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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacao.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO VI

66
J U N H

1 9 6
ÍNDICE
Pág.

I. FILOSOFÍA B RELIGIAO

1) "Que se entende por'Liberalismo't g


Haverá algum mal em valorizar a liberdade humana ?' ..... 22S

II. DOGMÁTICA

i) "Como amar a Deus sobre todas as coisas ?


Sinto muito maior comocao ao pensar em meus pais e amigos
do que ao pensar em Deus.
Por isto tambera me parece que ndo tenho contricáo dos pe
cados ; nada sinto ao recordar-me déles" ••■ 2SS

III. MORAL v" : ■'-.,

3) "Como julgar o 'crime misericordioso' de Súzana Van-


deput (Bélgica)? :>' •
Desejando evitar a existencia infeliz de, sita fühd; Carina, que
nascera mutilada pela talidomide, pos termo aos dios da crtanga.
O júri'de Li&ge absolveu-a.
Nao se deverá aplaudir o heroísmo dessa genitora ?" 255

IV. SOCIOLOGÍA

4) "Nos atuais debates sobre a questáo social, fáz-se por


vézes a diitincáo entre mera filantropía e verdadeiro amor ao
próximo.
Que pode significar essa rebuscada distincdo ?" 247

5) "O cristdo, dizendo que ama o próximo em Deus e por


Deus, parece desinteressar-se do bem temporal de seus semelhantes.
Poder-se-ia justificar um tal procedimento ?" 254

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

6) "Tem causado sensagáo o livro 'O Claustro e a Cidadela'


de Brigid Knight (Editora Cultrix 1962).
Pretende narrar a historia da princesa Carlota de Bourbon,
que no séc. XVI foi coagida por seus genitores a abracar a vida .
claustral em Jouarre, mas finalmente deixou o mosteiro e a fé
católica, para se casar com o principe Gutlherme de Orange
(Holanda). _
Tal episodio aparece covio um dos 'escándalos' da historia
da Igreja. Que pensar a respeito ?" ? g5°

CORRESPONDENCIA MIÚDA S6S

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano VI — N* 66 — Junho de 1963

i: filosofía ■ e reogiao . -i^V»u< "*•«

HAGO (Rio de Janeiro) : . r;y

1) «Que se entende por 'liberalismo' ? —~~r


Haverá algum mal em valorizar a Uberdade humana ?» ■-''-

■ Conforme certos filólogos, a palavra «Liberalismo» vem do adjetivo


espanhol «liberal», que na Europa do secutó' passado se difundiu em
oposicáo ao adjetivo «servil* durante os movimentos políticos subse-
qüentes ao govérno de Napoleáo Bonaparte. O Liberalismo veio entao
a ser urna corrente de pensamento que afirma o valor da Uberdade
humana de modo tal que a cada cidadáo toca o dlreito de conceber a
Verdade, o Bem e a fleligiáo segundo o seu próprio alvitre, independen-
temente de qualquer tutela ou autoridaúe.
Ñas páginas que se seguem, considerar-se-So sumariamente o histó
rico do Liberalismo, suas principáis proposigSes, assim como a atitude
da Igreja e da sá razáo frente ao mesmo.

1. Histórico do liberalismo

Foi no setor da sociología e da política que o Liberalismo


surgiu. Deve-se, com efeito, a urna reacáo dos povos contra os
sistemas de govérno monárquicos absolutistas que tiveram voga
na Europa dos sáculos XVII e XVTH (o poder executivo, repre
sentado pdo rei, quase absorvia os poderes legislativo e juditíá-
rio, gozando de facilidades práticamente ilimitadas).
O berco da reacáo foi a Franca, onde a Revolugáo de 1789
(preparada pela filosofía racionalista e naturalista dos enciclo
pedistas Voltaire, Diderot, d'AIembert) desencadeou o ideal da
«emandpagáo» dos ddadáos e do povo em todos os setores. Ésse
ideal encontrou em breve um dos seus maiores representantes
na pessoa do sacerdote Félidté Robert de Lamennais. Imbuido
de amor á causa crista, ésse varáo concebeu a idéia de que a
S. Igrejá muito se beneficiaría se sacudisse os encargos decor-
rentes da sua uniáo com o Estado; a partir de 1829, comegou,.
pois, a propugnar urna só tese : uberdade ... Uberdade em tudo
e para todos; o govérno dvil procuraría promover o bem comum
sem levar em conta os direitos da Igreja, criando um bem-estar
natural, emantípado do sobrenatural; a S. Igreja, por sua vez,
dispensaría a colaboracáo das autoridades dvis, colaboracáo que

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 1

em muitos casos equivalía a sufocacáo; a Igreja, dizia Lamen-


nais, se desenvolvería melhor, pois Ela possui o poder da Ver-
dade e do Amor, o poder mesmo de Deus. Lamennais comparava
o sistema antígo á tutela exercida pelos genitores sobre os filhos,
tutela que deve cessar quando estes chegam la maior idade;
assim o povo tena estado sob p patrocinio da Igreja e do Govérno
unidos até o séc. XVHI. Doravante, porém, tendo chegado á
plenitude dos tempos, o povo se devia libertar de qualquer tutela
profana ou religiosa, estabelecendo urna ordem de coisas neutra
em materia de filosofía e religiáo; o Estado e a Igreja se separa-
riam, reconhecendo que sua uniáo fóra mera preparagáo evan
gélica, a qual já se achava ultrapassada. O novo regime era
chamado «democracia» (como se vé, éste termo, em si muito
belo, foi entáo forjado para designar urna ordem civil tida como
leiga e indiferente, mas, em última análise, naturalista, raciona
lista e anticristá).

Eis como Lamennals se exprimía :


«O Estado deve considerar-se como colocado íora de todas as comu-
nhSes religiosas, sem autoridade sobre alguma délas, mas também
sem outra obrigacáo para com elas que nao a de lhes assegurar a liber-
dade Isto supoe que o Estado, destituido de Religiáo ou, se quisermos,.
ateu, professe a liberdade de cultos e a de consciénda e que a Igreja
aceite praticamente estas duas coisas» (L1Avenir, t. I pág. 29s, artigo
«De la Séparation de l'Église et de l'État»).
O ardoroso sacerdote reuniu em torno de si um grupo de jovens
inteligentes e generosos, tais como Lacordaire, Montalembert, Gerbet,
Rohrbacher, que constituirán! a sociedade dita «Agence Genérale pour
la Défense de la Liberté religieuse». O movimento fundou o jornal
«L*Avenir» com o lema «Dieu et Liberté», mas de duracao muito efé
mera (de 16/X/1830 a 15/XI/1831).

Compreende-se que as idéias de Lamennais, ousadas como


eram, tenham provocado receios e oposicáo, da parte tanto de
bispos como de simples fiéis. Diante da situagáo, o Papa Grego
rio XVI em 1832 publicou a encíclica «Mirari vos», condenando
as idéias de Lamennais (idéias que naquela época acarretavam
perigos e males que hoje já nao se verificariam). Quase todos
os discípulos do mencionado sacerdote inclinaram-se diante da
sentenca da Santa Sé, ficando Lamennais a sos na sua residen
cia de Chénaie, donde continuou a disseminar idéias cada vez
mais liberáis.

Embora estivesse dissolvido, o grupo de discípulos de Lamennais


nao abandonou o ideal de conciliar com os principios do Cristianismo a
sede de emancipacáo dos homens do século passado. Foi o que suscitou
novas iniciativas e prolongadas discussSes nos decenios subseqüentes.
Em 1848 o Pe. Lacordaire fundou o jornal «Ere nouvelle», inspirado por

— 224 —
LIBERALISMO E IGREJA

liberalismo assaz acentuado é arauto de reivindicares sociais inovado-


ras; com ele se achavam o Pe. Maret e o leigo Frederico Ozanam. Na <.;
oposicáo encontravam-se Louis Veuillot e Melchior Dulac, com o seu ■-■■>■.
jornal. «L'UnÍvers>.
A situacao se'tórnbu cada vez mais confusa na Franca, onde se orí-
ginaram dois partidos bem característicos: um, liberal, ao qual aderi-
ram outrosslm Montalembert, De Falloux, De Broglie, Augustin Cochin,
Mons. Dupanloup, bispo de Orleaes; e o antiliberal, que contou com o .
apoio de Mons; Fie, bispo de Poitiers. O estado de coisas era táo com
plexo que até os mais fervorosos católicos encontravam dificuldade
para distinguir com clareza o que havia de oportuno e o que havia de
errdneo ñas idéiás entao propaladas. '

Tais circunstancias exigiam novo pronunciamento da Santa


Sé. Éste, de fato, se deu aos 8 de dezembro de 1864, quando o
S. Padre Pió LX publicou a encíclica «Quanta cura» acompa-
nhada do Sílabo (ou Sumario de erros do pensamento da época);
nesses documentos o Pontífice denunciava tudo que havia de
condenáyel ñas teses dos católicos liberéis.
Os anos seguintes foram anos de controversias. Menos de
um mes após a publicacáo da encíclica, Mons. Dupanloup, notá-
vel por seus talentos e seu prestigio, divulgou um opúsculo inti
tulado «La Convention du 15 Septembre et l'Encyclique du 8
décembre 1864», em que ainda procurava tornar simpática e
aceitável a posicáo do Liberalismo. Em vista disto, distinguía,
entre doutrina e prática: no tocante a doutrina, asseverava,
Pío IX nada condenara além do que já havia sido condenado em
documentos anteriores; positivamente, apenas reiterara o pensa
mento da Igreja com relagáo á familia, á sociedade e á política.
No tocante á prática, porém, Mons. Dupanloup julgava que
Pío LX deixara margem á conciliagáo com a vida moderna; seria
possível, sim, abrir máo de algumas exigencias práticas da ver-
dade ou da doutrina da Igreja, caso o cumprimento de tais exi
gencias aparecesse como algo de müito dificil ou impossível na
sociedade do séc. XIX.

Esta distincao entre doutrina e aplicacáo prática é, em linguagem


de escola, designada pela fórmula <tese-hipótese» (a hlpótese leva
em conta os casos concretos ou a vida cotidiana, permitindo abrandá-
mento de conclusñes decorrentes da tese ou doutrina).

A situacao política da Italia favorecía as discussóes : os pa


triotas tentavam unificar a península, abolindo o poder temporal
do Papado; (á sua frente, estava o Conde de Cavour, que preten
día apaziguar os ánimos, apregoando a fórmula de Montalem
bert : «A Igreja livre no Estado livre! (L'Église libre dans l'État
libre!)»; o que quería dizer que nada haveria a temer para a

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■tPERGUNTE E RESPONDEREMOS> 66/1963, qu. 1

Igreja caso viesse a perder o territorio do Vaticano, pois o Es


tado italiano leigo ou neutro (liberal) nao entravaria as liber-
dades religiosas.
Sobreveio a figura de Leáo xm. Éste Pontífice, pacificador
como era, quis esclarecer melhor a posigáo da Igreja na contro
versia, publicando a 1« de novembro de 1885 e a 20 de junho
de 1888 as encíclicas «Immortale Dei» e «Libertas», .respectiva
mente. Tais documentos reafirmavam em primeiro lugar a dou
trina das encíclicas «Mirari vos», «Quanta cura» e do Sílabo:
asseveravam, sim, que todas as formas de govérno sao compa-
tíveis com a doutrina católica, mas que a nenhum govérno é
lícito atribuir ao erro os mesmos direitos que á verdade ou colo
car os diversos cultos no mesmo plano legal que a verdadeira
Religiáo.

«É necessário que a sociedade civil, como sociedade civil, reconhega


Deus como seu principio e seu íim,... que ela respeite e honre o poder
e a soberanía de Deus. A justica e a razáo proibem que o Estado pro-
íesse o ateísmo ou — o que equivaleria ao ateísmo — que ele mostré
as mesmas disposigOes para com cada urna das diversas religifies... e
indistintamente conceda a tddas os mesmos direitos. Já que a proíissáo .
pública de urna só Religiáo é dever do Estado, faz-se mister que o
Estado proíesse aquela-Religiáo que é a única verdadeira, Religiáo que
nao é difícil reconhecer, principalmente nos países católicos, pois as
características da verdade brilham nela por meio de sinais que a dis-
ünguem entre todas. Essa Religiáo, os chefes de govérno tratem de a
conservar, de á proteger, se querem prover, de maneira prudente e útil,
como estáo obrigados, ao bem comum dos cidádáos> (Leáo XIII, ene.
«Libertas»). i

Esta tese pode, á primeira vista, parecer rígida demais e,


por conseguinte, utópica. Leáo Xin tinha consciéncia de que
seria práticamente inexeqüível ñas circunstancias da vida mo
derna. Por isto, nao hesitou em explicar com predsáo como na
prática a doutrina (tese) poderia ser abrandada; sua posigáo
resume-se nos tres seguintes ítens da ene. «Immortale Dei» :

«Ninguém tem motivo para acusar a Igreja de rejeitar concessñes


e acomodacSes razoáveis ou de ser inimiga de sadia e legitima liber-,
dade. — Com eíeito; se a Igreja julga que nao é lícito colocar os diver
sos cultos no mesmo pé legal que a verdadeira Religi&o, Ela nem por
isto condena os chefes de govémo que, visando alcanzar determinado
bem ou impedir certo mal, toleram na prática que ésses diversos cultos
tenham cada' qual seu lugar no Estado. — É, alias, costume da Igreja
cuidar com todo o zélo, para que ninguém seja constrangido a abragar
a lé católica contra a sua vontade, pois, como' observa S. Agostinho, a
íé só pode existir onde haja espontaneidades (Denzinger, Enchiridion
1873-1875).
A íim de ilustrar melhor o pensamento do Pontífice, transcrevemos
mais as seguintes passagens da encíclica «Llbertas> í

— 226 —
LIBERALISMO E IGREJA

«Em sua consideracao materna, a Igreja leva em conta o peso acá-


brunhador da fraqueza humana: Ela nao ignora a onda (libertina) que,
em nossa época, arrasta os espiritos e as coisas. Por isto, embora só
recoñheca direitos ao que é verídico e honesto, Ela nao se op5e á tole
rancia de que os poderes públicos dSo provas frente a certas iristitui-
c6es contrarias á verdade e a justica, tendo em vista evitar maiores
males ou obter e conservar maiores bens.
Deus mesmo em sua Providencia, embora infinitamente bom e
todo-poderoso, permite, nao obstante, a existencia dé certos males no
mundo, ora para nao impedir bens maiores, ora para evitar mais vul
tuosos males. No regime das nacóes, convém que os governantes imi-
tem Aquéle que góverna o mundo. Mais ainda: nao podendo impedir
todos os males particulares, a autoridade dos homens está obrigada a
permitir e deixar impunes muitas -coisas que, a justo titulo, cairao sob
o juízo da Providencia Divina. Observe-se, porém, o seguinte: se, em
vista do bem comum,:.. as leis dos homens podem e mesmo devem
tolerar o mal, nunca o podem ou devem aprovar e desejar em si mesmo.
Com efeito, o mal é a privacao do bem; por conseguinte, ele se op6e
ao bem comum, que o legislador está obrigado a desejar e defender
do melhor modo possível. Neste ponto também as leis humanas devem
procurar imitar a Deus... .
Urna coisa ficará sempre de pé, a saber: a liberdade concedida uidi-
ferentemente a todos e em favor de todos nao é, como já muitas vézes
dissemos, desejável em si mesma, pois repugna á razao que o erro e a
verdade gozem dos mesmos direitos; no que se refere á tolerancia, é
estranho ver até que ponto se afastam da eqüidade e da prudencia da
Igreja aqueles que professam o Liberalismo».

