo de resposta ao deísmo, estu-
dando : 1) a necessidade moral de urna Revelagáo; 2) a maneira
como esta se nos pode dar a conhecer. Procurando por fim fazer

— 435 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1958, qu. 1

urna aplicagáo concreta dos principios enunciados, focalizaremos


o tema do milagre, sélo por excelencia da Revelagáo Divina.

1. A necessidade de Revelacao Divina

1. Um Deus que houvesse criado o homem, mas o tivesse


abandonado, sem exercer providencia (justiga e bondade) para
com ele, seria um Deus carecente das qualidades mais obvias
de qualquer ser moral; seria um verdadeiro absurdo. Professá-lo
já equivale a negar a existencia de Deus.

Infelizmente nao poucas pessoas hojo em clia dizem acreditar em


Deus, mas O julgam injusto, desapiedado ou ao menos estranho ás
aspiracSes do homem. Essa figura do «Deus amoral ou imoral» é urna
contradigáo; quem a admite, já nao eré em Deus.

2. Reconheea-se, por conseguinte, urna verdade professada


também fora do Cristianismo : Deus criou o homem para dar-lhe
a felicidade ou a plenitude de bens a que éste espontáneamente
aspira; e Deus providencia para que a criatura atinja esta meta.
Portante, há ordem e finalidade no curso dos acontecimentos;
éste mundo e sua historia nao dependem da cega agáo do acaso,
mas sao governados pelo Criador.

3. Eis, porém, que difícilmente o homem conseguiría a sua


meta, que é «aderir a Deus, seu Autor», se Ésto o tlcixasse en
tregue as luzes de sua razáo natural apenas.
É o que se depreende de urna consideragáo retrospectiva da
historia : mesmo as verdades religiosas naturais, acessíveis por
si a razáo humana, tém sido erróneamente concebidas pelos
povos. Verifica-se que a idéia de Deus, que significa a Perfeicáo
subsistente, é-pervertida pelo politeísmo, o fetichismo, a magia...;
a consciéncia moral também é deturpada em ritos obscenos e
cruéis, que, sob aspecto de legalidade, servem ás paixóes dos
seus adeptos.
A rigor, todos os homens seriam capazes, por suas facilida
des próprias, de conceber a mesma e única nogáo genuína de
Deus, a mesma moral auténtica, as mesmas normas gerais de
culto. Na prática, porém, é com lentidáo e dificuldade que che-
gam a clareza em tais assuntos.

Éste estado de coisas se explica á luz de dois fatóres :

1) As questóes concernentes ao último Fim, á origem e ao signi


ficado da vida humana na térra nao se resolvem pela experiencia ncm
por simples dedueáo, mas pertencem ao dominio da metafísica. Ora
esta será sempre ardua para o comum dos mortais, pois requer que o

— 436 —
HA UMA RELIGIAO REVELADA POR DEUS ?

pensador goze de certa despreocupacáo intelectual, de alguma perspica


cia de espirito, e que ame a verdade, isento de preconceitos e paixóes.
Inegávelmente, porém, a maioria dos homens nao dispoe de tais dotes
ou nao vive em circunstancias tais. Ainda mesmo que urna classe de
cidadáos favorecidos conseguirse penetrar devidamente as verdades re
ligiosas, nao se poderia esperar (como seria para desejar) que de seus
estudos e conhecimentos se beneíiciasse todo o género humano. É
Platáo quem observa : «Difícil é encontrar o Autor e Pai do universo ;
mas dá-lo a conhecer filosóficamente a todos é absolutamente impos-
sível» (Timeu).

2) A RevelacSo crista fornece a última explicacao do fenómeno :


o pecado do Adao, se nao afetou diretamente a naturcza com sua inte-
lillñiria i> sua vnnl¡irl<\ ¡m menos oolncou o hrimom i;m rirninst únelas
de vida tais que; tóela coiiversíio ao Invisivi;! v ao Tnuisrrndenli! no Iho
torna ardua : paixóes desregradas dentro do individuo, tenlacGes múl
tiplas provenientes de fora, atrativos ilusorios do mundo sensivel con-
cor,rem para obcecar a inteligencia e debilitar a vontade na sua de
manda de bens espirituais.

Se tal é a condigáo do homem no que diz respeito ao conhe-


cimento das verdades naturais concernentes a Deus e á religiáo,
ninguém terá dificuldade em admitir a grande conveniencia de
que Deus mesmo ensinasse ao género humano nogóes táo impor
tantes (trata-se do último Fim da criatura!); pode-se mesmo
afirmar que a revelacáo sobrenatural era moralmente necessária
(isto é, necessária nao por exigencia da natureza humana, o que
seria necessidade física, mas por motivos derivados da conduta
do homem na térra). E, se ora moralmente necessária, pode-se
também dizer de antemáo que muito provávelmente Deus, em
sua providencia, a quis outorgar, a fim de assegurar ao homem
um reto curso de vida e a sua uniáo definitiva com o Criador.

Urna ulterior obscrvacüo ainda se concatena com as precedentes :


pelo fato de ser provável que Deus se tenha revelado sobrenatural-
mente ao homem, incumbe a qualquer individuo que tome consciéncia
disto, a obrigacáo do se certificar da existencia ou nao de tal revelacáo.
Furlar-se a éste dever seria, do um lado, desprezar o bem do próprio
sujeito, injuriando a natureza humana, e, de outro lado, ofender o
Criador mesmo, Autor da Revelaejio reconhecida como provável.

Mas como entáo atender a ésse dever de procurar a possivel


Revelagáo sobrenatural ? Que criterios deveráo ser levados em
conta ?

2. Os sinais da Revelagao Divina

Dado que Deus tenha decretado revelar-se á criatura,


pode-se admitir sem dificuldade que haja munido essa revelagüo
de sinais suficientemente claros, para que todos os homens a

— 437 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1958, qu. 1

pudessem distinguir e abragar com seguranga. Ésses sinais (tam-


bém chamados «motivos de credibilidade») seráo, em primeira
linha, realizagóes extraordinarias verificadas no curso da natu-
reza e só explicaveis pela intervengáo da Onipoténcia Divina; tais
realizagóes extraordinarias, porém, se deveráo prender a deter
minada doutrina como sélo de autenticidade aposto á mesma.

Dois sao os tipos de sinais que os homens, quer eruditos,


quer simples, sempre consideraram como fortes comprovantes
de urna intervengáo da Divindade no mundo : o milagre e a pro
fecía. A estos criterios se acrescentam, muito razoávelmenlc,
ainda outros — o que nos permite estabelecer o quadro seguintc:

o milagre e a profecía

externos a sublimidade da doutrina


(objetivos) e os frutos de vida digna
que ela suscita em quem
a professa
Sinais de RevelacSo
Divina ou motivos a satisfacáo das mais es
de credibilidade pontáneas aspiraeóes re
ligiosas do género hu
internos mano
(subjetivos)
a paz profunda experi
mentada pelos discípulos
da dita doutrina

Os criterios ácima, considerados isoladamente, teráo uns


mais, outros menos valor apodíctico; principalmente os criterios
subjetivos, que dependem de experiencia pessoal, poderáo deixar
lugar a dúvidas. Acontece, porém, que a satisfagáo simultánea de
todos os criterios da lista constituí prova inelutável. Com efeito,
tem-se entáo o que se chama «o argumento por convergencia de
probabilidades»; se varias linhas que se poderiam dispersar em
diregóes diversas, na realidade confluem para um só termo, é
preciso assinalar urna razáo suficiente ou adequada para essa
confluencia; ora tal razáo suficiente nao poderá ser senáo a exis
tencia do termo mesmo para o qual as diversas linhas confluem.
No nosso caso:... nao poderá ser senáo a veracidade da doutrina
qué cada um dos criterios da Revelagáo atesta do seu modo.

Pois bem; o Cristianismo, e o Cristianismo só, em sua forma


tradicional, católica, se beneficia de tal confluencia de criterios
ou motivos de credibilidade. A existencia do Cristianismo, como
ele hoje se apresenta ao mundo através de vinte séculos, guar
dando de geragáo em geragáo o contato com Cristo e os Após-

— 438
HA UMA RELIGIAO REVELADA POR DEUS ?

tolos, requer urna razáo suficiente; e esta só pode ser a presenca


e a agáo de Deus mesmo que se revela pela Igreja Católica.
A demonstragáo minuciosa desta tese foge ao ámbito da
nossa questáo; encontra-se sumariamente em «P. R.» 8/1957,
qu. 1 e 7/1598, qu. 4. Contudo abaixo empreendé-la-emos de
certo modo, considerando em particular o primeiro motivo de
credibilidade, que é o milagre.

3. O Milagre

1. Por «mikigrc própriamcnte dito» enlende-se em Teolo


gía um fenómeno que
a) no momento em que é produzido, ultrapassa o alcance
de toda e qualquer fórga criada e, por conseguinte, deve ser tido
como realizado por Deus;
b) e realizado a fim de testemunhar a presenga e a agáo
do Todo-Poderoso no mundo.

Ao lado do milagre assim estritamente definido, deve-se re-


conhecer a existencia de fenómenos que, embora se apresentem
como extraordinarios, estáo perfeitamente enquadrados dentro
dos limites de fórgas naturais :
sao efeitos de faculdades da alma humana ainda nao de
todo exploradas pela Psicología; fenómenos paranormais (= ao
lado dos normáis). Tém origem em choques psíquicos, estados
patológicos, as vézes indiscerníveis ao comum dos espectadores,
mas cada vez mais explanados pela nova ciencia chamada «Pa
rapsicología» ;
podem também ser efeitos de espiritos que, vivendo fora de
corpo (anjos bons e maus, almas dos defuntos), possuem capa-
cidade de agáo mais ampia que a do homem; tém-se entáo os
chamados «fenómenos preternaturais» (= postos alcm da natu-
reza humana, nao, porém, além de toda e qualquer natureza
criada; nao sao fenómenos «sobrenaturais», isto é, postos ácima
da natureza criada). Os fatos preternaturais nada tém que ver
com o milagre própriamente dito; éste é sempre evidente obra
de Deus.
A índole de sinal, repitamo-lo, é essencial ao conceito de
milagre. Por conseguinte, nao entram em consideragáo, para
quem procura se de fato existe urna religiáo revelada, fenóme
nos extraordinarios que correspondam exclusivamente á curio-
sidade, á vaidade ou á fantasia dos homens, mas nao levem para
Deus e o genuino culto de Deus no monoteísmo (o panteísmo e
o politeísmo sao aberragóes).

— 439 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1953, qu. 1

Os artigos de «P. R.» 2/1957, qu. 2 é 6/1958, qu. 1 pro-


curam mostrar como, apesar dos progressos da ciencia contem
poránea e nao obstante a multiplicaeáo dos fenómenos parapsi-
cológicos, aínda se pode em nossos dias dar pleno crédito a mila-
gres. A fim de nao repetir quanto ai foi dito em estilo especula
tivo, esforgar-nos-emos abaixo por evidenciar o mesmo resul
tado, seguindo outra via : á luz de um caso concreto, verifica
remos como certos fatos sao tidos, com o concurso da razáo
humana, quais auténticos testemunhos de Deus ou quais genui-
nos milagros.

2. Desde fins do sáculo passado, existe em Lourdes (í'ran-


ga) um «Bureau Medical des Constatations», reparticáo desti
nada a examinar com a mais moderna aparelhagem técnica
curas que os peregrinos dizem obter naquela cidade. A reparti
cáo, seu laboratorios e suas pesquisas sao franqueados a médicos
de toda e qualquer ideología, aos quais se reconhece o direito
de examinar os arquivos, controlar os exames de seus colegas e
tomar parte ñas discussóes que cada caso provoca. Em 1948,
por exemplo, foram fazer estágio de controle em Lourdes cerca
de mil médicos de fora, dos quais trinta e sete eram professórcs
de Faculdades, mais de cem clínicos ou cirurgióes de hospitais e
numerosos especialistas.

E como funciona o «Bureau Medical des Constatations» ?


Logo que um doente se aprésente como curado na cidade,
os médicos encarregados do respectivo inquérito ouvem os depoi-
mentos do «miraculado» e de seus acompanhantes e conhecidos,
depoimentos que ficam arquivados juntamente com as observa-
Cóes dos médicos examinadores. Convida-se, a seguir, o paciente
a voltar a Lourdes dentro de um ano, levando atestados médicos
diversos; deverá entáo ser submetido a novo exame. Esta segun
da instancia é suficiente para eliminar varios casos : ou a pessoa
nao volta ou, caso volte, verifica-se que a cura foi efémera ou
que nao há provas suficientes de que o doente, ao chegar a Lour
des, sofría realmente da molestia alegada.
Dado que o segundo exame do «Bureau» nada descubra
contra a pretensa cura, o paciente é deferido a outra Comissáo
de Médicos, internacional, a qual recorre a novos e mais rigo
rosos testes, rejeitando geralmente boa parte dos casos alegados.
Suposto que as duas equipes de médicos nao encontrem
razáo para eliminar tal ou tal caso, nao declaram tratar-se de
milagre, mas apenas de fenómeno inexplicável pelos atuais
conhecimentos da medicina.

— 440 —.
I-IÁ UMA RELIGIAO REVELADA POR DEUS ?

A título de ilustragüo, eis aqui as cinco condicóes estipuladas pelos


examinadores para que possam fazer tal declaragáo:
1) tenha havido molestia grave, acompanhada de alteracóes anató
micas (modificacóes de tecidos, perda ou superprodugáo déstes), moles
tia diagnosticada e comprovada segundo os mais recentes métodos de
pesquisas, com previsáo de evolugáo sinistra ao menos no órgáo ou nos
tecidos afetados (nao se levam em conta, por conseguinte, doengas me
ramente nervosas);
2) ineficacia de todo método terapéutico ou ao menos de todos os
recursos medicináis aplicados ao paciente;
3) ha ja extingao de toda lesáo orgánica em prazo táo curto que se
possa falar de cura instantánea (instantánea em sentido absoluto ou,
ao menos, em sentido relativo);
4) nao si* vrrifií|iu? a demora nal oral neei-ssária para a recupera-
gao pradal iva das fungues orgánicas perdidas U> paciente devela ¡me
diatamente poder andar, comer e digerir com toda a normalidade...),
nem a demora exigida para a absorgáo de edemas, derramamentos de
pleura, para a destruigao de massas de tumores, etc. Esta condigáo,
porém, nao excluí que o estado geral de saúde do enfermo faga rápidos
progressos mediante aumento de peso, de fórgas, etc. ;
5) seja a cura duradoura, isto é, definitiva, capaz de ser compro
vada por exames sucessivos feitos a notáveis intervalos de tempo.

