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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESEISTTAQÁO
DA EDIQÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questoes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristao a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
} Á

J u L H C

1 9 6 :

*■'.
ÍNDICE

L CIENCIA E RELIGIAO
Pág.
1) '■ "Os fenómenos de kereditariedade biológica (transmissáo
de caracteres geniais e de taras) nao seriam indicios de que a
alma humana 6 gerada pelos pais ? & portanto algo de corpóreo,
longe de ser um espirito diretamente criado por Deus" - ' 267

II. DOGMÁTICA

2) Se Deus cria e infunde as almas nos respectivos corpos e


se as almas, desde o primeiro instante da sua existencia, já tém
o pecado original, segue-se que Deus cria o pecado original.
Ora pódese crer que Deus seja autor de algum pecado?".. 271

3) "A imprensa muito falou de córtente conservadora, e eor- '■


rente liberal na Igreja, por ocasi&o das sessóes do Concilio do
Vaticano II. ■
Em que consiste essa divergencia? Nao equivale a urna di-
visáo dentro da Igreja?" .- 274.

IIL SAGRADA ESCRITURA

4) "Como entender o episodio da figueira amaldicoada por'


Jesús? Cf. Me ll.12-14.20s; Mt 21,18-20.
Nao haverá nisso um absurdo ?" 283

IV. MORAL

5) "Os progresóos da ciencia fazem prever a intervencSo do


komem na kereditariedade biológica. Interferindo na fecundac&o
do óvulo e do esperma humanos, os dentistas pretenderá obter
'homens-eérebros', 'homens-múscvlos', etc.
Que julgar de tais operagóes, & luz da Filosofía e da Moral?" SSO

6) "Como se há de entender o preeeito de Jesús que manda,


amemos ao próximo como a nos meamos (cf. Mt 6,43; 22,39,)? "
S. Tomoz estabelece graus de amor, ensinando que a caridade x
se exerce primeiramente em relaedo ao próprio 'ev!... Nao haverá
nisto um certo egoísmo...?" 293

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

.7) "Quem sao os Mórmons ou Santos dos pítimas Dios, que


visitam as casas distribuindo escritos e livros de urna nova erenca
religiosa ?" £97

COM ATROVACAO ECLESIÁSTICA

— 266 —
«PERGUNTE E R ES PON DEREMOS.»

Ano VI — N« 67 — Julhb

I. CIENCIA E RELIGIAO

J. O. R. (Campiñas) :

1) «Os fenómenos de hereditariedade biológica (traiis-- ■ ■';


míssáo de caracteres geniais e de taras) nao seriam indicios
de que a alma humana é gerada pelos país ? £ portanto algo
de corpóreo, Ionge de ser nm espirito diretamente criado por
Deus».

A fim de ilustrar a questáo, poder-se-ia mencionar que na linhagem


do músico alemSo Bach se contam 57 músicos; a Darwin se seguiram
cinco geracSes de sabios; dentre 568 descendentes próximos do senador
americano Jonatham Edward, houve numerosos senadores, médicos e
advogados. Donde concluem alguns: «Entáo a alma com suas facilida
des é transmitida de pal a filho, como o corpo do próprio individuo; nao.
se pode, portanto, dizer que a alma seja independente ou mesmo dife
rente da materia».

Visando elucidar a questáo, voltemos nossa atengáo para


o que diz respeito a

. 1. Dependencia e independencia da alma


em relacao ao corpo

1. Já em «P. R.» 5/1958, qu. 1 fícou provado que em


todo ser humano existe urna alma (principio vital), que é espi
ritual ou incorpórea; trata-se de urna entidade real, que ultra-
passa as limitagóes da materia e, por isto, pode raciocinar,
apreendendo valores que transcendem os valores materiais
(o ideal da justica, da bondade, da beleza, etc.); pode também
eleyar-se ácima das situagóes. concretas, compará-las entre si
e tirar conclusóes, a fim de progredir na sua civilizagáo e
cultura (a possibilidade de exercer atividades que ultrapassem
os objetos materiais e concretos, supóe lógicamente um prin-.
cípio imaterial ou espiritual de atividade; é ésse principio que
se chama «alma humana»).

Vimos que a alma humana nao coincide com o cerebro, órgao mate
rial, localizado no cránio (cf. «P. R.» 5/1958, qu. 2); também nao coin
cide, com o instinto, que é faculdade cega, incapaz de proeredir ñas suaa
atividades (cí. «P. R.» 33/1960, qu. 2). ..

— 267 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 1

A existencia de alma espiritual no homem se prova tam-


bém pela faculdade dé falar e pelo senso religioso, notas estas
que caracterizam todo individuo normal, por mais primitivo
que seja, é que faltam por completo nos aniniais infra-humanos,
por mais perfeitos que sejam (o macaco náó fala nem sepulta
seus mortos, a diferenca do que já fazia o homem da pré-his-
tória).

Contudo verifica-se que estes argumentos, por mais adequados e


persuasivos que sejam, nao bastam para dissipar todas as dúvidas do
estudioso moderno; é preciso, sim, demonstrar como se concilia a espi-
ritualidade ou a imaterialidade da alma humana com a transmissáo de
caracteres biológicos e psicológicos na mesma familia.
É o que passamos a fazer.

2. Urna vez estabelecida a distingáo entre alma humana


e corpo, deduz-se urna conclusáo de grande importancia :

A alma humana nao se pode originar por geragao. Em


outros termos:
... nao pode provir de urna sementé corpórea, derivada
dos organismos dos genitores, pois elementos corpóreos nao sao
capazes de produzir algo de espiritual;
... nem se deriva de urna sementé espiritual ou de urna
parcela das almas dos genitores, pois os seres espirituais nao
se parcelam nem retalham.
Em conseqüéncia, vé-se que a alma humana é criada dire-
tamente por Deas.

Faz-se mister agora observar o seguinte:


Deus cria cada alma em vista de determinado corpo, pois
alma e corpo sao destinados a se completar mutuamente ;
existe íntima relagáo entre cada alma e o corpo ao qual ela
está unida nesta térra. A alma marca o corpo, mas também
é marcada pelo corpo ao qual ela se acha associada; daí re-
sultam as notas próprias de cada personalidade humana: em-
bora todos os seres humanos tenham a mesma natureza (sao
animáis racionáis, como diz a linguagem filosófica), cadax qual
possui sua individualidade ou personalidade inconfundível, de
vida,, em grande parte, a constituigáo física ou biológica do
respectivo organismo. — Ilustramos estas afirmagóes lem-
brando os seguintes tópicos :

a) A alma do varáo apresenta comportamento assaz diverso do


da mulher. Essa diversidade está, sem dúvida, muito baseada ñas dife-
rencas fisiológicas existentes entre o homem e a mulher.

b) Também se podem mencionar, á titulo de ilustracáo, as classifi-


cagóes de temperamentos (ou personalidades) propostas pelos psicólo
gos e médicos, desde que se aplicam 'ao éstudo do homem.

— 268 —
ALMA HUMANA: TRANSMITIDA POR GERAC&O ?
É clássica a disti-ibulcao feitá por Hipócrates Ct 372 á.Ona base
do que ésse médico grego1 chamava os «quatro humores fundamentáis»
do organismo (sangue, ñervos, bilis e linfa) : •;
temperamento sanguíneo ou otimista impulsivo, •
temperamento colérico ou irascivel ou nervoso, /'
temperamento melancólico ou triste ou bilioso,
temperamento flegmático ou apático ou linfático.
Eram as diversas proporgSes dos quatro humores no organismo
que, conforme Hipócrates, fazlam os «temperamentos» (isto é, os equi-
librios, segundo a etimología da palavra) ácima enunciados.
c) Hoje em dia os psicólogos preferem classificar os individuos
levando em conta a respectiva constituigáo anatómica. Disttaguem-se,
na verdade, quatro grandes sistemas anatómicos : o bronco-pulmonar, o
gastro-intestinal, o muscular e o cérebro-espinhal. Conforme o predo
minio de algum désses sistemas, tém-se
o temperamento de tipo respiratorio: cabeca em losango, tórax
avantajado. Atividades esportivas no primeiro plano;
o temperamento de tipo digestivo: cabega triangular, parte infe
rior do rosto alongada, abdomen avantajado. A isto corresponden! ma-
nifestagSes psíquicas exuberantes, disposicSes otimistas r.as vicissitudes,
desejo de gozar da vida; '
o temperamento de tipo muscular: tronco regular ou eqüiforme
desde ó alto do tórax até a base do abdomen; rosto retangular. índole
psíquica bastante combativa;
o temperamento de tipo cerebral: cabega grande em relaeao ao
resto do corpo, sendo principalmente avantajada a parte superior do
rosto. Notoria propensáo para o trabalho intelectual, especulativo;
senso estético apurado; bom tino organizador. ■
d) Levando em consideracáo a estrutura do cránio apenas, Eü-
géne Ledos (Traite de physionomie humaine. París 1894) distingue oito
tipos humanos diversos e oito temperamentos correspondentes.
e) Eis urna das mais recentes noticias sdbre o assunto (colhida
no «Jornal do Brasil» do Rio de Janeiro, ti> de 4/IV/1963) :
«dentistas europeus e norte-americanos acabam de anunciar ba-
seados ñas mais recentes pesquisas, que as pessoas tém, muito mais
do que pensam, o destino em suas maos.
Segundo o psicólogo Dr. Charles Wolff, do Laboratorio Psicológico
da University College, de Londres, as maos das pessoas registram as
reac5es emocionáis com a sensibilidade com que um sismógrafo acusa
os abalos subterráneos.
Esclareceu o Dr. Wolff que todos nos possuimos um automatismo
nervoso sdbre o qual nao temos controle, e que é exatamente o .respon-
sável pela palidez das maos dos melancólicos, pela vermelhidáo das
maos dos coléricos e pela frigidez das maos dos assustados.
Nos Estados Unidos, sete cientlstas, após examinarem durante tres
anos mais de 10 mil criangas entre as idades de 4 e 12 anos chegaram
também a conclusao de que 'a forma da máo de urna crianca tem urna
correlagáo incontestável com o seu tipo de personalidade*.
O Dr. Frederick Wood-Jones, Professor de Anatomía da Universi-
dade de Manchester, precisa que poucas partes do corpo sao táo indi
cadoras do bom ou mau estado de saúde quanto as maos. Para um mé-
— 269 —
<PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 1

dicb que saiba ler lima máo, do ponto de vista científico, muitas doen-
cas se revelam antes mesmo de aparecerem os síntomas. Em urna máo
sadia, os riscos da superficie palmar sSo bem marcados e continuos.
Basta o dono da máo estar envenenado por bacterias, ou mesmo toxinas
provocadas por grandes aborrecimentos, por exemplo, e essas linhas
se apresentam subdivididas em urna enorme variedade de desenhos.
Urna das indicacQes mais claras, segundo os médicos da Universi-
dade de Manchester, é o aparecimento de pequeñas manchas brancas
ñas unhas, o que indica ou a falta de calcio no organismo ou o eansaco
nervoso ou ainda as diias coisas.
Ainda ñas unhas, a formacáo de linhas longitudinais pode indicar,
a existencia de urna iníeccao crónica ou urna tendencia para o reuma
tismo, enquanto os riscos horizontais se associam sempre a choques
emocionáis (e a prova é que desaparecem quando passa a emocáo)».

Estas verificacfies de modo nenhum querem dizer que haja Fato


ou Destino (íor£a bruta que determine o curriculo de vida da pessoa)
e que ésse Destino esteja gravado ñas maos do respectivo, individuo.
A propósito veja-se «P. R.» 21/1959, qu. 6.

Estas proposicdes váo aqui mencionadas únicamente no intuito de


Ilustrar quanto as notas da personalidade e,. por conseguinte, os traeos
individuáis da alma sao marcados ou condicionados peló respectivo
corpo, embora a auna humana de modo nenhum se possa identificar
com a materia.

2. Conseqüéncias para o processo generativo

Se táo íntima é a influencia recíproca de corpo e alma


em cada individuo, interessa agora indagar: quais seriam os
elementos que determinam a constituicáo do corpo humano,
fazendo que tenha tal ou tal configuragáo (tais «humores»,
tal forma do cránio, tal tamanho do tórax, etc.) ?

Em resposta, dir-se-á: a configuragáo do corpo é devida,


em última análise, a corpúsculos derivados dos organismos dos
genitores e associados entre si no ovo ou no feto humano. A
ésses corpúsculos se dá o nome de «genes». Cada qual é res-
ponsável por determinado trago do organismo em formagáo:
cor e configuragáo dos olhos, forma e pigmentagáo dos cábelos,
tamanho dos órgáos, dos ossos, etc.
Compreende-se entáo que cada casal humano gere prole
dotada de tragos somáticos semelhantes aos tragos dos geni
tores. Ésses tragos somáticos semelhantes, como se compreen-
de, motivam, (embora nao com absoluta rigidez) á infusáo de
alma humana dotada de tragos psicológicos semelhahtes aos
tragos psicológicos dos genitores. Por conseguinte, um casal
(ou mesmo um só dos dois genitores) caracterizado por pren
das intelectuais ou especulativas pode dar origem a urna, duas,

— 270 —
DEUS CRIA O, PEGADO ORIGINAL ?

tres ou mais geragóes de individuos amigos do estudo ou da


filosofía. Por sua vez, um casal (ou um dos dois genitores)
marcado por tempera musical pode tornar-se ponto de partida
de grande familia de músicos; o casal de índole esportiva ou
atlética patrocinará urna linhagem de esportistas e atletas, etc.