Após tais declaracóes da Santa Sé, foram-se apaziguando


os ánimos- o Liberalismo como tal deixou aos poucos de ser
objeto de discussáo. As controversias, porém, imprimiram suas
marcas na mentalidade dos povos em geral até o dia de hoje.
Pode-se dizer que numerosas correntes de filosofía, sociología,
política, assim como varios movimentos religiosos de nossos días,
sáo^em última análise, expressóes concretas da mentalidade libe
ral que tanto agitou os pensadores do século passado.
Vejamos, pois, mais precisamente como se caracteriza essa
mentalidade.

2. Em que consiste o liberalismo ?

Como se depreende de quanto foi dito atrás, o Liberalismo


constitui urna tendencia ou urna atmosfera muito mais do que
um sistema ou urna escola de pensamento.
Essa tendencia se distingue primariamente pela intengáo de
desligar a liberdade humana de qualquer lei ou autoridade que
nao seja puramente humana ou até... que nao seja a do próprio
sujeitó. Atribui, pois, á razáo a capacidade de discutir todos os
valores, remover o que ela julgar inaceitável e erguer o que ela
considerar oportuno. Em particular, o Liberalismo nao reco-

— 227 —
«¡PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 1

nhece autoridade religiosa sobrenatural, como a afirma o cato


licismo :... autoridade que merega acato e respeito independen-
temente dos valores humanos (virtude e sabedoria) de seus re
presentantes.
Alias, esta premissa é essencial para que possa existir Libe
ralismo : íudo é humano, e meramente humano. Por isto, tudo é
relativo, tudo é imperfeito. Nada, por conseguinte, nem mesmo
a Religiáo, merece a adesáo incondicional do homem. Dai se com-
preende que o Liberalismo acarrete indiferentismo, ora mais,
ora menos acentuado; implantando-se numa sociedade, cedo ou
tarde solapa as energías coletivas e o heroísmo das atitudes.
Tal mentalidade toma facetas bem definidas quando apli
cada as expressóes da cultura. Eis um rápido catálogo dessas
facetas:

1) Liberalismo filosófico. É a tendencia a rejeitar no


campo filosófico (ou na maneira geral de encarar o mundo e a
vida) qualquer tutela que nao seja a própria razáo humana.

Na Idade Media, os estudiosos talvez tenham abusado da autoridade


do filósofo grego Aristóteles; Descartes (t 1650) inidou a reagáo contra
essa docilidade, reagáo que aos poucos foi tomando proporgfies exagera
das. A razáo humana, em conseqüéncia, negou qualquer limite no exer-
cicio da reflexáo, pretendendo julgar tudo, até mesmo as verdades reli
giosas . A possibilida'de de dogmas de origem sobrenatural, nao deriva
dos da razáo, foi, de antemáo, negada: o homem bastaría a si mesmo
(auto-suficiéncia do pensamento humano). As correntes filosóficas
contemporáneas náo-cristás, por mais contrarias que sejam entre si,
sup5em tfidas tal ponto de partida: assim o criticismo, o idealismo, o
positivismo, etc.

Bons críticos modernos observam que nessa posigáo filosó


fica está latente urna certa contradigáo : o Liberalismo, que re-
jeita o dogma, de antemáo admite um dogma — p dogma de
que nao pode haver autoridade ou tutela que transcenda a razáü
humana. Sem provas e gratuitamente, o pensador liberal se vin
cula a éste pressuposto, cerceando a sua liberdade dentro do seu
imanentismo ou da sua auto-suficiéncia.

2) Liberalismo religioso. Lutero proclamou o livre exame


da Biblia, ou seja, a recusa de qualquer autoridade visívél que
orientasse a leitura das Escrituras Sagradas; cada érente deve-
ria perceber dentro de si, pelo testemunho meramente interno
do Espirito Santo, o sentido da Palavra de Deus. Com isto Lu
tero deu inicio a urna nova mentalidade dentro do setor religioso
mentalidade subjetivista e individualista. Eis, porém, que,
quando a fé no testemunho interno se atenuou (como no protes-

— 228 —
LIBERALISMO E IGREJA

tantismo do séc. XVIII), cada individuo fícou com a liberdade


de julgar os valores da Religiáo sem controle superior á sua
própria razáo; dai dizer-se que tanto faz abragar esta como
aquela religiáo ou mesmo recusar qualquer religiáo. Em última
análise, todas as Religióes seriam boas; dir-se-ia que é o homem
quem as faz, quem as julga, quem as condena, em vez de ser
condenado pela Religiáo.

Tais idéias repercutiram em certas correntes bíblicas dos séc.


XVTII/XIX, favorecendo exageros na crítica dos livros sagrados. Em
conseqüéncia, notáveis autores dedicados ao estudo das Escrituras che-
garam a negar a DMndade de Cristo. Tal estado de coisas provocou
entre os anglicanos o benfazejo «Movimento de Oxford», encabecado por
Newman, o qual denunciou e impugnou o liberalismo religioso, primei-
ramente como anglicano, depois como católico.
Pió IX, no Silabo, condenou a proposicáo n9 4, conforme a qual a
razáo seria a soberana norma para se julgar qualquer tipo de verdade
(cf. Denzinger, 1704).

Aplicado ao setor das relagóes da Igreja com o Estado, o


Liberalismo religioso propugna um Estado leigo (que prática-
mente é Estado ateu), dissimulado sob o nome de Estado «tole
rante» : Religiáo nao seria valor necessário a um programa de
bom govérno; em materia de Religiáo, nao haveria própriamente
nem verdade nem erro, nada enfim que merecesse o empenho do
Estado.
A Igreja, na impossibilidade de conseguir melhor solugáo,
aceita ésse agnosticismo, contanto que nao degenere em perse-
guígáo religiosa.

3) Liberalismo político. Caracteriza-se, no seu ámago, pelas idéias


que acabam de ser expostas no tocante á Filosofía e á Religiáo. A polí
tica é urna das aplicacoes da Filosofía e da atitude religiosa do cidadao.

4) Liberalismo económico. No setor económico, o Libera


lismo ensina que a livre concorréncia é lei providencial, a qual
estimula a produgáo dos bens e a prosperidade dos povos; o in-
terésse pessoal dos cidadáos, isento de qualquer intervengáo do
Estado, seria o grande propulsor das atividades económicas.

Essas idéias íoram apregoadas de maneira sistemática na Escola


de Manchester, orientada por Adam Smith (t 1790). «Deixar fazer,
deixar passar», tal era o lema désse tipo de Liberalismo; nenhuma
autoridade teria o direito de exercer controle sobre as Iniciativas dos
individuos, que destarte fácilmente cediam ao egoísmo e á ganancia,
estabelecendo a opressáo dos pobres por parte dos ricos, reduzindo o
trabalho a categoría de mercadoria sujeita ás leis da oferta e da pro
cura; tais males íoram agravados pelo fato de que os economistas Jibe-

— 229 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 1

rais do séc. XVIII professavam a total separacáo entre economía, de


üm lado, e moral (consciéncia), do outro lado. Foi o liberalismo econó
mico que provocou a concentracao de grandes capitais em máos de
poucos proprietarios, com detrimento para a massa da populacáo en
tregue á miseria (donde o chamado «capitalismo»).

5) Liberalismo artístico. Propala a separacáo entre as régras da


arte e as normas da consciéncia ou da moral. Ao artista .seria licito
produzir toda e qualquer obra de arte, sem levar em conta os ditames
da ética. Cf. «P. R.» 25/1960, qu. 5, onde se encontram a explanacáo e
a reíutagao dessa atitude liberal.

Em conclusáo : o Liberalismo resumiría todas as suas ex-


pressóes no seguinte principio: Todo homem responsável por
seus atos tem o direito de fazer o que lhe agrade, «certo ou
errado», desde que os atos de tal individuo nao prejudiquem a
sociedade.

As categorías de «certo» e «errado», conforme esta apreciado, sao


muito variáveis, de modo que ninguém pode pretender possuir a cer
teza ou a verdade.
Que dizer de tais idéias ?

3. Urna reflexáo

1. Como vimos, o principio básico do Liberalismo ensina


que a liberdade é um bem absoluto, ácima do qual nao há pa-
dráo; conseqüentemente, ao homem é licito, com a sua liberdade,
empreender o que queira.
Ora nao é difícil verificar as falhas déste principio. Em ver
dade, o homem nada tem de absoluto, mas é um ser relativo, que
só se consuma voltando ao seu Autor , o Bem Supremo ou Deus.
A liberdade, portante, nao é o Supremo Bem ou o Km do ho
mem, mas é mero meio de que o homem dispóe para atingir com
dignidade o seu Fim Supremo, Deus.
Realizar o bem é o fim do homem. Querer realizá-lo, e que
rer realizarlo de maneira consciente e nobre, eis o que a liber
dade presta de grandioso ao homem.
Por conseguinte, o cidadáo nao vive para gozar simples-
mente da sua liberdade, mas para utiliza-la, para pó-Ia ao ser-
vigo do seu ideal supremo, que é a consecugáo do Sumo Bem
ou Deus.
Donde se vé que o homem recebeu, sim, a liberdade de es-
colher entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro, mas nao
recebeu o direito de escolher o mal e o erro. Nao; a própria na-
tureza humana exige que o homem, para ser o que deve ser,

— 230 —
LIBERALISMO E IGREJA

aplique a sua liberdade a escolher a verdade e o bem, rejeitando;


o erro e o mal. . ,
O genuino uso da liberdade, portanto, nao implica que p
homem tenha o direito de escolher indiferentemente entre o bem
e o mal, mas apenas... que ele tem o direito de escolher o bem
com dignidade superior á de urna máquina ou de um autómato.
Donde se vé que a ninguém é lícito, em nome da liberdade pro-
fessar e apregoar o que lhe passe pela cabega. Quem queira
fazer isto, encaminha-se para a sua ruina física e moral; ora a
natureza a ninguém deu o direito de se destruir. — É preciso,
pois, que haja autoridade e guia em todo e qualquer setor em que
o individuo se queira langar.

Sao estas idéias que nos levam a rejeitar a mentalidade do


Liberalismo como algo de falho ou algo de nocivo á própria
dignidade humana.

2. A íim de favorecer a reflexáo sobre o assunto, transcrevemos


aqui algumas passagens de Fulton Sheen, que, em estilo característico,
enunciam as mesmas idéias :

«A liberdade nSo é o direito de íazer o que me pareca...; ao contra


rio,. .. é o direito de lazer o que devo...

Essa palavrinha «dever» significa que o homem é livre. O fogo é


necessaríamente quente, o gélo é necessariamente frió, mas o homem
deve ser bom.
...A liberdade nao é o poder de íazer qualquer coisa que se
queira... Certamente vocé pode fazer qualquer coisa que lhe agrade
ou que queira. Pode roubar do seu vizinho, pode bater na sua mulher,
pode encher colch5es com giletes usadas, e também matar a tiros de
metralhadora as galinhas do vizinho, mas vocé nao deve fazer nada
disso, porque, se fizesse algo tal, se desfiguraría ou degradaría, deixaria
de ser o que um homem deve ser.
A liberdade é, pois, mais um poder moral do que um poder físico,
é um dever e nao um poder.»
Mais adiante continua o autor, íalando de «especies de liberdade» a
lim de designar «verdadeira e falsa liberdade» :

«Qual é a mais elevada especie de liberdade ? Fazer o que devo,


isto é, obedecer á minha consciéncia e salvar a minha alma, ou fazer
tudo o que eu queira, seja bom, seja mau ?
Eis dois aspectos da liberdade, pois alguém se faz santo pela mesma
vontade pela qual se pode tornar um demonio.
Éste é o problema : Qual é a mais alta forma de liberdade ?
Decerto, fazer o que devenios é mais alta forma de liberdade do
que fazer o que queremos, porque a primeira termina no perfeito desen-
volvimento da nossa personalidade, ao passo que a última termina em
sua escravizacao.
Por exemplo, o homem deve ser sobrio, e nao se entregar demais ao
hábito da bebida. Suponhamos, porém, que diga : 'Sou livre, portanto

— 231 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 1

nada de prolbigSes nem... de restricSes puritanas; por isto beberé!


quanto quiser1. Depois de algum tempo, tal homem íica escravizado á
bebida; em lugar de lazer o que lhe agrada, bebe nao por prazer, mas
para evitar o desprazer de nao beber. Tendo agido mal, sua vontade per
manece ainda livre para escolher o que é bem,.mas ele nao é mais livre
para fazé-lo. Tedas as fdrcas de resistencia íoram vencidas e sua liber-
dade acaba em escravidáo. O erro que cometeu, é o erro que o mundo
moderno está cometendo : pensar que liberdade significa independencia
da leí, e que infringir as leis de Deus é urna forma de áfirmagáo de per-
sonalidade. O que devenios meter em nossas cabecas, como cidadáos,
como pais de familia e como educadores, é que liberdade nao significa
ilegalidade. Pelo contrario, a liberdade é condicionada pela obediencia
a lei. Liberdade fora da lei nao existe, só existe liberdade dentro da
lei... Por exemplo, um aviador só tem liberdade de voar se se subme-
ter a lei da gravidade, isto é, deve agir dentro da lei e nio íora déla.
Tente agora dar urna prova de afirmacao da personalidade, e atire-se
do Empire State Building e verá que num minuto terá perdido toda
liberdade até a de viver... Esqueea a finalidade de urna navalha e
use-a para abrir latas de tomates, e estragará a navalha porque esque-
ceu sua finalidade...
Assim se dá com a lei moral; somos verdadeiramente livres quando
obedecemos á finalidade ou á lei para a qual fomos criados, finalidade
que é o desdobramento e o desenvolvimento de nossa personalidade
através de nossa eterna felicidade com Deus. Temos liberdade de igno
rar a lei moral, de beber, de roubar, de ser adúlteros, de sacudir os
punhos com odio, assim como temos liberdade de ignorar a lei da gra
vidade, mas cada vez que a ignoramos, ou diminuimos ou destruímos
a nossa liberdade. Alcanca-se a liberdade real, agindo nao fora da lei,
mas dentro déla.
...Deus implantou na natureza humana e em Sua Igreja as leis
que nos permitem realizar a finalidade da vida e atingir os mais altos
objetivos de nossa personalidade. Essas leis nao sao represas que detém
o progresso; sao diques que impedem que as aguas do egoísmo e da
concupiscencia invadam a térra. Se eu obedecer ou fizer o que devo,
serei livre. Se desobedecer ou fizer o que quiser, estarei agindo contra
os mais altos interésses de minha natureza. Cada vez que peco, sou
menos homem em razáo disso, tal como a máquina em cujo uso se vio-
lam as instrucSes do fabricante é menos máquina.
Pecar, que é o despr&zo da finalidade e da lei da vida, nao é prova
de liberdade; é o coméco da escravidSo, porque, como disse Jesús Cristo,
'todo aquéle que comete o pecado, é escravo do pecado' (Jo 8,34)» (O
problema da Liberdade. Rio de Janeiro 1945, pág. 3742).