A declaragáo das comissóes médicas levada ao conheci-


mento das autoridades eclesiásticas nao basta para que estas
apregoem «milagro». Á autoridade da Igrcja ó necessário exami
nar ainda a segunda nota característica do milagre, isto é, se o
fenómeno tem índole auténticamente religiosa, índole pela qual
o milagre própriamente dito se distingue de qualquer manifesta-
cáo diabólica ou simplesmente parapsicológica. Por isto, em ulte
rior instancia, o paciente munido dos atestados médicos é entre
gue a urna comissáo de teólogos e juristas eclesiásticos, que inda-
gam, segundo os criterios estabelecidos pelo Papa Bento XIV
(1740-58),
1) se a cura foi perfeita e definitiva,
2) se, ñas circunstancias e nos efeitos do fenómeno verifi
cado, nada se depreende de frivolo, ridiculo, dosonesto, torpe,
violento, ímpio, soberbo, fraudulento ou impugnável a qualquer
título moral que seja,
3) se, ao contrario, tudo no fenómeno é decente, serio,
convidativo á piedade, á relígiáo e á santidade (requer-se explí
citamente que o fenómeno se haja verificado em resposta a atos
de fé e de virtudes, como sejam a oragáo, urna peregrinacáo, a
aplicagáo náo-supersticiosa de urna reliquia, etc.).

Caso a estas tres questóes se possa dar resposta afirmativa,


entáo a comissáo de eclesiásticos declara que, com certeza moral
(isto é, com o grau de certeza que a prudencia humana pode
obter), o fenómeno previamente tido pelos médicos como

— 441 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1958, qu. 1

estranho a qualquer explicagáo científica pode ser considerado


como milagre estritamente dito (note-se que urna sentenga des-
sas nunca é imposta qual materia de fé; fica a todo católico a
Iiberdade de aceitá-la ou nao).

Aínda que os casos hoje considerados milagrosos possam ura día


vir a ser explicados por agentes naturais, o simples fato de que se pro-
duzem em nossos días de maneira inexplicável e como resposta a atos
de fé, leva a concluir o seguinte: tal fenómeno, que talvez pudesse ter
sido causado por agentes naturais, foi realmente suscitado por Deus a
fim de ser sinal de Deus.

Entcndc-se que a maioria dos casos estudados nao resista


aos sucessivos exames das tres comissóes, nao por scrcm frau
dulentos, mas por serem suscetíveis de elucidagáo meramente
natural. Assim é que dos milhares" de «curas» anunciadas em
Lourdes desde o- comégo das aparigóes (1858) sómente 54 sao
hoje reconhecidas tanto pelas autoridades médicas como pelas
eclesiásticas (talvez se pudessem registrar mais casos genuinos
nesse periodo, se as averiguagóes e estatisticas tivessem sido
mais regulares e se a comissáo canónica nao tivesse funcionado
apenas durante vinte e dois anos).

Em 1946, por exemplo, íoram registrados 14 casos de «curas»;


déstes, 7 apenas se submeteram a novo exame após um ano e final
mente 3 foram considerados como auténticos. Em 1947, dos 35 casos
registrados, 14 íoram reexaminados um ano mais tarde e 6 apenas
obtiveram pleno reconhecimento médico.

Estas noticias dáo-nos a ver, entre outras coisas, como a


Igreja está pronta a. levar em conta qualquer objejáo que por
parte da ciencia se possa fazer contra o milagre. Longe de pre
tender nutrir u.'a mentalidade fanática ou falsamente mística,
ela só apela para éste, quando nao há outra explicagáo para
determinado fato. «O uso da razáo precede a fe», declarou opor
tunamente Pió IX, em 1855 (cf. Denzinger, Enchiridion 1651).

A guisa de complemento, visando facilitar ao leitor um juizo obje


tivo sobre o assunto, apresentamos aqui um dos portentos mais recen
tes e famosos obtidos fora do Catolicismo, portento éste que a opiniáo
pública na Inglaterra e no estrangeiro chegou a qualificar de «milagre»
do «Messias» indonesio Mohammed Pak Subuh (relato encontrado na
revista «Paris Match» n» 453, 14/XII/1957, páginas 18-27).

Em junho de 1957 a artista de cinema Eva Bartok jazia num leito


de clínica em Holywood, aguardando ser operada de tumor canceroso
dentro de poucas horas. Repentinamente, porém, á meia-noite acordou
sobressaltada com urna voz que lhe mandava seguir viagem ¡mediata
mente para Coombs Spring (Inglaterra), onde vivia urna colonia de

— 442 —
HA UMA RELIGIAO REVELADA POR PEUS ?

ascetas budistas, recrutados na alta sociedade inglesa, sob a orientagáo


de Mohammed Pak Subuh e John Bennett. Éste último era um inglés
que em viagem pelo Oriente lora iniciado no ocultismo e no misticismo
da Arabia e da India e que Eva Bartok já conhecia havia muitos anos.
Em Coombs Spring, dizia a voz, Eva recuperaría a saúde.
Em desespero de causa, a artista rendeu-se a esta intimacao. Tomou
logo o aviáo e em breve viu-se no antigo palacio de Coombs Spring,
onde John Bennett muito amigavelmente a recebeu; fé-la repousar e
introduziu nos seus aposentos o famoso «Saddhu» ( = santo) indonesio,
que só em casos raros saía de sua cela e de seu isolamento meditativo.
Pak Subuh curaría Eva, assegurava Bennett.
Refere entao a reportagem que no primeiro encontró o indonesio,
do olhos negros elioios de calor o ternura, do tez somliria, estatura
|)ec|iiena, soca o impressioiKinle, so aproximou do diva vormolho onde
jazia a artista. Estava acompanhado por u'a mulher revestida de seda,
denominada Itu (=a Mác), esposa e discipula do Mestre. Os dois visi
tantes diante da doente juntaram as máos ante a face a maneira hindú,
e assim permanecerám imóveis durante horas. Eva, que já nao dormia
havia meses, acabou por cair no sonó e só despertou após a saida dos
dois orientáis, maravilhosamente repousada...
Durante meses a fio o casal voltou diariamente k presenca da en
ferma, retomando sempre aspecto e atitude impressionantes. Nao lhe
diziam palavra, pois só sabiam o idioma indonesio; apenas se comuni-
cavam pelo olhar, o que contribuía para maior imponencia da cena.
Pouco a pouco Eva «sentía que lhe infundiam a sua fórca». Conseguiu
levantar-se; foi recuperando o vigor corporal, até que finalmente se
deu por completamente curada: «Tenho a impressao de que tudo que
vivi até a minha cura nao era senáo um mau sonho. Despertei-me
o minha vida comeca», pode ela dizer, como que reproduzindo as pala-
vras de Buda após a sua «iluminacáo»: «Nasci para a vida verdadeira!
Minha vida comega!». Eva, em conscqüéncia, anexou-se á comunidade
de Coombs Spring, levando a vida severa dos demais ascetas da casa.

O episodio é impressionante, pois parece compiwar as práticas e


a doutrina do budismo ou do hinduismo em geral. Como apreciá-lo ?

Num exame sereno, destituido de tese preconcebida, verificam-se


em toda a historia dessa cura evidentes síntomas de telepatia, transmis-
sao de pensamento, hipnotismo, sugestao, isto 6, de elementos que nao
ultrapassam as facilidades psicológicas e parapsicologías da natureza
humana o que nos dispensam de apelar para extraordinaria intervengáo
de Deus. Tenha-se em vista, por exemplo, a morosidade com que a cura
íoi sendo obtida; houve visitas sucessivas decorridas em silencio impres
sionante, sendo que os visitantes tomavam fisionomía e posigóes carac
terísticas, ao passo que a artista visitada logo no primeiro encontró
caiu em profundo e benéfico sonó. Esta trama se assemelha demais á
dos fenómenos parapsicológicos, perdendo assim o direito de ser inter
pretada diferentemente déstes. Se, por conseguinte, a fenomenologia
ácima descrita é suscetível de explicacáo natural, já nao seria científico
tomar o caso de Eva Bartok como auténtico milagre ou como sinal
diretamente produzído por Deus para atestar a santidade de alguma
doutrina ou de alguma pessoa.
Contudo nao se nega possa haver verdadeiros milagres fora da
Igreja Católica; quando, porém, se verificam, concorrem para levar ao
único Deus. Cf. «P. R.» 6/1958, qu. 1.

— 443 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1953, qu. 2

ESPERANgOSO (Rio de Janeiro) :

2) «Com que fundamento se diz que o esperanto, lingua


internacional, tem significado quase religioso, destinando-sc a
ser o idioma da humanidade confraternizada sobre novas bases
espirituais ?»

O esperanto (palavra que no próprio idioma esperantista


significa "esperangoso") é, ao menos por seu nome, um idioma
mensageiro de bom agouro. Disto, porém, nao se segué que a
Religiáo como tal esteja diretamonte envolvida no significado
social dossa lingua. 1;: o que so wrá pereonviulo alguns falos da
historia.
1. O idioma esperantista se deve a um filólogo e médico,
Luís Lázaro Zamenhof, nascido em 1859 na localidade de Bie-
lostock (Polonia). Já como jovem estudante, Zamenhof se im-
pressionava ao ver em sua cidade natal quatro grupos étnicos
que viviam juntos sem se entender mutuamente : russos, polone
ses, alemáes e israelitas. Concebeu entáo o ideal de derrabar as
barreiras filológicas que distandam uns dos outros os homens na
térra. O estudo de diversas linguas — latim, grego, russo, fran
cés, inglés, alemáo — corroborou-o nesse intento. Formulou en
táo dezesseis regras de gramática muito simples (apenas dois
casos, para as declinagóes ; formas verbais sem flexáo de pes-
soas e número. . .); quanlo ao vocabulario, procurou formá-lo a
partir de raíses usadas nos principáis idiomas internacionais
(mormente no latim e no alemáo); assim o esperanto diz vino,
correspondendo ao termo vinum latino, vinho portugués, vin
francés, vino italiano, vino espanhol, wein alemáo, wine inglés,
vino russo. As regras de composicáo e flexáo das palavras nao
admitem excecáo na nova lingua : o é a desinencia de todo e
qualquer subsFantivo; a, a dos adjetivos; c, a dos adverbios; i,
a dos infinitivos; ,j, a da forma de plural; n, a do objeto direto
(donde komerco, comercio; komerca, comercial; komerce, co-
mercialmente; komerci, comerciar; komercoj, comercios).
Em 1887 apareceu a primeira brochura esperantista, da au-
toria de Zamenhof: "D-ro Esperanto — Lingvo Internada, Anta
uparolo kaj Plena Lernolibro" isto é, "Doutor Esperanto (Espe-
rancoso) — Lingua Internacional. Prefacio e livro de estudo
para uso dos Russos". A segunda monografía saiu em 1890,
ambas muito bem acolhidas e rápidamente difundidas em varios
idiomas. Em 1905 teve lugar na cidade de Boulogne-sur-Mer
(Franga) a primeira reuniáo internacional de esperantistas, que
contava oitocentos participantes a representar trinta países
diferentes.

— 444 —
ESPERANTO. LÍNGUA DO MUNDO NOVO?

Ao irromper a primeira guerra mundial, Zamenhof, que so-


nhava com a uniáo dos homens entre si, nao pode deixar de se
sentir profundamente pesaroso; veio a falecer em Varsóvia
em 1917.
De 1905 a 1939 realizaram-se 31 Congressos Internacionais
de Esperanto; tém tratado dos mais variados assuntos (eletro-
técnica, física, química, aviagáo, turismo, correio, policía, esteno
grafía, etc.) sempre em esperanto, e alheios a política e á reli-
giáo. iHoje em dia contam-se cérea de 2000 gramáticas que em
54 línguas possibilitam o estudo do esperanto; 112 dicionários
especializados em 45 ramos da ciencia, da filosofía o da técnica
jjLTinilem o uso do esperan lo ein muitas das alividades humanas
ijiternacionais. Há cérea de 50 jornais e revistas literarias, cien
tíficas, políticas, religiosas publicadas regularmente em espe
ranto. Quase todos os autores clássicos foram traduzidos para
éste idioma (desde Hornero e Virgilio até Dante, Shakespeare,
Cervantes, Vítor Hugo, Goethe...). Máis de 600 cidades publi-
caram brochuras turísticas em esperanto. A Conferencia da
UNESCO realizada em Montevidéu no ano de 1954 exprimiu o
desejo de que o esperanto seja ensinado ñas escolas.

2. Eis o significado atual do esperanto; tornou-se urna lí,n-


gua que muito tem favorecido o intercambio e a colaboragáo dos
homens entre si. Disto, porém, nao se segué que tenha missáo
religiosa dependen!e de expectativas messiánicas inovadoras ou
náo-cristás. O esperanto por si nada tem que ver com o advento
de nova era ou de nova filosofía religiosa, embora alguns de
seus cultores o associem a tais expectativas (ou "esperancas").
Positivamente, o esperanto é mais urna afirmacáo da tendencia
do género humano a superar as barreiras do particularismo e
do egoísmo desencadeados no mundo pelo pecado dos primeiros
pais; é urna expressáo da sede de redencáo, de reconciliacáo uni
versal que todos os homens, no fundo de sua cansciéncia, experi-
mentam. Ora a Redencáo foi trazida ao mundo por Cristo e é no
reino de Cristo prolongado através dos sáculos (na Igreja) que
ela se encontra. O esperanto pode inegávelmente contribuir para
facilitar a confraternizacáo dos homens de diversas nacóes den
tro désse reino. É por isto que as autoridades da Igreja tém fa
vorecido ésse idioma (coisa que nao fariam se estivesse necessá-
riamente ligado a urna concepgáo do mundo náo-cristá).

O Santo Padre Pió X, por exemplo, escrevia ao Pe. Peltier, autor


do livro «L'espoir catholiquef favorável ao esperanto: «Reconheco a
utilidade do esperanto para salvaguardar a unidade dos católicos no
mundo». O primeiro livro de oragoes em esperanto, redigido por um
católico francés, M. de Beaufront, íoi ofertado a Pió X em 1906,

— 445 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1171958, qu. 3

Os Papas Pió X, Bento XV e Pió XII tém abencoado os empreendi-


mentos esperantistas.
No XXXIV Congresso Eucarístico Internacional reunido em Buda-
peste em 1938, foi eleita urna Comissáo encarregada de organizar as
sessóes esperantistas que doravante teriam lugar nos Congressos Euca-
rísticos Internacionais; era a «Konstanta Komitato por Eukaristiaj
Esperanto Mondkunvenoj».
Um dos mais recentes convenios da Organizacáo católica «Pax
Christi» pediu a seus membros, prestigiassem o esperanto como lingua
internacional, aprendendo-a e servindo-se déla.
A Igreja autoriza a confissáo sacramental em esperanto. Em
agosto de 1957 em Missa celebrada no santuario de N.-Dame-de-la-Guar-
de de Marselha o probador dirigiu-sc aos fiéis ncssa lingua.

n. DOGMÁTICA

CAMILO (Sao Paulo) :

3) «Que é o AGÑUS DEI ?