Entendem-se muito bem estes fenómenos sem que naja


necessidade de reduzir o ser humano a elementos químicos ou
materiais combinados entre si. Embora parega que no tipo hu
mano o físico e o psíquico nao sejam mais do que reagóes da
materia, verifica-se que se pode muito bem (e, pelos motivos
indicados, se deve) admitir em todo individuo a existencia de
urna alma espiritual. Será preciso, porém, sublinhar que essa
alma espiritual possui íntima relacáo com o corpo era vista do
qual Deus a criou, de tal sorte que as notas fisiológicas ou somá
ticas do organismo vém a ser as notas marcantes da alma e da
personalidade respectiva.

O estudo do assunto se prolonga na resposta n« 5 deste


fascículo.

II. DOGMÁTICA

JOAO CARLOS (Sao Paulo) :

2) «Se Deus cria e infunde as almas nos respectivos cor-


pos e se as almas, desde o primeiro instante dai sua existencia,
ja tém o pecado original, segue-se que Deus cria o pecado ori
ginal.
Ora pode-se crer que Deus seja autor de algum pecado?»

1. O problema se resolve sem dificuldade, urna vez eluci


dada a nogáo de «pecado original».
Por «pecado original» entende-se, formalmente, a ausencia
da santidade ou da graga santificante e dos demais dons que
Adáo possuia no paraíso e que ele devia transmitir aos seus
descendentes, se nao tivesse desobedecido ao Senhor (cf. «P.R.»
28/1960,. qu. 2 e 3). A ausencia da graga santificante e
désses dons paradisíacos faz que atualmente as tendencias da
natureza se exergam de maneira veemente e descontrolada,
ocasionando o que se costuma chamar «concupiscencia desor
denada» ou «paixóes». Por conseguinte, o pecado original com-
preende, além do seu elemento formal (que é a ausencia dos

• — 271 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 2

dons origináis), também um elemento material, que é a concu


piscencia desregrada da natureza humana.

Em esquema, o pecado original consta de

elemento formal (própriamente constitutivo): ausencia dos dons


ou da santidade que Adáo possuia no paraíso;

elemento material (secundario) : concupiscencia desordenada ou


paixSes da carne.

2. Passemos agora ao que diz respeito a transmissáo do


pecado original.
Entende-se que Adáo, tendo perdido os dons gratuitos e
santos que tinha no paraíso, so pode gerar prole destituida de
tais dons; Adáo transmitiu, sim, a natureza humana tal como
«le a possuia após o pecado. Em conseqüéncia, os descendentes
de Adáo, no decorrer da historia, nao podem deixar de apare
cer, aos olhos de Deus, como criaturas destoantes do seu exem-
plar ou daquilo que deveriam ser; cada qual é disforme ou des
viado do ideal que o Criador assinalou para cada um. É essa
disformidade que se chama «pecado original» ou «mancha»
original (mancha ou nódoa transmitida pela origem ou pela
geracáo).

Vé-se entáo que nao era, nem é, necessário que Deus crie
o pecado original nos homens que nascem através dos sáculos.
Também Deus nao concebeu ou «inventou» o pecado original
como castigo arbitrario a ser infligido aos filhos de Adáo. Nao;
a existencia do pecado original em todo individuo é muito ló
gica; ela se explica simplesmente pela atuagáo das leis da natu
reza : os pais comunicam á prole a respectiva parte material
ou corpórea, e Deus infunde uma alma correspondente a essa
materia, destinada a constituir uma personalidade com tal corpo
ou tal materia (cf. pág. 268 déste fascículo). Ora, já que a na
tureza corpórea comunicada por Adáo e pelos descendentes de
Adáo á respectiva prole é destoante do que deveria ser, com-
preende-se que a alma infundida por Deus vá aparecer também
destoante aos olhos do Criador : ela carece da graga e dos dons
de que Adáo desfrutava antes do pecado; ela se ressentirá, con-
seqüentemente, das paixóes ou das concupiscencias que a pri-
meira transgressáo desencadeou na natureza humana. Tal alma
é, sim, criada em vista de tal corpo, e destinada a constituir com
tais elementos materiais tal personalidade humana.
Estas nogóes dáo claramente a ver que nao há injustiga da
parte de Deus, quando permite que os homens nasgam herdeiros

— 272 — i
.1
DEUS CRIA O PECADO ORIGINAL?

das conseqüéncias do pecado de Adáo ou quando cria almas que


vém a ser portadoras da desordem original.

3. Nao se julgue, porém, que o Senhor condene as criangas


que morram com essa desordem ou com o pecado original; em
verdade, elas nao tém culpa de tal estado de coisas. — Costu-
ma-se dizer que os pequeninos que falecem com o pecado original
(ou sem o batismo) váo para o limbo. Ora o limbo nao é estado
de tormentos nem de castigo, mas é o gozo da bem-aventuranga
natural ou da visáo de Deus que a inteligencia humana pode
alcancar por sua perspicacia natural (sem a elevagáo sobrena
tural, ... sem a graga santificante e os dons que a acompa-
nham). Deus nao castiga, portante, os pequeninos que morrem
com o pecado original.

A existencia do limbo, porém, nao constituí dogma de íé, embora


seja comumente admitida. Conforme bons teólogos, pode-se crer que o
Pai do Céu prové de outro modo á salvagáo das crianzas as quais nao '
é dada a graga do batismo (o Senhor valer-se-ia das oragoes que a
S. Igreja faz habitualmente por todas as criaturas necessitadas —
óríáos, encarcerados, viúvas, navegantes... — ou atendería as oragoes
dos pais da crianza ou iluminaría a mente do pequenino na hora da
morte para que tomasse posicáo consciente e lúcida diante do
Senhor...). Veja-se o que a respeito já foi dito em «P. R.» 10/1958,
qu. 4.

Quanto aos adultos que morrena sem o batismo, nao váo


para o limbo, mas salvam-se no céu ou perdem-se no inferno de
acordó com a sua fidelidade ou infidelidade á lei natural ou á voz
da consciéncia (que é a voz de Deus). Sendo dóceis á sua cons-
ciéncia (dentro da visáo das coisas, paga ou náo-cristá, que éles
possuem), sao justificados e conseguem a felicidade do céu.

4. Como foi dito atrás, nao há injustiga em Deus ao permi


tir que os homens nasgam com a nódoa original. Acrescente-se
agora que também nao há injustiga no Senhor ao permitir que
o género humano, através dos séculos, sofra as conseqüéncias do
pecado de Adáo; a bondade e a sabedoria do Criador, nesse par
ticular, se manifestam pela obra da Redengáo : o Filho de Deus
tomou a natureza humana com as conseqüéncias (mas sem a
culpa) do pecado, a fim de dar novo sentido ao sofrimento do
homem (sofrimento que é justa sangáo) ou a fim de fazer que o
sofrimento e a morte se tornem cañáis de ressurreigáo e de vida
eterna.

A propósito do pecado original, suas bases bíblicas e sua transmis-


sáo, já se encontra um artigo em «P. R.» 8/1957, qu. 6; ai se léem ulte
riores esclarecimentos, que aqui nos dispensamos de repetir.

— 273 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 3 "

CRITICO (Rio de Janeiro) :

3) «A imprensa muito falou de corrente conservadora e


corrénte liberal na Igreja, por ocasiao das sessóes do Concilio do
Vaticano n.
Em que consiste essa divergencia? Nao equivale a urna divi-
sáo dentro da Igreja?»

As noticias da imprensa tendem, por vézes, ao sensationa-


lismo. Ademáis, ao se tratar de religiáo, sao freqüentemente im
precisas, pois os redatores nem sempre estáo familiarizados com
o assunto.
Foi, em parte, o que se deu-com as noticias referentes a libe
ráis e conservadores no Concilio do Vaticano II.
Procuremos, portante, averiguar serenamente em que con-
sistem as duas mentalidades apontadas pelos cronistas do Con
cilio.

1. A situacao geral do Concilio

Qualquer dos vinte Concilios Ecuménicos da historia da


Igreja, até o do Vaticano I (em 1870) inclusive, teve em vista
alguma controversia teológica a dirimir ou alguma heresia a con
denar. Ora, á diferenga dos anteriores, o Concilio do Vaticano n
nao visa própriamente o combate a correntes heréticas formadas
dentro da Igreja (pode-se dizer que nao as há atualmente), mas
intenciona algo de muito positivo : atender las grandes expectati
vas do mundo de nossos dias. Com efeito, o género humano está
convulsionado, pois vai atravessando urna fase de sua historia
que nao tem igual no passado :

a) nunca se viu tal e táo rápido aumento do número de


habitantes do globo. — Éste fenómeno sugere prognósticos de
superpopulacáo, fome mundial, incitando os homens aó neo-
-malthusianismo ou á limitacáo da natalidade e outras táticas
pouco moráis;

b) o ritmo do progresso das ciencias e das técnicas é algo


de vertiginoso, proporcionando aos homens um dominio das fór-
gas da natureza tal que se pode levantar o nivel de vida de todo
o género humano. — Contudo as grandes conquistas do mundo
moderno, ao lado dos seus aspectos positivos e sedutores, apre-
sentam suas tentagóes e seus perigos: os poderes estupendos
que a ciencia e a técnica conferem ao homem, o levam a julgar-se

— 274 _
CONSERVADORES E LIBERÁIS NA IGREJA?

soberano senhor do universo, que já nao precisa de Deus e se


atóla no materialismo ateu;

c) tém-se amiudado, entre os diversos povos, os contatos


e intercambios económicos, políticos, culturáis...; em conse-
qüénda, os homens, com perspicacia até hoje inédita» váo toman
do consciencia da solidariedade que os une entre si e que a todos
impóe deveres prementes. — Acontece, porém, que os sentimen-
tos de solidariedade e congrassaménto entre os povos degeneram
fácilmente nos sistemas coletivistas, em que a pessoa humana
como tal é ignorada e sufocada;

d) a emancipagáo de numerosos povos coloniais da Asia


e da África permite que novas e valiosas energías colaborem
para a reconstrugáo do globo destrocado por duas guerras mun-
diais. Destarte se váo revelando valores reais em grupos huma
nos que até época recente ficaram latentes. Mas também sao
suscitados graves problemas de equilibrio e adaptagáo; vérifica-
-se que o desenvolvimento dos novos povos inspira, por vézes,
atitudes de nacionalismo que gera odio entre as nagoes.

O género humano se acha, pois, num momento altamente


importante de sua historia; frente a problemas que surgem e se
multiplicam de maneira imprevista, os homens sobressaltados
estáo hoje á procura da orientagáo e dos valores que devem re
solver os impasses da hora : imaginam-se teorías, escolas e táti-
cas inéditas, derivadas de todas os mananciais ideológicos pos-
síveis...
Ora justamente o Concilio do Vaticano II tem por tarefa
comunicar ao mundo moderno inseguro a Palavra da Verdade ;
compete-lhe mostrar ao homem que

o poder que éste adquiriu sobre a natureza, o deve ajudar


a melhor desenvolver a sua personalidade; longe de lhe fazer
crer que a criatura é Deus, tal poder deve levar o homem a con-
ceber melhor a grandeza e a sabedoria do Criador,... do Cria
dor contemplado em suas obras;

a soTidariedade que os homens experimentam entre si, longe


de esmagar a pessoa humana, deve intensificar a verdadeira ca-
ridade que atende generosamente ao próximo;

a multiplicidade de povos espalhados pelos diversos conti


nentes deve contribuir para exprimir mais fielmente a sabedoria
de Deus e a úiesgotável riqueza da mensagem de Cristo, dando

ti -275-
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 3

ao Evangelho coloridos locáis e matizes populares que nao de-


turpem a Verdade nem dissolvam a unidade da doutrina cqmu-
nicada por Deus aos homens.
Ora, para dizer ao mundo estas e outras proposicóes capi-
tais, podem-se conceber

2. Duas vias

A mensagem da Verdade deve levar em consideracáo dois


elementos importantes :

a índole inuitável e perene da Verdade (por exemplo, «o


todo é maior do que qualquer das suas partes» em qualquer
época);

o caráter mutável que cada época (e, em particular, a época


atual) aprésente aos homens para que afirmem e vivam a Ver
dade.

A colocacao do imutável-perene dentro do mutável-contín-


gente: eis a grande problemática de quem queira proferir
a Verdade com fruto. Eis, portante, a grande problemática dos
padres conciliares do Vaticano.

Nesse confronto do imutável e do mutável, há pessoas (fora


e dentro do Concilio Ecuménico Vaticano II) que preferem dar
o primado ao imutável. O que quer dizer :

a) Há os que julgam que a Verdade nao está sujeita a ser


(como se diz em linguagem moderna) «atualizada». Qualquer
tentativa de «atualizá-la» seria perigosa, podendo equivaler a
deterpagáo ou traicáo. — é, dizem, o que se dá com a Verdade
de Cristo : transmitida aos Apostólos e á Igreja, ela foi, no de-
correr dos tempos, formulada em termos precisos e em expres-
s5es buriladas que agora devem ser tidas como intangíveis.

Asslm, por exemplo, a verdade «Cristo é verdadeiro Deus e verda-


deiro Homem», contlda nos Evangelhos, íoi cristalizada na fórmula se-
guinte : «em Cristo há duas naturezas (a Divina e a humana) e urna só
pessoa (a Divina)». — A real presenca de Cristo na Eucaristía ioi
assim proíessada: «a substancia do pao converte-se ou transubstan-
cia-se na substancia do corpo de Cristo; há, pois, urna transubstan-
ciacao».
Urna vez atingida esta terminología táo precisa, dizem, nao se deve
modificar a formulacáo. A verdade nada tem que ver com «atualiza-
c5es> oú com adaptantes a necessidades de pedagogía e psicología dos
homens em diversas épocas.