3. Urna vez refutado o principio básico do Liberalismo,


verifica-se conseqüentemente quanto sao erróneas as concretiza-
góes ou aplicacóes do mesmo nos diversos setores da Filosofía,
da Religiáo, da economía, etc. Por isto nao nos demoraremos na
consideracáo direta de tais aspectos. Apenas aqui lembraremos
que a S. Igreja nos últimos anos, ao conceber as suas relagóes
com o Estado e com outros credos religiosos, mais e mais pro
pugna a tolerancia ou o «caso de hipótese» de que já Leáo XIII
se fez arauto; cf. «P. R.» 36/1960, qu. 6.

— 232 —
COMO AMAR A DEUS SOBRE TODAS AS COISAS?

H. DOGMÁTICA

CATECÚMENO (Rio de Janeiro) :

2) «Gomo amar a Deus sobre todas as coisas ?


Sinto milito maior comogáo ao pensar em mens país e ami
gos do que ao pensar em Deus.
Por isto também me parece que nao tenho contricáo dos pe
cados; nada sinto ao recordár-me déles».

1. A questáo se resolve sem grande dificuldade, desde que


se leve em conta á distingáo entre amor afetivo e amor aprecia
tivo ou efetivo.

a) O amor afetivo é a atragáo que experimentamos frente


a determinada pessoa pelo fato de a estarmos percebendo me
diante os sentidos (os olhos, os ouvidos...). Somos entáo «im-
pressionados» de rflaneira sensível; em conseqüéntía, a nossa'
natureza corpórea vibra espontáneamente — o que se manifesla
mediante sorriso, estremecimento, lágrimas, pranto, rubor, pali
dez, etc. Tais reacóes podem escapar ao controle da vontade;
embora muito abalem o individuo, sao, por vézes, algo de infra-
-humano. Nao sao motivadas pela dignidade da pessoa ou do
objeto que impressionam (pode mesmo acontecer que pessoa
pouco digna provoque grande comocáo sensível).

É natural que as pessoas com quem mais intimamente convivemos,


como genitores, familiares e amigos, despertem em nossa sensibilldade
mais vivas reag5es ou emogfies. Tais emogSes podem ser moralmente
boas e sadias, desde que tenham motivo reto (assim a emogáo que ex
perimentamos ao pensar em pai e mSe é moralmente boa); contudo
essas emogdes sensíveis nao sao criterio de verdadeiro amor, pois ficam
abaixo do plano em que se localiza ¿> amor prdpriamente dito (plano da
inteligencia e da vontade). A emogao sensivel é, na melhor das hipo-
teses, algo que acompanha o genuino amor, mas n2o o caracteriza,

b) O amor apreciativo é a atragao que se deriva da apre-


ciacáo ou da consideragáo inteligente do valor que nos é pro-
posto. Quem, por exemplo, reflete sobre o que Deus é, verifica
que é o Sumo Valor; se, em conseqüéncia, concebe o propósito
de Lhe aderir incondicionalmente, está amando a Deus com
amor apreciativo,... e amor apreciativo que, no caso, é sumo
ou está ácima de todas as coisas.

— 233 —
■tPERGUNTE E RESPONDEREM0S> 66/1963, qu. 2

Tal amor pode nSo provocar reacio alguma em nossa natureza


sensive!, pois ele nao depende de contato sensitivo (dos olhos, dos ouvi-
dos...), e, sim, dé urna reflexáo da inteligencia. É, por isto, muito digno
e muito mais característico da nobreza humana do que o amor afetívo.

Por conseguinte, para que alguém cumpra o preceito de


amar a Deus sobre todas as coisas, nao se requer qué vibre sen-
sivelmente ao pensar em Deus, mas que esteja firmemente dis
posto a tudo sacrificar (até mesmo o deleite de conviver com os
parentes e amigos), a fim de nao perder a uniáo com o Senhor,
ou seja, a fim de nao pecar. Para averiguar se possui tal amor,
o cristáo examinará o zélo que emprega para evitar as ocasióes
de pecado, combater as tentacóes e progredir na vida espiritual.
É, pois, pela prática cotidiana ou pelos efeitos (nao pelos senti-
mentos emotivos) que se verifica a existencia do amor apre
ciativo.

2. O mesmo se diga com referencia á contrigáo dos peca


dos. A genuina contrigáo nao implica necessáriamente emogáo
sensível e lágrimas (pode haver tais concomitantes, nao raro sao
gragas especiáis de Deus); mas consiste essencialmente em re
pudio do pecado, repudio decorrente da consideragáo inteligente
e serena do que é urna ofensa a Deus. Por efeito désse repudio,
o penitente deve conceber o firme propósito de fazer tudo para
nao mais pecar, ainda que sofra, em conseqüencia, a própria
morte. '

Note-se que a contricáo e o propósito sao válidos mesmo que a pes-


soa nao tenha certeza de nao recair em culpa apesar dos seus sinceros
esforcos. Na verdade, todo individuo está sujeito a ser surpreendido e
suplantado pela miseria de sua natureza. O que o Senhor Deus requer
do penitente, é a disposicáo legal de empregar todos os meios que, hu
manamente falando, lhe parecerem oportunos para nao ser vencido pelo
pecado.

Vé-se assim que pode muito bem haver genuina contrigáo


sem emogóes sensíveis (a expressáo «dor pelos pecados» nao
significa «abalo emotivo ou sensível»); a contrigáo tem sua sede
na inteligencia e na vontade, nao na sensibilidade da natureza
humana.

3. O amor apreciativo que devotamos a Deus, admite tres gratis:

a) o primeiro consiste em aderir ao Sénhor de modo a nao querer


perder a uniáo com Ele por causa de criatura alguma ou por causa de
pecado mortal. Esta forma de amor caracteriza a via purgativa ou os
inicios da vida espiritual, em que a pessoa está obrigada a hitar contra a
concupiscencia desregrada, a fim de nao ser arrastada a pecados
graves.

— 234 —
O <CRIME MISERICORDIOSO» DE SUZANA VANDEPUT

b) O segundo grau de amor consiste em que ocristao nao queira


nSo sámente perder, mas nem mesmo diminuir a uniáo com Deus — o
que se daria pelo pecado leve ou venial. Esta modalidade de amor carac
teriza a via iluminativa, na qual a pessoa procura com diligencia forta
lecer as virtudes inicialmente adquiridas na fase anterior.
c) O terceiro grau de amor leva o cristáo a procurar evitar até
mesmo as imperfeis5es voluntarias, a fim de nao sofrer o mínimo de
trimento ou entrave na uniao com Deus. Conseqüentemente, a pessoa,
em qualquer de seus atos, escolhe o que julga mais agradável ao
Senhor. Tal é a característica da via unitiva, em que a intimidadecom
Deus se vai desenvolvendo sem limite.

ni. MORAL

DR. AREV1ATÉIA (Minas) :

3) «Como julgar o 'crime misericordioso* de Suzana Van-


deput (Bélgica) ?
Desejando evitar a existencia infeliz de sua fílha Corlna,
que nascera mutilada pela ..talidomide, pos termo aos dias. da
crianca. O júri de Liége absolveu-a.
Nao se deverá aplaudir o heroísmo dessa geuitora?»

O caso Vandeput despertou vivo interésse por parte do pú


blico da Europa e da América, pois tem algo de inédito. É muito
sintomático da vida do séc. XX, dando margem a reflexóes sobre
conceitos básicos. Sendo assim, dedicar-lhe-emos a nossa aten-
gáo, referindo primeiramente os fatos ocorridos para, a seguir,
passar á consideragáo de certas normas da Moral.

1. Os fatos

Relataremos sucessivamente o delito, o tramite do processo


e as repercussóes do mesmo entre os comentadores internado-
nais.

a) O delito

Suzana Coipel Vandeput era funcionaría de urna Companhia de Ele-


tricidade em Liége (Bélgica), quando, aos 23 de maio de 1962, numa Clí
nica da cidade, deu a luz urna menina, para a qual escolhera o nrime
de Corina. A genitora adormecida íoi levada da sala de partos para o
quarto, enquanto o Dr. Werts mostrava o bebé a seu pal, Jean Vande
put, assim como a avó materna, Sra. Fernando Yerna Coipel: era um
ser humano que n&o tinha nem bragos nem mesmo espáduas; á parte
inferior do pescólo prendiam-se dois dedos de um lado, e quatro dedos
do outro lado, mediante um esbógo de míos; os pés eram disformes; o

— 235 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 3

anus nao funcionava normalmente, fazendo-se teda a evacuado pelas


vias urinarias.
Durante cinco dias conseguiram que a genitora nao avistasse a
crianca: lindo éste prazo, porém, a Sra. Vandeput, apreensiva, exigiu
que lhe mostrassem a menina... Ao vé-la, désmaiou, tendo que ser tra
tada com soporíferos em altas doses.
Entrementes a avó materna encarregou.se de consultar o Dr. Jac-
ques Casters médico do bairro, que todos tinham em elevada considera-
Cao : pediu-lhe um meio suave de fazer desaparecerá crianca. Replicou
entáo o clínico — como ele mesmo confessou mais tarde — que «o papel
de um médico nao é o de matar, mas que outros poderiam assumir a
responsabilidades. Acabou, todavía, cedendo ás instancias, e aos 29 de
maio, quando a Sra. Vandeput deixou a Matemidade para voltar ao lar,
receitou injegOes que provocariam a eutanasia; sem demora, porém, foi
buscar a receita em casa da familia Vandeput, entregando outra, que
prescrevia comprimidos, os quais produziriam o envenenamento da
crianga sem deixar vestigios no corpúsculo da mesma.
Entáo a avó materna reuniu o pai, o tío e a tía da menina e, após
seria deliberacáo, resolveu com éles exterminar a vida do pequeño
«monstro». A Sra. Suzana estava plenamente de acordó com a decisáo;
quis executá-la pessoalmente; por conseguinte, de posse do veneno,
lancou-o na mamadeira da crianca, a qual bebeu pela última vez, ador-
meceu e nunca mais acordou...
Enquanto isto se dava, os funcionarios da Matemidade, cientes das
intencSes da familia, tomaram providencias para impedir o morticinio :
a parteira informou o Dr. Gottschalk, o qual, por sua vez, telefonou
para a policía (pedindo, alias, que guardassem sigilo a respeito da sua
intervencáo). Assim se explica que, logo após o delito, os familiares de
Corina tenham sido capturados por policiais; o mesmo sucedeu ao
Dr. Casters, que receitara o veneno.
O episodio tomou rápidamente grande vulto, pois os jomáis e as
emissoras radiofónicas passaram a explorá-lo.
Num sábado á noite, urna estacáo de radio propds ao público a
questao : «Condenarlas a Sra. Vandeput ?»
Na primeira meia-hora, muitos e muitos ouvintes responderam por
telefone; 75% nao aceitavam a condenacao da infeliz genitora. A seguir,
o número de respostas negativas tornou-se ainda mais avantajado.
Finalmente em novembro de 1962 o Tribunal de Liége passou a
julgar o caso, em meio ao mais vivo interésse do público.
Examinemos, pois, os principáis tópicos dos debates.

b) O prooesso
O promotor de justica, Dr. Cappuyns, partía do principio
de que a lei proibe matar um inocente. Ora os acusados reconhe-
ciam que tinham cometido, ou ajudado a cometer, uní mortici
nio : a avó impusera á familia a decisáo fatal; o pai «deixara as
coisas correr»; a genitora dera o leite envenenado á crianca, ao
pásso que a tía Mónica fóra buscar na farmacia a droga prescrita
pelo Dr. Casters.
De modo especial, Cappuyns apontava a responsabilidade
dos dois varóes: o médico Dr. Casters e o genitor da menina.
Referindo-se a éste, afirmava :

— 236 —
O «CRIME MISERICORDIOSO DE SUZANA VANDEPUT

«Se urna só das cinco pessoas acusadas tivesse dito 'Nao', o crime
nao haveria sido cometido. Se Joao Vandeput, por urna vez que fdsse,
houvesse mostrado energía, teria dito: 'Essa crianca tem direito á
minha protecáo'>.

O promotor também analisou as causas que, conforme a leí,


poderiam eximir de culpa o ato de envenenamento: demencia,
legítima defesa, coagáo irresistível, dever imposto pelo próprio
juiz. Tendo mostrado que nenhum désses motivos excusantes
podia ser evocado no caso, dirigiu aos jurados o seguinte apelo :

«Peco-vos que respondáis afirmativamente á questáo da culpabili-


dade de Suzana Coipel e digáis que os outros acusados sao co-autores
ou, ao menos, cúmplices».

Embora defendesse táo enérgica sentenca, Cappuyns nao


deixou de manifestar sentimentos muito humanitarios :

«Por mais respeitável que tenha sido o motivo do crime, ele nao
me parece suficiente para justificar impunidade. Só poderia ser con
siderado como remota circunstancia atenuante.
• Nern vos nem eu podemos penetrar ñas consciéncias (dos réus).
Suzana Coipel diz ter assim procedido porque sua filha Jamáis haveria
sido feliz. Esta resposta é sincera, mas nao creio que seja de todo exata.
Com que direito os genitores ou... a avó ou um médico estranho esti-
pulam que determinado género de vida nao vale a pena de ser vivido?
Por que Corina Vandeput nao poderia usufruir da sua chance ?»

Frente ao bem comum da sociedade, Cappuyns manifestava


ter consciénciá da sua responsabilidade: absolver os acusados
constituiría terrível precedente, cujas conseqüéncias poderiam
ser gravíssimas :

«Peco-vos, em nome da sociedade, digáis que sao culpados. Respon


der 'Nao' seria abrir a porta a todos os-abusos. Equivaleria a responder
'Nao' (isto é, desabonar) a todos aqueles que se sacrificam, desde o
sabio que estuda no seu laboratorio até a mais humilde enfermeira;
equivaleria a dizer 'Nao' aos milhares de genitores que, esparsos pelo
mundo, nao querem ser covardes».
«Sei que tenho de fazer frente a parte da opiniáo pública... Vive
mos num mundo em que o homem da rúa deseja encontrar, todas as
marinas, urna página inteira do seu jornal consagrada á coragem de
Suzana Coipel (Sra. Vandeput); contudo pouco se incomoda se nao en-
contra urna só linha a respeito da coragem cotidiana das genitoras cujo
amor é táo ampio quanto o infortunio de seu filhinho».
E o promotor sublinhava que nao se poderia apontar algum traco
prdpriamente materno no comportamento de Suzana Coipel.