E que crédito se pode dar as maravilhosas promcssas ane
xas ao seu uso ? Nao se assemelham as dos bentinhos e demais
objetos mágicos ?
Pelo fato de serem aprovadas por um censor eclesiástico,
qual a autoridade que compete a essas promcssas ?»

Os Agnus Dci sao medalhóes de cera branca, forma oval,


tamanho variável, bentos pelo Sumo Pontífice. Trazem, de um
lado, a imagem do Cordeiro Pascoal deitado sobre o livro de
sete selos do Apocalipse (cf. 5,1) e acompanhado do dístico :
«Ecce Agnus Dei qui tollit peccata mundi», assim como do nome
do Papa que benzeu o medalháo; do outro lado, apresentam a
imagem de um santo ou o símbolo comemorativo de um aconte-
cimento importante.
Os cristáos sempre dedicaram grande estima a tais objetos.
Sendo assim, percorramos rápidamente o histórico do Agnus Dei
e averigüemos qual seja precisamente a sua eficacia.

1. Breve histórico do Agnus Dei

Embora nao se possa dizer muita coisa sobre a origem do


Agnus Dei, consta que ela se deve á praxe dos cristáos de Roma.
O primeiro documento que fala désse objeto, é um «Ordo Ro-
manus» (livro de ritos e preces) do séc. IX. Goza de pouca pro-
babilidade a teoría que associa o uso dos Agnus Dei com o cos-
tume dos antigos fiéis de' guardar consigo fragmentos do cirio
pascoal, ao qual (como se supóe) atribuiam especial poder de
protegáo.

— 446 —
O «AGNUS DEI» E SUA EFICACIA

Na Idade Media a béngáo do Agnus Dei era efetuada no


sábado santo na basílica do Latráo, em presenga do Sumo Pon
tífice; o arquidiácono, a quem competía oficiar o rito, misturava
& cera liquefeita o óleo santo do crisma, benzia a mistura e a
colocava em forma, onde a massa recebia os tragos do Cordeiro.
Os fragmentos assim oriundos eram guardados até a oitava da
Páscoa, domingo em que vinham distribuidos aos fiéis após a
S. Comunháo. Os cristáos os conservavam e, ao correrem um
perigo qualquer, os queimavam com devogáo.
Aos 21 de margo de 1470, o Papa Paulo II, para evitar o
comercio e os abusos do Agnus Dei (que o povo muito prezava),
rcservou ao Sumo Pontífice o direilo de mandar fazer c de ben-
zer tais objetos. Esta reserva continua em vigor, sendo que a
confeesáo dos Agnus Dei está hoje em dia confiada aos monges
cistercienses da basílica da Santa Cruz de Jerusalém (Roma).
O Santo Padre procede á bengáo dos Agnus Dei durante a
oitava de Páscoa do primeiro ano de seu pontificado e a renova
de sete em sete anos, fora as ocasióes de afluencia extraordina
ria de peregrinos a Roma (jubileus, canonizagóes, etc.), quando
se esgota a reserva de tais objetos, fazendo-se necessária nova
provisáo.

2. Eficacia do Agnus Dei

O Agnus Dei constituí um dos chamados «sacramentáis» da


Igreja, e é como tal que ele produz seus efeitos.

1. Pergunta-se entáo : que sao os sacramentáis ?


Os sacramentáis (adjetivos que foi substantivado no
séc. XII) sao objetos ou ritos que, ostentando semelhanga com
os sacramentos, sao utilizados pela Igreja a fim de obter de Deus
efeitos primariamente espirituais. Exemplificando :
a) Pertencem á categoría dos sacramentáis as béngáos
que a Igreja confere aos elementos materiais com os quais o
homem lida no desempenho de sua tarefa neste mundo. A Igreja
confere tais béngáos a fim de que nenhuma das fungóes huma
nas fique profana ou neutra perante a religiáo, mas, ao contra
rio, todas, por mais corriqueiras que paregam, constituam urna
extensáo da obra da Redengáo ao setor em que o operario, o
artista, o estudioso, o pai de familia.... vivem; assim as béngáos
dos alimentos, das casas, das oficinas, dos navios, etc.
b) Sacramentáis sao também certos objetos bentos ou
consagrados para servirem exclusivamente a fins religiosos, con-

— 447 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1958, qu. 3

correndo do seu modo (vé-lo-emos abaixo) para a santificagáo


do individuo. Assim, um térgo bento, u'a medalha benta, as cin-
zas bentas na quarta-feira inicial da Quaresma, as palmas do
domingo anterior a Páscoa, e também a cera benta sob a forma
do Agnus Dei.

c) É um sacramental outrossim o uso dos objetos indica


dos sob a letra b; o uso, por exemplo, da agua benta e, em parti
cular, o uso ou a leitura da Sagrada Escritura, a recitagáo do
Oficio Divino ou Breviario.

Mediante as preces que a Igrcja realiza sobre os sacramen


táis quando os benze ou mediante a autoridade que lhes confere
quando os promulga, o uso désses objetos adquire urna eficacia
própria, muito maior do que a que proviria únicamente das boas
disposigóes do individuo. É todo o peso, por assim dizeri da ora-
gáo da Igreja (sempre agradável a Deus) que se coloca por
detrás dos sacramentáis a fim de impetrar do Divino Esposo
efeitos salutares para os fiéis que os usam. — Contudo é preciso
acentuar bem que a eficacia dos sacramentáis nada tem de me
cánico ou mágico; o uso désses objetos (medalha benta, escapu
lario, agua benta...) nao forca Deus a dar as suas gragas nem
por si garante a salvagáo do homem. Exigir-se-á sempre que
quem recorra aos sacramentáis o faga conscientemente, exci
tando conlricáo, fé e caridade em scu ánimo. Os sacramentáis
pressup5em tais disposigóes e visam avivá-las mais ainda, sendo
que, para a consecugáo de tal efeito, concorre, no caso, a cagáo
pura e sempre válida da Igreja.
Embora geralmente os efeitos colimados pelo uso dos sacra
mentáis sejam de índole espiritual (gragas atuais que fomentem
o progresso ñas virtudes, fuga do espirito maligno...), alguns
podem ter anexos também beneficios de ordem temporal ou ma
terial (obtengáo de saúde, de tempo bom, de messe abun
dante), pois o corpo do cristáo pertence, como o espirito, ao
plano religioso e sobrenatural; é objeto digno da prece da Igreja.
Requer-se, porém, que quem se serve dos sacramentáis para im
petrar algum beneficio temporal nao faca désse beneficio o
termo quase absoluto de suas aspiragóes, identificando sua felici-
dade com a posse de um objetivo material; lembre-se de que
Deus só concede os bens temporais na medida em que sejam
compatíveis com a salvagáo eterna dos fiéis; a dor e o sofrimento
nao sao, para o cristño, enigma inconciliável com a Providencia
de sorte que o discípulo de Cristo deva crer que o Senhor o liber
tará da cruz todas as vézes que orar com piedade e devogáo; nao,
nao creia nisto o cristáo.

— 448 —
O cAGNUS DEI» E SUA EFICACIA

2. A luz de tais idéias é que se deve considerar o uso do


Agnus Dei.
Ésse objeto, colocado dentro de um involucro de paño, pode
ser trazido ñas vestes dos fiéis ou exposto em urna sala, aplicado
a um órgáo doente, contraposto as chamas, como também pode
ser osculado com a recitagáo concomitante de urna jaculatoria.
Estas práticas seráo proficuas se fórem inspirados pela pura in-
tencáo de servir a Deus na fé e na caridade (caridade cujo obje
tivo primario é a identificacáo incondicional com a vontade do
Pai do céu).
Na verdade, sao maravilhosos os efcilos atribuidos ao
Agnus Dci pelos formularios que costumam acompanhar tais
objetos;... táo maravilhosos que merecem urna análise ao me
nos sumaria :
a) entre os beneficios espirituais, promete-se infusáo ou
aumento da graca, apagamento dos pecados veníais.
Como entender isto ?
Nenhum désses efeitos é diretamente obtido pelo Agnus Dei.
Ensinam os teólogos que o uso piedoso dos sacramentáis, em
virtude da intercessáo da Igreja, pode obter gragas atuais que
despertam a contrigño e a caridade; estas duas virtudes é que
váo diretamente alcangar o perdáo de pecados veníais e o au
mento da graca santificante ou mesmo a infusáo desta em urna
alma que nao a possua (desde que tal alma, embora o deseje,
nao possa receber o sacramento da penitencia).
Aínda será oblendo gragas atuais que o recurso ao Agnus
Dei poderá indiretamente alcangar, como diz o mencionado for
mulario, «o desenvolvimento da piedade, a dissipacáo da tibieza,
a preservagáo contra o vicio, a predisposigáo para a virtude».
Está claro que as gragas atuais assim alcangadas e o progresso
na virtude favorecido por elas tornam a alma apta « se desvenci-
lhar das ciladas do demonio e a escapar á eterna ruina». Isto,
porém, está longe de significar que as pessoas portadoras do
Agnus Dei sao isentadas de tentagóes diabólicas. As tentagóes,
no plano de Deus, devem constituir ocasioes de purificagáo e
mais consciente adesáo ao Senhor (cf. 1 Cor 10,13); por isto
muito se engañaría quem julgasse poder santificar-se sem passar
pelo cadinho das tentagóes ou poder adquirir um «passaporte»
que imunizasse contra os assaltos do demonio; a vida dos santos
atesta mesmo que, quanto mais urna alma progride na virtude,
tanto mais também pode Deus permitir que seja perseguida pelo
Maligno, para o maior bem dessa alma (sejam citados o Abade
S. Antáo outrora residente no deserto e o Santo Cura d'Ars,
filho do séc. XK);

— 449 —
«PERGUNTÉ E RESPONDEREMOS» 1171953, qu. 3

b) beneficios temporais : tais seriam, segundo os formula


rios distribuidos co mo Agnus Dei, a isengáo de morte repentina
e dos terrores causados pelos fantasmas; mais ainda : a imuniza-
gáo contra doengas, pestes, epilepsia, venenos, raios, saraiva, in
cendios, inudagóes... Em urna palavra, os Agnus Dei «armam
com a protegáo divina contra a adversidade, fazem evitar os pe-
rigos e as desgracas, dáo prosperidade».

Que interpretagáo dar a tais dizeres ?


Tais promossns tém primariamente o sentido sepuinte : o
uso devoto do Agnus Dei imuniza nao própriamonle contra o so-
frimento temporal, a doenga e as catástrofes físicas como tais,
pois nada disto é realmente um mal para os fiéis, desde que
Cristo tomou sobre si as nossas dores e a nossa morte física
(desde entáo o sofrimento e a morte sao instrumentos de Reden-
cáo e santificagáo para o discípulo de Cristo que as abrace em
uniáo com o Salvador). Mas, em termos positivos, o uso devoto
do Agnus Dei pode concorrer eficazmente para se evitar o ver-
dadeiro e único mal, que muitas vézes está anexo as desgragas
físicas, isto é, o desespero, a revolta contra Beus, a perda de
coragem, de espirito de fé e confianga sobrenaturais... Estas,
sim, sao calamidades, as únicas calamidades para o cristáo, pois
sño os únicos males que Cristo nao tomou sobre si e nao trans-
formou (ncm podía transformar) em meios de sa,ntificagíio; por
conseguinte, destas desgragas é que o cristáo procura a todo
transe fugir, sendo nisto auxiliado pela prece da Igreja e as gra-
gas atuais que o Agnus Dei pode comunicar. A doenga e os de-
mais flagelos desta vida só sao um mal para o homem se se tor-
nam ocasiáo para que peque.
Repitamo-lo, pois : já que o pecado e a impiedade sao nao
raro ocasionados pelo sofrimento físico, diz-se que o Agnus Dei
preserva do sofrimento físico. Isto significa que imuniza nao da
cruz como tal (pois entáo é que seria verdadeiramente.digno de
compaixáo e infeliz o cristáo), mas da única desgraga (que é
espiritual, sobrenatural) freqüentemente decorrente do sofri
mento físico. O Agnus Dei tornar-se-á mesmo canal de fórga e
caridade para que os fiéis sofram com o máximo proveito, usu-
fruindo táo zelosamente quanto possível as gracas que jorram
da cruz.

Com estas observagóes nao se quer negar que o Senhor


possa realmente isentar de males temporais os devotos do Agnus
Dei. Ele o fará, porém, segundo os designios imprevisíveis de sua
Providencia, visando favorecer a santificagáo dos fiéis, sem que

— 450 —
O «AGNUS DEI» E SUA EFICACIA

em caso algum possamos de antemáo prometer-nos a isengáo de


tais males em troca do recurso ao sacramental.

3. Nos formularios explicativos das «Virtudes do Agnus


Dei», ainda se lé :

«Eis, segundo os Papas Urbano V, Bento XIV, Paulo II, Julio III
e Xisto V, as propriedades que se tém reconhecido nos Agnus Dei era
favor de quem se traz com devocüo e confianza».

Quer esta frase envolver a autoridade dos Sumos Pontífices


ñas prompssns do Agnus Dei ?
Nao, em absoluto. Note-so bcm : o texto ácima dá a enten
der ap'enas que os Papas nomeados atestaran! a crenga popular,
ou seja, atestaram que eram geralmente atribuidas pelos fiéis
tais e tais propriedades ao objeto bento. Esta atestagáo nao
significa de modo nenhum declaragáo ou definigáo dogmática.
Implica únicamente que os Pontífices citados julgaram nao
haver, a rigor, erro dogmático em tal crenga popular, podendo
esta ser entendida devidamente, nos termos ácima explanados
mencionaram em alguns breves e bulas tal estima do povo para
com o Agnus Dei, nao própriamente por causa dos efeitos mate-
riais prometidos, mas principalmente por causa dos beneficios
espirituais, ou seja, dos estímulos que para a vida de piedade
podía trazer a divulgagño de tal crenga popular; referLndo, pois,
a opiniáo pública, os Papas visavam, antes do mais, despertar o
espirito de fé e de oracáo nos cristáos.
Quanto as cláusulas «Imprimatur» e «Reimprima-se» que
encerram os folhetos explicativos do Agnus Dei, elas represen-
tam o resultado da censura eclesiástica. Está claro que nao tém
significado mais ampio do que o testemunho dos Papas que aca
bamos de elucidar. Observe-se que á censura eclesiástica cabe
únicamente verificar se em determinado texto se encontram
crros dogmáticos ou moráis ou algo que se oponha ao decoro da
religiáo crista. O resultado da censura é, por conseguinte, mera
mente negativo; está longe de significar que o censor ou o pre
lado diocesano fazem suas as idéias expressas no texto exami
nado; éles apenas reconhecem que tais idéias sao compatíveis
com o edificio dogmático do Cristianismo, embora nao falem
sempre daquilo que há de mais belo e profundo na fé crista. É á
luz déstes principios que se deverá entender o «Imprimatur»
dado ao folheto «Virtudes do Agnus Dei».
Lembremo-nos de que a Santa Igreja é sempre sobria e cau
telosa ao admitir promessas e fenómenos portentosos. Que os
fiéis nao se afastem desta sabedoria !