— 276 —
CONSERVADORES E LIBERÁIS NA IGREJA ?

Por conseguinte, a preocupado de formula?, no Concilio do


Vaticano n, a Verdade de modo a dar respostá compreensível
aos cidadáos do mundo moderno, que se véem a bracos com tais
e tais problemas, pareceu aos Padres conciliares imbuidos dessa
mentalidade algo de ambiguo e suspeito. Querendo levar em
conta as correntes do pensamento contemporáneo, nao se arris
caría o Concilio, a comprometer ou contaminar a doutrina de
Cristo ? Os problemas do mundo moderno sao, em última aná-
lise, derivados de evolugio e efervescencia da sociedade; querer
tomá-los em consideragáo, para depois reformular a Verdade nao
redundaría em sacrificar o imutável, o perene ao transitorio?

Exempliíicando mals concretamente, diriam tais Padres conciliares:

a exegese bíblica moderna é crítica, distingue modos de íalar, ex-


pressionismos orientáis, etc. — Levá-la em conta nao seria o mesmo
que vir a negar a historicidade dos SS. Evangelhos?
Os protestantes e ortodoxos cismáticos tém doutrinas divergentes
do Catolicismo. Ora querer reformular a Verdade de modo a ser melhor
compreendida por um protestante e um ortodoxo nao equivaleria a de-
turpar a Verdade?
No diálogo com os protestantes e os orientáis, querer acentuar o
que éles tém de comum com os católicos e realgar menos o que os -
separa, nao seria falta de lealdade ? Nao conviria acentuar sempre
também o que nos separa ?
O homem moderno tem diíiculdade em aceitar a existencia do
inferno. Pois bem; falar menos do inferno, focalizar mais outros aspec
tos da mensagem crista mais simpáticos ao cidadáo do século XX, nao
seria colocar o candieiro debaixo da mesa, em vez de o pdr em cima ?
Ésse desejo de nao desagradar nao seria sinal de fraqueza da parte deis
arautos da Verdade? Nao seria urna especie de recuo diante dos desvíos
do pensamento contemporáneo? Recuo indigno, pois nosso dever pri
mario serio o de procurar reerguer o pensamento moderno! Aínda que
a Verdade «espante» e «escandalizo, nao deve ela ser proferida sempre
e por inteiro ou macicamente ?

Nao se pode negar que, no fundo da rigidez que caracteriza


tal atitude, há urna preocupasáo legítima com o bem comum do
género humano © da S. Igrcja. Sim. A misaría dos homens de
hoje nao é sómente misaría económica; é mais ainda miseria es
piritual; os homens tém fome da Verdade e se degradam ou mor-
rem porque nao a possuem. Portante, concluem os que assim
pensam, querer dar a Verdade e dá-la macicamente, eis a tarefa
primaria do Concilio do Vaticano n.

b) Ao lado dos Padres conciliares que assim avaliaram a '


situagáo do momento, havia outros (e estes eram a maioria)
que encaravam a problemática de maneira diferente...

— 277 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 3

'■■'■:■ Também recusavam qualquer deturpagáo que se preten-


desse infligir a Verdade. Nao aceitavam a idéia de dissimular
deslealmente algum aspecto da Verdade, minimizando ou depau
perando as próposicóes do Evangelho. Firmes, porém, estes prin
cipios, éles se consideravam, antes do mais, como pastores de
almas, pastores responsáveis pela salvacáo dos cristáos e tam
bém da imensa multidáo de homens que hoje em dia, errando,
procuram os caminhos da Verdade. Para cristáos e náo-cristáos,
Cristo é a única resposta a ser comunicada. Acontece, porém,
que grande número de cidadáos contemporáneos nao conhéce, e
difícilmente" poderá chegar a conhecer, o Cristo, se Éste f6r
apregoado em termos e fórmulas que nao sejam os do homem
moderno. A Boa Noticia, tal como ela ressoa hoje no Catolicis
mo, supóe, as vézes, quadros de pensamento e problemas de épo
cas passadas, quadros e problemas que no mundo contemporá
neo cederam a outros quadros e problemas.
Por conseguinte, concluiam, a tarefa do Concilio nao pode
ser a de reafirmar solenemente a Verdade com as mesmas ex-
pressóes com as quais ela foi afirmada há sáculos atrás, mas
deve ser a de apresentar a Verdade de maneira nova, acessível
ao homem moderno (toniando-se cuidado, é claro, para que nisto
nao haja deturpagáo ou desvio da doutrina; a inovagáo cairia
apenas sobre a maneira de comunicar, nao sobre o conteúdo da
mensagem). O desejo de guardar e proferir a Verdade nunca
pode levar a «enterrar» a Verdade, isto é, a exprimi-la de ma
neira táo pouco compreensível ao homem moderno que éste
fique condenado a ignorar a auténtica face do Cristo e do Cris
tianismo.
Tais Padres constituiam urna corrente que se poderla cha
mar «mais pastoral», ao passo que os anteriores constituirían!
urna corrente «mais filosófica ou escolástica». Os primeiros fri-
savam muito que a Igreja nao sómente é Mestra (Magistra»),
mas também e principalmente é Mae (Mater»). «Salus anima-
rum suprema lex esto. — A salvagáo das almas é a lei suprema»;
tal era o seu lema dominante.

Infelizmente a imprensa deu cunho sensacionalista a estas posi-


cCes, designando-as por «bloco ortodoxo, conservado» e «bloco liberal,
progressista». Na verdade, também os progressistas guardavam, e guar-
dam, a ortodoxia ou integridade da doutrina como premissa essencial
das suas atitudes. Apenas procuram a melhor maneira de atrair as
almas, em vez de as afugentar desnecessáriamente, ao propor-lhes a
mensagem do Evangelho; julgam que há arestas hoje em dia supérfluas
no vocabulario da pregagáo do Cristianismo,.e que a Verdade pode ser
proferida sem traicáo, mesmo que se removam ou suávizem tais arestas
de linguagem. A mensagem de Cristo, lembram ésses Padres, deve

— 278 —
CONSERVADORES E LIBERÁIS NA IGREJA?

visar suscitar simpatía e amor, esforcando-se por evitar tudo que possa
inútilmente dividir os ánimos e provocar represalia.
Com urna imagem, assim se poderiam ilustrar as posicdes de «tra-
dicionalistas» e «progressistas» ; todos tinham em vista descascar urna
fruta, a íím de a apresentar ao público em condigSes de ser saboreada
por inteiro e nao mutilada. Eis, porém, que no decorrer do trabalho de
descascar, alguns dos membros da equipe julgavam que séus compa-
nheiros já nao estavam simplesmente tirando a casca (ou o involucro
contingente) da fruta, mas já iam atingindo a medula ou a parte essen-
cial da fruta; dal as reservas e os protestos que éles manifestavam...
A tais restrigdes respondiam os trabalhadores mais ousados que era
perfectamente licito tocar em tais e tais pontos aparentemente avanca-
dos demais, pois na verdade nao afetavam a substancia da fruta (ou,
sem figura,... a substancia da doutrina de fé).
Em tal situacáo, compreende-se que ninguém pudesse dizer em ter
mos peremptórios onde estavam os auténticos limites entre o contin
gente e o essencial em certos temas da doutrina do Evangelho. Seria
preciso evocar as luzes do Espirito Santo e estudar ulteriormente os
documentos da tradigáo e.do ininterrupto magisterio da Igreja. *

Eis as duas atitudes que claramente vieram á tona ñas


assenibléias da primeira fase do Concilio do Vaticano n (de 11
de outubro a 8 de dezembro de 1962). Como se vé, nao versam
sobre diferencas dogmáticas (estas, nao as houve no Concilio,
gracas a Deus), mas sobre diversos modos de exprimir a dou
trina de Cristo frente ao mundo moderno.
É natura] entáo perguntar :

3. Qual das duas...?

Qual das duas atitudes (a escolástica ou a pastoral) terá


prevalecido e qual a que mais provávelmente há de inspirar os
futuros trabalhos do Concilio?
Logo no limiar da magna assembléia, o S. Padre Joáo XXm
declarou que as finalidades de táo solene reuniáo do episcopado
eram, antes do mais, pastorais. Isto quería dizer que o Concilio
nao visaría propriamente combater escolas de pensamento con
temporáneo, mas trataría de expor positivamente a Verdade de
modo a suscitar a vida sobrenatural e o amor a Cristo ñas
almas.

Eis palavras textuais de S. Santidade no citado discurso de


abertura do Concilio do Vaticano II:

«O que mais importa ao Concilio Ecuménico é o seguinte : seja o


depósito sagrado da doutrina crista guardado e ensinado de forma mais
eficaz. Essa doutrina abarca o homem inteiro, composto de alma e
corpo... i. ■ • . . .-..■•.

— 279 —
. tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 3

A fim de que a doutrina crista atinja os múltiplos campos da ativi-


dade humana,... é necessário, antes do mais, que a Igreja nao se
aparte do patrimonio sagrado da verdade recebido dos antepassados.
Mas é necessário também que Ela volte seu olhar para os tempos pre
sentes, os quais acarretam novas situacdes, novas formas de vida e
abrem novos caminhos ao apostolado católico...

O XXI Concilio Ecuménico... quer transmitir, pura e integra, sem


atenuacoes nem subterfugios, a doutrina católica, que através de vinte
séculos, apesar de dificuldades e oposicñes, se tornou patrimonio comum
dos homens.

O nosso dever nao é só conservar ésse tesouro precioso,... mas


dedicar-nos com vontade pronta e sem temor ao trabalho que a nossa
época exige, prosseguindo assim o caminho que a Igreja percorre ha
vinte séculos.
A finalidade primaria déste Concilio, portanto, nao é discutir capí
tulos fundamentáis da doutrina da Igreja, repetindo o ensinamento dos
Padres e dos teólogos antigos e modernos...
Para isto, nao haveria necessidade de um Concilio. O que é neces
sário hoje, é que... essa doutrina católica seja mais larga e profunda
mente conhecida, que as almas sejam mais intensamente impregnadas
por ela e transformadas por ela. É preciso que essa doutrina certa e
imutável, que tem de ser respeitada fielmente, seja aprofundada e apre
sen tada de maneira que corresponda ás exigencias da nossa época. Sim;
urna coisa é o depósito da fé, ou seja, as verdades contidas em nossa ve-
nerável doutrina; outra coisa é a veste sob a qual essas verdades sao
enunciadas... Será preciso dar muita importancia a essa veste e traba-
lhar pacientemente... na elaboracáo da mesma. Será preciso recorrer
a um modo de apresentar que corresponda melhor ao ensinamento de
caráter predominantemente pastoral...
A Igreja sempre se opós aos erros; muitas vézes até os condenou
com a maior severidade. Em nossos dias, porém, a Esp6sa de Cristo
prefere recorrer ao remedio da misericordia antes que empunhar as
armas da severidade; julga satisfazer melhor ás necessidades de hoje
mostrando as riquezas da sua doutrina do que condenando erros. Por
certo existem doutrinas engañadoras, opinioes e conceitos perigosos,
contra os quais nos devemos premunlr e que temos de dissipar; mas
ésses desvíos sao táo evidentemente opostos aos principios da honesti-
dade e dáo frutos tao amargos que hoje os homens parecem espontá
neamente inclinados a condená-los» (transcrito da «Revista Eclesiástica
Brasileira» 22 [1962] 1010-1016).

Nos momentos mais arduos do Concilio, justamente quando


se tratava de encontrar urna via para prosseguir os trabamos
comuns, o S. Padre interveio, lembrando a primazia do «pasto
ral» sobre o «teórico e escolástico», primazia que devia marcar
decisivamente as deliberacóes conciliares. Assim veio a corrobo-
rar-se a mentalidade pastoral dentro das assembléias episcopais,
mentalidade, alias, que já por si contava com maior número de
representantes. É de crer que, no decurso dos meses atuais (me
ses de reflexáo e de preparo para o segundo período do Con
cilio), essa mentalidade vá mais e mais impregnando as decla-

— 280 —
CONSERVADORES E LIBERÁIS NA IGREJA ?

ragóes que háo de ser submetídas aos Padres Conciliares e pos-


sivelmente receberáo promulgacáo no final do Concilio.
Sendo tal o rumo dos acontecimentos, torna-se lógico in
dagar :

4. Que se entende própriamente por «estilo pastoral» ?

Quais as notas características de um ensinamento própria


mente pastoral ?
Eis como brevemente elas se depreendem de urna oportuna
e importante carta pastoral publicada por Mons. Emilio Guerry,
arcebispo de Cambraia (Franca), pouco depois de voltar de
Roma, ou seja, aos 6 de Janeiro de 1963 :

1) O estilo pastoral inspira-se do estilo dos Evangelhos e


da S. Escritura em geral. Isto levará o arauto de Cristo no
mundo moderno a realcar de maneira especial alguns pontos de
doutrina, como sejam:

a) «autoridade» nao quer dizer «dominio» ou «exercício


de poderes com regalias», mas, sim, «prestacao de servido e mi
nisterio». Se alguém é investido de autoridade, saiba que isto se
dá a fim de que possa mais amplamente auxiliar ao próximo.
Tenham-se em vista as palavras do Senhor em Mt 20,28 abaixo
transcritas.