Nao obstante a candente argumentagáo de Cappuyns, o júri


de Iiége, após duas horas de deliberagáo definitiva, responded

— 237 —
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qü. 3

«Nao» a todas as questóes formuladas pelo presidente da Corte.


Chegou mesmo a negar que houvera morticinio voluntariamente
cometido, embora os próprios réus tívessem reconhecido que ha-
viam praticado tal crime :

«Consta que um homicidio tenha sido voluntariamente praticado a


íim de acarretar a morte de Corina Vandeput ? - ;
— Nao.»

Os comentadores do caso tém-se visto surpresos ante tal


•sentenga do júri. Como entender que doze homens honrados e
■honestos da Bélgica tenham pedido proferir tal veredito ?

Procurando sondar as causas do pronunciamento, indicam


•as seguintes :

1) O Código Penal belga nao estabelece distíngáo entre


assassínio (morticinio cometido com odio ou más intengóes) e
eutanasia (suave exterminio da vida inspirado por «benevolen
cia» ou «compaixáo»). Ora os jurados, nao querendo classificar
a conduta de Suzana Vandeput e seus familiares como assassí
nio, viram-se, por deficiencia da lei, obrigados a abster-se de con
denar o exterminio de Corina. Disto nao se poderia concluir que
nao viam mal algum no comportamento da familia Vandeput;
apenas nao encontraran! na jurisprudencia belga a categoría
adequada para o apontar.

2) A opiniáo pública, favorável á absolvi^áo da familia


Vandeput, por certo influenciou a atitude dos juízes. Ora o povo
nos debates públicos sobre o caso alegava, entre outras coisas,
■que

seria injusto condenar os acusados no processo de Liége se nao se


julgassem e condenassem previamente os fabricantes, os importadores
■e distribuidores da talidomide, remedio alemáo tranquilizante que a
Sra. Vandeput ingeriu no inicio da gestacao com grave detrimento para
a prole. A causa primeira de todo o drama seria, conforme éste modo
•de ver, a talidomide; por conseguinte, se nao se proferisse algo contra
•os primeiros responsáveis da tragedia, a müitos cidadáos parecía ini
cuo sentenciar a Sra. Vandeput (o Dr. Cappuyns, porém, replicava que
a talidomide nao exercera influencia alguma na consciéncla de Suzana,
jdoís esta, ao decidir a morte da crlanga, nem se lembrava de ter tomado
talidomide);
seria outrossim injusto condenar os familiares de Corina Vandeput
após alguns serios acontecimentos recém-ocorridos na Bélgica. Com
«feito, em julho de 1960 as esposas de oficiáis e de autoridades belgas
residentes no Congo foram violentadas por soldados congoleses amoti
nados; voltando á Bélgica, essas pessoas recorreram ao ab9rto; contudo
nao sofreram sangáo alguma por parte das autoridades governamentais.

— 238 —
O fCRIME MISERICORDIOSOS DE SUZANA VANDEPUT

Dal preconizar-se a mesma indulgencia para com a Sra. Vandeput. — &


claro que tal alegacao carece de todo valor, pois um mal nao justifica
outro; contudo, quando no sábado 10 de noVembro, os advogados de
Suzana lembraram o íato, éste ecoou como bomba na assembléiá do-
tribunal, provocando ainda maior compaixáo para com a acusada.

Eis o que mais importava salientar dentre os tragos caracte


rísticos do processo de Liége. Interessa-nos agora verificar como
repercutiu na opiniáo internacional a benigna atitude do júri
belga.

c) As rea§6es

1. Imediatamente após a publicagáo do benigno veredito,


o povo belga deu vivas provas de júbilo, exaltando os acusados
como genu:nos modelos de coragem heroica. Do seu lado, a im
prensa socialista belga pós-se a celebrar o episodio qual «Vitoria
obtida sobre a Igreja».
Nao tardaram, porém, a se fazer ouvir de toda a parte
vozes que desaprovavam categóricamente o alvitre dos juristas
de Liége... a comegar pela própria Rússia.
Com efeito, o dentista russo Kisselev, num Congresso reu
nido em Monaco aos 16 de novembro de 1962, declarou que a
firma produtora da talidomide deveria ter sido julgada em pri-
meiro lugar, sim; mas que o comportamento da Sra. Vandeput
nao merecería, de modo algum, ser aprovado; e acrescentou:

«A medicina soviética jamáis concordará com urna Moral biológica.


Nos, médicos julgamos que todos os homens devem viver. Jamáis pode-
remos saber de antemáo quais as portas que a ciencia nos permitirá
abrir. Assim é que durante muito tempo ninguém imaginava poder sal
var os 'filhos hemoliticos', isto é, as criancas nascidas de pal e mae por
tadores de Rh diferentes; tais criancas eram, na maiona dos casos,
ameacadas de debilidadé mental ou de paralisia total. Ora, nos últimos
anos a ciencia tem conseguido salvar ésses pequeninos em 80 ou 90%
dos casos, proporcionando-lhes vida normal mediante transfusao total
ou completa mudanga do seu sangue» (Agencia «France-Presse», 16 de
novembro de 1962).

O dentista francés Jean Rostand, embora nao professe a fé


crista, também fez ouvir o seu desacordó com o tribunal belga.
Com efeito, os repórteres do periódico francés «Carrefour» per-
guntaram-lhe se as autoridades deveriam permitir a eutanasia
sem controle; ao que Rostand respondeu :

«Direi explícitamente que nao. Nao sei em absoluto o que será o


mundo dentro de cinqüenta anos. A consciéncia coletiva evolui; sou o
primeiro a reconhecé-lo. O processo de Liége acarretará numerosas

— 239 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 3

conseqüéncias em varios setores. Minha repulsa nao quer dizer que


desprezo os acusados de Liége. Compreendo muito bem todas as razóes
que alegaram. Nao quero tomar a atitude de acusador; nao é éste o meu
papel; acontece, jíorém, que me pedís urna opiniáo pessoal. Recusar-
-me-ei sempre a destruir urna vida humana, qualquer que ela seja» (el.
«La Croix» de 18 de novembro de 1962).

A revista «Le Monde» de 13 de novembro de 1962 publicou


as seguintes observagóes assinadas pelo Dr. Escoffier-Lambiotte:

«Varias das regras de Deontologia médica, dentre as mais funda


mentáis e as mais sagradas aos olhos do médico, íoram violadas, a
quanto parece, no decorrer do drama de Liége.
Em primeiro lugar, tratava-se de segrrédo médico, valor intanglvel,
direito sagrado do doente e dever sacro do médico, em virtude do qual
as relagoes entre o médico e seu cliente se desenvolvem em clima de
confiarla absoluta e irrestrita. Será lícito indagar se o segrédo médico
foi devidamente respeitado pelo parteiro e pelo pedíatra aos quais se
confiara a paciente, Sra. Vandeput.
Tratava-se, a seguir, de respelto h vida. Esta nogáo também é, para
a classe médica, algo de absoluto e sagrado... O Dr. Casters..., nao
obstante, infringiu essa 'regra de vida1, sobre a qual estáo baseados
tantos sáculos de Medicina».

Mais ainda : a Ordem dos Médicos da Franga publicou, aos


15 de novembro de 1962, urna declaragáo assinada por seu pre
sidente, o professor Vernejoul, a qual realgava que «o médico
pode e deve atenuar os sofrimentos», mas que «nem o morticinio
dos doentes nem a eliminagáo dos enfermos sao compatíveis
com a nossa civilizagáo». Além disto, a Ordem dos Médicos fazia
sua a seguinte mogáo votada em 1949 pela Academia das Cien
cia Moráis e Políticas:

«A Academia rejeita formalmente todos os métodos destinados a


provocar a morte de individuos tidos por monstruosos, disformes, defi
cientes ou ineuráveis, porque, entre outros motivos, toda doutrina mé
dica ou social que nao respeite sistemáticamente os principios absolutos
1 da vida, dá fatalmente lugar a abusos criminosos e mesmo ao sacrificio
de individuos que, apesar das suas enfermidades físicas, poderiam gran
diosamente contribuir para a construcáo duradoura da nossa civilizacao,
como o comprova a historia» (texto reproduzido pelo «Osservatore Ro
mano» de 23 de novembro de 1962).

O próprio Dr. Casters, envolvido no processo, deu a saber


que nao desejava que a sentenga indulgente a ele aplicada ge-
rasse urna praxe comum na jurisprudencia — o que bem mostra
as reservas com que ésse estudioso encarou o procedimento dos
jurados. Com efeito, o jornal belga «Vers 1'Avenir» publicou a
seguinte noticia:

— 240 —
O «CRIME MISERICORDIOSO» DE SUZANA VANDEPUT

«Interrogado domingo a noite por um colega, o Doutor Casters


respondeu: 'A sentenga do tribunal de Liége nao é mensagem para a
sociedade; ela só diz respeito a mim. Foi a mim apenas que a justiga
dos homens protegeu num caso particular e em circunstancias especiáis.
O que me parece múito grave é que se possa julgar que tal sentenga
constituirá norma de jurisprudencia. Intenciono continuar a minha
existencia atenuando os soírimentos e protegendo a vida».

Bastem estes testemunhos provenientes dos meios médicos


e científicos para nos dar a conhecer a posigáo dos estudiosos
civis frente ao júri belga.

2. Quanto as autoridades eclesiásticas, é notoria a sua ati-


tude desfavorável a. sentenga de Liége. Limitar-nos-émos a citar
a carta do episcopado da Bélgica dirigida aos respectivos fiéis
diocesanos em 12 de novembro de 1962, carta que se distingue
tanto por sua compreensáo paterna e benévola como por sua fir
meza de principios:

«O processo de Liége tem comovido profundamente a opiniáo pú


blica, nao sómente a do nosso pais (Bélgica), mas a do mundo inteiro.
Compreendemos muito bem o sofrimento dos genitores, para os quais o
faustoso acontecimento que éles aguardavam, se transformou em dolo-
rosa provacao; e compartilhamos profundamente a sua dor. Nao inten- .
cionamos julgar a consciéncia dos autores do angustioso drama daí
decorrente. Mas, quaisquer que sejam as circunstancias atenuantes evo
cadas em favor dessas pessoas, cabe-nos o imperioso dever de lembrar
os principios da Moral natural e crista.
'Nao matarás'. Tal é a lei divina. Ninguém, nem o individuo nem a
sociedade, tem o direito de ferir diretamente a vida de um inocente.
Como declarava Pió XII, 'nao há homem, nem autoridade humana, nem
ciencia, nem indicacáo médica, eugenésica, social, económica ou moral,
que possa invocar ou constituir um titulo jurídico válido para dispor-
mps direta e deliberadamente de urna vida humana inocente' (Discurso
de Pió XH ao Congresso das Parteiras, em 29/X/1951, A.A.S.; 1951,
838). Por conseguinte, ninguém, por julgar que urna vida humana será
necessáriamente infeliz, tem o direito de concluir que é preciso impor-
-lhe um fim. A lei de Deus protege o pequenino que acaba de ser cha
mado a levar existencia humana, assim como ela protege o adulto que
esteja privado do exercício de suas faculdades mentáis ou que sofra de
algum mal incurável. Qualquer derrogacáo imposta a esta lei abre
caminho para o arbitrario. Leva aos mais graves abusos, que a cons
ciéncia humana nunca deixou de reprovar; constituí, portante, seria
ameaga á sociedade. Aos cristáos toca a obrigagáo de desaprovar e con
denar qualquer forma de eutanasia; cabe-lhes dar provas de quáo pro
fundamente éles estimam o valor que pode ter um sofrimento humano.
Háo de mostrar quanto apreciam a grandeza de alma e a delicadeza
de coragSes daqueles que envolvem em amor duplicado as criaturas
desfavorecidas pela natureza. A caridade e o espirito de abnegacáo que
inspiram tal conduta constituem a mais bela homenagem prestada ao
misterio da vida e á dignidade da pessoa humana» (Cf. «Osservatore
Romano», 23 de novembro de 1962).

— 241 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 3

A Radio Emissora do Vaticano também chamou a atencáo


para o fatór «talidomide» e para os deveres de consciéncia que
incumbem aos respectivos comerciantes :

«Numerosos setores de atividades humanas pedlriam hoje em dia


vigilancia mais atenta e escrupulosa. As tragedias provocadas pela
venda, em comercio, de certos produtos farmacéuticos, entre os quais a
talidomide, denunciam um progresso e urna ciencia que abstraem das
responsabilidades moráis; em vez de facilitar e encorajar o reppeito á
lei moral, tal progresso e tal ciencia acarretam situagSes e provocam
alternativas diante das quais infelizmente mais de urna pessoa sucumbe.
Quem assim cai, é culpado. Mas aqueles que induzem em tentacáo e pro
vocam a queda, seja por leviandade, seja por inconsciencia, nao podem
ser considerados inocentes» (despacho da Agencia «France-Presse», re-
produzido pelo jornal belga «Vers 1'Avenir» de 12 de novembro de 1962).

Estes documentos resumem, com muita clareza, o pensa-


mento da Igreja a respeito do processo de Liége. Somos assim
naturalmente levados a considerar os grandes principios doutri-
nários que éntraram em causa neste solene episodio da historia,
motivando finalmente a repulsa á sentenga benigna.