— 451 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1V1958. qu. 4

m. SAGRADA ESCRITURA

SILVIO (Rio de Janeiro) :

4) «A Igreja terá alguma vez proibido a leitura da


Biblia?»

1. A Igreja sempre estimou a Sagrada Escritura, junta


mente com a Tradigáo divino-apostólica, como fonte de fé. Eia
atribuí á Biblia o valor de um sacramental, isto é, de objeto apto
a comunicar a graga a qucm o use com fé c devocáo. Um dos
sinais mais evidentes dessa estima é o falo de que a leitura pú
blica da Biblia sempre foi associada á celebragáo do Sacramento
por excelencia, ou seja, da S. Eucaristía; a comunháo com o pao
da Palavra de Deus ñas Escrituras deve preparar as almas para
a comunháo com. o Pao da Vida na Missa. Testemunho multo
vivo dessa concepgáo é dado pela «Imitagáo de Cristo», «o único
livro religioso que (fora a Biblia) seja comum a católicos e pro
testantes», como se exprime o autor protestante C. Hilty, em
«Lesen und Reden». Leipzig 1899, pág. 45. Eis, com efeito, o que
lemos no citado opúsculo, 1. IV c. 11, n. 4 :

«Simo que nesta vida me sao absolutamente necessárias duas


coisas, sem as quais se me tornaría insuportável esta mísera exis
tencia ...
A mim, enfermo, deste o teu corpo sagrado para a restaurado da
mente e do corpo; e concedeste a tua palavra como lanterna para os
meus passos.
Sem essas duas coisas nao poderia viver ratamente, pois a Palavra
de. Deus é a luz de minha alma, e o teu sacramento é o Pao da Vida>.

2. Aconteceu, porém, que circunstancias contingentes da


historia levaram algumas vézes as autoridades eclesiásticas a
exercer vigilancia sobre o uso das Escrituras. Tais foram na
Idade Media

a) a heresia dos Cataros ou Albigenses, que, abusando dos


livros sagrados, induziu os Padres dos concilios regionais de
Tolosa (1229) e Tarragona (1234) a vedar provisoriamente aos
cristáos leigos a leitura da Biblia;

b) os erros de J. Wicleff, em vista dos quais o sínodo re


gional de Oxford (1408) proscreveu as edigóes da S. Escritura
que nao tivessem aprovagáo eclesiástica (os herejes fácilmente
deturpavam o texto sagrado).
Estas medidas, contingentes como eram, nao visavam impe
dir a propagagáo habitual" do código sagrado. Para só falarmos

— 452 —
A IGREJA PROIBIU LEITURA DA BÍBLIA ?

da Alemanha, lembremos que o primeiro grande livro impresso


por Gutenberg foi a Biblia em dois volumes (1453-1456). Até
1477 saíram do prelo cinco edicóes da Escritura em alemáo; de
1477 a 1522, vieram a lume nove edigóes novas (sete em
Augsburgo, urna em Nürenberg e urna em Estrasburgo); de 1470
a 1520 apareceram cem edicóes de «Plenários», isto é, livros que
continham as epístolas e os evangelhos de cada domingo. Isto
bem mostra como a Igreja estava longe de querer, em circuns
tancias normáis da vida crista, restringir o estudo da Biblia.

No sóc. XVT, poróm, Lutcro e os sous discípulos, fazendo


da Escritura a únicii fontc de fó, donde haurkim suas inovagóes
doutrinárias, inspiraram aos pastores da Sta. Igreja medidas cor
respondentes, que tinham em mira preservar da sutileza exegé-
tica dos ¡novadores o povo cristáo. Assim o Papa Pió IV aos 24
de margo de 1564, na bula «Dominici gregis» (regra 4»), deter-
minou que o uso de tradugoes vernáculas da Sagrada Escritura
ficava reservado aos fiéis que, a juizo do respectivo bispo ou de
algum oficial da Igreja, pudessem ler a Escritura sem risco,
antes com proveito, para a sua fé e piedade. De resto, em Por
tugal o senso religioso dos reis fidelissimos já havia antecipado
essa determinagáo pontificia, adotando medidas análogas, váli
das para o territorio nacional. Note-se que as restrigóes caíam
apenas sobre as tradugoes vernáculas, ficando o texto latino da
Vulgata acessivel a todos os fiéis. Nao há dúvida, no séc. XVI,
periodo de confusáo religiosa e de inovagóes mais ou menos sub
jetivas, a leitura da Biblia podia constituir perigo para os fiéis
nao familiarizados com as regras objetivas da hermenéutica.
Após a Paz da Vestfália (1648), que, pondo finí á Guerra
dos Trinta Anos, estabilizou de certo modo a situagáo religiosa
na Europa, foram perdendo sua atualidade as determinagóes
que no séc. XVT controlavam o uso da S. Escritura. Os Papas
voltaram entáo a estimular a leitura da Biblia. Eis como, por
exemplo, escrevia Pió VI (1775-1799) ao arcebispo A. Martini,
editor de urna tradugáo italiana do texto bíblico numa época em
que os fiéis católicos ainda hesitavam sobre a oportunidade de
tal obra : «Vossa Excelencia procede muito bem recomendando
vivamente aos fiéis a leitura dos Livros Sagrados, pois sao fon-
tes particularmente ricas, iás quais cada um deve ter acesso».
S. Pió X (1903-1914) em carta ao Cardeal Cassetta de--
clarava :

«Nos, que tudo queremos instaurar em Cristo, desejamos com o


máximo ardor que nossos íilhos tomem o costume de ler os Evangelhos.
nao dizemos freqüentemente, mas todos os dias, pois é principalmente

— 453 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1958, qu. 5

por éste livro que se aprende como tudo pode e deve ser instaurado no
Cristo... O desejo universalmente esparso de ler o Evangelho, provo
cado por vosso zélo, deve ser secundado por vos, na medida em que se
aumentar o número dos respectivos exemplares. E oxalá jamáis sejam
propalados sem sucesso! Tudo isso será útil para dissipar a opiniáo de
que a Igreja se opóe á leitura da Escritura Sagrada em lingua vernácula
ou lhe suscita alguma dificuldade».

Os Pontífices subseqüentes, principalmente Bento XV e


S. Santidade Pió XII, muito tém incentivado tanto o estudo
científico da Biblia como o uso da mesma na vida de piedade;
vejam-se os testemunhos respectivos em «P.R.» 4/1958, qu. 5.

Em conclusáo, tenha-se por certo que a Santa Igreja, hoje


como em seus primordios, estima a leitura da Biblia como um
sacramental. Acontece, porém, que nem para todo organismo o
alimento mais nutritivo é sempre o mais adequado; períodos de
doenga exigem dieta... Foi o que se deu com o Pao da Palavra
bíblica : em virtude de situacóes anormais ñas quais se achava o
povo de Deus, a Sta. Igreja, em determinadas épocas ou regióes,
teve que controlar o uso da Sagrada Escritura, a fim de impedir
abusos contaminadores da fé (nao faltava entrementes aos fiéis
a Palavra viva da Tradigáo divino-apostólica). Caso nao tivesse
assim procedido, a Igreja nao haveria sido Máe...

W. G. (Sao Joáo dcl-Rci) :

5) «Se se afirma que a Leí de Moisés foi ab-rogada por


Cristo, porque ainda se insiste na observancia dos mandamentos
do Decálogo ? Mesmo entre estes, que é feito das prescri£des con-
cernentes ao sábado e as imagens? Qual é afinal o criterio para
se distinguir o (uie foi ab-rogado e o que ainda tem valor de Iei?»

1. Antes do mais, na solucáo das questóes ácima, será pre


ciso lembrar que as disposigóes concernentes a Israel no Antigo
Testamento tinham caráter de preparacáo para a vinda do Mes-
sias — por conseguinte, caráter provisorio e figurativo de reali-
dade vindoura ainda mais rica de conteúdo. A escolha do povo
de Israel nao tinha outro sentido no plano de Deus senáo o de
criar, em meio á corrupcáo doutrinária e moral crescente atra-
vés dos séculos, um núcleo de fiéis que, nutrindo a crenga e a
esperanga no verdadeiro Deus, se tornasse o receptáculo e trans-
missor das gragas messiánicas para o mundo inteiro.

2. A fim de preservar eficazmente os israelitas da tenden


cia a adotar os costumes e, conseqüentemente, as idéias das na-

— 454 —
LEÍ DE MOISÉS ABOLIDA OU NAO?

góes idólatras que os cercavam, o Senhor houve por bem dar-


-lhes, mediante Moisés, urna legislagáo ampia e pormenorizada,
a qual, entrando nos mais diversos setores da atividade do israe
lita, faria que éste vivesse obedecendo continuamente a Deus (o
regime era teocrático), recordado de que tinha u'a misáo reli
giosa a cumprir na historia.

A Lei de Moisés, ampia como era, abrangia tres tipos de


preceitos: 1) prescrigóes civis e judiciárias, 2) prescrigóes
rituais e litúrgicas, 3) prescrigóes moráis.

1) A legislarlo civil c judiciária tinha por fim isolar o


povo hebreu das demais nagóes, impedindo que se organizasse,
política e socialmente, como os Estados pagaos; toda a legislagáo
civil de Israel era assim u'a muralha que, em última análise,
visava proteger a religiáo do povo de Deus. — Compreende-se
que tais preceitos civis tenham perdido sua razáo de ser logo
que veio o Messias. Com efeito. Éste, qual Pastor universal, man-
dou os Apostólos convocar os povos do mundo inteiro para inte-
grarem a familia dos filhos de Deus, abolindo desta forma o iso-
lacionismo civil e nacional de Israel, que a Lei de Moisés
fomentava.

2) As Ieis cerimoniais e litúrgicas de Israel tinham por


objeto numerosos ritos (sacrificios, ablugóes, celebragóes varias)
dotados de valor simbólico e profético em relagáo ao Messias;
ássim a circuncisáo, o cordeiro de Páscoa, as festas anuais, etc.
Estas instituigóes anunciavam, cada qual do seu modo, o Messias
vindouro; por conseguinte, é claro que, após a vinda déste, per-
deram toda a sua razáo de ser; cederam ao novo culto instau
rado por Jesús Cristo (cf. Hebr 5,4-6; 7,18 s; 10, 1. 14).

3) Quanto á legislagáo moral de Israel, ela compreendia


urna serie de preceitos de direito natural, condensados principal
mente no Decálogo (1). Éste, em verdade, nao faz senáo explici-
tar normas da lei natural, excetuado apenas o terceiro manda-
mento, que é, em parte, de direito natural e, em parte, de direito
positivo divino; sim, de um lado é a lei natural que manda ao ho-
mem consagrar algum tempo ao servigo explícito do Criador
(sem, porém, determinar as ocasióes e a freqiténcia respectivas);
foi, de outro lado, a vontade positiva do Divino Legislador que

(*) Seja aqui recordada a distincao que voltará aínda ñas páginas
seguintcs, entre lei natural (ou direito natural) e lei positiva (ou direito
positivo) : ao passo que aquela é promulgada pela própria natureza,

455
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1171953, qu. 5

escolheu precisamente o sétimo dia para tal fim; e, diga-se logo,


do Antigo Testamento, visando, mediante a observancia do sá
bado, avivar nos judeus a crenga na promessa de utn Messias
vindouro e da obra da Redengáo que estava por se cumprir.
Ora, sendo o Decálogo (feita a ressalva ácima) urna expli-
citagáo direta do direito natural, isto é, de exigencias ditadas
pela natureza humana mesma, entende-se que nao tenha sido
ab-rogado por Cristo; nem o podia ser, a menos que o Legislador
Divino quisesse entrar em contradicáo consigo mesmo, retratan
do pela sua revelagáo positiva (no Evangelho) o que tivesse or
denado pola revelagáo natural. As prescrigóes do Decálogo eram,
por conseguinte, obrigatórias já antes de Moisés e nao deixam de
ter seu vigor ainda em nossos dias; seráo sempre atuais enquanto
se propagar sobre a térra a natureza humana com suas notas
essenciais (é por estas que o Criador fala). O Senhor Deus, no
Antigo Testamento, promulgando explícitamente os mandamen-
tos do Decálogo, visava apenas facilitar ao homem (tendente ao
vicio em conseqüéncia do pecado de Adáo) o reconhecimento da
voz da natureza e impedir que esta fósse ofuscada pelas paixóes.
Verifica-se mesmo que, longe de ab-rogar os preceitos naturais
do Decálogo, Jesús Cristo se digjiou aprofundar o seu sentido e
valor, incutindo observancia mais profunda e exata dos mesmos;
o Salvador lembrou-nos, por exemplo, que a castidade nao con
siste apenas em urna conduta exterior (nao cometer adulterio),
mas significa primariamente urna atitude interna da alma (nem
sequer désejar adulterio) ; da mesma forma, dizia-nos o Senhor,
a caridade, a justiga, a veracidade, etc. tém que se arraigar pri-
meiramente no íntimo do cristáo para poder transparecer na sua
conduta externa (cf. Mt 5,17-48). Além disto, a fim de favorecer
o fim colimado pelos preceitos do Decálogo, o Senhor Jesús pro-
pos os chamados «conselhos evangélicos», ou seja, a renuncia
espontánea a bens lícitos em vista de se conseguir mais desem-
baragada uniáo com Deus (cf. Mt 19,3-29).

esta é manifestada por urna declaracáo ou um decreto explícito do legis


lador, seja do Legislador divino (donde se tem a lei positiva divina),
seja do legislador humano (donde a lei positiva humana).
A legislacao natural é imutável, pois está fundada sobre a natureza
das coisas, que nao se muda. Ao contrario, a legislacáo positiva é muta-
vel e ab-rogável, pois depende da livre vontade do legislador, que pro
cura interpretar e aplicar a lei natural de acordó com as exigencias
contingentes do bem comum.
No caso ácima dir-se-á : as leis civis rituais de Israel pertenciam ao
direito positivo divino, enquanto a legislacáo moral ou o Decálogo era
de direito natural.