Merece ateneao ó segulnte trecho da Mensagem dos Padres Conci


liares ao género humano datada de 20/X/1962 :

«A fé, a esperanca e a caridade impelem-nos a servir aos nossos


irmaos, conformando-nos assim com o exemplo do Divino Mestre, que
'nao veio para ser servido, mas para servir* (Mt 20,28). Por isso tam-
bém a Igreja nao nasceu para dominar, mas para servir. 'Ele deu a sua
vida por nos, e nos devenios dar a vida pelos nossos irmáos'
(1 Jo 3, 16)».
As palavras em negrito já haviam sido proferidas por Pió XII.

b) A simplicidade e a pobreza devem caracterizar a vida


dos cristáos, sejam autoridades, sejam simples fiéis. Tendem a
cair em desuso, portante, certas cerimónias e práticas eclesiás
ticas que estáo, sim, carregadas de mensagem simbolista, mas
foram nítidamente inspiradas por costumes e mentalidade me-
dievais, de modo que hoje em dia causam perplexidade a muitos
cristáos e náo-cristáos.

c) Dar-se-á o primado á caridade sobre o direito dentro


da S. Igreja. Em outras palavras: incutir-se-á bem ao mundo

— 281 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, dii: 3

qué o Cristianismo nao é um código de preceitos é proibigóes


sufocantes, mas é urna vida que desp'erta tudb que há'de grande
e generoso, principalmente o amor, dentro do homem. A Lei ou
o Direito na Igreja tem o papel de muralha do amor, impedindo
que éste se desvie em diregóes erróneas; a Lei, portante, deve
fomentar o amor ñas almas dos homens; elaestá a servico da
caridade..

2) O estilo pastoral formula a doutrina crista de manera


clara, bem compreenstvel aos fiéis, e também aos homens náo-
-católicos, do século XX. Distancia-se assim do estilo acadé
mico, o qual geralmente supóe vocabulario e cultura que sómente
reduzido número de pessoas entendem. O estilo pastoral visa
salvar os homens,... e todos os homens. Visa aplicagáo na cate-
quese e ñas missóes, nao nos recintos das escolas teológicas.

. Note-se bem que com isto nao se professa- desprézo em relacao aos
ambientes teológicos eruditos (estes tém funcáo indispensável na
S. Igreja), mas apenas se quer sublinhar qué o estilo das escolas deve
ceder a outro estilo, quando se quer comunicar a mensagem as multi-
d5es. Com isto também nao se preconizam ádaptacoes doutrinárias
traicoeiras, feitas para agradar aos homens, mas tSo sómente adapta-
Coes da linguagem e das fórmulas de modo que estas possam despertar
ecos nos homens de nossos dias, sejam cultos, sejam incultos.

«Um pastor nao poderá julgar ter cumplido todo o seu dever
quando tiver ensinado urna doutrina em termos rigorosamente exatos;
deverá íazer, paciente e laboriosamente, pela oracáo e o estudo, um
esfdrco teológico para assimilar esta doutrina de modo a estar a altura
de a apresentar em t6da a sua pureza e com tddá a fórga da sua luz
vital, adaptando-se ele mesmo ao seu povo, ao grau de receptividade dos
seus íiéis, á sua linguagem, á sua mentalidade, a fim de os levar pro-
gressivamente a abrir-se á luz... Nao é a doutrina que tem de ser
adaptada, mas a sua apresentacao» (Mons^ E. Guerry, Carta Pastoral
citada; cf. «Documentation Catholique» 1393, col. 183).

3) O estilo, pastoral estende seus pronunciamentos aos


problemas antigos e novos do género humanó. Considera ó ho
mem do século XX com as suas angustias concretas, motivadas
pelo vertiginoso desenvolvimento da técnica, da economía, da
sociología, assim como pela psicanálise, a filosofía existencialista,
relativista; e procura remediar aos males déssé individuo tal
como ele se vai arrastando día por dia na vida presente.

«Nosso Senhor nao disse apenas: 'Eu sou a Verdade*. Élé acres-
centou : 'Eu sou a Vida'. Ele é 'a Palavra da Vida' (1 Jo 1). Ele nao de-
clarou apenas: 'Vim para dar testemunho da verdade'. Acrescentou •
"Vim para que tenham a Vida, e a tenham em abundancia'. Foi o Bom
Pastor quem falou nesses termos (Jo 10,10). Exigencia pastoral! O
Cristianismo nao é sámente revelacáo das verdades, ele é também

— 282 —
AJIGUEIRA AMALDICOADA POR JESÚS '••

comunicacSo de urna vida, da vida niesma de Jesiis Cristo. A doutrlna


nlo é uva conjunto de verdades absttatas, é urna verdade viva, üma dou-
trina de vida, da vida divina do Verbo feito carne, que deve animar
toda a vida dos homens. O Cristianismo é a adesáo, mediante urna fé
viva,, a urna pessoa.viva» (Mons. Guerry, Carta cit., c£. col. 184). ■ ,

Es, sumariamente, as grandes características do estiló pas1-


toral, estilo que, como é de crer, marcará profundamente os tra?
balhos e as declaragóes do Concilio do Vaticano n.

Para corroborar éste presagio, pode-se apontar o fato de que o


primeiro tema estudado no Concilio foi o da Liturgia; algumas resolu-
cdes já foram devidamente aprovadas pelos conciliares no sentido de
tornar o culto sagrado mais compreensível ao publico e mais partici
pado pelos fiéis.

IIL SAGRADA ESCRITURA

M. J. C. (Rio de Janeiro) : <


4) «Como entender o episodio da figueira amaldigoada
por Jesús ? Cf. Me 11,12-14. 20s; Mt 21,18-20. . .,
Nao haverá nisso um absurdo ?»

1. Para facilitar a explica'eáo, transcrevemos aqui o texto


a ser analisado : . ' ,

Me 11,12 «No dia seguinte, ao sairem de Betánia, Jesús teve fome,


13 Vendo de longe urna figueira coberta de fdinas, aproximou-se para
ver se nela encontrava algum fruto. Chegando-se a ela, nada encontrou
a nao ser fólhas. Nao era tempo de figos. 14 Dirigindo-se éntáo á fi
gueira, disse : 'Que daqui por diante jamáis alguém coma fruto de ti!'.
Seus discípulos o ouviram.
... 20 Na manha seguinte, ao passarem, viram que a figueira
havia secado até as raizes. 21 Recordándose, Pedro lhe disse: 'Véí
Mestre, secou-s.e a figueira que amaldicoaste'».
Cf. texto paralelo em Mt 21, 18-20.

O episodio ácima tem feito correr rios de tinta entre os co-:


mentadores. Proporemos a elucidagáo geralmente aceita, á qual
se acrescentaráo alguns dados complementares.

1. O problema

Nao há dúvlda, o trecho de Me 11,12-14. 20s apresenta mais


de um ponto obscuro. Assim

a fome de Jesús... Dado que o Senhor tenha passado a noite ante


rior ao episodio na casa de Marta e Maria em Betánia (cf. Me 11,13),

— 283 —
«PERGUNTE K RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 4

*£H °f 9"atr°i «l11116"16^^ de Jerusalém, difícilmente se pode enten


der conforme alguns exegetas, tenha o Senhor comecado a caminhada
do día sem tomar previamente algum alimento. Os mestres judeus
muito recomendavam as refeicSes ñas horas oportunas, cheeando
mesmo Rabí Aquiba a admoestar: «Levanta-te cedo e come . • ses-
senta corraos poderáo, sim, correr, mas nao ultrapassaráo aquéle que
uver comido cedo»;
a procura de frutos em urna árvore lora da éooca resneettva istn t.
em abril (a estacáo de íigos, na Palestina, comlctva^m jSnte^penls)'
a desarrazoada decepcáo do Senhor;
a punicáo de urna árvore, que nao podia ser suieito de culna-
o nulagre realizado a titulo de mera «vinganca». .

Como entender ésses dados difíceis ?

2. A sohiQáo

1. Observando as características do texto sagrado ácima


assinaladas, os comentadores, desde remotas épocas, julgam —
e com razáo — que se enquadra dentro do género de episodios
bíblicos que referem urna acáo simbólica ou urna parábola em
atos. Tal género nao é raro na literatura do Antigo Testamento
principalmente nos üvros proféticos.
Com efeito; Deus quis outrora falar ao seu povo nao so-
mente mediante palavras, mas também mediante gestos e agóes
que de maneira figurada (mas ainda mais viva e impressionante*
do que as palavras) transmitiam determinado ensinamento •
tais agóes podiam revestir-se de notas estranhas ou pouco habi
tuáis no currículo da vida cotidiana, justificadas, porém, pela
fmalidade do símbolo, que era «exprimir em termos bem oalDá-
veis e penetrantes alguma doutrina abstrata».

2. Eis as principáis parábolas em atos ou agóes simbólicas


que o Antigo Testamento refere :

Isaías 20, 1-6: o Senhor manda a Isaías que se despoje de suas


vestes e sandalias, a fim de significar ao povo de Israel a expoliaeáo
que os egipcios e os israelitas, seus aliados, haviam de sofrer por parte
dos asslrios.

Jeremías 13, l-ll: Deus ordena a Jeremías, compre um cinturao


de luiho e o aplique aos seus rins sem o mergulhar previamente na
agua. Manda, a seguir, que o profeta vá ter ao rio Eufrates e esconda o
cinturao dentro de urna fenda de rochedo junto das agías P¿ último
passados muitos dias. o profeta é de novo enviado ao Eufratesr a flm
de buscar o cinturao; encontra-o, porém, deteriorado e totalmente inv
prestável — Ora, conforme a interpretado explícitamente dada pelo
próprio Senhor, tal ato devia simbolizar que a Alianca de Javé com
Israel (=o cinturao) estava para ser conculcada pelos pagaos
(=as aguas do Eufrates), os quais desta forma haviam de humühar
o povo de Israel soberao e desobediente.

— 284 —
A FIGUEIRA AMALDICOADA POR JESÚS

Jeremías 19, ls. 10: Jeremías é enviado a um oleiro a íim de com


prar um jarro, que ele, a seguir, deverá quebrar perante a multidáo
que o acompanha. — Asslm ficaria significada a ruina que, por obra do
rei Nabucodonosor, estava para acometer o povo de Israel em conse-
qüéncia dos seus pecados.

Jeremías 27, 2-8 : o Senhor da ordens a Jeremías para que coloque


sobre a sua nuca os cordames e o couro de um jugo (canga) de animal;
depois, deverá enviar tais objetos a reis estrangeiros, dando a saber
tanto a ésses monarcas como aos judeus que o povo de Israel sera
subjugado por Nabucodonosor da Babilonia.

Jeremías 32, 6-15: após predizer ao rei Sedecias a ruina da Térra


Santa por ocasiao da invasáo dos babilonios, o profeta é, pelo Senhor,
intimado a comprar um campo em Anatot. Jeremías adquiriu-o, aten-
dendo a tedas as prescricoes legáis para a validade do ato. A seguir,
Javé anunciou que, assim como Jeremías acabara de comprar um ter
reno, assim os homens aínda haveriam de adquirir casas, campos e
vinhas naquela mesma térra de Israel, que estava para ser devastada.
— Tem-se, portante, ai urna aeáo simbólica de Jeremías, portadora de
bom presagio.

Ezequiel 4, 1-3 : a mando do Senhor, o profeta Ezequiel toma um


tijolo ou urna prancha de argila mole e sobre ela desenha o tragado de
urna cidade (Jerusalém); em torno dessa imagem, constrói, em minia
tura, o aparato que lembra um exército em manobra de assédio (trin-
cheiras, torres, terracos, carneiros, etc.), e p5e-se a olhar para a cidade
como quem a quer tomar de assalto. — Destarte havia Ezequiel de su
gerir aos habitantes de Jerusalém o siüo e a queda iminentes da Cidade
Santa acometida pelos babilonios.

Ezequiel 4, 4-17 : Ezequiel recebe a ordem de se prostrar e de per


manecer deitado sobre o lado esquerdo, amarrado com cordas, durante
390 días; ... sobre o lado direito, durante 40 dias (num total de 430 dias,
que recordam os 430 anos de cativeiro no Egito; cí. Éx 12,40) No decor-
rer désse longo periodo, terá a alimentacño racionada : só comerá, por
dia, vinte sidos (cérea de 300 gr) de um pao de farinha mista que o
profeta fará cozer em forno improvisado, cujo combustivel seráó excre
mentos humanos... — Deixando-se ficar em situacáo táo abjeta e afli-
tiva, o homem de Deus devia simbolizar a quantos o vissem, o cativeiro
e a penuria que flagelariam os israelitas deportados por Nabucodonosor
para a Babilonia.

Ezequiel 5,1-17: o mesmo profeta, com urna navalha afiada, raspa


a sua cabeleira e a sua barba. Apenas urna pequeña quantidade dos
cábelos e- pelos assim cortados deverá ficar reservada na dobra do
manto do homem de Deus (contudo mesmo dessa reserva urna porcSo-
zinha há de ser lancada ao fogo). Quanto ao resto do material raspado
é distribuido em tres partes : um terco há de ser queimado; o segundo
terco, o profeta o retalhará com a espada, ao passo que, a última parte
ele a dispersará ao vento. — Cabeleira e barba raspados deveriam re
presentar o povo de Israel atacado pelos babilonios e, conseqüente-
mente, entregue ao fogo (incendios), á espada (morticinio) e & dispersáo
(exilio); apenas pequeña parte («o resto de Israel») escaparía á ruina
nao, porém, sem ter sido também ela dizimada.