2. Os principios doutrinários

Já em «P. R.» expusemos as grandes verdades sobre as quais se


apoia a consciéncia crista para repudiar qualquer atentado á vida do
inocente: cf. 34/1960, qu. 4 (a respeito da. eutanasia, categoría dentro da
qual se insere o caso Vandeput) e 57/1962, qu. 4 (a respeito do suicidio).
Em conseqüéncia, aqui lembraremos apenas os grandes traeos do
que já foi dito nos artigos ácima, e acrescentaremos algo s6bre o valor
da vida humana.

a) Respeito á vida

Desde as primeiras páginas da Escritura Sagrada, o Senhor


Deus inculca que é o Supremo Senhor da vida e da morte.
Tenha-se em vista, por exemplo, o mandamento: «Nao mata
rás» (Éx 20,13), preceito éste frecuentemente repetido nos livros
b;blicos; cf. Ex 23,7; Dt 5,17; 33,39; Sab 16,13; Mt 5,21; 19,18;
Me 10,19; Le 18,20; Rom 13,9.
Nao há dúvida, o Senhor deleerou e delega aos homens, em
certas circunstancias, o dominio sobre a vida, quando se trata
nao de um inocente, mas de um réu cuja existencia na sociedade
seja nociva ao bem comum (cf. Núm 15, 35s; Rom 13 4). Assim
torna-se lícito matar em casos de 1) guerra justa,.2) legítima
defesa, 3) sentenca capital proferida pela autoridade legal. Fora
destas situacóes, é contrario á consciéncia crista dispor da vida

— 242 —
O «CRIME MISERICORDIOSO» DE SUZANA VANDEPUT

alheia; nem mesmo a compaixáo para com o sofrimento do pró


ximo poderia justificar tal atentado (eutanasia).
É o que o S. Padre Pió XH quis lembrar na sua encíclica
sobre o Corpo Místico :

«'Os membros do nosso corpo que julgamos menos dignos de honra,


sSo os que cercamos de maiores cuidados1' (1 Cor 12,22s).
Afirmacáo multo importante que... julgamos ter de repetir ao
verificar com profunda afligao, que os seres disformes, dementes ou
afetados' de doengas hereditarias sao tratados como fardo importuno
para a sociedade e, por vézes, privados da vida terrestre. Tal prccedi-
mento chega a ser exaltado por algumas pessoas como se se tratasse
de progresso humano, plenamente consentáneo com o bem comum. Ora
qual o homem sensato que nao compreende que tal conduta se opoe
violentamente nao so a lei natural e divina gravada no coráceo de cada
um de nos, mas também ao bom senso de todo individuo civilizado ?
O sangue dessas criaturas, mais caras ao nosso Redentor justamente
por mais merecerem compaixao, clama da térra a Deus».
De acdrdo com essas idéias, o S. Oficio em 1940, respondendo a
urna questao atual, recusava as táticas do racismo e da eugenesia na
cionalista :
«Será lícito, por ordem da autoridade pública, matar diretamente
aauéles que, embora nao tenham cometido crime digno de morte, estao
impossibilitados em conseqüéncia de algum defeito físico ou psíquico,
de servir k nacáo, sendo por isto considerados como fardo e entrave da
fórca e do vigor do país ?>
A resposta íoi clara : «Nao é lícito, pois isto contraria tanto ao di-
reito natural como ao direito posiüvo divino» («Acta Apostolicae Sedis»
1940 [XXXII] 533).

Éste documento sugere algumas reflex5es sobre

b) O valor e o sentido da vida humana

Os autores do crime de Liége deram a entender que urna


crianga mutilada ou disforme nao pode chegar a possuir os va
lores que tornam a vida humana digna de ser vivida.
Esta atitude desperta urna consideragáo a respeito da obje-
Cáo nao raramente feita aos cristáos : diz-se que estes ensinam
urna «Moral do Além», cuidando apenas de «salvar as almas» e
pouco atendendo á vida terrestre ou corpórea como tal.
O simples fato de que a consciéncia crista bradou contra o
atentado de Liége bem mostra quanto esta censura é infundada.
A menina Corina recebeu o santo batismo; está no céu e
goza da visáo beatifica. A casa do Pai, para onde ela se foi pre
maturamente, foi-lhe mais acolhedora do que as nossas mansóes
terrestres.

— 243 — ■
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 3

Será que, por isto, os genitores e responsáveis cumpriram


seus deveres cristáos com relagáo á crianga ?
Nao. Nao lhes podia bastar a certeza de que salvarían* essa
alma, retirando-lhe ¡mediatamente a existencia no corpo e neste
mundo... Damos aqui a palavra a abalizado teólogo contempo
ráneo, Ph. Delhaye:

«Nao podemos admitir que os genitores tenham privado essa me


nina da ocasiáo de assumir a responsabilidade da sua vida espiritual e
de tomar urna posigáo pessoal (engajamento) no curso das coisas déste
mundo. Ela teria podido unir-se ao misterio cristáo, que é sofrimento
e alegría, em comunháo com a morte e a ressurreigao de Cristo. Quem
sabe se, como outros eníermos, ela nao teria compensado a sua defi
ciencia física por um desejo mais ardente do que o do comum das pes-
soas, desejo de praticar o bem e de contribuir para o alivio de tantas
miserias da condigáo humana? Os psicólogos verificaran! freqüente-
mente o seguinte : poucas sao as criancas e poucos os adultos que, afe-
tados por urna desgraga qualquer, nao procurem sublimar os seus males
mediante urna auténtica criacáo de valores.
Mas, dir-nos-áo, Corina teria sido infeliz!
Coníesso que fleo perplexo diante desta objecáo... como diante de
certas respostas que lhe sao dadas. Tal objegáo sup8e que, para ser
feliz, deve a pessoa estar no gdzo de urna constituigáo normal e que os
individuos dotados de organismo normal vivem na felicidade. Bem sel
que existe um mito de felicidade e que passarei por pessimista se eu
me erguer contra ele. Pouco importa; no que me concerne, verifico que
os meus trabamos de historiador mais freqüentemente me deram a
conhecer pessoas infelizes do que pessoas felizes. Nem ousaria dizer que
os contatos com os meus contemporáneos alteram notoriamente éste
ponto de vista. Há, em toda existencia humana, certa quota de felicidade
e certa quota de infortunio. Isto varia de individuo para individuo, em
parte por causa dos acontecimentos de cada dia, mas também em parte
por causa do temperamento e das disposigóes subjetivas de cada pes
soa .. Muito mais numerosos do que pensamos, sao os homens e as
mulheres que se sentem insatisfeitos consigo mesmos. Basta lembrar
os inümeros complexos de inferioridade com que se defrontam os sacer
dotes e os psicólogos.
Um 'filho de papai rico', diante do seu trem elétrico que custa um
prego louco, talvez nao seja mais feliz do que um de familia pobre,
para o qual tenha papai conseguido ajuntar as armas de um indio sem
valor comercial... Por isto julgo que a felicidade é algo de intimo, que
nao se expóe em praca pública; quem afirma com impetuosidade (para
nao dizer:... com agressividade) que é feliz, dá margena a que se ponha
em dúvida a solidez désse bem-estar.
Muito oportuno seria mostrar como pessoas físicamente mutiladas
podem conquistar numerosos valores, nao sementé cristáos ou divinos,
como a vida da graga, mas também naturais. O que dá valor a urna
criatura é o fato de que ela realize plenamente a tarefa para a qual foi
criada. O valor de um 61ho está em ver; o de um cávalo está em correr
e ser forte. Contudo o valor de um homem — já Aristóteles o notava
— é muito superior, pois ent&o se trata de desenvolver faculdades inte-
lectuais. O que ésse autor pagáo (Aristóteles) dizia referindo-se ao

— 244 —
O «CRIME MISERICORDIOSO* DE SUZANA VANDEPUT

conhecimento, um cristáo, ou mesmo apenas um homem influenciado


pelo Cristianismo, o dirá reíerindo-se ao amor, á vontade de praticar o
bem de trabalhar para o auténtico progresso do género humano. A
enfermidade de Corina Vandeput té-la-la impedido de participar da
solidariedade humana ? Como nao teria superado essa enfermidade no
decorrer da sua infancia e dos seus anos de formado ? Em conse-
qüéncia, nao poderla tornar-se um foco de generosidade e de alegría ?
Tem-se a impressáo de que as controversias que se travaram em
tdrno do caso Vandeput, eram movidas por duas concepcSes de vida
opostas entre si: urna concepcao, toda egoísta e egocéntrica; e outra,
animada pelo desejo de se dar e de praticar o bem. O cristáo, mais do
que qualquer outro individuo, está habilitado a compreender a sublime
filosofía do dom...; contudo nao faltam espiritos generosos que, usando
da razáo apenas, percebem a veraddade das palavras de Jesús referidas
por S. Paulo : 'Mais vale dar do que receber" (At 20,35).
Corina recebeu exigua porgáo de dons físicos. Quem sabe se nao
teria podido superar essa dificuldade e transformar a sua vida em
fonte de valores para si mesma e para os outros?» («L'Ami du Clergé>,
10 de Janeiro de 1963, pág. 24-26).

Eis algumas idéias que devem necessáriamente orientar a


consciéncia do cristáo todas as vézes que se depare com um caso
de eutanasia ou de atentado contra a vida de um inocente, qual
quer que seja o pretexto evocado no caso. A vida humana tem
valor, e pode ser altamente fecunda, independentemente dos re
sultados materiais ou palpáveis que ela produza para a socie-
dade; por isto nao é lícito exterminá-la, desde que o individuo
(tornando-se delinqüente e nocivo ao bem comum) nao acarrete
sobre si mesmo a grave sangáo da morte, sancáo esta que, em
nossos tempos, se evidencia cada vez menos oportuna, cada vez
menos recomendável.

A Moral crista nao se opoe ao uso de analgésicos e narcóticos, desde


que aliviem realmente as dores do paciente, sem lhe tirar diretamente
a vida; cf. «P. R.» 34/1960, qu. 4.

3. Observagáo complementar

A titulo de ilustracao (e de consoló para quem os principios prece


dentes parecerem demasiado rígidos), nao a título de argumento pro-
, priamente dito, poder-se-á acrescentar o seguinte :
Corina náscera táo mutilada que havia motivo para recear, viesse
em breve a sofrer grave crise de saúde; talvez nao se pudesse entáo
assegurar a sua subsistencia mediante os recursos ordinarios da medi
cina- so restaría o emprégo de algum remedio ou tratamento extraordi
nario (isto é, multo difícil, caro ou raro) para lhe conservar a vida. Pois
bem' nessas circunstancias poderiam seus pais e responsáveis reexami
nar 'o caso : embora a Moral crista muito estime a vida humana como
tal ela ensina que nao há obrigacáo de recorrer a melos extraordinarios
para conservar a existencia de alguém (cf. S. Afonso de Ligório, Theo-

— 245 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 66/1963, qu. 3

logia Moralis, De V praecepto n» 376; Salba, Theologiae Moralis-


Summa II. Madrid 1953, n' 254, pág. 268s). Por conseguinte, caso os ge
nitores de Corina, .naquelas circunstancias, quisessem deixar que se
extinguisse a vida de sua íilha pelo simples íato de nao recorrerem a
expedientes multo caros e diffeeis, isto é, extraordinarios, poderiam
íazé-lo sem lesáo da Moral crista.
Os casuistas, porém, frisariam bem que seria preciso aguardar
tais circunstancias novas. Quanto aos psicólogos, observariám que, jus
tamente nessas circunstancias novas, os pais de Corina talvez desejas-
sem tentar todos os meios para salvar-lhe a vida, pois teriam tido tempo
para se afeicoar á menina. Os médicos, por seu lado, nao se confessa-
riam táo fácilmente desarmados.
Pergunta-se naturalmente: que se entende por recursos extraordi
narios da Medicina ?
A resposta há de ser um tanto vacilante ou relativa, dados os pro-
gressos da Medicina moderna e as possibilidades de que cada paciente
disponha para tratar de sua saüde.
Um inquérito recentemente efetuado em onze hospitais dos Estados
Unidos deu os seguintes resultados : os diretores de olto déssesestabe-
lecimentos consideraram como meios normáis e, por conseguinte, obri-
gatórios, Dará salvar a vida de um recém-nascido, a tenda de oxigémo
e a transfusáo de sangue. Quanto a álimentacao subcutánea, sámente
seis hospitais a julgaram recurso ordinario e obrigatório (pois é muito
difícil descobrir as veias de um pequenino recém-nascido).
Em certas regióes, a operacáo de urna «crianga roxa» (isto é, de
sangue muito intoxicado) pode ser considerada (e de fato é conside
rada) como expediente raro e excepcional, ao qual os genitores nao
estáo estritamente obrigados a recorrer.
Certas curas ou intervenedes cirúrglcas que so se podem fazer
no estrangeiro, com grandes despesas de dinheiro e de tempo, sao geral-
mente tidas como recursos extraordinarios que a ninguém obrigam em
consciéncia.

Em conclusáo : verifica-se que a grandeza de alma e o he


roísmo dos genitores nao consiste em eliminar a vida de seus
filhos, mas, sim, em dar tudo para afirmar o valor dessa vida,
quaisquer que sejam as circunstancias de saúde corporal em que
ela deva decorrer; dentro da criatura humana, há mais do que
bens materiais. A atitude dos familiares de Corina, assim como
a das assembléias populares táo indulgentes no caso, revelam
sentimentalismo vazio ou certa extenuacáo de ánimo da socie-
dade contemporánea — fenómeno grave e dolorosamente sinto
mático.

— 246
filantropía e amor ao próximo

IV. SOCIOLOGÍA

A. RIBEIEO (Rio de Janeiro) :

4) «Nos atoáis debates sobre a questáo social, faz-se por


vézcs a distingáo entre mera filantropía e verdadeird amor ao
próximo.
Que pode significar essa rebuscada distinelo ?»

Analisaremos separadamente os conceitos de filantropía e


de amor ao próximo.

1. Filantropía

1. Etimológicamente, «filantropía» é palavra grega que


significa «amor aos homens».
O amor aos homens sempre foi recomendado na historia da
filosofía e da civilizagáo.

Na Grecia, já Platáo (t 347 a.C.) exaltava a filantropía e, a


quanto parece, a subdividia em «aíabilidade, assisténcia ao infeliz e
hospitalidades. A vida de Sócrates, o mestre de Platáo, podia ser apre-
sentada como exemplo de filantropía, pois Sócrates passava os días a
«nsinar aos homens o que é a virtude, chegando a dar a vida por causa
desta sua missao (cí. Platáo, Apologia de Sócrates, 29 D; Xenofonte,
Memorabilia I, 6,14).

Os estoicos, no limiar da era crista, inculcando igualmente entre os


homens um cosmopolitismo que ignorava barreiras entre os povos,
incutiam altruismo e abnegagáo (cf. Cicero, Fin. 3,19, 64). De modo es
pecial, Séneca (t 65) levantava protestos contra a opressáo dos fracos
« dos escravos (cf. ep. 47,ls; 95,51s), ao passo que o Imperador Marco
Aurelio (t 180) recomendava o amor até mesmo aos inimigos (Medita
res VII 22).
O Cristianismo, como se compreende, sublinhou e aprimorou tais
normas, chamando a atencáo para o fato de que todos os homens sao
irmáos em Cristo, todos valem o sangue do Redentor. Conscientes disto,
os escritores e mestres desenvolveram com zélo o tema do amor ao pro-
ximo ou da caridáde fraterna. Isto... até o séc. XVI.

2. No séc. XVI, o Humanismo bu Renascimento constituiu


um movimento de emancipagáo frente ao Cristianismo e de volta,
ora mais, ora menos consciente, ao paganismo. Em conseqüén-
cia, nao podia deixar de se depauperar o conceito de amor aos
homens ou de filantropía; um certo relativismo o foi desvir
tuando.

— 247 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 4

Nos sáculos seguintes, a filantropía e a vida pública mais e


mais se emanciparan! da nogáo de Deus. Com isto, o amor aos
homens perdeu sua base religiosa, que o Cristianismo táo forte-
mente lhe havia incutido. O racionalismo francés do séc. XVTLI,
por exemplo, estabelecia o principio da «Humanité» (Humanida-
de) ou da filantropía sobre um fundamento leigo ou mesmo ateu.
Pouco depois, o filósofo alemáo Kant (t 1804) afirmava que o
amor aos homens é um imperativo categórico, isto é, algo que
devemos praticar sem procurar motivacáo ou finalidade; o gé
nero humano seria objetivo ou fim em si mesmo. O amor aos
homens por causa dos homens, sem se levar em conta a existen
cia de Deus, justificar-se-ia perfeitamente. Augusto Comte
(t 1857) chegou a fazer désse amor leigo, amor sem Deus, a sua
«Religiáo» — a Religiáo da Humanidade.