— 456 —
leí pe moisés abolida ou nao?

É por isto que o código de moral crista continua a urgir a


observancia do Decálogo.

3. Mas, feitas estas observacoes, ainda restam abertas as


questóes particulares concernentes ao dia do Senhor (sábado ou
domingo?) e ao uso de imagens sagradas entre os cristáos.
a) Quanto á primeira dúvida, ela se dissipa á luz do que
ácima foi dito com referencia ao terceiro preceito do Decálogo ;
os cristáos observam o que neste se deriva da lei natural, dedi
cando periódicamente algum tempo (um dia) ao servigo direto
de Deus; o dia de guarda dos cristáos, porém, nao é mais o sá
bado (ou o sétimo dia da semana judaica) prescrito ría Antiga
Lci, pelo obvio motivo que se segué : o sábado foi escolhido pelo
Divino Legislador de Israel de acordó com o grau de Revelacáo
religiosa que os israelitas possuiam; está claro que, para estes,
o dia do repouso ou da interrupcáo dos trabalhos servís devia ser
o dia em que, conforme a lLnguagem figurada do Génesis, Deus
mesmo entrara no seu repouso, isto é, o sétimo dia após seis
dias de trabalho que recordavam a criagáo do mundo; o sábado
judaico, portanto, evocava as origens da historia sagrada e ex-
citava o anelo a plenitude dos tempos marcada pela vinda do
Messias; era essencialmente fungáo da espiritualidade do Antigo
Testamento; observando-o, o judeu vivia a sua vida mística táo
intensamente quanto possível dentro dos moldes da Revelagáo
pré-cristá.
Eis, porém, que Cristo veio ao mundo como Autor de nova
criagáo, por assim dizer, ou como Restaurador do género huma
no, o qual terminou sua obra no dia subseqüente ao sábado ju
daico no silencio do sepulcro para se manifestar, apresentando
ao mundo a nova criatura (cf. 2 Cor 5, 17), logo após o dia de
guarda dos judeus. Em conseqüencia, os Apostólos e as subse-
qüentes geragóes cristas entenderam que o dia do Senhor é atual-
mente o dia posterior ao antigo sábado; compreenderam que o
domingo é o dia escolhido pela lei positiva de Deus no Novo Tes
tamento, para se cumprir o preceito natural do culto do Senhor
(cf. At 20,7; 1 Cor 16,2; Apc 1, 10). Nao se entendería que os
cristáos continuassem a observar o sábado, símbolo da primeira
criacáo e da ordem de coisas pré-cristás, depois que o Autor do
mundo se dignou recriar o homem e o universo, dando consuma-
cáo ao seu plano no dia seguinte ao sábado. Mais ampias conside-
ragóes sobre esta questáo se poderáo encontrar em «P. R.»
1/1958, qu. 9.
b) Quanto á proibigáo do Decálogo referente ao uso de
imagens, note-se que ela figura no texto sagrado do Antigo Tes-

— 457 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1171958, qu. 5

tamento únicamente para assegurar o culto ao único Deus ou o


monoteísmo em Israel; já que os judeus viviam cercados de povos
que adoravam figuras feitas por máos humanas, a Lei de Moisés
quis preservá-los de tal erro, vedando-lhes a confeccáo de qual-
quer imagem.
Chama-nos a atengio, porém, o fato de que o próprio Deus,
no Antigo Testamento mesmo, nao hesitou em derrogar a esta
proibicáo, ora mandando que seu povo ornasse a arca da Alianca
e o templo de Jerusalém com estatuas de querubins esculpidas
em madeira (cf. Éx. 25,17-22; 3 Rs 6,29s), ora ordenando a con-
fecgáo da serpente de bronze (cf. Núm 21,8s). A proibigáo de
se usarcm imagens, imagens que scrviriam para elevar o espirito
dos fiéis a Deus, era evidentemente de direito positivo e contin
gente; estava longe de se derivar das exigencias da natureza hu
mana como tal. Esta, ao contrario, tende a galgar a contem-
plagáo das realidades invisiveis mediante a observagáo das coisas
visíveis. Compreende-se entáo que, urna vez passado o perigo
de politeísmo e idolatría, havendo o govérno humano chegado á
maturidade de espirito, o próprio Deus tenha suspenso a lei po
sitiva do Antigo Testamento que vedava a fabricagáo de ima
gens; é o que a Tradigáo crista entendeu desde os seus primeiros
tempos, estimulada principalmente pelo fato de que Deus tomou
face humana, bem sensivel, na Encarnagáo. Os cristáos podem
fazer (e fazem) uso reto e proficuo de figuras sensiveis, pon
do-as, de acordó com a índole de sua natureza psico-somática, a
servigo do seu espirito sequioso de Deus, do único Deus.

Eis aqui urna passagem do Papa Sao Gregorio Magno <t G04) que
bem atesta o valor catequético das imagens ñas igréjas :
«A imagem é para os analfabetos aquilo que a letra é para os que
sabem ler; mediante as imagens os analfabetos aprendem o que devem
imitar; as imagens sao o livro de leitura dos analfabetos» (ep. IX 105,
ed. Migne lat. 77,1927).

Em conclusáo, verifíca-se que os cristáos observam o pre


ceito do Decálogo referente ao monoteísmo, preceito que dimana
da lei natural mesma, sem estar presos á sobrecarga positiva
(nao fazer imagens) que a Lei de Moisés acrescentou a tal man-
damento; o acréscimo positivo tinha sua razáo de ser no regime
do Antigo Testamento; carece, porém, de fundamento no estado
de coisas do Novo Testamento, em que já é licito dar plena satis-
fagáo á índole psico-somática da natureza humana.
Também éste assunto já foi abordado em «P. R.»
4/1957, qu. 4.

— 458 —
IMPEDIMENTOS DIRIMENTES DO MATRIMONIO

IV. DIREITO

AGAELIÉME (Salvador) e ESTUDAJNTE (Rio de Ja


neiro):

' 6) «Quais os impedimentos dirimentes do matrimonio?»

Os impedimentos matrimoniáis estipulados pelo Direito


Eclesiásuco sao de duplo género : uns dirimentes, outros mera
mente proibitivos. Os primeiros fazem que absolutamente nulo
seja o matrimonio religioso que os noivos tentem contrair sem
Icr oblido dispensa previa. Os impedimentos proibitivos nao tor-
nam inválido o contrato, mesmo que éste se efelue sem dispensa
previa; fazem-no, porém, ilícito.

Eis os doze impedimentos dirimentes :

1) a idade (cá,n. 1067). O Direito Canónico exige dezesseis


a.nos completos para o rapaz e quatorze para a jovem que se
queiram unir em matrimonio. — Já que éste impedimento de
pende de positiva determinacáo eclesiástica, a Igreja pode dis
pensar déle.

2) A impotencia (can. 1068). Trata-se da incapacidade de


consumar a uniáo física ou de realizar a cópula conjugal, incapa
cidade proveníante de constituigáo orgánica ou de defeito fun
cional (carencia de membro viril ou de ambos os testículos, es-
treiteza do órgáo feminino...). Nao se trata da incapacidade de
gerar ou da esterilidade fisiológica, a qual é compativel com a
capacidade de efetuar a cópula conjugal.
Para que a impotencia seja impedimento dirimente, faz-se
mister que ela exista no momento do casamento e tenha caráter
incurável ou só possa cessar mediante urna operagáo difícil ou
ilícita ou de resultado incerto. Nao vem ao caso, por conseguinte,
a impotencia temporaria, seja qual fór o seu motivo.
Éste impedimento é de direito natural (versa sobre a mate
ria essencial do casamento); por isto a Igreja nao pode dispensar
a tal respeito. Pelo motivo de afetar diretamente o objeto do
contrato matrimonial, a impotencia torna nulo o casamento,
quer um dos cónjuges conheca, quer ignore a incapacidade do
outro.

3) O vínculo (can. 1069). Quem está válidamente ligado


por anterior matrimonio, nao pode contrair outro — proposigáo
obvia, visto ser o casamento cristáo indissolúvel. Excetuam-se,

— 459 —
*PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/195S. qu. 6

porém, os casos compreendidos no «privilegio paulino» ou, mais


largamente, no «privilegio da fé», de que trata a qu. 7 déste
fascículo.

4) A disparidade de coitos (can. 1070). Opóe-se ao casa


mento de urna pessoa náo-batizada com outra que, válidamente
balizada, haja sido durante algum tempo membro da Igreja Ca
tólica (ainda que depois a tenha abandonado). Presume-se vá
lido o batismo conferido em certas seitas protestantes, caso se
tenham empregado a materia e a forma devidas.
A Igreja só concede dispensa déste impedimento, dado que
o conjugo nao-católico pro: ida deixar ao católico ampia liberda-
de para praticar a sua religiáo e ambos se comprometam a man
dar batizar e educar toda a prole na Igreja Católica.

Dir-se-á talvez que, por esta cláusula, a Igreja ultrapassa seus di-
reitos impondo a um náo-católico atitude contraria as suas convienes.
Tenha-se em vista, porém, o liame que prende a Igreja a seus fillios; ela
tem o poder e o dever de proteger a fé de seus fiéis; por conseguinte,
se um déstes pede favor excepcional, toca a autoridade eclesiástica
formular as condicóes que ela julgue necessárias ao bem do fiel cató
lico; a parte nao-católica será assim atetada, mas indiretamente apenas,
ou seja, pelo fato de querer entrar em relaeóes matrimoniáis com um
membro da Igreja.

5) A ordem sacra (can. 1072). Bispos, sacerdotes, diáco


nos e subdiáconos nao podem receber válidamente o sacramento
do matrimonio. No Oriente unido a Roma, porém, o Direito ecle
siástico permite a varóes casados recebam o subdiaconato, o dia-
conato e o presbiterado (nao o episcopado) e continuem a sua
vida conjugal ao mesmo tempo que exercem o ministerio sagita
do. Contudo nem no Oriente seria lícito a um diácono ou a um
presbítero casar-se depois de ordenados.
O impedimento de ordem é de Direito eclesiástico; pode por
isto ser dispensado em circunstancias excepcionais, com maior
facilidade para os subdiáconos, com extrema parcimónia para os
presbíteros (notam-se, porém, casos recentes de pastores pro
testantes que, casados, se converteram á Igreja e foram ordena
dos sacerdotes, conservando o direito de viver conjugalmente; cf.
«P. R.» 4/1957, qu. 7).

6) O voto de castidade proferido por Religiosos (can.


1073), seja voto solene, seja voto simples ao qual a Igreja tenha
associado o efeito de tornar nulo o matrimonio (caso que se dá
por exemplo, na Companhia de Jesús). A solenidade do voto
aqui mencionada nao depende da cerimónia durante a qual os
votos sao emitidos, mas do valor que lhes atribuí a Igreja.

— 460 —
IMPEDIMENTOS DIRIMENTES DO MATRIMONIO

Também éste impedimento admite dispensa, por ser de Di-


reito eclesiástico.

7) O rapto (can. 1074). Nao pode haver casamento válido


entre o varáo que, para contrair matrimonio, haja raptado u'a
mulher, e esta sua vítima, enquanto a vitima estiver deuda sob
violencia pelo pretendente. Desde, porém, que a mulher posta em
liberdade e em lugar seguro declare aceitar o raptor por marido,
cessa o óbice ao matrimonio.
Embora éste impedimento seja de Direito eclesiástico, a
Igreja jamáis déle dispensa, pois está em poder do raptor fazer
que o impedimento cesse por si mcsmo.

8) O crime (can. 1075). Por «crime» entende-se aqui um


atentado contra matrimonio já existente. Pode tomar quatro
modalidades :
a) um varáo e u'a mulher cometem adulterio entre si e
prometem um ao outro unir-se em matrimonio logo que morra o
cónjuge legítimo (ou morram os respectivos cnójuges);
b) o varáo e a mulher, postos ñas circunstancias ácima,
chegam a contrair matrimonio civil.

Estes dois casos a) e b) se verificam todas as vézes que crist&os


divorciados e casados de novo no Í8ro civil queiram regularizar sua
situac.no perante a Igreja após a morte do cónjuge legítimo (ou dos
respectivas cñnjuRcs legítimos). Saibam que ha impedimento dirimente
para o casamento religioso, impedimento, porém, que, sendo de Direito
eclesiástico, pode ser dispensado.

c) um varáo e u'a mulher cometem adulterio entre si e, a


seguir, um déles mata o respectivo cónjuge, a fim de se casar
com o cúmplice;
d) um varáo e u'a mulher, conjugando esforgos, matam o
respectivo cónjuge no intuito de contrair matrimonio entre si.
Em tal caso nao é preciso haja adulterio para que surja o impe
dimento.
As duas últimas modalidades do óbice de crime nao sao dis
pensadas senáo com dificuldade, dado o perigo de escándalo dai
decorrente, mormente se o assassinio é de canhecimento do pú
blico.

9) A consangüinidade (can. 1076).

Consangüinidade é o vinculo que une pessoas procedentes do mes-


mo tronco por vía de geracáo.
Para se avallar a consangüinidade, é preciso distinguir tronco, linha
e gratis.

— 461 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1958, qu. 6

Tronco é a pessoa da qual procedem todos os consanguíneos.


Linha é a serie de pessoas unidas por consangüinidade. Pode ser
reta ou vertical e obliqua ou colateral. É reta, se as pessoas da mesma
serie descendem urna da outra por vía de geragáo. É obliqua ou colate
ral, se as pessoas descendem do mesmo tronco, nao, porém, urna da
outra; a linha colateral é dita igual, quando as pessoas de que se trata
distam igualmente do tronco comum; é desigual, em caso contrario.
Grau é a distancia que medeia entre duas pessoas da mesma linha
ou o número de geracóes que se interpSem entre elas. Em Direito
Canónico, o grau em linha reta se mede contando-se as geragóes ou as
pessoas vinculadas entre si, excetuado apenas o tronco ou a pessoa
donde as demais procedem; assim, por exemplo, avó e neto sao con
sanguíneos em segundo, grau. Em linha obliqua igual, o grau se mede
contándose as Romeóos da linha; assim os primos irmáos sao consan
guíneos em segundo grau. Em linha ohlíqua desigual, conta-se o grau
de acordó com o número de geracóes da linha mais longa.