— 285 —
«PERGUNTE' E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 4

Ezequlel 12, 3-16: Ezequiel. toma sobre os ombros a sua bagagem,


á semelhanca de um emigrante. A noite, abre um buraco nos muros
da Cidáde Santa, passa por ele levando o seu fardo, e sal para longe.
— Com tal acáo simbólica, o profeta dévia significar o que estava para
suceder em breve ao rei da nacao santa e á sua gente : seriam deporta
dos pelos invasores estrangeiros, levando a sua pobre trouxa sdbre os
«mbros, como infelizes escravos.

Ezequiel 24, S-14: Javé manda a Ezequiel prepare urna panela,


enchendo-a de carne e ossos das melhores cabegas de gado do rebanho,
e ponha tudo a ferver aos borbotees. Feito isto, Ezequiel verificarla
que, apesar de tudo, o cozido nao podia ser aproveitado para a alimen-
tacáo; devia, antes, ser lancado fora, pois a ferrugem do interior da
panela havia contaminado o conteúdo. — Com esta parábola viva, devia
o profeta indicar que a Cidade de Jerusalém estava táo corrupta que
nada a podia salvar da ruina; nem mesmo urna provacáo momentánea
bastaría para purificá-la; havia, pois, de sofrer a destruigáo por parte
dos inimigos. Seus habitantes, longe de ser protegidos por suas mura-
lhas, haviam de ser lancados fora ou deportados para a Babilonia.

Eíequiel 37, 15-28: ao profeta ordena Javé, tome dois pedacos de


madeira e escreva sobre o primeiro o nome de Judá (reino meridional
israelita), e sobre o segundo o nome de José, pal de Efralm (designacáo
do remo setentrional derivado do cisma das tribos de Israel). A seguir,
devia o profeta juntar os dois fragmentos de lenho e explicar ao povo
que tal ato représentava a próxima extingao do cisma, ou seja, o rea-
grupamento do povo de Israel sob um só chefe ou um só pastor. *

Oséias 1-3 : as relacoes de Oséias com urna meretriz (historia real


mente vivida ou apenas imaginada e descrita pelo profeta ) deviam
significar aos israelitas que as relagoes da nacáo eleita com Javé esta-
vam contaminadas de impureza: Israel era infiel a Deus, violara sua
alianca com o Senhor, tornara-se enfim urna nacáo táo indigna quanto
a meretriz que Oséias apresentava ao povo.

3 Eeis 11¿9 : o profeta Aias de Silo retalhou o seu manto novo em


doze partes, entregando dez a Jeroboao para predizer o cisma das dez
tribos setentrionais de Israel guiadas por Jeroboao mesmo.

3 Reís 22, 10-12: o profeta Sedecias, na presenca dos reis da Sama


ría e de Judá, confeccionou uns chifres (símbolos de fdrea e poder)
que ele apresentou aos monarcas como símbolos da Vitoria que con
forme o profeta, o rei Acab da Samaría haveria de obter sdbre os sirios:

Por fim, também no Novo Testamento, fora dos Evange-


lhos, ocorre um caso de parábola em atos :
Atos dos Apóstelos 21, lOs: o profeta Agabo tomou o cinturáo de
Sao Paulo e, com ele, atou as suas próprias máos e os seus pés, dizendo
que «o homem a quem pertencia tal cinturáo seria ligado de forma
semelhante e entregue aos págáos>.

Ora Jesús adotou o método de ensinamento simbólico dos


profetas do Antigo e do Novo Testamento, pois isto confirmaría
seu titulo de arauto de Deus; além do que, daría a sua doutrina
urna base muito acessível as multidóes.

— 286 —
A FIGUEIRA AMALDICOADA POR JESUg^ ■_

3. Feita esta observagáo, importa-nos averiguar como se


eleve interpretar urna parábola a finí dé depreender o seu ensi-
namento auténtico.
A regra-chaye para se entender urna parábola (seja ela ex-
pressa por palavras, seja traduzida em atos) manda que, antes
do mais, se examine qual a intengáb do autor da parábola ou
qual b ensinamento que ele quería transmitir mediante ésse arti
ficio. Tal ensinamento geralmente se depreende sem dificuldade,
pois ou o próprio autor da parábola (no Evangelho, Jesús mes-
mo) o propóe explícitamente ou o contexto da parábola o insinúa
suficientemente. Ésse ensinamento a que tende o autor da pega,
constituí a viga principal da parábola, de tal modo que os por
menores desta tém que ser subordinados a tal linha de pensa-
mento, ou tém que ser entendidos á luz de tal ligáo dominante.

4. Aplique-se éste principio ao episodio da figueira amaldi-


coada por Jesús e perceber-se-á o seu genuino significado.
A figueira, áryore assaz comum na Palestina, é utilizada
no Antigo Testamento como símbolo que designa o povo de
Israel.

Tenha-se em vista a passagem alegórica de Jeremías 24, 1, onde


figos bons e figos deteriorados simbolizam os israelitas fiéis e os in-
fiéis ao Senhor.
Em Oséías 9, 10, lé-se o seguinte oráculo de Javé : «Como uvas no
deserto, encontrei Israel. Como frutas precoces numa figueira, vi vossos
pais».
Em Miquéias 7,1, diz Javé ter desejado a íidelidade de Israel como
quem aspira por figos precoces.
Em Amos 8,ls, o povo é representado por frutas maduras.

No Evangelho, a figueira infrutuosa, mas misericordiosa


mente agraciada, designa igualmente a nagáo escolhida (cf. a
parábola narrada em Le 13, 6-9).
É plausivel, pois, admitir que, na cena viva descrita em
Me 11,12-14; Mt 21,18-20, a figueira também designe o povo de
Israel.
Ora o quadro (acontecimentos anteriores e posteriores)
dentro do qual tal cena é inserida, mostra a nagáo israelita obce
cada : os seus mentores sao os fariseus, que resistem ao Mes-
sias, discutindo sutilmente com Ele. O episodio dos vendilhdes
expulsos do templó porque profanavam o santuario, ilustra bem
essa situagáo (cf. Mt 21,12s). Também as parábolas narradas
por Jesús após 'o episodio da figueira sugerem claramente a obce-
cagáo ou o endurecimento da nagáo israelita (parábola dos dois
filhos, dos quais um obedece e o outro nao, em Mt 21,28-32; pa-

— 287 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 4

Fábolá dos vinhateiros homicidas, que chegam a matar o fílho do


seu senhor, em Mt 21,33-46).
Assim o povo caro a Javé (simbolizado clássicamente por
urna figueira), enriquecido de dons e favores no decorrer da his
toria do Antigo Testamento, se mostrava estéril na hora defini
tiva ou no momento em que o Senhor o visitava a fim de colhér
os respectivos frutos. Conseqüentemente, Deus havia de punir a
nacáo israelita, permitindo que caísse sob os romanos no ano de
70. Ora era justamente essa punicáo que Jesús quería simbolizar
fazendo perecer a figueira...

Neste contexto, o contraste de que fala o Evangelho, entre a exu


berante ramagem da figueira e a sua carencia de frutos é Importante :
lembra, sim, a multidáo de observancias rituais e legalistas vigentes
entre os israelitas, observancias, porém, destituidas de frutos religiosos.
Quanto ao fato de que a época em que ocorreu o episodio nao era época
de figos, nao tem importancia. Também nao causa especie a expectativa
(aparentemente tola) de Jesús desejoso de colhér figos lora da estacáo
adequada. Nem nos há de prender a atencáo o fenómeno, talvez sur-
preendente, de que Jesús tivesse fome a tal hora do dia... Estes traeos
nao possuem significado em si mesmos; servem apenas para ornamen
tar a cena ou para torná-la mais dramática.

Retenha-se apenas a seguinte linha da parábola em atos :


Jesús foi buscar frutas em umá árvore que, por ironía, tinha
muitas fólhas, mas nenhum figo; em conseqüéncia, tal árvore
foi tratada como plantío de má qualidade, que deve ser eliminado
para nao prejudicar o solo e as demais árvores. — Isto quería
significar que o Messias veio á térra colhér os frutos da fé e dos
dons que Israel recebeu no Antigo Testamento, mas encontrou
essa nagáo estéril; em conseqüéncia, ela havia de ser duramente
punida em 70, quando os romanos a invadiriam e dispersariam.
Está claro que a figueira nao era sujeito de culpa moral ou
de pecado, mas ela é tratada, na cena simpólica, como se o fósse,
porque a situacáo de Israel a ilumina ou se projeta sóbretela.
Nao se perca tempo, portante, indagando se a figueira como tal
mereceu ou nao o castigo ou... se a ira de Jesús era justificada
ou nao... A atitude de Jesús foi ditada nao pelas circunstancias
mesmas em que se realizou o episodio (á luz dessas circunstan
cias, seria desarrazoada ou absurda), mas pela atitude que o
Juiz Eterno haveria de tomar frente a Jerusalém no ano de 70
(em tal caso, sim, o procedimento de Jesús é compreensível, pois
desempenha o papel de sinal ou símbolo profético).

Pode-se, por fim, notar que alguns exegetas atribuem aínda outro
sentido ao castigo deflagrado pelo Divino Mestre sobre á figueira. Tor
nando a árvore ¡mediatamente estéril, o Senhor manifestava seu poder;
assim, observam, quería dar a entender aos Apostólos que Ele havia de

— 288 —
A FIGUEIRA AMALDlQOADA POR JESÚS

se entregar a morte voluntariamente, embora tivesse o poder de pros-


trar Inmediatamente os seus adversarios. — Nada se poderia objetar a
esta exegese.

A firade conseguir urna visáo mais cabal de quanto se tem


dito e escrito sobre o episodio realizado, vamos agora recolher
alguns tópicos dos comentadores que nao foram inseridos na ex
plicado ácima.

2. Observagoes complementares

a) Com referencia á fome de Jesús, certos exegetas, inde-


vidamente surpresos por éste trago do episodio, procuraram ex-
plicá-lo aventando hipóteses diversas, todas elas mais ou menos
gratuitas, das quais as principáis seriam as seguintes :

Jesús nao havia passado a noite anterior na casa de Marta e Maria


em Betánia, pois estas irmás, solícitas como eram, nao O teriam dei-
xado sair sem alimento;
Jesús pernoitara, sim, em casa de Marta e Maria, mas saira antes
da hora habitual, sem haver previamente avisado as duas irmás;
a caminhada e o ar fresco da manhá teriam feito Jesús experimen
tar a fome que Ele em outros dias nao experimentava;
Jesús, em verdade, nao sentiu fome, mas apenas quis comportarle
como se a sentisse.

Como se vé, seria váo insistir em qualquer dessas explica-


cóes, nao sómente porque nao há fundamento seguro para al-
guma délas no texto evangélico, como também porque nao é o
pormenor da fome de Jesús que importa nessa parábola em atos.
O termo de comparacáo, como dissemos, nao é a fome do Senhor,
mas a aridez da árvore da qual o Senhor esperava colhér frutos.

. b) Diráo outros comentadores: a expectativa de encon


trar frutas na figueira fora da época normal é em si desarrazoa-
da e, por isto, inconcebível no Senhor Jesús. Deixará, porém, de
ser absurda, caso se admita que Cristo procurava figos precoces
ou «figos-flores». Na verdade, as figueiras palestinenses, até as
selvagens, costumam produzir, desde os fins de fevereiro, figos
precoces, os quais só amadurecem em junho. Acontece, porém,
que a meninada tem o hábito de os retirar e comer aínda verdes,
julgando-os deliciosos; também os adultos os consomem, quando
premidos pela fome. Jesús entáo, com fundamento, teria espe
rado poder comer tais «figos-flores», mas a garotada já os have-
ria colhido! Daí a justificada decepcáo do Senhor.

Para ilustrar esta hipótese, cita-se urna passagem do Talmud ou da


literatura rabinica em que dois rabinos aparecem a comer figos frescos

• — 289 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 5

em Jerusalém no dia seguinte ao de Fáscoa (abril). No mesmo Talmud


o tratado Orla assinala os figos ao mes de Adar (marco/abril).

Seria inútil sublinhar essa rebuscada explicagáo, pois ela


tem em vista um pormenor da parábola que só possui importan
cia secundaria e que pode muito bem ser entendido como trago
meramente dramatizante ou enfático.

c) Quanto á «absurda» maldicáo proferida pelo Divino


Mestre sobre urna árvore que nao era responsável, julgam cer-
tos comentadores desde S. Joáo Crisóstomo (t 407) e S. Jeró
nimo (f 420) que o Senhor, amaldigoando, quis fazer mero ato
de poder soberano; com isto intencionava mostrar aos discipulos
que ele poderia também prostrar os seus adversarios no mo
mento da Paixáo; só nao o faria, porque desejava realmente de-
votar-se ao sacrificio e á morte.
Éste significado, como dissemos, pode muito bem ser atri
buido ao gesto punitivo de Jesús, sem que por isto se deva deixar
de entender toda a cena como parábola em atos.

d) Isolando-se da grande maioria dos autores antigos e modernos,


o exegeta Denis Buzy recusa o sentido parabólico do episodio da fi-
gueira amaldicoada. Prefere entendé-lo exclusivamente como ato de
manlfestacáo da Onipoténcia Divina de Jesús; tal manifestacáo teria
sido concedida aos Apostólos a fim de lhes corroborar os ánimos para
as horas angustiosas da Paixáo, íazendo-lhes ver que o Senhor se en
tregara á morte voluntariamente ou como o Todo-Poderoso, movido
únicamente por misericordia (cf. «La Sainte Bible» editada por Pirot-
•Clamer, f IX. Paris 1950, pág. 276s).
Tal interpretacáo é demasiado singular para conseguir íazer escola.
De resto, ela se pode conciliar com o sentido parabólico da cena — sen
tido éste que é muito recomendado pela praxe dos profetas e dos men-
sageiros de Deus tanto no Antigo como no Novo Testamento, segundo
vimos ñas páginas precedentes.