A filantropía leiga tomou vulto bem concreto em fins do séc. XVTII


numa corrente pedagógica alema chamada «Filantropismo» ou «Filan-
tropinismo». O iniciador désse movimento foi JoSo Bernardo Basedow
(1724-1790). Visava reformar a escola e a educacao, assinalando-lhes
como finalidade a formacáo de homens capazes de alcancar o máximo
de felicidade possivel para si e para seus semelhantes (donde o nome
de «Filantropismo»); qualquer especie de nacionalismo deveria ser con-
seqüentemente combatida. Os métodos didáticos da escola nova deve-
riam evitar disciplina rígida e recorrer a táticas agradáveis aos alunos.
Os programas de estudo desenvolveriam principalmente as materias
úteis e económicamente produtivas (de modo especial,... as que se rela-
cionam com a agricultura); o ensino da religiáo teria o papel de educar
os sentimentos do jovem e provocar bons costumes (seria, em outras
palavras, «educacáo meramente moral»). Tais sao as idéias dissemina
das através dos dez livros da obra de Basedow intitulada «Elementar-
buch fuer die Jugend und fuer ihre Leher und Freunde» (1770).
O autor, tendo captado a simpatía de muitos colegas e principal
mente a do príncipe de Anhalt-Dessau, íundou em 1774 o instituto «Phi-
lanthropinum» na cidade de Dessau; seria, ao mesmo tempo, um semi
nario para formar mestres e um colegio com internato para adolescen
tes. A respeito désse educandário, Basedow publicou um escrito dedi
cado ao Imperador D. José da Austria, ao rei da Dinamarca, á Impera-
triz Da. Catarina da Rússia, e dirigido aos benfeitores da humanidade.
O Instituto devia dar educacáo civil, política (no sentido do cosmopoli
tismo, isto é, da rejeicáo do nacionalismo) e religiosa (no sentido do
deísmo, isto é, da simples afirmacáo da existencia de Deus, sem coníis-
sao de fé própriamente dita). Essa escola encerrou suas atividades em
1793 por motivo de desentendimentos entre os seus mentores.
Basedow se ressentiu profundamente da influencia de Jean-Jacques
Rousseau, cuja obra «Émile» ele leu asslduamente; dai o otimlsmo do
Filantropismo em relacáo & natureza humana (esta seria, por si mesma,
inclinada á prática do bem), assim como o seu deísmo (religiáo dos
filósofos racionalistas, alheios ao Cristianismo). A educacáo moral ba-
seada em tais premissas seria necessáriamente falha, pois transferiría
para a natureza humana e suas pretensas capacidades a importancia e
os valores que na verdade competem a Deus e k graca; apoiando-se em

— 248 —
filantropía e amor ao próximo

si mais do que no Senhor, o homem nao consegue a sua íelicidade nem a


dos seus semelhantes, pois é certo que no fundo de cada individuo
existem o egoísmo e outras tendencias desregradas que dificultam ou
mesmo, cedo ou tarde, sufocam o genuino amor ao próximo.

3. Pois bem. Em nossos dias, quando se faía de «filantro


pía», costuma-se entender o que a filosofía dos últimos séculos
nos transmitiu, isto é, o amor aos homens que abstrai de Deus,
amor «leigo», que julga poder preencher as suas finalidades sem
dar lugar explícito a Deus nos seus programas. É o tipo de amor
professado por sociedades de educacáo ou de assisténcia social
que se dizem «leigas» ou «aconfessionais». Tais sociedades nao
renegam a Deus, nem combatem expressamente a fé (por vézes
até a elogiam em termos mais ou menos convencionais)^ mas,
por seus programas, dáo a crer que Deus e a Religiáo nao sao
elementos necessários para que o homem e a sociedade se rea-
lizem devidamente; sao, antes, expressóes do gósto, da cultura
ou do temperamento de cada individuo; poderáo tornar-se úteis
de acordó com as tendencias de cada qual em particular.
O cristáo sabe que tal amor aos homens, embora possa con
seguir alguns bons resultados, nunca proporcionará aos póvos a
harmonía e a paz a que tanto asp'iram. Os valores humanos, as
simpatías naturais, os vínculos de familia ou nacáo nunca seráo
suficientes motivos para sustentar de maneira duradoura o ser-
vico do homem ao seu próximo; o egoísmo e as paixóes tendem a
prevalecer, solapando a energía que se requer no exercício do ge
nuino amor. Se nao leva em conta um motivo mais valioso, ou
seja, Deus, o homem nao consegue amar seu semelhante até as
últimas conseqüéncias. A natureza humana, está, sim, contami
nada pelo pecado original e pela concupiscencia desregrada; esta
verdade, de importancia capital, que a fé crista ensina, a filoso
fía racionalista (em particular, a de Jean-Jacques Rousseau) a
ignora; ignorando-a, ela de antemáo se inabiüta para resolver
os problemas sociais.

Cf o que já loi dito em «P. R.> a respeito do Rearmamento Moral


(9/1958, qu. 7), do Rotary Club (49/1962, qu. 3), da Maconaria (9/1958,
qu. 9).

Dito isto, vejamos o que o Cristianismo propóe em lugar da


filantropía leiga.

2. O amor ao próximo

Para o cristáo, Deus é o Sumo Bem e o Único que possa e


deva ser amado de maneira incondicional; é o único Bem capaz

— 249 —
gpERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, gu. 4

de satisfazer á sede do amor humano, porque é o único que nao


contém deficiencia; é o Bem infinito. As criaturas só sao capazes
de atrair o amor humano na medida, ora maior ora menor, em
que refletem a perfeicáo divina ou em que sao imagem de Deus.
Desta observado se segué importante conclusáo: o amor
que o cristáo dedica ao seu semelhante, parte de um termo mais
elevado que o homem, e tende a voltar a ésse termo. Deriva-se,
com efeito, do amor a Deus; detendo-se ñas criaturas, o cristáo
vé nestas o sinal ou o vestigio do Criador; por isto, ama-as por
causa de Deus, estendendo o amor que ele dedica ao Senhor. E,
por fim, o cristáo tende a referir á gloria e ao louvor do Altís-
simo o bem que ele encontra ñas criaturas; o seu amor deleita-se
entáo e repousa de maneira definitiva em Deus.
O amor as criaturas, assim entendido, nao é algo dé faculta
tivo. Nao; amar a Deus implica necessáriamente «amar tudo
que Deus ama ou tudo que traz o cúnho de Deus».
Nao será l'cito permitir que motivos humanos de antipatía
prevale :am sobre a necessidade de amar todos os homens em
Deus ou sobrenaturalmente.

Está claro que nem sempre podemos impedir o surto espontáneo


de movimentos de antipatía para com esta ou aquela pessoa, principal
mente se nos oíendeu ou se é um individuo moralmente viciado. Experi
mentar tais movimentos indeliberadamente ou sem consentimento da
vontade nao é pecado; o Senhor pode' permitir que até as almas mais
zelosas os experimenten! durante anos a íio.
Faz-se mister, porém, dominar essa antipatía, subordinando-a ao
amor a Deus ou estendendo até aos individuos «antipáticos» o amor que
devotamos a Deus; o Senhor, sim, ama todos os homens, mesmo os nos-
sos inimigos e os que nos causam repugnancia; todos foram remidos
pelo sangue de Cristo. Sem ter obrigacáo de entrar em relac.6es de espe
cial amizade com essas pessoas, o cristáo procura ao menos dar-lhes o
mesmo tratamento que dá a qualquer de seus semelhantes. — O amor
a Deus purifica o amor aos homens e dá-lhe a devida ordem.

Quanto aos motivos naturais de amor (vínculos de familia


de nacionalidade, afinidade de temperamentos, comunháo de in-
terésses temporais, etc.), ficam sendo legítimos; o amor, por
exemplo, que cada pessoa dedica espontáneamente aos familia
res, pode ser perfeitamente sustentado dentro da concepgáo
crista do amor; contudo requer-se que o discípulo de Cristo su
bordine o seu afeto natural ao amor sobrenatural; corrobore a
sua simpatía natural, dando-lhe fundamento aínda mais sólido
ou envolvendo-a dentro do amor que ele tributa a Deus. O amor
ao Altíssimo purifica o amor aos homens e dá-lhe a devida
ordem. Em conseqüéncia, mesmo que parantes e amigos se tor-
nem «antipáticos», o cristáo continuará a amá-los.

— 250 —
filantropía e amor ao próximo

A luz destas idéias, tem-se dito que o genuino amor é um amor


trinitario. Sim; ele circula nao apenas entre o «eu» e o «tu», mas entre
«eu», «tu» e Deus. É a presenga de Deus, é o amor a Deus que dá a so
lidez e a autenticidade ao amor entre as criaturas. É impossivel que eu
ame verdadeiramente urna criatura humana, sem que amé simultanea-
mente a Deus; nao posso atingir a personalidade do meu próximo ou o
que ele tem de mais digno, se nao o considero á luz de Deus. O Criador
será, em ultima análise, o vinculo ou o elo entre mim e meu próximo.
Cf. B. Haring, La Loi du Christ HI. París 1959, pág. 22.

Vé-se, pois, que, para o cristáo, há um só amor com dois


objetos: o Criador e as criaturas, Aquéle como objeto principal
e absoluto, estas como objeto secundario e relativo. Diz S. Agos-
tinho : «Com o mesmo e único amor amamos a Deus e ao pró
ximo. .. a Deus, por causa d'Éle mesmo; a nóse ao próximo,
por causa de Deus» (De Trinitate 8, 12 ed. Migne lat. 42, 954).
Estas nogóes seráo ulteriormente desenvolvidas no pará
grafo abaixo.

3. Deveres decorrentes do amor fraterno

A prática fiel da caridade é tarefa muito ardua, de modo que, mes


mo ñas almas ávidas de.períeicáo, as faltas contra essa virtude nao sao
raras. A razáo principal da dificuldade é a seguinte : o amor deve pene
trar todas as atividades do sujeito, tanto as que se manifestam (pala-
vras e acóes) como as que nao se manifestam (juizos meramente inte
riores, afetos íntimos, etc.). O motivo que, em última análise, deve ani
mar todos os atos do cristáo, há de ser o amor; a prática de qualquer
outra virtude tem que ser vivificada, em sua raiz, pela caridade. Já se
tem dito com muita veracidade: «A caridade deve por óleo ñas engre-
nagens da própria justigas.
Nao intencionamos mencionar aqui todos os deveres decorrentes da
caridade, mas apenas alguns daqueles que mais evidenciam a amplidao
dessa virtude.

a) Caridade apostólica. Escrevia o S. Padre Pío XI ao


episcopado argentino no dia 4 de fevereiro de 1931:

«Aqueles que amam a Deus nao podem deixar de querer que todos
O amem, e aqueles que amam realmente o próximo, nao podem deixar
de desejar a sua salvacáo eterna e de trabalhar para assegurá-la. É esta
a base do apostolado..., que obriga todos os horneas».

Nenhum cristáo, aínda que chamado 'á vida solitaria e ao


deserto, tem o direito de viver para si só, sem levar em conside-
ragáo as necessidades do próximo. As almas entregues no claus
tro á penitencia e á oragáo devem na sua clausura entreter urna
atitude apostólica, da qual ninguém as pode dispensar; oferecam
seus atos em uniáo com o silencio e a Paixáo de Cristo a fim de

— 251 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 4

colaboraren! na Redengáo do mundo; foi pregado á Cruz e inerte


que o Senhor Jesús consumou a obra de salvagáo do mundo.
No Corpo Místico de Cristo, lembra Pió XH, «somos remidos e
somos corredentores» (ene. «Mystici Corporis»); quanto mais
urna alma fór fiel e fervorosa no lugar que Deus lhe assinalou,
tanto mais será célula fecunda que receberá a vida da Cabeca
e a transmitirá as demais células com abundancia e proveito.
Ninguém pode estender suas atividades visíveis na linha horizon
tal a gósto seu ou de acordó com as múltiplas indigencias do
mundo moderno; mas, em compensacáo, todos se podem apro-
fundar, vivendo mais intensamente a sua vida interior; e essa
intensificagáo de vida equivale a um verdadeiro apostolado. As-
sim se entende, por exemplo, que S. Teresa de Ávila tenha ali
mentado ñas Religiosas do Carmelo o zélo missionário, zélo que
se traduz nao em atividades exteriores, mas em oragáo, desa
gravo e exemplo. No silencio e no ocultamemo das almas fervo
rosas é que se decidem as grandes batalhas do Reino de Deus.

b) Caridade das inteligencias. Aqueles que exercem o


apostolado ativo, toca um dever que nem sempre é percebido e
devidamente praticado.

Sim; é preciso dissipar os erros da inteligencia e anunciar a


verdade. Leve-se em conta, porém, que há duas maneiras de
comunicar a verdade : urna, caridosa, a qual será sempre fecun
da; e outra, um tanto pungente, pouco amável; esta é fadada a
ficar sempre, em grau maior ou menor, estéril.

«A certeza de termos razáo nao impede a brandura das palavras.


Há certo orgulho nos modos violentos de proíerir a verdade, e isto pre-
judica fortemente as proposigóes que sustentamos. Raramente urna pa-
lavra dura e fría penetra ñas almas; caso penetre, só deixará íerimen-
tos... Sómente a caridade e a compaixáo humilde tém o dom de pas-
sar através de todos os obstáculos, pois há sempre urna via de penetra-
cao (para a caridade)» (R. Bazin, Étapes de ma vie. Paris 1936,
pág. 35s).

Com outras palavras : é preciso que o arauto da verdade a


proponha ao próximo na qualidade de amigo, e nao de adversa
rio nem de mero e frió doutor ou mestre. «O que mais abala os
homens, é a amizade que temos para com as suas almas» (R.
Bazin, ob. cit. 213).

Será necessário, portante, apresentarmos a verdade nao como dia-


léücos que usam de «armas» e fazem celeuma, mas como pessoas que
se esíorcam por compreender outras pessoas com seus probelmas; e,
tendo-as compreendido, procuram expor a verdade no seu aspecto mais
atraente, mais correspondente as necessidades do próximo, mais «mo-

— 252 —
filantropía e amor ao próximo

derno» (se necessário). Procuraremos distinguir bem o que a verdade


tem de essencial, das proposlg6es que nos subjetivamente lhe costuma-
mos assodar, por efeito de nosso modo de ver, de nosso temperamento
ou de nossas simpatías pessoais (J. Maritata designa essas proposig6es
acessórias como «ganga de subjetivismo e de egoísmo em que somos
sempre propensos a envolver a verdade»; cí. «Qui est mon prochain?»
em «Vie intellectuelle», agosto de 1939, pág. 176).