A pertinencia á mesma estirpe na linha vertical é impedi


mento dirimente em todo e qualquer grau; por conseguinte, a
Igreja nao admite matrimonio entre ascendentes e descendentes
em linha reta : genitores e prole (o que é certamente contra a
natureza), avós e netos (o que provávelmente também é de di
reito natural, e explícitamente de Direito eclesiástico).
A consangüinidade em llnha colateral também é impedi
mento até o terceiro grau inclusive, isto é, até o parentesco
entre primos oriundos de primos irmáos (primos segundos).
A Igreja nao admite o casamento entre irmáo e irmá (mesmo
que só tenham um genitor comum), pois se trata, em tal caso, de
impedimento provávelmente derivado do direito natural. Quanto
á consangüinidade entre tios e sobrinhos, as autoridades ecle
siásticas declararam que, para ser dispensada, se requerem mo
tivos mais imperiosos do que os que sao comumente alegados
em outros casos. Quanto mais remoto é o grau de parentesco,
tanto menos difícilmente se obtém dispensa.
A consangüinidade ilegítima já basta para dar lugar ao im
pedimento. *"

10) A afiuidade (can. 1077). Por «afinidade» designa-se


o vínculo legal existente entre um dos cónjuges e os consanguí
neos do outro. A afinidade é avaliada de tal sorte que os consan
guíneos do marido sao considerados, na mesma linha e no mesmo
grau, afines da esposa, e vice-versa.
É impedimento dirimente a afinidade em linha reta, qual
quer que seja o seu grau. O que quer dizer que o viúvo nao se
pode casar com a máe de sua defunta esposa (genro com sogra),
nem a ñora viúva com o respectivo sogro, nem o padrasto com a
enteada. A Igreja muito difícilmente concede dispensa em tais
casos.

— 462 —
IMPEDIMENTOS DIRIMENTES DO MATRIMONIO

Também é impedimento dirimente a afinidade em linha


colateral até o segundo grau. Donde se segué que, sem dispensa,
o viúvo nao se pode casar com a irmá, a tia, a sobrinha, a prima
irmá de sua defunta esposa. A dispensa da afinidade em linha
colateral se obtém sem grande dificuldade.

11) A honestidade pública (can. 1078). O impedimento de


honestidade pública é o que resulta de urna situacáo análoga á
afinidade, situagáo, porém, ocasionada nao por auténtico casa
mento, mas por matrimonio inválido ou concubinato público.
Éste impedimento é menos extenso do que os dois precedentes :
so lorn;i inválido o casamento entro o varño o as consanguíneas
em linha reta, até o segundo grau, daquela que foi sua compa-
nheira, e vice-versa. Por conseguinte, o concubino nao se poderá
casar, sem dispensa, com a filha ou com a neta de sua concubina,
e vice-versa. O impedimento de pública honestidade em segundo
grau pode ser dispensado sem grande dificuldade.

Os óbices de consangüinidade, afinidade e honestidade pública sao


impostos pelo Direito eclesiástico a fim de deter, de certo modo, as de-
sordens na sociedade; visam proteger a decencia natural que deve
reinar entre pessoas da mesma familia. Dai o seu notável alcance
social.

12) O parentesco espiritual (can. 1079). É o vinculo que


resulta do sacramento do batismo, tornando nulo o matrimonio
da pessoa batizada com aquele que a batizou ou com um dos res
pectivos padrinhos (seja lícito recordar que o batismo pode ser
administrado nao sómente por um clérigo, mas também, em caso
de urgencia, por um leigo, varáo ou mulher). — Tal óbice é
suscetível de dispensa.

Os impedimentos ácima, pelo fato de tornarem nulo o casa


mento, sao comumente alegados nos processos matrimoniáis. O
papel dos juizes eclesiásticos consiste apenas em averiguar, na
base de depoimentos oráis e escritos, se, em tal caso dado, houve
ou nao algum dos óbices dirimentes, náp previamente dispensa
do; caso se possa realmente provar a existencia do impedimento,
a Igreja declara nunca ter havido casamento entre as duas pes
soas interessadas, as quais por conseguinte ficam habilitadas a
receber válidamente o sacramento do matrimonio.

A S. Congf egacáo dos Sacramentos, a 1' de agosto de 1931, baixou


urna instrucáo, sempre atual, em que 1) recomendava aos párocos, ex-
pusessem aos fiéis as razSes pelas quais a Igreja introduziu impedimen
tos matrimoniáis e 2) procurassem dissuadir os seus paroquianos de
pedir, com demasiada faeilidade, dispensa de nljriiin impedimento. Cí.
Acta Apostolicae Sedis XXIII 413.

— 463 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1958, qu. 7

ESTUDANTE (Rio de Janeiro) :

7) «Em que consiste o chamado 'privilegio paulino' evo


cado na separacao de alguns casáis ?»

1. Na sua 1» epístola aos Corintios 7,12-16, Sao Paulo


considera o caso de dois pagaos unidos matrimonialmente, dos
quais um se converte á fé crista e recebe o batismo; diz entáo o
Apostólo que, se a comparte paga daí por diante já nao aceita
viver pacificamente no lar, o fiel batizado tem o direito.de consi
derar dissolvido o sou matrimonio.

«Se algum irmño (= cristüo) tem urna esposa que nao possui a Sé
(esposa paga) e esta consinta em habitar com ele, nao a repudie. E, se
urna esposa tem marido que nao possui a íé, e éste consinta em habitar
com ela, nao abandone o seu marido... Se, porém, o que nao tem íé
se afasta, afaste-se; o irmao ou a irmá (cristáos) nao estaráo sujeitos
á servidao em tal caso; Deus nos chamou para a paz» (1 Cor 7,12s. 15).

Estes dizeres permitem a ruptura do vinculo com a conseqüente


possibilidade de se eonfcrair novo casamento, como se deduz do con
texto : nos versículos precedentes (10-11), o Apostólo, falando da sepa-
racüo de esposos erislfios, manda que a mulher separada nao se case
de novo. Nos vv. 12-15, porém, Sao Paulo, admitindo a separacao, nao
acrescenta restricáo alguma; nao entende, pois, proibir novo matrimo
nio, como o proibiu no caso anterior. Esta interpretagáo é confirmada
pelas palavras seguintes : «Em tal caso, o irmáo ou a irmá nao estaráo
sujeitos á servidao»; o que- quer dizcr:... nao estaráo sujeitos ao vín
culo matrimonial que os prendía a um consorte pagáo' disseminador de
discordia e perigo para a fé no lar.

Esta determinado de Sao Paulo deu inicio a urna praxe


constante na Igreja, praxe que apenas de meados do séc. XVII
até a Revolugáo Francesa (1789) foi controvertida por escrito
res franceses e^alemáes, imbuidos de jansenismo. Aínda hoje a
norma do Apostólo se aplica nao sómente em territorios de mis-
sáo, mas até nos grandes centros urbanos da Europa e da Amé
rica, onde infelizmente nao sao raras as pessoas que, sem ter
sido batizadas, se casam no foro meramente civil. Cf. Código de
Direito Canónico, can. 1120-1127.

2. E como se justifica ésse «privilegio paulino»?


Há de ser entendido á luz dos seguintes principios :
Para que um matrimonio se tome indissolúvel, duas condi-
góes devem ser preenchidas :
a) sejam os conjuges válidamente batizados (o que se pode
dar ou no Catolicismo ou em alguma denomina^áo protestante
que confira válidamente o batismo);
b) haja consumagáo carnal do contrato matrimonial.

— 464 —
QUE É O «PRIVILEGIO PAULINO» ?

Considerando agora o matrimonio entre pagaos, verifica-se


que nao satisfaz á primeira dessas condigóes. Nao é sacramento;
por conseguinte, pode ser dissolvido em vista de um bem maior.
Ora tal bem maior é certamente a conservagáo da fé numa das
compartes que venha a receber o batismo; dado, pois, que esta
entre em perigo, o próprio direito natural, confirmado pela legis-
lagáo positiva crista, confere ao neófito o direito, e as vézes o
dever, de se separar para que nao se arrisque a perder o dom
dafé.
Naturalmente, a fim de que se possa reconhecer éste direito
ao consorte convertido, requer-se haja, da parte do cónjuge
pagáo , indisposigáo ou animosidade que torne difícil ou impos-
sível a harmoniosa convivencia de ambos; segundo o vocabula
rio paulino, dir-se-ia: requer-se que o náo-batizado se ataste,
física ou ao menos moralmente. Moralmente, isto é, causando
rixas em casa ou procurando seduzir o cónjuge balizado para a
apostasia, o adulterio, a educagáo paga da prole ou ainda negan
do a liberdade religiosa a comparte, desejando viver em poliga
mia, etc. O direito nao será reconhecido ao cónjuge batizado
desde que o consorte pagáo se decida a receber, também ele, o
sacramento do batismo ou a aceitar ao menos uma coabitagáo
pacífica no lar.
Para se verificar quais os propósitos da comparte paga,
manda o Direito Canónico seja esta formalmente interrogada a
tal respeito. O interrogatorio explícito é necessário para a vali-
dade da dissolugáo do vínculo, mesmo que já se saiba que o cón
juge náo-batizado nao se quer converter nem deseja conviver
pacificamente com o católico. Sendo o matrimonio, segundo a
legislagáo eclesiástica, um ato público, faz-se mister que tudo
que lhe diz respeito seja devidamente atestado e comprovado
perante as autoridades competentes. Se nao se conseguir de
monstrar plenamente que a parte náo-batizada se afastou (nos
termos ácima expostos), a Igreja nao poderá considerar dissol
vido o matrimonio em questáo.
Contudo acontece por vézes que .nao é exeqüível o mencio
nado interrogatorio ou por se ignorar onde está o consorte pagáo
ou por se temerem penosas conseqüéncias da interpelacáo; em
tais casos a autoridade eclesiástica dispensa da sindicáncia e re-
conhece a dissolugáo do vínculo, desde que nao haja dúvida sobre
as intengóes do náo-batizado. ¿ própriamente no ato em que a
parte batizada contrai novo matrimonio que se dá a ruptura do
vinculo anterior (can. 1126).
Nota aínda o Código que o privilegio paulino evidentemente
nao se aplica ao caso de um católico que se case com pessoa náo-
-batizada, após haver obtido para isto a devida dispensa eclesiás-

— 465 —.
-rPERGUNTE E RESPONDEREMOS* U/1958, qu., 8 c !)

tica (cf. can. 1120 § 2). Caso tal pessoa se faga batizar, nao
pode pleitear dissolugáo do vínculo por privilegio paulino, ainda
que a sua situagáo conjugal se lhe torne muito penosa.
A título de • complemento, seja acrescentada a seguinte
observagáo : o fato de que o matrimonio só é indissolúvel quando
preenchidas as duas condigóes clássicas (batismo válido dos con
sortes e consumagáo carnal) explica que a Igreja tenha reconhe-
cido a dissolugáo de casamento contraido por urna pessoa batiza-
da fora do Catolicismo (ou seja, no protestantismo) com urna
comparte náo-batizada. Tendo-se um dos dois consortes conver
tido a verdadeirn roligiño, a autóriclado eclosiáslica, e.m vista do
bem da fe c en» circunstancias cxcccionaLs, reconheceu a ruptura
do vínculo anteriormente contraído. É o que atestam duas deci-
sóes relativamente recentes do Sto. Oficio (10 de julho e 5 de
novembro de 1924).

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

F. L. (Joáo Pessoa) :

8) «Como procedeu a Igreja no caso matrimonial de Na-


poieáo Bonaparte ? Nao terá consentido no divorcio pelo fato de
que o interessado era um monarca poderoso ?»

AGALIfcME (Salvador) :

9) «Quem sao os 'Cardeais Negros' ?»

Reconstituamos exatamente o caso controvertido dov segun


do matrimonio de Napoleáo, com tudo que ele tem de sutil, para
pódennos apreciar devidamente a atitude da Igreja.

1. Aos 9 de marco de 1796, Napoleáo Bonaparte, que aca-


bava de ser nomeado Chefe Supremo das tropas francesas na
Italia, contraiu com Josefina Tascher de la Pagerie, viúva do
General de Beauharnais matrimonio meramente civil em Paris.
E poucos dias depois partiu em demanda de seu acampamento
militar..., sem ter realizado o devido contrato religioso. Porque
nao o terá feito ? A omissáo nao se poderia justificar por presu
mida penuria de clero : em Faris desde 1795 havia quinze igrejas
abertas e os eclesiásticos já deixavam a vida clandestina que ha-
viam levado nos anos anteriores sob os golpes da Revolugáo.
Ademáis, quando Josefina mais tarde se foi reunir ao General
na Italia, éste nao parece ter demonstrado em absoluto a inten-
gáo de recorrer a um sacerdote para contrair matrimonio reli-

— 466 —
O «DIVORCIO» DO IMPERADOR NAPOLEÁO

gioso. Tal atitude de Napoleáo se torna particularmente signifi


cativa se se leva em conta que na mesma época (1797) Napo
leáo fez questáo cerrada de que suas duas irmas Elisa e Paulina
se casassem na Igreja com Bacciochi e Leclerc, respectivamente.
No decorrer dos tempos, Josefina, mostrando-se estéril, era
ameacada de divorcio e hostilizada pela familia de Bonaparte,
pelo que, muito desejava efetuar o ato religioso a fim de consoli
dar seus direitos de esposa.
Ora aconteceu que Napoleáo estava para ser sagrado Im
perador aos 2 de dezembro de 1804 pelo Papa Pió VII, que o
soberano levara propositadamentc a Paris; Josefina julgou que
a ocasiáo era ótiina para conseguir sou intento, pois cortamente
o Pontífice nao aceitaría presidir a urna cerimónia que coroaria
dois concubinos. A 1» de dezembro, portante, foi ter com Pió VII
e referiu-lhe a sua situagáo conjugal; em resposta, o Papa de-
clarou que nao procedería á solenidade sem previa legalizacáo
religiosa da uniáo de Napoleáo e Josefina. Informado disto na
véspera do grande dia, o monarca nao viu outro alvitre senáo o
de ceder a Josefina. Quis, porém, reduzir o ato religioso á sua
expressáo mais simples. Recusando a presenga de testemunhas,
pediu a seu tio, o Cardeal Fesch, capeláo-mor, que assistisse ao
contrato religioso e o abencoasse.
Fesch, porém, nao era pessoa jurídicamente habilitada para
isso; tal seria o arcebispo de Paris ou o pároco sob cuja juris-
dic/io eslava compreendldo o palacio imperial. Alcm disto, Fesch
mesmo impugnou a exclusáo de testemunhas, fazendo saber a
Napoleáo : «Point de témoins, point de mariage!». Eis, porém,
que o Cardeal, á vista da urgencia do caso, resolveu procurar
imediatamente o Papa Pió VII, a quem pediu lhe concedesse
«todas as dispensas que por vézes se tor.nam necessárias ao de-
sempenho das fungóes de capeláo-mor»; tendo Pió VII respondi
do favorávelmente, Fesch sem demora procedeu ao casamento
pelas 4 hs. da tarde de 1" de dezembro de 1804.
Como, porém, Josefina continuasse estéril, Napoleáo em
1809 obteve o divorcio no foro civil para casar-se com Maria
Luisa da Austria. Era-lhe necessário conseguir o mesmo da au-
toridade eclesiástica. A que instancia, porém, havia de recorrer ?
Os casos matrimoniáis dos príncipes sao, pelo Direito da
Igreja, reservados ao julgamento do Sumo Pontífice. Acontecía,
porém, que Pío VTI, na ocasiáo, era prisioneiro do imperador
em Savona (Italia setentrional). Napoleáo entáo levou seu pro-
cesso ao tribunal eclesiástico de Paris. Éste a principio decla-
rou-se incompetente na causa; mas as circunstancias extraordi
narias, a dificuldade ou impossibilidade de se comunicaren! com
o Papa levaram os juizes a aceitar o julgamento do processo.