IV. MORAL

JOBNALISTA (Rio úe Janeiro) :

5) «Os progressos da ciencia fazem prever a intervengao


do homem na hereditariedade biológica. Interferindo na fecun-
dacao do óvalo e do esperma humanos, os cientistas pretendem
obter 'homens-cérebros', 'homens-músculos', etc.
Que julgar de tais operac5cs, á luz da filosofía e da Moral?»

Para,completar os dados do problema, váo aqui transcritas


as noticias da imprensa sobre as quais se baseia a questáo ácima:

— 290 —
INTERVENCAO MEDICINAL NA FECUNDACAO HUMANA

«De acordó com as tentativas e os prognósticos dos dentistas, futu


ramente no processo de feeundacáo humana alguns genes seráo extraí
dos (ijeló médico). Outros serao impregnados de um liquido inibidor oü
excitador. A operacao sdbre o óvulo deverá ser exataménte a mesma
que sobre o espermatozoide. Para obter um 'homem-braco', do q.uaí
sómente importará a fdrca física é a resistencia, o cirurgiáo matará no
óvulo os genes que deveriam condicionar... a inteligencia, a sensibili-
dade, o senso do bem e do mal, o sentimento do belo ou do feio. Em com-
pensacSo, os genes que condicionan! o crescimento do sistema muscular,
do sistema ósseo, dos sistemas circulatorio e respiratorio, serao excita
dos : o homem será fortemente esculpido. Terá urna musculatura im-
pressionante, irrigada por um sangue bem vermelho, bem oxigenado.
Para o homem-cérebro, a manobra será a contraria : o ser a nascer
será supeí-inteligente. Mas também ele afastará a possibilidade de se
emocionar, de amar, de odiar.
Assim ninguém, quer seja cerebro, quer braco, será livre de escor
lher o seu destino, de sair do destino ao qual o devotou o cirurgiáo
condicionado!-. Ao longo de sua vida, o individuo obedecerá, cumprirá a
funcáo para a qual estava predestinado. Nao será infeliz, nao tendo a
possibilidade de sondar nem de comparar. Depois, quando sua produti-
vidade estiver babeada de tal forma que ele arrisque a ser urna carga
para a sociedade, urna picada indolor o enviará 'ao repouso', isto é, fá-
•lo-á sair déste mundo dos vivos, ao qual ele nao será mais útil.
Quadro negro da sociedade futura — dir-se-á.
Quadro bem negro da sociedade futura — negro, porque a ciencia
é como a lingua de Esopo: pode ter as melhores ou as piores conse-
qüéndas» (transcrito de «O Globo»; Rio de Janeiro, fevereiro de 196$)

Em resposta a problemática assim formulada, deveremos


distinguir dois pontos de vista : o da Filosofía e da Ciencia (con
juntamente tomadas) e o da Moral.

1. O ponto de visto, filósófico-científico

A noticia de jornal ácima transcrita (note-se que os tópicos


da imprensa vém a ser urna das fontes de informacóes e forma-
gáo mais comuns para o grande público) está redigida de tal
forma que se presta a equívocos. Com efeito,

1) de maneira geral, o comunicado pode levar a crer que


no homem tudo (inclusive a inteligencia e a faculdade de amar
ou a vontade) é materia. Ora esta conclusáo tem que ser dissi-
pada a luz de quanto foi dito na resposta n« 1 déste fascículo :
embora o comportamento do ser humano esteja muito sujeito ¡as
características e as leis da materia, o homem nao deixa de ter
urna alma espiritual. Essa? alma espiritual, porém, o Criador.a
fez para se unir á materia é com esta atingir a sua perfeigáo;
em conseqüéncia, a alma depende do corpo para exercer e ma
nifestar normalmente a riqueza de sua vida espiritual.

— 291 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 5

2) As operagóes cirúrgicas previstas, caso se tornem reali-


dade, jamáis atingiráo diretamente á inteligencia e a vontade
do futuro ser humano, pois inteligencia e vontade sao facilidades
espirituais, faculdades, portante, que nao possuem extensáo e,
por isto, nao podem ser manipuladas.
As mencionadas intervengóes recairiam apenas sobre os
genes ou corpúsculos que entram na constituigáo do feto hu
mano, como responsáveis por determinados caracteres do corpo.
Ora está averiguado que no cerebro existem regióes precisas ou
centros nervosos bem localizados, destinados a estabelecer a
ligacáo entre as percepcóes dos sentidos externos (olhos, ouvi-
dos, tato, etc.), de um lado, e a inteligencia e a vontade, de outro
lado. O cerebro é como que a central telefónica na qual as im-
pressóes colhidas pelos sentidos externos sao reunidas e asso-
ciadas entre si para ser depois transmitidas a inteligencia e á
vontade.

Os dentistas chegam mesmo a estabelecer a «topografía» das íun-


cSes do cerebro, isto é, a indicar o ponto exato do cerebro do qual de
pende cada urna das principáis atividades do organismo. Existe, sim,
urna regiáo responsável pelo movimento dos artelhos ou dos dedos dos
pés; outra, da qual depende o movimento dito de «ponta-pé»; outras e
outras relacionadas respectivamente com a mocáo dos joelhos, das es-
páduas, dos cotovelos, dos punhos, dos dedos da máo em geral, do dedo
indicador em particular, do polegar em particular, da b6ca, da face, da
faringe, da laringe, etc.; há também no cerebro um centro auditivo,
um centro visual... — Cada um désses pontos importantes é fungáo
de determinado «gene» que entra na composicao do feto. Daí se com-
preende o interésse dos dentistas em influir nos genes, favorecendo a
uns, e inibindo ou eliminando a outros, a fim de obter um comporta-
mentó do homem canalizado ou orientado a bel-prazer do operador.
É a éste termo que desejam chegar os homens de ciencia hoje em
dia, como referem as noticias da imprensa.

Torna-se oportuno frisar bem que a interferencia nos genes


de modo nenhum significa interferencia direta na alma humana.
Esta é criada diretamente por Deus e destinada a se unir ao
corpo humano que tais ou tais genitores oferecem, seja éste
corpo manipulado ou nao pelos médicos. Naturalmente, porém,
sofrerá as conseqüéncias (benéficas ou maléficas) da configura-
Cáo que os operadores derem ao respectivo organismo. Essa
alma, embora conserve sua inteligencia e sua livre vontade, tai-
vez nao possa manifestar plenamente sua inteligencia ou usar
devidamente da sua liberdade...; é possível também que só
possa manifestar inteligencia, ficando indiferente quanto aos
afetos, de acordó com as disposigóes ou mutilagóes introduzidas
pelos dentistas ñas células germináis do futuro ser humano.

— 292 —
DISTINCOES NO AMOR AO PRÓXIMO ?

Esta verificagáo dos fatos científicos possibilita um juizo


lúcido sobre o outro aspecto da questáo.

2. O ponto de vista da Moral

As interferencias do homem no processo generativo sao ge-


ralmente ilícitas, pois tocam em setor que já nao é da aleada da
criatura; as leis da natureza exigem respeito para si. Principal
mente se tém em mira produzir tipos humanos artificiáis — o
tipo intelectual, o tipo atleta, o tipo náo-emotivo, etc. —, estabe-
lecendo assim urna especie de selegáo racial, merecem reprova-
gáo os dentistas modernos. Todavia nada haveria a lhes opor,
caso, mediante intervencáo artificial, visassem apenas favorecer
a acáo normal da natureza ou corrigir-lhe alguma falha. Nao se
pode dizer, porém, que extragáo ou inibigáo de certos genes no
processo generativo equivalha simplesmente a secundar a agáo
da natureza; tais procedimentos correspondem antes a desviar
e mutilar á natureza num setor em que ela é de todo intangivel.
A gravidade de tais intervengóes se torna ainda mais evi
dente desde que se levem em conta as serias conseqüéncias que
acarretam para a formagáo da personalidade do futuro ser hu
mano. Éste pode tornar-se um individuo prejudicado no plano
moral, depauperado ou destituido de qualidades que o habilita-
riam decisivamente a melhor conhecer e amar a Deus e, por con-
seguinte, a mais fácilmente salvar a sua alma. Tanto a inteli
gencia como o amor e os afetos (emogóes) sao necessários para
que alguém se torne personalidade equilibrada e se encaminhe
seguramente para o seu verdadeiro Fim, que é Deus. Querer,
pois, sufocar algum désses elementos em beneficio de outros
significa intervir indiretamente ñas futuras relagóes de urna
criatura com o seu Criador, setor éste sobre o qual nenhum es-
tranho possui direitos. — Daí a repulsa da consciéncia crista as
operagioes de tal tipo.

OUVINTE ANÓNIMO (Rio de Janeiro) :

6) «Como se há de entender o preceito de Jesús que man


da, amemos ao próximo como a nos mesmos (cf. Mt 5, 43;
22,39)?"
S. Tomaz estabelece graos de amor, ensillando que a cari-
dade se exerce primeiramente ein relacao ao próprio 'en', depois
se estende aos familiares e, por último, atinge os desconhecidos
(cf. S. Teol. BE/11 qn. 26,13 artigos). Nao haverá nisto um certo
egoísmo, contrario a vontade do Senhor?»

— 293 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 6

A aparente contradigáo entre os ensinamentos de Cristo e


os de S. Tomaz se resolve sem dificuldade desde que se .observe
a distingáo entre estima e responsabilidade. As palavras de Jesús
referem-se á estima que o homem deve ao seu próximo, ao passo
que S. Tomaz tem em vista as responsabilidades do individuo ñas
relagóes consigo mesmo e com os seus semelhantes.
Vejamos, pois, com exatidio o significado da distíngáo.

1. Igual estima

A estima é o aprego, o valor que atribuimos a alguma cria


tura. Jesús ensina que ésse aprego deve ser o mesmo para com
todos os homens, sem diferenga de raga, familia ou categoría
social...; deve ser até táo espontaneo quanto o aprego que tri
butamos .a nos mesmos.

Exemplo bem claro do que seja essa estima, é fornecido pelo Sama-
ritano na parábola narrada por Jesús em Le 10, 29^37; é apreco esme
rado, que passa por cima das barreiras de nacionalidade e convencao,
para atingir até mesmo aqueles que, segundo o modo de ver humano,
haveriam de ser negligenciados ou tratados como inimigos.

Passemos agora a outro aspecto do tema.

2. Desigual responsabilidade

1. Por «responsabilidade» entende-se o encargo ou o dever


que alguém tem, de fazer o bem a outrem. Está claro que urna
pessoa só é responsável na medida em que possui liberdade e
poder de acáo; a quem nao é livre para agir, nao se atribui res
ponsabilidade (nem mérito nem demérito...).
Conseqüentemente, compreende-se que cada um seja res
ponsável primeiramente por si; depois,... pelos outros, na me
dida em que os outros podem sofrer a influencia ou a agáo désse
individuo. O motivo desta afirmagáo é claro : Deus só nos deu o
poder de governar ou de administrar diretamente, o nosso pró-
prio «eu» com os seus bens espirituais e corporais. Sobre o pró
ximo podemos, sim, exercer grande influencia, mas nao temos o
dominio da sua liberdade. É por isso — repitamo-lo — que cada
um tem a obrigagáo de se sentir responsável pelo próprio «eu>
e pelos bens entregues diretamente ao seu livre poder mais do
que pelo próximo e pelos bens confiados diretamente ao dominio
do próximo.

Entre os que mais podem receber a nossa influencia, vém primeira


mente os nossos parentes e familiares, com os quais possulmos aflnida*

— 294 —
DISTINQOES NO AMOR AO PRÓXIMO?

de natural, aos quais estamos unidos por certa solidariedade de interés-


ses e com os quais temos contato cotidiano ou, ao menos, freqüente; a
seguir, vém os nossos amigos, os nossos compatriotas, vinculados a nos
por liames semelhantes aos que acabamos de indicar. É evidente que
menos podem sofrer a nossa influencia aqueles que nao conhecemos
- ou com os quais nao-temos afinidade natural.
É, pois, segundo esta escala que cada um se deve sentir responsá*
vel pelo próximo e se deve empenhar por promover o bem dos outros
(suposto que nao possa atender a todos, mas tenha que escolher).

Eis o que S. Tómaz tem em mira quando afirma que primei-


ramente devemos amar a nos mesmos e, depois, aos outros, se
gundo o grau de proximidade em que se achem em relacáo
a nos.

2. Esta proposigáo, se ainda causa surprésa ou especie,


deixa por completo de ser desconcertante, caso se levem em
conta as suas conseqüéncias concretas. Com efeito, «sentir-se
responsável primeiramente por si e, depois, pelo próximo» quer
dizer práticamente o seguinte :

1) Desde que a minha salvagáo eterna e a do meu próximo


estejam em jógo, versando ambos em igual perigo ou necessi
dade, tenho a obrigagáo de atender em primeiro lugar á minha
necessidade, pois sou mais resporisável pela minha própria salva
gáo do que pela de meu semelhante, e meu semelhante é mais
responsável pela sua salvagáo do que pela minha.