Por conseguinte, o ideal consiste em prppor a verdade de


modo a nao diminuirmos o próximo, mas, antes, captarmos todo
o seu entusiasmo e a sua generosidade. Para o conseguirmos, só
há um meio : procurar, com benevolencia e perspicacia, ler ñas
fórmulas imperfeitas ou erradas que o adversario emprega,_ o
núcleo de verdade que nelas possa estar contido (com razáo,
afirma-se que em todo erro há um cerne de verdade). E desen
volvamos no sentido auténtico esse cerne de verdade que o nosso
interlocutor já possui. Os psicólogos fizeram urna verificagáo
de notável importancia : o espirito humano foi feito de tal modo
que, ñas licóes que lhe damos, ele focaliza e apreende primeira-
mente os aspectos que correspondem aos seus quesitos e aos pas-
sos qua ele anteriormente tenha dado por iniciativa própria;
cada um comeca a conhecer a verdade inteira a partir do seu
problema próprio e pessoal.

É claro que estas normas nao signiíicam relativismo perante a ver


dade nem mórbida tolerancia para com o erro. Apenas dizem respeito
á manelra de comunicar a verdade. Sobre os direitos da verdade e a
tolerancia, cf. «P. R.» 36/1960, qu. 6.

c) Caridade social. O verdadeiro amor ao próximo toma


em consideragáo nao sómente os individuos necessitados e a fa
milia de consanguíneos, mas também a sociedade como tal. Os
Papas, a partir de Leáo Xm, tém mais e mais recomendado a
caridade social. Esta nao se identifica com distribuigáo de esmo-
las (pois a esmola é geralmente simples paliativo, e nao reme
dia aos males pela raiz), mas visa principalmente a organiza-
gao de instituigóes e leis que garantam o bem comum. Contudo
as leis e a justiga por si nao bastam, na maioria dos casos, para
satisfazer as indigencias dos cidadáos; por isto a caridade pode
exigir do cristáo que atenda ao próximo independentemente dos
deveres estritamente impostes pelos leis. Sao palavras de Pió XI:

«Por certo a ninguém, sob pretexto de praticar a caridade, será


licito íurtar-se aos deveres da justica. Todavía, ainda quando cada cida-
dáo recebe aquilo a que tem direito por lei, íica aberto á caridade um
campo de acáo muito vasto. A justica, por si só, mesmo quando meti
culosamente observada, pode fazer desaparecer as causas dos conflitos

_ 253 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 5

sociais mas n3o realiza a aprojdmacao das vontades e a uniao dos cora-
goes. Ora todas as instituigóes destinadas a favorecer a paz e o auxilio
mutuo entre os homens, por mais bem concebidas que paregam, recebem
a sua solidez principalmente do vinculo espiritual que une os membros
da sociedade entre si» (ene. «Quadragesimo anno» n> 148).
De resto, as relacSes entre caridade e justica social já foram abor
dadas em «P. R.» 48/1961, qu. 4.

A genuina caridade social ultrapassa os limites das nagoes


e das ragas, podendo tomar o aspecto de caridade internacional.
Esta se esforga por dar as relagóes entre os povos outrá base
que nao o poder (o direito do mais forte) bu mesmo urna justica
demasiado estrita. Nao há dúvida, reconhece S. S. o Papa Pió XI,
«há um sentimento de justo nacionalismo que a legítima ordem
da caridade crista nao sómente nao desaprova, mas santifica e
vivifica, ao mesmo tempo que lhe impóe disciplina» (ene. «Ca
ritate compulsi», de 3 de novembro de 1932). É, portante, lícito
ao cristáo preferir a sua patria a outro qualquer país, e até
mesmo dar a vida pela patria, caso o bem comum o exija. Faz-se
mister, porém, que se acautele contra o nacionalismo mesquinho,
que detém a caridade ñas fronteiras de determinada hagáo.

Ficam assim enunciados alguns deveres de caridade que


mais parecem merecer atengáo em nossos dias.
A questáo seguinte contribuirá para desenvolver o assunto.

5) «O cristáo, dizendo que ama o próximo em Deus e por


Deas, parece desinteressar-se do bem temporal de seus seme-
Ihantes.
Poder-se-ia justificar um tal procedimento?»

Proporemos, em primeiro lugar, a resposta á questáo. A se


guir, consideraremos urna dúvida que decorre da doutrina ex
planada.

1. Bens espirituais e consoló temporal

1. É certo que o amor ao próximo deve levar o cristáo a


desejar e promover, antes do mais, o bem espiritual ou a salva-
gáo e a santificagáo das almas. O cristáo tem consciéncia de que
o homem nao foi feito para esta vida temporal nem pode encon
trar neste mundo a verdadeira felicidade; por isto importa-lhe,
ácima de tudo, que o próximo passe por éste mundo de modo a
assegurar a posse da vida eterna.
Verifica-se, porém, que, para viver devidamente a vida espi
ritual, os homens precisam de um mínimo de bens materiais, ou

— 254 —
CRISTIANISMO E BEM TEMPORAL

seja, dos bens que naturalmente contribuem para que alguém


se possa aplicar digna e tranquilamente aos valores da alma (a
alma se serve do corpo e necessita da suá colaboragáo para' se
afirmar em plenitude). Conseqüentemente a caridade manda ao
cristáo que também se interesse pelo bem-estar material do pró
ximo na medida em que éste é substrato da vida espiritual.

Contudo nao bastarla dizer que o amor do cristáo só cuida do tem


poral na medida em que é meio ou instrumento para melhor assegurar
a bem-aventuranga eterna. Quem afirmasse isto, esqueceria que a cari
dade leva a amar nao apenas almas, mas, sim, criaturas humanas, que
constam de corpo e alma, criaturas humanas que trazem em si o desejo
inato de gozar de alguma íelicidade neste mundo mesmo. Tal desejo,
incutido pelo próprio Criador (talvez «reminiscencia» inconsciente do
paraíso terrestre, onde o género humano comecou a sua historia), me
rece considerac&o por parte do cristáo que queira realmente amar o
próximo.

2. De resto, os absurdos da posifiáo contraria sao eviden


tes; saltam aos olhos antes de qualquer argumentac.áo.

Assim
ninguém ousará afirmar que lhe é licito íicar indiferente diante do
sofrimento temporal do próximo, alegando estar certo de que tal sofri-
mento contribuirá para acrisolar a virtude do paciente.
Nao há quem nao sinta atrativo espontáneo pela possibilidade
de proporcionar prazer ao próximo, desde que isto nao acarrete incon
veniente espiritual.
Nao há quem nao perceba que é muito conforme ao espirito do
Cristianismo tratar de loucos e alienados, aliviando os seus sofrimentos,
embora tal tratamento nao lhes ocasione algum bem espiritual. A en-
fermeira que cuida de um doente compreende espontáneamente que tem
de o fazer, embora julgue que, para tal enfermo, a molestia e a estada
no hospital sao mais convenientes, do ponto de vista espiritual, do que
a saúde física (no hospital, o doente é preservado de pecados que come
tería se gozasse de vigor e liberdade).

Destas considerafióes se depreende que o bem-estar tempo


ral dos homens interessa a caridade crista nao apenas como
meio para que alcancem melhor a vida eterna, mas também
como verdadeiro objetivo da nossa atividade (verdade é que será
sempre objetivo secundario, que nunca nos será lícito antepor
aos interésses espirituais do próximo).

3. Esta conclusáo torna-se aínda mais clara desde que se leve em


conta a necessidade que temos de nos servir de símbolos ou sinais sen-
siveis para progredir na vida espiritual. Em verdade, como lembra
S. Joao, só amamos a Deus — a quem nao vemos — caso amemos ao
próximo — a quem vemos (cf. 1 Jo 4,20). Desdobrando éste principio,
diria alguém com acertó: «.. .E só podemos ter. seguranca de que de-

— 255 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 6

sejamos sinceramente ao próximo os bens que nao vemos (bens espi-


rituais), caso comecemos por lhe desejar os bens que vemos ou os bens
que lhe proporcionem certa alegría temporal». A caridade para com o
corpo pode preservar-nos da hipocrisia ou de urna falsa caridade espi
ritual.
Eis, porém, que a esta altura talvez surja na mente do leitor

2. Urna dúvida...

Se é oportuno proporcionar ao próximo um certo bem-estar tem


poral (legítimo, mas nao necesariamente associado a salvacáo eterna),
pergunta-se: por que entáo nao aplicaremos o mesmo principio a cada
um de nos ? Porque nao procurará cada cristáo gpzar de todos os pra-
zeres que estiverem ao seu alcance, contanto que o faga com hones-
tidade ?

Responderemos que o gozo irrestrito de todos os bens legítimos


seria plausivel no caso de estar a natureza humana moralmente sadia
ou íntegra. Sabemos, porém, que tal nao se dá; o pecado original viciou
as tendencias fundamentáis de todo homem, de sorte que dizer «Sim>
a todos os movimentos da carne equivale a alimentar desordem e favo
recer a concupiscencia pecaminosa. Para poder atingir a devida perfei-
gáo, cada individuo tem que hitar contra si mesmo refreando seus ape
tites sensitivos. Percebe-se, em conseqüéncia, urna verdade aparente
mente paradoxal: o verdadeiro amor do sujeito para consigo exige
mortificacáo do próprio «eu». Portanto, renunciar voluntariamente ao
gozo e aos afagos vem a ser, para cada individuo, um grande bem;
é instrumento de purificagáo e santificagao, do qual ninguém pode pres
cindir sob pena de se tornar escravo das próprias paixóes. Nao amaría
verdadeiramente a si quem em tudo procurasse satisfazer á sua natu
reza. Que cada um aplique esta norma a si! — Nao a queira, porém,
aplicar ao próximo (impondo-lhe renuncias, sob o pretexto de que se
santificará), pois ninguém sabe se o irmáo acolherá com espirito de fé
e generosidade a renuncia imposta; ninguém é capaz de influir decisi
vamente na vontade de outrem para que éste aceite de bom grado o
sofrimento.

Nao toca a nos, portanto, proporcionar ao próximo privagSes e mor-


tificagSes, a menos que ele as pega explícitamente. Enquanto ele nao se
manifestá, guiaremos nossa conduta por um principio muito claro:
Deus criou os homens para a felicidade, e nao para a tortura; em con
seqüéncia, cabe-nos o dever de fazer o possível para que os nossos seme-
lhantes se sintam bem e sejam felizes sob todos os pontos de vista.

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

6) «Tem causado sensagáo o livro 'O Claustro e a Cida-


dela' de Brigid Knight (Editora Cnltrix 1962).
Pretende narrar a historia da princesa Carlota de Bourbon,
que no séc. XVI foi coagida por seus genitores a abracar a vida
claustral em Jouarre, mas finalmente deixou o mosteiro e a íé

— 256 —
«O CLAUSTRO E A CIDADELA»

católica, para se casar com o príncipe Guilherme de Orange


(Holanda).
Tal episodio aparece como um dos 'escándalos' da historia
da Igrcja. Que pensar a respeito ?»

Desenvolveremos em duas etapas a resposta, considerando


primeiramente o livro de Brigid Knight em si? depois, a dúvida
religiosa que ele desperta na mente do leitor.

1. «O'Claustro e a Cidadela»

Pouca coisa de fonte segura se sabe a respeito de Da. Car


lota de Bourbon, princesa francesa do séc. XVI.
A escritora inglesa Brigid Knight pesquisou em bibliotecas
e arquivos a exigua documentacáo referente ao assunto; selecio-
nou narrativas, preencheu as lacunas recorrendo a hipóteses, e
assim teceu um enredo cuja heroína é Da. Carlota de Bourbon.
O livro daí resultante, como diz a própria Brigid Knight, «nao
tem a pretensáo de ser urna biografía... Sao muito escassas
as fontes... Por conseguinte, é forcoso recorrer a puras conje
turas ... Interpretei a moral da situagáo em Jouarre sob meu
próprio ponto de vista... Parece que meu juízo se adapta as
provas; nao alcancei necessáriamente, contudo, a resposta
exata» (pág. 7s).

ReferJndo-se especialmente a certa «Irma Maria Clara» introduzida


na trama da narrativa, observa ainda Brigid: «A Irma Maria Clara
é personagem imaginario, e todo incidente em que ela exerce um papel
é também pura ficcáo... Todos os incidentes relacionados á íreira
Maria Clara sao pura invencáo; mas tive que lancar mao désse recurso
para preencher urna das maiores lacunas na historia da vida de Carlota
de Bourbon» (pág. 218).

Estas advertencias significam claramente que nao se deve


atribuir valor histórico a todo e qualquer episodio relatado pela
escritora inglesa; esta elaborou urna especie de romance com
fundo histórico (alias, tal é o título da colecáo literaria a que
pertence a obra : «Romances históricos Cultrix»). Vamos, pois,
reproduzir ligeiramente as principáis linhas désse romance, para
depois analisar o.cerne de episodios históricos que foram de tal
modo ornamentados.

Carlota de Bourbon, educada dentro das mais puras normas do


Catolicismo, aos doze anos de idade foi por seus pais levada k Abadia
beneditina de Jouarre (Franca), onde a obrigaram a tomar o véu de
monja. Mais ainda: vindo a morrer a Abadessa tía comunidade, Car-

— 257 —
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 6 *

Iota íoi, a contra-gdsto seu, investida das íuncóes de Abadessa. A Jovem,


porém, se sentía sufocada na clausura e sonhava com a fuga. Já que
nao.agüentava mais, negociou com térras do mosteiro de modo a captar
á benevolencia de senhores nobres das vizinh.anc.as. Estes, a seguir,
ajudaram-na a escapar definitivamente do cenobio para Heidelberg
(Alemanha), quando tinba dezoito anos de idade. Carlota abandonou
entao o Catolicismo para professar o Calvinismo, e tornou-se a terceira
esposa de Guilherme de Orange, dito «o Taciturno», herói nacional
holandés. Dedicou o resto de sua existencia a promocáo dos interésses
do marido, qual esposa fiel e feliz; o seu teor de vida virtuosa desmen-
tiu as calúnias que, a seu tempo, se espalhavam pela Europa. Final
mente em 1582 faleceu, estimada por todos — parentes, amigos e cida-
daos holandeses.

Brigid Knight esforga-se por apresentar de modo simpático


a heroína do enredo. Esta, alias, lhe apareceu, através de suas
pesquisas, qual «mulher de extraordinario interésse humano,...
despojada das afetagóes de sua época, encantadora em sua sin-
ceridade,... devotada aos deveres...» (cf. pág. 7). Junto a
Da. Carlota de Bourbon, entram em cena, no mesmo livro, cató
licos de mentalidade e conduta frivolas, a representar papel
pouco simpático. Destarte a leitura do livro comunica insensivel-
mente ao leitor urna impressáo pouco atraente, mesmo pejora-
tiva, do Catolicismo.
Compreende-se entáo a pergunta : que pode haver de histó
rico e real no fundo do enredo narrado por Brigid Knight ?
É o que procuraremos explanar no parágrafo abaixo.