— 467 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1958, qu. 8 c 9

Depois de haver atentamente examinado as razóes alegadas por


Napoleáo (falta de consentimeñto da sua parte e carencia de
formalidades essenciais ao ato religioso), declararam nulo o
casamento pelo segundo motivo, ou seja, por defeito de forma :
o matrimonio devera ter sido celebrado em presenga do pároco e
de duas testemunhas, quando na verdade forá realizado perante
o Cardeal Fesch apenas, que nao possuia faculdades do Sumo
Pontifice suficientemente especificadas para tal ato. Com efeito,
o Cardeal obtivera do Papa «as dispensas necessárias ao exer-
cído de suas funcóes» de capeláo-mor; contudo entre as funcóes
de capeláo-mor parece que nao constava a de assistir e dar a
bciK'ño aos easamcnlos da familia imperial.
Contra a declaragáo de nulidade assim proferida houve
apelo para ulterior instancia eclesiástica, ou seja, para o tribunal
metropolitano de Paris, o qual confirmou a sentenga anterior,
acrescentando novo motivo : falta de consentimento no contrato,
da parte de Napoleáo; na verdade, éste parece ter nutrido desde
os primeiros tempos de vida conjugal a intengáo de se separar de
Josefina (dai nao se ter casado na Igreja antes de 1804), e só ha-
verá aceito o casamento religioso na véspera da coroagáo impe
rial, constrangido pela fórga das circunstancias ou receoso das
conseqüéncias que a recusa lhe acarretaria.
Pode-se, por conseguinte, reconhecer um fundamento de
justica 'á sentenga dos oficiáis de Paris;o matrimonio de Napo
leáo com Josefina era provavelrnente nulo. Aínda que se queira
dizer, com alguns historiadores, que Pió VII, conhecedor do caso
preciso visado pelo Cardeal Fesch, delegou a éste as devidas fa
culdades para assistir ao casamento, resta o óbice da coagáo
moral que parece ter pesado sobre o monarca.
Admitindo-se, pois, em hipótese benigna, que o casamento
de Napoleáo com Josefina fóra realmente nulo, o monarca em
consciéncia podia contrair o planejado matrimonio com María
Luisa da Austria. Mas resta urna ressalva decisiva a fazer
O matrimonio, conforme o Direito eclesiástico, é ato publico (a
Igreja nao reconhece casamentes clandestinos); disto se segué
que a declaracáo de nulidade de um casamento deve ser pública
e promulgada pela autoridade eclesiástica competente. Ora no
caso o tribunal de Paris pode ter julgado com acertó, sim, mas
certamente nao tinha autoridade, nem própria nem delegada,
para o fazer; por conseguinte, sem efeito ou inválida ficava, no
foro público, a sentenga dos juízes de París; de nada adiantava
a Napoleáo tal declaragáo. Conseqüentemente, novo matrimonio
continuava sendo coisa ilícita para ele.
A atitude de Pió VII informado do processo de Paris e da
uniáo de Bonaparte com María Luisa distinguiu bem os dois as-
— 468 —
O «DIVORCIO» DO IMPERADOR NAPOLEÁO

pectos da questáo; o Papa protestou contra a ilegalidade das


sentencas proferidas pelos juízes diocesanos e metropolitanos
numa causa que nao lhes competía julgar. Mas sobre o fundo
mesmo da questáo (validade ou invalidade das nupcias com Jose
fina) o Pontífice jamáis se pronunciou.

A guisa de complemento da historia ácima "narrada, aqui referimos


que treze membros do Colegio Cardinalício residentes na Franca, á
frente dos quais estava o Cardeal Consalvi, Secretario de Estado de
Pió VII, se recusaram a assistir as nupcias de Napoleáo com Maria
Luisa, alegando ter sido a causa matrimonial do Imperador julgada
por tribunal nao competente; nao se pronunciaran!, porém, .sobre o
toor fia scnlcn<:a rtósse trihimal. Km con.ser|ili>n<:in, Napoleao os dodarou
(scm auloridadu, c evidente) destituidos da ilignidado cardinallda
(donde o nome de «Cardeais Negros»), privou-os de seus rendimentos
e, em grupos de dois, enviou-os para diversas cidades da Franca.

2. De quanto acaba de ser exposto, podemos tirar breve


conclusáo.

O caso do segundo matrimonio de Napoleáo é extrema


mente sutil e ambiguo, pois envolve agentes e fatóres múltiplos
que levam a distinguir dois aspectos do problema.
Pode ser que Napoleáo, por falta de comentimento real e
espontáneo ou também por defeito de forma canónica prescrita,
jamáis tenha estado casado com Josefina. Nao obstante, pode-se
seguramente dizer que as suas segundas nupcias foram inválidas,
pois a situagáo conjugal do Imperador nao fóra previamente
reconhecida e publicada pela autoridade religiosa competente.
Em toda essa trama de acontecimentos, pode-se também
assegurar que a Igreja nao concedeu ao Imperador o divorcio,
isto é, a dissolucáo de um matrimonio certamente válido. As
duas sentengas proferidas em París foram formalmente desauto
rizadas pela voz oficial da Igreja representada por Pió VII.
O que tornou o caso assaz complicado, gerando confusáo
nos atores da historia, foi a sagaz habilidade com que Napoleáo
procurou dar foros de legalidade religiosa a seus caprichos con
jugáis. Entregou (de boa ou de má fé ?) o julgamento de sua
causa a um tribunal eclesiástico incompetente. Os juízes, postos
em circunstancias extraordinarias e possivelmente engañados
por estas, resolveram proceder ao exame do assunto e declara-
ram nulo o casamento. Nisto houve falha por haverem os pre
lados pressuposto faculdades que éles na verdade nao possuiam,
nao por terem proferido urna sentenga que possa ser tachada
de arbitraria ou partidaria. E note-se que tais prelados consti-
tuiam órgáos particulares da Igreja, nao a sua autoridade su
prema e universal.

— 469 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1958, qu. 10

Dissertando ulteriormente sobre o tema, arriscar-nos-íamos


a cometer injustigas, pois carecemos de meios para sondar mais
intimamente as consciéncias das pessoas envolvidas no episodio.

10) «Como se justifica o casamento religioso do rei de


Portugal D. Pedro II com sua cunhada, esposa do seu irmao o
reí D. Afonso VI, aínda em vida déste ?»

Estamos diante de mais um désses famosos processos ma


trimoniáis de principes, que por sua natureza mesma movem a
opiniño pública, proslando-se a equívocos. Basta, porém, referir
a historia com exatidáo para se verificar que cía nao depóe con
tra a Santa Igreja. É o que passamos a fazer no caso ácima.

O príncipe D. Afonso VI (1643-1683) foi aclamado rei de


Portugal em 1656, quando aínda era menor, ficando entáo como
regente a rainha sua máe.

Eis alguns dados biográficos do monarca, necessários para


se entender o seu caso matrimonial:

«Aos dois para tres anos acometeu-o urna enfermidade, cuja prin
cipal conseqüéncia foi urna hemiplegia do lado direito, com distorsáo
da boca, paralisia da mño, imobilidade da coxa e distorsáo do pé, o que o
obrigava a coxear. O embaixador inglés, Robcrt Southmell, numa infor-
macáo a sua corte, afirma que após a docnca ficara D. Afonso VI «em
estado estúpido, digno de compaixáo». Jantava na cama, comia muito,
bebia vinho «cómo nenhum outro portugués», segundo as palavras do
diplomata. Quando contrariado, acometiam-no acessos de furor com
ímpetos de agredir e de matar quem se aproximasse; depois tornava-se
apático. Espirito instável, incapaz de atencao. Folgava de tratar com
gente bronca e de se entregar a passatempos grosseiros. la para as
janelas do pago que deitavam para o patio da cápela, ver brincar os
garotos que ali <se juntayam. Por vézes introduzia no paco mulheres
perdidas, por pura basófia. A rainha nao via maneira de remediar o
mal, e quis abandonar a regencia quando o filho completou 18 anos; o
conselho do Estado, porém, rogou-lhe que tal nao fizesse» (Grande En
ciclopedia Portuguesa e Brasileira. Vol. I. Lisboa e Rio de Janeiro,
pág. 503).

Após a ascensáo de D. Afonso VI ao trono, o rei Luís XIV


de Franga, desejoso de manter Portugal sob a sua influencia
política, interveio na escoiha da esposa do novo monarca; des-
tinava a éste a «Grande Mademoiselle» e ao infante D. Pedro,
seu irmáo, a duquesa Maria Francisca Isabel de Savoia. A
«Grande Mademoiselle» tendo recusado o casamento, foi dada
como esposa a D. Afonso VI a duquesa Maria Francisca, a qual
chegou a Lisboa aos 2 de agosto de 1666.

— 470 —
O CASAMENTO DE D. PEDRO II, DE PORTUGAL

Eis de novo quanto refere a historia sobre os festejos de


nupcias realizados entre D. Afonso VI e Da. María Francisca :

«O matrimonio se realizou a 27 de junho na Rochela (Franca),


sendo D. Afonso representado pelo marqués de Sande. A noiva embar-
cou para Lisboa a 30 de junho, chegando a 2 de agosto. Foi o rei
buscá-la a bordo, acompanhado da corte. De regresso, o cortejo passou
pela igreja das Flamengas, onde o bispo de Targa abencoou os noivos.
.. .Logo se disse que o soberano se aborreceu na cerimónia, do que
se ressarciu ceando copiosamente nos seus aposentos. Pretextou íadiga
para nao comparecer na ceia de gala, á qual presidiu, sózinha, a nova
soberana. E, com pretexto idéntico, recusou-se a passar á cámara
nupcial, ao «-hogar a hora. Mais tarde, quando so instaurou o célebre e
escandaloso processo de nulidade do matrimonio, depós o conde do
Prado que alguns días depois da chegada da rainha, ao tentar alguém
convencé-lo a ir pernoitar na cámara desta última, desatou D. Afonso
em ch&ro, queixando-se de que o queriam matar, forcando-o a um im-
possível» (ibid. 504). \

As relagóes entre D. Afonso e Da. María Francisca, assim


iniciadas, por pouco tempo se puderam sustentar. Aos 21 de
novembro de 1667, a rainha procurou refugio no convento das
Religiosas da Esperanga de Lisboa, declarando que de lá nao
sairia senáo para voltar á Franga ; dizia outrossim á Abadessa
que se conservava donzela e nao era verdaderamente esposa
de Afonso VT, pois éste era incapaz de suscitar prole.
D. Pedi'o, entáo, apoiado pelo povo descontente, resolveu
mediante um golpe apoderar-se do govérno ; plano éste que ele
executou com o reconhecimento das Cortes de Portugal a 1'
de Janeiro de 1668; D. Afonso foi declarado inábil para reinar.
Luís XIV, porém, nao se deu por satisfeito com o ocorrido, pois
via que lhe escapava o esteio de sua influencia em Portugal. Por
isto decidiu promover o casamento de Da. María Francisca com
o regente D. Pedro II; nao lhe parecía difícil realizar o projeto,
visto que desde muito os dois pretendiam contrair tal matri
monio.
Conseqüentemente, o rei de Franga aconselhou a Da. Fran
cisca obtivesse a dispensa eclesiástica do contrato matrimonial
celebrado com D. Afonso VI, visto tal contrato nao haver sido
consumado em relagóes conjugáis. A dispensa, porém, nao podia
ser solicitada ao Sumo Pontífice, embora éste fósse o único ar
bitro reconhecido no caso pelo Direito da Igreja; Luís XIV temía
que o recurso a Roma facilitasse a intervengáo de pessoas
alheias aos interésses políticos da Franga; por isto recomendou
á rainha dirigisse sua petigáo ao Cabido Metropolitano de Lis
boa, já que a sede patriarcal desta cidade estava vacante (mo
mentáneamente desprovida de bispo).