Disto se segué que a ninguém é licito aceitar a perspectiva de


perder a vida eterna na esperanca de a dar ao próximo, nem é permi
tido cometer pecado com o fito de alcancar algum bem espiritual para
o próximo. Quem, ao se empenhar pela salvagáo do próximo, sofre gra
ves tentacSes e corre o risco grave de cometer pecado mortal, deve pri
meiramente tratar de robustecer sua resistencia espiritual, para depois
dar-se devidamente ao apostolado. O apostólo que caisse em pecado
mortal por causa do seu apostolado, nao sámente nao beneficiarla as
almas, mas tornar-se-ia mesmo causa de'detrimento ou foco de infecgáo
no Corpo Místico de Cristo.
Nao há dúvida, porém, de que, se, em tal ou tal caso, o perigo de
tentacoes é relativamente pequeño e prudentemente contrabalancado
por medidas de verdadeira cautela, pode alguém expor-se a essas tenta-
c8es com a intencáo de obter a salvacáo do próximo.

Está claro, portante, que, em se tratando de assegurar a


vida eterna, cada um é responsável primeiramente pelo que lhe
diz respeito diretamente; deverá exercer o seu zélo, antes do
mais, para garantir a sua salvagáo.

Urna vez, porém, estabelecido éste principio, verifica-se algo de apa


rentemente paradoxal e, ao mesmo tempo, grandioso, a saber:

._ 295 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, gu. 6

2) Desde que nao corra perigo a salvaeáo eterna da pró-


pria pessoa, o verdadeiro amor de cada um a si mesmo exige
que cada um renuncie a si e se mortifique, dando ao próximo os
bens que subtrai a si. .'
Sim; cada individuo se torna grande e nobre quebrando o
seu egoísmo, principalmente no tocante aos bens materiais. «Há
mais felicidade em dar do que em receber», dizia o Senhor Jésus
(cf. At 20,35).
Esta conclusáo é incutida nao sómente pela experiencia da
vida, mas também pela consciéncia que o cristáo tem de que a
natureza humana está contaminada pelo pecado original; por-
tanto contentá-la e afagá-la sem reservas significa, em última
análise, nutrir tendencias desregradas que amesquinham e desfi-
guram a personalidade.
Vé-se, pois, que a genuína caridade de cada um para consigo
está longe de significar ganancia ou egocentrismo. Ao contrario,
quanto mais alguém amar a si, tanto mais será desprendido de si
e aberto para as necessidades, tanto espirituais como materiais,
do próximo. Amando ao próximo de maneira prática e eficiente,
com esquecimento do próprio «eu», o homem está, em última
análise, amando a si ou produzindo o maior beneficio a si mesmo,
pois está quebrando a crosta do egoísmo que o sufoca, para se
dilatar em Deus e ñas criaturas de Deus.

Conseqüentemente, ensinam os casuistas :


Todas as vézes que o próximo se encontré em grave necessidade
espiritual <ou em grave perigo de perder a salvacáo eterna), toca-nos
a obrigacáo de o socorrer sem sacrificarmos a nossa salvacao eterna,
mas, sim, com o perigo mesmo de perdermos a nossa vida temporal.
— Supóe-se naturalmente que urna tentativa destas tenha fundadas
probabilidades de éxito e nao acarrete daño para terceiros ou para o
bem comum.
Todas as vézes que o próximo se ache em seria dificuldade mate
rial, cabe-nos o dever de o auxiliar, mesmo com notorio sacrificio de
nossos bens temporais. É o que se dá principalmente quando se trata de
preservar alguém de cair em irianicüo ou de morrer de fome.
Os autores de Moral se esmeram em propor e resolver casos em tais
setores. Nao os reproduziremos aqui, pois é certo que na vida prática
cada caso tem que ser reconsiderado integralmente em suas circunstan
cias concretas, nao podendo simplesmente ser resolvido segundo um es
quema rígido, tracado de antemáo; o Espirito Santo há de mostrar
como em cada situacáo concreta se aplicam os principios formulados
nos livros de estudo.

3. Em resumo, a doutrina católica ensina que o genuino


amor a nos e ao próximo obedece á seguinte hierarquia :

a) interiormente ou segundo a estima: apreco igual para com


todos os homens, táo veemente e espontaneo quanto o que cada um
tributa ao próprio «eu»;

— 296 —
QUEM SAO OS MÓRMONS?

b> exteriormente ou no setor da agSo : todo homem tem a obriga-


Cao de garantir primeiramente a sua salvagáo eterna.
Caso esta esteja assegurada (humanamente falando), renuncie a si
em favor do próximo, ñas proporgSes necessárias para promover o bem
de cada um sem prejulzo para o bem comum.

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

IMPORTUNADO (Rio de Janeiro) :

7) «Quem sao os Mórmons ou Santos dos Ültimos Días,


qne visitam as casas distribuindo escritos e livros de ama nova
crenca religiosa ?»

Exporemos abaixo o currículo de vida do fundador da seita dos


Mórmons, a sua doutrina e o seu significado dentro da historia do Cris
tianismo.

1. O Fundador : Joseph Sinith

Aos 23 de dezembro de 1805 nascia em Sharon (U.S.A.)


Joseph Smith, filho de piedosa familia de colonos que professa-
vam o protestantismo sob a forma do Metodismo.
Aos poucos o jovem revelou ter urna índole pessoal bem
característica, que um de seus mais abalizados biógrafos moder
nos, Lemonnier, assim descreve:

«Meigo e amável, nao deixava de falar quando estava com amigos,


e a sua eloqüéncia ardente se expandía em historias intermináveis que
ele inventava a gósto; nao podía contar o mais simples incidente da sua
vida sem o transformar em aventura maravilhosa... Nao era muito
amigo de leitura, e mal conhecia a Biblia;... em casa chamavam-no,
por vézes, de iletrado. Era, porém, o filho predileto de seu pai, que o
considerava como o genio da familia. Com seu pai, José andava á busca
de teaouros, de tal modo que os arredores da fazenda estavam chelos
de escavacóes» (Histoire des Mórmons 1948, pág. 13).

Aos quinze anos de idade, .fez a sua primeira grande experiencia


religiosa. A populacáo local se via entao abalada por novo despertar
religioso, que se manifestava em contradicOes entre as denominagóes
religiosas protestantes. A familia de Smith féz-se entáo, em parte, pres
biteriana; quanto a Joseph mesmo, hesitava... Resolveu conseqüente-
mente ir pedir luzes a Deus, orando em alta voz num bosque. Transcor-
rla urna manhá da primavera de 1820, quando lhe apareceram dois
arijos, que lhe deram a ordem de nao se filiar a crenca religiosa alguma,
pois ele um dia haveria de restaurar a «Igreja Crista primitiva:».

Urna segunda visáo deu-se aos 21 de setembro de 1822,


quando José foi visitado por figura fulgurante, que dizia ser o

— 297 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 7

anjo Moroni : éste Ihe anunciou que ele (José) havia de desco-
brir placas de ouro ocultas, ñas quais se achava escrita a histo
ria maravilhosa do povo de Deus na América. Finalmente, aos
22 de setembro de 1827, o mesmo anjo o levou a encontrar as
famosas placas após haver cavado o cume da colina de Cumorah.
O texto da mensagem respectiva era atribuido pelo anjo a
um rei chamado Mórmon (daí o nome «mórmon» que a José
Smith e seus discípulos foi dado posteriormente). O documento
estava redigido em idioma que Smith chamava «língua egipcia
reformada» e que ele desconhecia. Para o entender, Moroni for-
neceu ao vidente duas pedras maravilhosas («Urim» e «Thum-
min»), que comunicavam a necessária compreensáo do texto.
Dizia o jovem José que quem ousasse lancar um olhar para
as placas de ouro¡ morrena imediatamente. Por isto, Smith nos
tempos subseqüentes se colocava por detrás de urna cortina e ia
ditando a traducáo da mensagem das placas a um secretario,
modesto camponés chamado Martín Harris. Em junho de 1829
estava terminada a traducáo inglesa do livro de Mórmon, a qual
foi impressa e publicada em 1830. Sem demora o anjo arrebatou
as placas, de sorte que jamáis foram vistas pelo público. Apenas
(diz urna declaragáo colocada no inicio de cada exemplar do re
ferido livro) tres discípulos de Smith as puderam contemplar
mima visáo posterior, e atestaram esta visáo com juramento.

A título de informacáo, consignamos também o seguinte: existe,


entre os historiadores, urna versao que visa explicar de maneira mais
plausivel e verossímil a origem do «Livro de Mórmon» :
Certo escritor presbiteriano, Salomáo Spaulding, no sáculo passado,
redigiu um romance em torno dos primordios das populacdes aboríge
nes da América, apresentando-as como descendentes dos hebreus. Ésse
romance nao chegou a ser publicado, mas caiu ñas máos de um pre-
gador batista, depois campbellista, chamado Sidney Rigdon. Sidney foi
associar-se a José Smith na íundagáo da nova Igreja; deu entáo k
obra romanceada de Spaulding aspectos e estilo bíblicos... Daí terá
resultado o «Livro de Mórmon».

Juntamente com a mensagem de Mórmon, José recebia a


missáo de fundar urna Igreja, que seria a restauracáo da antiga
Igreja de Cristo e dos Apostólos. Com alguns poucos companhei-
ros, portante, o vidente fundou a nova comunidade, aos 6 de
abril de 1830, no Estado de Nova Iorque,

Ésse núcleo de crentes comecou a propagar ardorosamente as suas


idéias por todas as regioes vizinhas. Apresentavam-se como os arautos
da religiáo de um povo santo, escollado por Deus para converter o
mundo nos últimos dias, ou seja, nos dias anteriores á definitiva vinda
de Cristo; a sociedade, até mesmo os cristáos, estariam todos mergulha-

— 298 —
QUEM SAO OS MÓRMONS?

• dos em erros de doutrina e moral; em conseqüéncia, quem nao seguisse


a mensagem de Mórmon deveria ser tido como gentio ou pagáo.
Bem se compreende que tal pregacáo tenha suscitado represalias
por parte do público. Os companheiros de Smith tiveram entáo que pe
regrinar por diversas localidades dos Estados de Ohio e Missouri desde
1831 a 1839. Finalmente em 1840 estabeleceram-se no Illinois, fundando
a cidade de Nauvoo, que seria a «Nova Siao», verdadeiro Estado teocrá
tico (isto é, todo regido por leis religiosas ou por «revelacSes» divinas);
ai se aguardarla o Cristo, que estava para voltar em breve sobre a
térra. O territorio de Nauvoo foi oficialmente concedido aos crentes
pelo Govérno do Estado de Ulinois; os Mórmons lá constituiram poder
legislativo, judiciário e executivo próprio, com direito de manter um
exército para sua defesa sob o comando de José Smith. Éste fundou
também um grandioso templo e urna Universidade.
Desdobrando lógicamente as suas idéias, José Smith chegou a pro-
clamar-se candidato á presidencia dos Estados Unidos em fins de 1843;
disseminou apostólos e pregadores que divulgassem o seu programa,
no qual estava incluido, entre outras coisas, o resgate dos escravos.

Contado a situacáo evoluiu desfavorávelmente aos novos


crentes... Com efeito; Smith resolveu apregoar em público urna
doutrina que lhe fóra «revelada» particularmente e que já era
posta em prática na sua comunidade : a doutrina do «matrimo
nio celeste» ou da poligamia. Esta inovagáo provocoua animosi-
dade das populagóes vizinhas de Nauvoo, populagóes que haviam
recebido com simpatía os «santos dos últimos dias».
Os jomáis da regiáo incitaram entáo os cidadáos á guerra
contra os crentes. Estes responderam arregimentando as suas
tropas. Isto bastou para que o Governador do Estado acusasse
Smith de alta traigáo. O vidente assim apontado concebeu o
plano de fugir. Nao o fez, porém, visto que seus companheiros
o consideravam como covarde; resolveu mesmo entregar-se aos ■
juízes civis, que o colocaram no cárcere. Contudo a multidáo
nao se conteve : invadiu a prisáo aos 27 de junho de 1844 e pos
termo violento á vida de José e seu irmáo Hyrum Smith. O pro
feta tinha nessa ocasiáo 39 anos de idade.
A sua figura, que já gozava de grande autoridade entre os
discípulos, cresceu na mente déstes : José Smith veio a ser tido
como mártir e símbolo sagrado.

Quem havia de lhe suceder ?


O mais antigo companheiro de Smith — Sidney Rigdon — nutria
pretensñes. Foi, porém, eliminado pelos discípulos. Em breve tomou-se
Presidente e Profeta da «Igreja> um jovem enérgico e fanático (mais
equilibrado, porém, do que o fundador da seita) chamado Brighant
Young. Éste fóra outrora metodista; tendo-se passado ao Mormonismo,
em 1835 havia sido constituido um dos doze Apostólos da nova seita.
Sua eleicáo encontrou oposicáo por parte de membros da comunidade,
entre os quais um dos filhos de Smith, que resolveu entao separar-se

— 299 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, qu. 7

para fundar a «Reorganizada Igreja de Jesús Cristo dos Santos dos


últimos Dias».
A situacüo era táo tesa em Nauvoo que Young decidiu deixar o
territorio do Illinois, de mais a mais que em Janeiro de 1845 um decreto
do Govérno abolla os privilegios concedidos á colonia dos Mórmons.
Retirou-se, pois, com a sua comunidade de crentes para q deserto de
Utah, regiáo entáo pertencente ao México. A custa de energía férrea,
conseguiram em 1847 ai fundar a Cidade de Salt Lake (ou do Lago Sal
gado). A legislacáo da cidade permitía a poligamia (o pxóprio Young
teve mais de vinte espdsas celestes!); organizava meticulosamente o
trabalho e a economia, de modo que ein breve o deserto se tornou térra
fértil e produtora. Em 1848, o México entregou o territorio de Utah aos
Estados Unidos; a poligamia tornou-se entáo grave pomo de discordia
entre o Govérno norte-americano e os Mórmons. Sómente em 25 de
setembro de 1890, o Presidente da seita, Woodruíf, empreendeu a con-
ciliagáo : declarou que em visáo recebera ordem de abolir a poligamia;
isto permitiu que finalmente em 1896 Utah se tornasse Estado da Con-
federagao norte-americana. Contudo a poligamia ainda é ai praticada,
embora em termos discretos; a maioria da populacáo de Utah professa
a crenca de Mórmon.
Atualmente o Mormonismo parece contar cérea de um milháo de
crentes, dos quais dois tercos residem em Utah. Tém missionários espa-
lhados pelo mundo em intensa atividade proselitista. O govérno da seita
toca a um Presidente («Profeta, Vidente e Revelador») assistido por
dois conselheiros e doze Apostólos.