2. Fatos históricos

Carlota de Bourbon, abandonou o mosteiro na qualidade de Abades


sa ou Superiora da comunidade, e casou-se... Ora éste feito que, á pri-
meira vista, provocou, e provoca, escándalo, nao se deveria, conforme
insinúa Brigid Knight, atribuir á culpa ou infidelidade da monja, mas,
sim, as deficiencias do Catolicismo, das quais a-infeliz monja terá sido
mera vitima.
Houve realmente tais deficiencias na historia da Igreja do séc. XVI?
Deficiencias..., houve-as, como as há em tudo que é humano, de
qualquer época que seja. Exporemos essas falhas, lembrando desde já
que nao afetam a santidade da Igreja; esta nao vale apenas o que seus
filhos valem, mas a Igreja é o próprio Cristo vivo e prolongado, cuja
santidade indefectivel se afirma através da miseria mesma dos homens.

O enredo descrito por Brigid Knight nos leva ao ambiente


de um mosteiro do séc. XVI. Que há de curioso nesse ambiente ?
Entre outras coisas, interessam-nos as seguintes : .
a) A Regra monástica, desde os seus inicios (séc. VT);
admitía dois modos de se agregar novo membro a urna comuni
dade religiosa: a profissáo e a oblacáo.

— 258 —
<0 CLAUSTRO E A CIDADELA>

Pela profissao, o candidato ou a candidata, em idade adulta


e plenamente responsável, emitía os votos de estabilidade, con-
versáo dos costumes e obediencia.
Pela oblacao, ao contrario, nao era o candidato que se en-
tregava a Deus de maneira espontánea, mas eram os genitores
que consagravam seu filhinho ou sua filhinha, de menor idade,
fazendo a oblagáo (ou oferta) da crianca, a fim de que esta ví-
vesse na casa do Senhor, como monge ou monja, por todo o resto
da vida. A oferta era redigida em documento, ao qual, em certos
lugares e épocas, se atribuía valor definitivo e irrevogável; assim,
por exemplo, legislava o concilio regional de Toledo (Espanha)
em 633:

«Monachum aut paterna devotio aut propria proíessio íacit. —


O monge é constituido ou pela devocao de seus pais ou pela sua própria
proíissáo».

Em 817, porém, o concilio de Aquisgrano (Franca) exigía


que a crianca, chegando a idade da razáo, reafirmasse a entrega
de si mesma outrora efetuada pelos país. A partir do séc. Xm,
as diversas legislagóes monásticas reconheciam geralmente á
crianga o direito de voltar ao sáculo, caso em idade adulta nao
quisesse confirmar a sua oblagáo.

Entende-se que a oferta íeita pelos genitores tenha tido origem nos
sentimentos de piedade das familias cristas, que desejavam consagrar
seus filhos a Deus. Inegávelmente, porém, tal praxe abria margem a
abusos, que de fato se verificaram: a oblacáo paterna exercia certa
coacao sobre os jovens, cujo futuro eya destarte táo fortemente predefi
nido que muitos e muitos nao ousayam mais modificar o programa. Tor-
navam-se assim monges e monjas sem vocacáo, fadados a viver no mos-
teiro sem ter o ánimo-interior correspondente; a fim de suavizar a sua
sorte, fácilmente procurariam compensares irregulares, destoantes das
instituicO.es monásticas — o que se tornarla causa de graves escándalos.

b) Éste mal ainda era agravado por outra calamidade que


a historia registra.
Muitos nobres, movidos pela boa intengáo de favorecer a
vida monástica, fundavam mosteiros em seus territorios ou fa-
ziam vantajosas doagdes aos cenobios já existentes. Em conse-
qüéncia, julgavam ter um qüase direito natural de intervir na
vida désses cenobios a titulo de tutores ou mesmo propríetários.

Disto também resultaram abusos. Certas familias nobres passaram


a considerar «seus» mosteiros como instituigOes que deviam servir aos
interésses da respectiva linhagem: os pais colocavam seus filhos e
filhas no cenobio, e controlavam o recrutamento da comunidade, ex-

— 259 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 6

cluindo candidatos ou candidatas que nio lhes interessassem. Tendo


uma vez estabelecido os íilhos no mosteiro, os mesmos genitores trata-
vam .de os promover, direta ou indiretamente, aos cargos superiores,
de modo que ésses monges e monjas se tornavam, por vézes prestigiosos
administradores de vultuosos bens, gozando de carreira invejável, rela
cionados com os grandes do mundo, etc. — Tal praxe, como se com-
preende, nio podia deixar de acarretar notável detrimento para o fer
vor dos mosteiros. Estes se tornavam o refugio (e, por vézes, o cárcere)
de jovens que os pais nao queriam destinar á carreira das armas ou
n3o conseguiam encaminhar para matrimonio favorável, ou de íilhos
que, permanecendo no século, se tornariam herdeiros de parte dos bens
paternos, os quais assim se retalhariam, perdendo vulto e importancia.
As comunidades religiosas assim constituidas deveriam ressentir-se da
falta de espirito monástico de / seus membros: práticas mundanas,
modas, luxo e outros males escandalosos seriam a conseqüéncia de tais
intervenc5es dos nobres nos mosteiros medievais.
A decadencia veio a ser especialmente grave no fim da Idade Me
dia até o séc. XVI ou até o Concilio de Trento (1545-1563), que baixou
normas severas para disciplinar a vida monástica.

Ora foi justamente no séc. XVI que Da. Carlota de Bourbon


viveu sua aventura de Abadessa de Jouarre... Brígid Knight
p5e muito bem em realce o motivo de sua entrada no mosteiro :
o pai de Da. Carlota — Luís de Bourbon — estava profunda
mente interessado em colocar a filha no cenobio, pbis julgava
nao ter posses suficientes para doá-la em casamento a um nobre
do seu tempo; entrementes em Jouarre as perspectivas de um
futuro brilhante se abriam para Carlota, pois a tía da menina
era a Abadessa do cenobio e estava gravemente enferma; a
sobrinha Carlota poderla entáo tomar o cargo da tia com grande
vantagem para a familia dos Bourbons.

Brigid Knight imagina mesmo alguns episodios em que Luis de


Bourbon procura convencer sua esposa Jacqueline de que é preciso for-
car Carlota a tomar o véu de monja em Jouarre:
«As idéias do casal divergiam: Jacqueline pensava numa possível
alianca matrimonial para Carlota; e Luis julgava que os baluartes de
sua casa se estavam desmoronando... Nao devia permitir que sua
familia perdesse o rico padreo de vida... Devia impor a autorldade
paterna : Carlota nao tinha outra alternativa senao obedecer.
— 'Jacqueline, a questáo nao é optar entre a vida religiosa e o casa
mento. Carlota nao tem dote, e o duque de Longueville nao aceitarla' tal
alianza. Afasta do pensamento quaisquer negodac<5es de casamento.
Carlota será a Abadessa de Jouarre'.
"Ele se esquece do principal, que é Carlota', disse Jacqueline com
seus botOes... Carlota dissera: 'Falta-me a vocacáo. Devo declará-lo*.

— 'Jacqueline, tu estás contra mim\ declarou Luis...


— *É a Carlota que cabe decidir'.
— 'É o único futuro possivel. Nao tendo dote, nao lhe aparecerá ma
rido. Podes estar certa disso. Deixa-me expor novamente o estado
lamentável em que se encontram rr.inhas financas..."

— 260 —
«O CLAUSTRO E A CIDADELA»

Já estavam mais próximos de Jcuarre quando Luís de Bourbon


terminou de contar a reduc&o que soírera nos bens imóveis e rendi-
mentos e a impossibilidade de juntar algum dinheiro para dotar a filha
sem arruinar o futuro do íilho. Acabou convencendo Jacqueline de que
nao havia outra alternativa — Carlota deVia tomar o véu.»

Nao admira, pois, que Carlota, «empurrada» para o mos-


teiro sem vocagáo, tenha apostatado na primeira ocasiáo, che-
gando mesmo a abracar a fé calvinista, que lhe fornecia plena
justificativa para o seu ato de fuga e para o seu matrimonio com
Guilherme de Orangeí
Procuremos agora formular, a partir do que acabamos de
ver, urna

3. Conclasao

AbstragSo feita dos traeos e quadros imaginados por Brigid Knight,


o livro «O Claustro e a Cidadela» localiza urna situacao real da historia
monástica de fins da Idade Media e do séc. XVI.

Tal situagüo resultava do dedlnio de duas instituic5es medievais.._.,


instituicóes oportunas e louváveis em si mesmas ou em sua inspirado
fundamental:
a oblacáo de enancas por parte dos genitores desejosos de as con
sagrar ao servico de Deus;
a fundado de mosteiros por parte de familias ricas e nobres da
Idade Media.
Foi a íé ardente dos cristaos medievais que os levou a empreender
tais iniciativas : desejavam dar a Deus... e dar o mais possivel —
suas térras, seus bens materiais..., até mesmo seus filhos, de acordó
com a mentalidade da época.
Infelizmente, porém, a íraqueza humana provocou o desvirtua-
mento dessas práticas generosas : no decorrer dos tempos, muitos dos
doadores prócuraram, mediante o ato mesmo de doacáo, servir a si e a
seus interésses mesquinhos.

As autoridades eclesiásticas nao condenaram como tais as


oblacóes de criangas e as fundacóes de mosteiros, pois nada
havia de condenável nesses empreendimentos. Nao deixaram,
porém, de censurar severa e repetidamente os abusos dai deriva
dos : nao sómente os bispos e concilios por toda a Idade Media
tomavam medidas repressivas, mas também a Santa Sé mais de
urna vez nomeou legados que deviam percorrer os mosteiros a
fim de lhes sanear a disciplina. Contudo nao era sempre fácil,
nem possíveí, as autoridades eclesiásticas implantar as normas
necessárias para restaurar a observancia monástica; as familias
nobres de certo modo conspiravam entre si para neutralizar a
intervencáo superior.

— 261 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 66/1963, qu. 6

Assim, por exemplo, sabe-se que o arcebispo de Ruáo (Franca),


Cardeal de Amboise (t 1510), foi, por Alexandre VI, nomeado legado
papal com a tarefa de reformar os mosteiros e conventos da Franca.
O prelado, para executar a sua missao, gozava também da autoridade
de ministro plenipotenciario do rei. Aconteceu, porém, que no mostéiro
das monjas de Yzeure, o Cardeal de Amboise nao conseguiu vencer a
resistencia da priora Joana Mareschal; esta, apoiada por sua familia,
considerando o seu cargo como bem pessoal, vivia prazenteiramente em
Yzeure com quatro ou cinco Religiosas. E permaneceu ñas suas funches
até íalecer, sempre defendida por urna trama de nobres poderosos...
Após a morte da Madre Priora, o Cardeal conseguiu reformar á obser
vancia do mostéiro; em conseqüéncia, a comunidade passou a contar,
sem demora, quarenta Religiosas !

Poder-se-iam citar muitos de tais episodios. Éles querem


dizer ao leitor moderno que nao se devem considerar como ex-
pressóes da auténtica mentalidade e da vida da Igreja os casos
sombríos que a historia dos mosteiros possa registrar. Tenha-se
por certo que nem tudo que acontece dentro da Igreja, corres
ponde aos ensiaiamentos e ás'intengóes da Esposa de Cristo;
muita coisa se deve, sim, á débilidade humana, que, mesmo
quando movida pelas melhores das aspiragóes, está sempre su-
jeita a nao corresponder ao ideal. Contudo, até nos casos em
que os católicos sao infléis, a santidade da Igreja fica fiel, isto é,
incólume e incontaminada. A prova disto é que á própria Esposa
de Cristo renovou a vida nos seus setores afetados tfidas as yézes
que isto foi necessário, tirando do seio mesmo de sua vitalidade
os elementos reformadores. Em particular, a vida monástica se
restaurou vigorosamente após o séc. XVT e subsiste até nossos
dias, isenta, por graca de Deus, dos males que a assolavam no
fim da Hade Media.
O leitor que tenha consciéncia disto, nao fará do livro de
Brigid Knight o motivo de graves problemas ideológicos; teata-se
de um romance que explora cenas de fraqueza moral de plssoas
religiosas,... cenas de fraqueza que a Providencia Divina quís
de aritemáo envolver dentro do seu plano redentor. Reconhega-
-se, antes, o estupendo poder de Deus, que, através da débilidade
humana, se comunica sempre a quem O procura na sua única
Igreja!

— 262 —
CORRESPONDENCIA MIODA

CORRESPONDENCIA MIÜDA

CALVINISTA CURITIBANO : Era "P.R." 10/1958, qu. 6, encon


trará V.S. a explicacao da exclamacáo de Jesús s6bre a .Cruz : "Meu
Deus, .meu Deua, porque Me abandonaste?". Como verá, nao é incom-
patível com a Divindade de Jesús.

DESORIENTADO (Rio de Janeiro) : Já em "P.R." 2/1957, qu. 5,


foram sumariamente apres'entados os argumentos clássicos em favor
da imortalidade da alma. Esta doutrina é demonstrável pela própria
razio humana, sem recurso á fé. Veja também o que foi proposto sobre
a diferenca entre alma e energía em "P.R." 5/1958, qu. 1. — Caso nao
os tenha, ésses fascículos se encontram & disposicáo de V.S. em nosso
depósito. Sentimos nao ter o enderégo do amigo.

CLAUDIA (Sao Paulo): O n» 26 de 6/IV/68 da revista "O Cru


zeiro", á pág. 23, parece insinuar que a Igreja Católica consentiu ñas
tatucas de Cocinelli. — A noticia é demasiado vaga para que possa ser
tomada em consideracáo. Quem é que no caso passa por "Igreja Cató
lica" ? Que terá dito a Cocinelli tal pessoa ou tal entidade ? Com que
autoridade e com que intencáo o terá dito ? Houve raesmo consulta de
Cocinelli á Igreja Católica ? — Nada disso consta.

A0S NOSSOS ASSINANTES E AMIGOS QUE TENHAM CON-


TAS A REGRAR COM «P.R.", PEDIMOS O FAVOR DE SALDAREM
QUANTO ANTES AS SUAS DÍVIDAS. COM AGRADECIMENTOS,

D. ESTÉVAO BETTENCOÜRT O.S.B.

— 263 —
E RESPONDEREMOS». 66/1963

1
«PBRGUNTB E RESPONDEREMOS»
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, ■ •• _\ .. Cr$ 500,00
- Aésinatura anual (porte comuin) q
(porte aéreo)
¡ . • Cr$ 50,00
', Número avulso de qualquer mSs e' ano 650 00
V-Ck)léfiáo encadérnada de 1957 ••■ 7*000 í
Cole«áo encáderriWa de qualquer dos anos seguintes ... Ci* 750,01» |

ADMINISTBAgAO

,* . T»nafa.i 2R66 B- Real Grandeza, 108-BotafogoI

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