— 471 —
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 1V1958, qu. 10

A sentenca proferida aos 28 de abril de 1668 foi favorável


a Da. Francisca, pois que se reconhecia nao haver sido consu
mado o casamento com D. Afonso. Contudo os juízes do Cabido
nao ousaram acrescentar a dispensa, necessária para as novas
nupcias, do impedimento de pública honestidade, impedimento
que vedava uniáo conjugal de Da. Maria Francisca com seu
cunhado. Luís XIV, porém, nao querendo em absoluto levar a
causa ao conhecimento do Sumo Pontífice, mandou recorrer ao
Cardeal de Vendóme, tio da interessada, o qual no momento se
achava em Franca, com poderes de legado pontificio, para re
presentar o Papa no balizado do Deirim; a oslo prelado, enire
outras faculdades, fóra confiada a de dispensar de certos im
pedimentos matrimoniáis «quoad sponsalia» (no tocante ao
noivado). Interpelado, Vendóme concedeu a dispensa aos dois
pretendentes de Portugal, ultrapassando, sem dúvida, seus po
deres (pois que a causa, sendo de principes, continuava reser
vada ao Sumo Pontífice). Em conseqüéncia, celebraram-se as
almejadas nupcias.
Todavía Da. Maria Francisca nao se sentía tranquila em
sua consciéncia.. . Resolveu entáo enviar a Roma seu confessor,
o Fadre de Villes S. J., a quem confiou urna copia do processo
e a súplica dirigida a S. Santidade o Papa Clemente IX para
que confirmasse tudo o que ocorrera. Luís XIV, depois de haver
tentado debalde impedir a viagem do sacerdote, intimou o Papa
a nao reexaminar o processo sob a ameaga de que, cm caso
contrario, passaria a impugnar a reserva, feita ao Pontífice, das
causas matrimoniáis dos principes : o rci prometía «suscitar
contra o Papa a pena de muitos escritores e entrar talvez mais
adiante do que desejaria Roma, no setor das dispensas» (carta
de Bourlémont ao rei Luís XIV e a Lionne, em 1* e 2 de Ja
neiro de 1669)-.
Diante das instancias, Clemente DC nao se intimidou: tendo
exigido a apresentacáo de todas as pegas do processo, nomeou
urna comissáo de Cardeais para rever o caso. Esta, em primeiro
lugar, declarou que o Cardeal de Vendóme excederá suas atri-
buicóes, censurando-o por isto ; a seguir, tendo instaurado mi
nucioso estudo dos acontecimentos, reconheceu, como era noto
rio, que o primeiro casamento de Da. Maria Francisca nao fóra
consumado; a rainha obtivera mesmo de D. Afonso VI urna
carta em que éste confessava nao estar casado com ela: de outra
feita o mesmo monarca fez saber em público que nao coabitava
com a rainha (de resto, até o fim da vida o rei D. Afonso VI
se mostrou pessoa de convivencia difícil, sujeita a acessos de
furia. «Nao faz dúvida que a condicáo feroz de el-rei, por quase
insuportável, era de martirio aqueles que de necessidade lhe

— 472 —
Q CASAMENTO DE D. PEDRO II, DE PORTUGAL

assistiam», atesta o Pe. Maldonado, capeláo do castelo ao qual


fóra enviado o monarca após a sua deposigáo).
Já que, como resultado do inquérito, constava da náo-con-
sumacáo do matrimonio, Clemente Di houve por bem sanear
oficialmente a situacáo ambigua que se criara na Corte de
Portugal: outorgou explícitamente a dispensa de «casamento
contraído, mas nao consumado» e a do impedimento de pública
honestidade in radico matrimonii, isto é, como se as dispensas
tivessem precedido o segundo matrimonio; ficava destarte isenta
de qualquer impugnagáo a uniáo da rainha com D. Pedro II.
O Papa tinha poderes para nssim proceder, pois na verdade
o primeiro casamento dc> Da. Maiia Francisca tifio preenchia as
condicóes do matrimonio indissolúvel (cf. qu. 7 déste fascículo
e qu. 5 de «P. R.» 7/1957).
Infelizmente, porém, alguns autores, entre os quais Vol-
taire, deturparam a conduta de Clemente IX, denigrando conse-
qüentemente a posicáo da Igreja no caso. A tais historiadores
Gérin (Louis XIV et le Saint-Siége, París 1894, t. II) dá tes-
temunho em contrario, baseado em sólida documentacáo. Se
algo se pode censurar aos prelados no episodio estudado (será,
porém, sempre arriscado arvorar-se em arbitro da consciéncia
alheia), tal será o procedimento, usurpador da autoridade, do
Cardeal de Vendóme e do Cabido de Lisboa; estes tópicos, po
rém, devem-se a personalidades particulares, com as quais nao
se identificou a Santa Sé nem se identifica a Santa Igreja.

CORRESPONDENCIA MIÜDA

UM CONSULENTE (Rio de Janeiro) :

1) Quando se diz que "os pecados dos homens afligem ou entristecen!


a Nosso Senhor ou a Dcus", nao há dúvida de que se fala figuradamente,
concebendo Dcus a semelhanca de um homem dotado de afetos. Na verda
de, os pecados das criaturas nao atingem a vida feliz de Deus. Com efeito,
éles nao surpreendem nem decepcionam o Altíssimo, que é oniciente, nem
desconcertam o plano santo do Criador, pois a Sabedoria Divina sabe fa-
zc-los servir a causa do Bem: o abismo da miseria humana nesta vida só
faz dar ocasiáo a que mais se manifesté o abismo da misericordia divina;
na vida postuma, o pecador que tenha morrido impenitente, sofrerá natu
ralmente a dor conseqüentc do seu alheamento a Deus, mas essa dor nao
destoará do concertó da criacáo inteira; ela será um testemunho "sui ge-
neris" e eloqüente de que Deus é a Suma Bondade. A finalidade suprema
das criaturas, portanto, que ó dar gloria á Deus, nao será perturbada pelo
pecado. Donde se vé que as faltas dos homens nao sao, para Deus, urna la-
cuna irreparável.
A razáo de ser das expressóes metafóricas ácima é o desejo de incutir
melhor a nos, homens, o horror da culpa. Nao há dúvida, porém, de que

— 473 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1V1958

Jesús, como homem outrora peregrino na térra, experimentou tristeza pelo


pecado, visto que tomou sobre si os afetos humanos que nao eram indienos
da sua santíssima missáo de Redentor
Sobre o pecado "ofensa a Deus", cf. "P.R." 6/1957, qu. 2.

2) Nem a poligamia nem a bigamia simultáneas foram jamáis acei


tas pela Igreja, pois contrariam tanto á natureza como ao sacramento do
matrimonio (cf. Ef 5,32).
Quanto a S. Agostinho, os seus dizeres bem mostram quanto foi con
trario ao divorcio; colocando o casamento cristao sob a perspectiva da
jndissoluvel unifio de Cristo com a Igreja, afirmava :
"O bem das nupcias, que interessa ao povo de Deus, consiste na san-
tidadc do sacramento, era virtude da qual é ilícito repudiar o consorte c
casar-se com oiitrcm" (De bono conjugnli 24,3).
"O cfcito mais íntimo (res) riósse sacramento (matrimonio) consisto,
6em duvida, em quo o varao e a mullicr unidos pelas nupcias perseveren!
sem conhecer separacáo (dissolucüo do vínculo) enquanto viverem" (De
nuptiis et concupiscentia 1,10).
Foi no séc. XVI, ou seja, na época do luteranismo, que se procurou dar
foros de liceidade á bigamia, pois que Lutero declarou ao príncipe Filipe
de Hesscn e ao rei Ilcnriquc VIII da Inglaterra que ele nao considerava a
poligamia formalmente proibida aos cristáos; Filipe de Hessen, apoiado
por Lutero, casou-se entáo com Margarida de Saale, estando viva a sua
primeira esposa. Diante do escándalo causado pelo fato, Lutero aconselhou
a Filipe negasse ter contraído segundas nupcias, atitude que o Ps.-Refor-
mador assim justificava :
"Que acontecería se..., para o bem da iRioja crista, alguím profe-
risse urna forte e boa mentira... U'a mentira necessária, útil, que nos
auxilie, nao é contra a lei de Deus, e ele (Lutero) a toma sob a sua res-
ponsabilidade" (conferencia de Kiscnach, jullio de 1541).

P. M. O. (Belo Horizonte): — Muito oportunas, as suas perguntas.


A algumas já foi dada resposta em "P. R."; assim:
1) Sobre as duas fontes da Revelacáo — a Palavra de Deus oral e
a Palavra escrita —, veja "P. R." 7/1958, qu. 2.
A própria Biblia manda auscultar e seguir outra fonte de fé, que é a
Tradicáo auténtica (cf. 2 Tes 2;i5; 1 Cor 11,2; 2 Tim 1,12-14; 2 Tim 2,2).
Por conseguinte, nossa atitude nao pode ser a de querer provar toda e
qualquer proposgáo de fé únicamente mediante a S. Escritura. Quanto á
autenticidade de urna tradicáo, o criterio para reconhecé-la é a universali-
dade dessa tradicao; é preciso que esta seja, desde o tempo dos Apostólos,
posse comum da Cristandade (ao monos sob forma implícita). É a voz ofi
cial (o magisterio) da Igreja quem hoje interpreta a autenticidade da
Tradicáo.
Quanto á geriuinidade do magisterio da Igreja Católica, nao a deduzi-
mos da Biblia apenas (o que seria petigáo de principio e daria em círculo
vicioso). Derivamo-la do fato mesmo de que a Igreja Católica está em li-
gacáo continua com Cristo e os Apostólos sem interrupgáo alguma; é
Cristo mesmo quem nela prolonga a sua vida desde Pentecostés. Assim 55
geracóes cristas foram transmitindo urnas as outras incontaminado o de
pósito sagrado, sob a assistóncia infalível do Espirito Santo, que é a
alma do Corpo Místico de Cristo (cf. Jo 14,16.26; 16,10).
É a continuidade do Corpo Místico, sempre coeso em tomo do seu
Chefe visivel, que garante a veracidade da Igreja. Qualquer parte da Cris
tandade que se tenha separado da Cabeca visivel, já nao representa o
Corpo vivo de Cristo, embora subsista em seus quadros externos até hoje.

— 474 —
CORRESPONDENCIA MIÚDA

Tal é o caso das comunidades cristas cismáticas do Oriente: se bem que


conserven! a sucessáo apostólica, nao tém mais uniáo com a Cabega visível
da Igreja; ora sabemos que só há corpo vivo onde há cabega e adesáo
dos membros a esta.

2) Sobre a indissolubilidade do vinculo matrimonial, queira ver


"P. R." 7/1957, qu. 4-6. Voltaremos ao assunto num dos próximos fascícu
los, se Deus quiser.

3) A propósito da veneragSo dos santos representados por imagens,


veja "P. R." 4/1957, qu. 5. É obvio que os católicos nao adoram imagens;
tém-nas apenas como sinais visíveis de Deus (que se fez visível na carne
humana) e dos amigos de Deus.
Quando se tala de "adorarán do lcnho da SU. Ouz", enti-nde-si: ¡i
nrioruc.no prestada ao Divino Ciucificado, ou soja, a Deus t|iu: nu carne
humana quis pendur do santo lenho.
Sobre a intercessáo dos santos e o seu lugar na piedade crista, veja
"P. R." 3/1958, qu. 5. A respeito de Maria na obra da nossa santificacáo,
cf. "P. R." 4/1958, qu. 1.

4) Esperamos em 1959 tratar da instituigáo do sacerdocio hierár-


quico, da Confirmagáo, da Extrema-Ungáo, assim como estudar o texto
de Isaías 7. Sobre a instituigáo da confissáo sacramental, queira ver
"P. R." 4/1957, qu. 3; 8/1958, qu. 4-5.

.lüh'fj (Curitibit.): — A questño dos benzedeiros o das curas por «les


realizadas será abordada num dos iiróximos fascículos de "P. J{.".
Por ora frisemos apenas que a maioria dessas curas se deve a facul-
dades natuvais da alma humana, facilidades que últimamente vém senao
mais o inaia cstudadas pola Medicina e a Psicología; í-sses casos nao tém
que ver com intervengao direta de Deus ou de espirites do Além; as preces
e o ritual usados pelo benzedeiro sao mera encenacáo (que freqüente-
mente o curandeiro realiza com toda a boa fé).
Em outros casos, mais raros, é o demonio quem age, principalmente se
ele é evocado diretamente sob a forma de uní dos Exus de Umbanda ou
da macumba. Ein geral, o demonio nao se faz de rogado quando alguém
quer que ele "trabalhe" com os homens. Intervém produzindo efeitos mara-
vilhosos, até mesmo sob a aparéncia de atos piedosos, a fim de mais en
gañar os espectadores.
A intervencáo direta de Deus ou de um espirito bom enviado pelo
Senhor, na obra dos curandeiros, é rara, pois, quando faz prodigios, Deus
os proporciona a determinado fim que, por sua importancia, realmente
merega derrogagáo as leis da natureza. O Senhor normalmente serve-se das
causas segundas ou dos instrumentos humanos; só faz curas extraordina
rias em circunstancias extraordinarias, que nao podemos de antemáo pre
ver; Ele nao se deixa mover pela simples aplicagáo de fórmulas considera
das pelos curandeiros aptas a desencadear mecánicamente a agao divina
em favor dos homens.

R. M. (Rio de Janeiro): — Queira aguardar explanagao da Radies-


tes i a em Janeiro de 1959^
"Substancia", etimológicamente, é aquilo que está sob ("sub-stat").
Em Filosofía é o correlativo dos acidentes ou das notas contingentes de
um ser, as quais "sóbre-vém" a um "suposto" permanente. Alguma coisa ou
alguém pode variar de tamanho, cor, sabor, etc., sem deixar de ser sempre
o mesmo sujeito ("sub-jectum" langado sob, debaixo de.. .). Sendo assim,

— 475 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 11/1953

vé-se que nao se pode falar rigorosamente de substancia em Deus, pois em


Deus nao há suporte de coisas acidentais ou transitorias. "Substancia Di
vina", por conseguirte, significa simplesmente o Ser, a Entidade de Deus,
a qual é simplicissima, absoluta e eterna; a expressáo vem a ser sinó
nima de "Esséncia Divina".
Da substancia divina, que é una, distinguimos as Pessoas Divinas. Es
tas sao a substancia divina com as notas próprias da Paternidade, da Fi-
liagáo e da "Espiracáo" passiva. Estas notas nao se podem identificar en
tre si, pois cada urna délas, por seu conceito mesmo, se opóe á outra (opo-
sicáo relativa) : o pai, para ser pai, tem que se distinguid do filho. Acon
tece, porém, que o ato d* gerar em Deus nao implica divisáo da Esséncia
divina, de modo que o Filho, embora nao seja o Pai, é toda a Esséncia divi
na com sua infinita perfeicáo, acroscida dessa nota [>rópria que ó a Fi
lme, áo.
Diz-se, em conseqüéncia, que as Pessoas Divinas sao relacoes subsis
tentes .ou sao a Esséncia divina a exercer um ato correlativo a outro e
nao suscetivel de ser identificado com éste outro (tais sao o ato de proce
der por geragao).

CATEQUISTA (Rio de Janeiro) .- — Nao há, em absoluto, inconve


niente em tomar como sinónimas as expressoes pecado mortal e pecado
grave... pecado venial e pecado leve.
Os qualificativos de mortal e venial aplicados ao pecado designam di-
retamente as conseqüéncias devidas a tal ou tal pecado: o pecado mortal,
como o nome o diz, acarreta a morte sobrenatural da alma e urna pena
eterna; o pecado venial, sem extinguir a vida sobrenatural ou a grac,a
santificante; implica apenas urna pena temporal (nesta vida ou no purga
torio) ; o pecado venial nao é adesáo absoluta a um fim último indevido,
mas, antes, um ato de incoeréncia do cristáo, que permanece radicalmente
voltado pava Deus, mas momentáneamente cometo um ato que nao pode
ser voltado para o Senhor.
Claro está que diferenga de conseqüéncias supdc diferenga de giavi-
dade dos pecados, ou melhor, supde haver pecado própriamente grave e
pecado simplesmente leve.

D. ESTÉVÁO BETTENCOURT O.S.B.

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