Pergunta-se agora:

2. Qual a mensagem dos Mórmons ?

1. Os Mórmons relatam do seguinte modo o seu histórico:


Após a confusáo das línguas em Babel (cf. Gen 11), a tribo
de Jared emigrou da Asia para a América. Contudo, já que se
constituía de homens maus, Deus permitiu fósse punida por
muitas guerras e calamidades públicas, de modo que estava
para se extinguir em 600 a. C.
Nesta época, porém, vivía na Palestina um profeta chamado
Lehi, da tribo israelita de Manassés; foi avisado por Deus de
que, em breve (586 a. C), Jerusalém cairia sob os golpes de Na-
bucodonosor; por isto veio com outros israelitas para a América,
onde encontrou os últimos descendentes de Jared.
Urna vez morto Lehi, houve divergencias entre os seus dois
filhos Nefi e Lama, ou quais em conseqüéncia se separaran).
A tribo de Nefi conservou-se fiel a Javé, ao passo que os descen
dentes de Lama prevaricaram; em castigo Deus deixou que a cor
de sua pele se tornasse vermelha; sao hoje em dia os indios ou
aborígenes da América. Quando Cristo estéve sobre a térra,
visitou os Nefitas na América após a sua ressurreigao. Dois ou
tres séculos depois de Cristo, também os Nefitas (de pele
branca) pecaram gravemente e foram exterminados pelos La-

— 300 —
QUEM SAO OS MÓRMONS?

manitas ou indios. Contudo o último rei e patriarca nefita, Mór-


mon, antes de morrer escreveu a historia do seu povo sobre pla
cas de ourOj que ele entregou a seu filho Moroni; éste escondeu
táo precioso depósito rio alto da colina de Comorah, onde final
mente José Smith no sáculo passado, sob a guia do anjo (Mo
roni), o devia descobrir. Daí se origina o «Livro de Mórmon»,
que é a terceira Revelagáo (enumerada após o Antigo e o Novo
Testamento), auténtica Palavra de Deus, á luz da qual a Biblia
Sagrada mesma deve ser interpretada.
Além do «Livro de Mórmon» e da Biblia, os discípulos de
Smith admitem mais dois livros sagrados : «A Pérola de Grande
Preco» e «Doutrinas e Pactos da Igreja de Jesús Cristo dos San
tos dos últimos Dias». Estas obras contém urna coletánea de
passagens, auténticas e nao auténticas, da Escritura Sagrada,
assim como a autobiografía de José Smith e revelagóes que éste
recebeu de Deus.

2. É por tais escritos que se transmitem as doutrinas e as


práticas do Mormonismo, as quais se podem resumir nos seguin-
tes itens :

a) Existe um Deus, que é dito «Pal, Filho e Espirito Santo». O


Pai, porém, tem carne e ossos; quanto ao Filho e ao Espirito Santo,
sao apenas emanac6es do Pai.
Julgam os historiadores que Smith admitia outrossim um certo
politeísmo; testemunho disto seria o fato de que no fim da vida tra-
duzia o nome hebraico «Elohim» por «deuses».

b) O homem é eterno : viveu no Reino de Deus antes de aparecer


sobre a térra. Neste mundo os individuos nao tém recordacao dessa sua
existencia passada, a íim de poder aceitar ou recusar Uvremente o Evah-
gelho. Caso nao cheguem a oonhecer o Evangelho na vida presenté, os
homens o poderao conhecer após a morte e se salvaráo mediante um
batismo postumo.

c) O batismo postumo constituí urna das práticas mais estranhas


do Mormonismo. É administrado, por presumida procuracüo, aos des
cendentes dos deíuntos. A descendencia é meticulosamente examinada
em tabelas genealógicas que os mórmons consultan) (se necessário) em
arquivos espalhados pelo mundo inteiro. Assim os descendentes podem
obter a grac.a de Deus para seus antepassados que nao tenham conhe-
cido a Revelagáo.

d) Há mesmo urna certa identidnde de naturéza entre o homem e


Deus. «Tal como Deus é, tal pode o homem tornar-se».

e) Nao existe pecado original. O homem se vai continuamente


aperfeigoando pelo arrependimento dé suas faltas. Ó único castigo que
o aguarda, é a dor de ter perdido oportunas ocasióes de melhorar.

í) No Mormonismo íoi restaurada a primitiva Igreja, que os ho


mens dos sáculos passados deturparam. Estabelecer-se-á urna nova

— 301 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS:»: 67/1963. qu. 7

Slao na América; Cristo vira pessoalmente reinar sdbre a térra, cuja


face será renovada, tornando-se o paraíso. -

g) Na Igreja dos Santos dos últimos Dias, o Espirito Santo se


manifesta de maneira extraordinaria e permanente por meló dos dons
de Unguas, profecías, revelacoes, curas, vis5es, etc. O Presidente da
Igreja é sempre inspirado por Deus ao realizar os atos mais importan
tes de seu govérno.

h) A cela do Senhor é celebrada sob duas especies : pao é agua.


Nao se usa vinho, embora a revelacáo n* 20 o prescreva. E por que
nao? — Muitos crentes respondem:... porque há cérea de cento e
vinte anos os adversarios dos mórmons tentaram envenenadlos com o
vinho da santa ceia; contudo agua e vinho nao fazem grande dife-
renca no caso, porque se trata de meros símbolos destinados a lembrar
apenas o Senhor Jesús.

i) No que se refere ao casamento, José Smith em 1831 recebeu


a revelacáo de que seria licita a poligamia; todavía só a consignou por
escrito em 1843. Ao ter noticia desta disposicáo, Brigham Young ex-
clamou : «Pela primeira vez na vida desejei entáo estar no túmulo»;
inclinou-se, porém, diante da determinacao. — Os historiadores acham
o fato particularmente estranho, pois que o «Livro de Mórmons proibe
explícitamente a poligamia; julgam que Smlth a deve ter admitido por
razoes estritamente pessoais; embora tal praxe fdsse fadada a provo
car reacáo e repulsa da própria comunidade de crentes, ela se terá
implantado por razOes preponderantemente económicas, pois a popu-
lacáo recém-estabelecida em Utah só poderla sobreviver caso se impu-
sesse pela multidao e pela fórca de seus cidadaos; ora tal condicao
exigía prole numerosa. O éxito que os Mórmons em seus primeiros
decenios obtiveram no plano financeiro e político, parece ter corres-
pondido ás expectativas. A vida civil e económica em Utah foi religio
samente organizada, isto é, organizada segundo o rigor e a preclsáo
que sómente a religiáo poderla inspirar; um sistema de dizimos e
taxas fielmente observado pelos exentes assegurou & Igreja nao só
a subsistencia, mas até mesmo alta prosperidade material. Todavía,
já que a poligamia contrariava as leis norte-americanas, foi, por inti-
macao das autoridades civis da nació, abolida (ao menos em teoría e
de maneira oficial) pelo quarto Presidente da Igreja, Woodruff, em
1890 (Woodruff justificava sua atitude apelando para especial reve
lacáo receblda do céu).
A legislacáo mormdnica prevé também matrimonio apelos mor-
tos»; urna mulher que íaleea sem se ter casado nesta vida pode ser,
pelos seus familiares sohreviventes na térra, ligada a um varáo no
Além. Em caso contrario, seria prejudicada em sua bem-aventuranca
postuma; diz, com efeito, a revelacáo n' 132: «Aqueles que nao passam
por ésse sacramento (do matrimonio) só podem aspirar á dlgnidade
de anjos, ao passo que os eleitos podem esperar elevar-se até a digni-
dade de deuses».

j) A Igreja Mormdnica dirige os seus fiéis nao sómente ño plano


espiritual, mas também no material, prescrevendo até o regime ali
mentar (estao proibidos o cha, o café, o fumo e as bebidas alcoóllcas).
Tal atitude é justificada nos seguintes termos pelo sexto Presidente
da- Igreja, José Smith, sobrinho-neto do fundador: «Urna religiáo que

— 302—
QUEM SAO OS MÓRMONS ?

nao pode salvar os homens no plano temporal, tornándoos prósperos


e felizes neste mundo, também nao é capaz de os salvar no plano espi
ritual, levando-os a vida futura». .
Note-se, por fim, que cada mórmoh iiel teñí a obrígacáo de con
tribuir com 20 % de suas rendas para a Igreja, além das horas de
trabalho que ele lhe dedica todas as semanas.

Procuremos agora formular sobre tais assuntos

3. Urna reflexao final

Os historiadores nao costumam por em dúvida a boa fé ou


a sinceridade de José Smith, fundador da Congregacjio Mormó-
nica; terá sido urna alma profundamente religiosa.
A obra, porém, de Smith se ressente de um defeito radical,
que contamina os seus principáis tragos : aparece qual mero
fruto da imaginagáo ou de um temperamento desequilibrado.

G.-H. Bousquet, escritor tido por autoridade no assunto, colabo


rando em urna enciclopedia que nao tem caráter religioso, alude a
Smith como «iluminado mitomaniaco, provavelmente ciclotimico» (Les
Mormons pág. 61, na colecáo «Que sais-je?*. Presses Universitaires de
France).
Bousquet chega a comparar Smith com Maomé, asseverando que
O Mormonismo e o Islamismo sao fenómenos análogos; constituem,
sim, manifestacSes psicológicas e sociais dentre as que periódicamente
no decorrer da historia vém a tona, exprimindo urna das grandes ca
racterísticas da alma humana, a saber: o désejo de possuir algo mais
do que a felicidade material, imediata,... o desejo de tocar urna rea-
lidade nova, transcendente, introduzida por visSes e revelacSes. Na
verdade, tanto o Mormonismo como o Islamismo
possuem seu código revelado: o Livro de Mórmon, o Coráo;
admitem que Deus tenha intervindo repetidas vézes na vida do
respectivo fundador;
constituirán! comunidades teocráticas, visando, por asslm dizer,
instaurar um Reino de Deus vtsivel aqui na térra;
consentiram na. poligamia;
«por ordem dé Deus» lancaram-se á conquista do mundo, recor-
rendo ou ás~ armas ou á pregacáo. O fato de que Smith nao tenha
encontrado a aceitacáo e o sucesso que Maomé conseguiu, deve-se ás
circunstancias do sáculo passado e do ambiente norte-americano em
que ele lancou a sua obra.

Em última análise, o Mormonismo exprime em termos exu


berantes e fantasistas a sede do paraíso ou da vida eterna que
todo homem possui em si, qualquer que seja a época ou a nacio-
nalidade a que pertenca. Infelizmente, porém, Smith traduziu
essa sede de maneira pouco sadia : construiu a sua obra sobre a

— 303 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 67/1963, gu. 7

.base de premissas táo arbitrarias e inconsistentes que: o Mormo-


nismo corno tal carece de autoridade. ,r
Contudo o ideal que no momento ele apregoa, e suficiente
para mover profundamente a alma humana; o título de «Santo
dos últimos Dias», a fungáo de arauto de urna mensagem nova
e mais perfeita para a humanidade, a sensagao de haver.desco-
berto um grande tesouro espiritual ou religioso, o ideal de pre-
. parar a vinda iminente do Reino de Deus sao elementos que
falam ao mais íntimo de todo ser humano, podendo provocar
mudanga de vida, entusiasmo, fervor, etc., que muito impres-
sionam a sociedade. „
Por isto, o cidadáo do sáculo XX, ao contemplar o fenómeno
do Mormonismo, nao tem motivo para se deixar atrair pelo con-
teúdo de sua doutrina (é algo de demasiado váo). Déj-antes,
atengáo ao significado geral désse fenómeno : é mais urna afir-
magáo, no decorrer da historia, de que o homem nao foi feito
para se contentar com a felicidade natural que os béns déste
mundo podem proporcionar. Ele tem, sim, a sede do Absoluto ou
de Deus, embora nem sempre acerté ao procurar o caminho
para chegar ao Reino de Deus.
Ao observar os mórmons, portante, o fiel católico apren
derá déles nao a doutrina, mas o fervor religioso; e renovará
seu zélo por viver em máxima fidelidade á genuína mensagem
do Evangelho, mensagem que de Cristo pelos Apostólos chegou
até nos sem interrupgáo, mensagem que por isto tem a garantía,
da autenticidade prometida pelo Senhor: «Estarei convosco
(convosco, Apostólos, e com os vossos sucessores) até a consu-
macáo dos sáculos» (Mt 28,20).

.-, >•:'"-- .• D. ESTÉVÁO BETTENCOURT O.S.B.


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