Vous êtes sur la page 1sur 45

Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
!'■"' visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.


Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Estévao Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO IX N« 107 NOVEMBRO
ÍNDICE
Ffig.

i. filosofía e religiao

1) "Podem-se indicar as causas do ateísmo contemporáneo?" 449

II. CIENCIA E RELIGIAO

S) "Um novo livro do Prof. Silva Mello : 'Ilusóes da Psi-


canálise'...
Que pensar ?" iS9

m. MORAL

S) "A Moral Católica rejeita o anticoncepcionismo em nome


da lei natural.
Que se entende por lei natural no caso ? Dizem que éste con-
ceito hoje em dia está superado" 408

IV. QUEST6ES SOCIAIS

4) "Como se explica a rebeliüo geral da juvenUide de hoje,


ocorrente nao sámente no Brasil, mas no mundo inteiro?" 474

V. VIDA MODERNA E RELÍGIAO

5) "Caminhamos para a jome negra. Em 1975, o Terceiro


Mundo estará a morrer por falta de alimentos. Por conseguinte,
é preciso limitar drásticamente a natalidade" 488

OOM APROVACAO ECLESIÁSTICA


PERGUNTE E RESPONDEREMOS »
Ano IX — N' 107 — Novembro de 1968

I. FILOSOFÍA E RELIGIÁO

1) «Podem-se indicar as causas do ateísmo contempo


ráneo ?»

Resumo da resposta: O ateísmo contemporáneo se deve a fató-


res derivados da vida moderna, como também a motivos de índole
religiosa.
Entre os íatdres de Índole nao religiosa, notam-se
o agugamento do senso crítico da humanidade. Ésse aguca-
mentó é motivado pelo progresso das ciencias «exatas» e da técnica,
pelos da psicología das profundidades, pela rápida circulacáo de idéias,
pelo pluralismo vigente ñas sociedades democráticas, pelo esíacela-
mento da familia e de suas tradigoes;
— a onda de emancipagáo que atinge os mais diversos setores
da vida moderna: emancipagáo política, económica, social, racial, inte
lectual e também... religiosa;
— a afirmacao da consciéncia comunitaria. Julgam muitos que,
para atender a seus deveres sociais, devem desdizer a Religiáo, que
seria «alienante»;
— a descoberta da historia. Esta gera o senso do relativismo,
que vai sendo aplicado á verdade, e á verdade religiosa;
— a dissipagáo da vida moderna.
Observa-se outrossim que a Religiáo mal apresentada e vivida
suscita descrenga e afastamento em muitos homens.
Ora quem reflete sobre o ateísmo verifica que nao se deriva de
urna certeza filosófica ou científica. O ateu nao tem a evidencia de
que Deus nao existe; ele é ateu por motivo de índole prática ou de
conveniencia. Ora essa posicao de «íé» (fe invertida) do ateismo é
menos humana e intelectual do que a crenca em Deus, pois o ateu
tem de recusar certas questaes de importancia capital para o homem:
donde vimos? para onde vamos? que sentido tem a morte? — Na
verdade, é difícil responder a estas perguntas sem admitir Deus.

Resposta: O ateísmo nao é um fenómeno espontáneo


ou natural na historia do género humano. É sempre urna ati-
tude pos-religiosa : supóe a Religiáo e constituí como que
urna réplica á mesma. É o que explana o artigo de <:P.R.»
92/1967, pág. 321.
Também a ateísmo contemporáneo se apresenta como fe
nómeno ocasionado por circunstancias próprias de nossos tem-

— 449 —
2 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 1

pos. Procuraremos abaixo enumerar as principáis dos fatóres


que, próxima ou remotamente, dát> lugar ao ateísmo. A seguir,
proporemos urna reflexáo sobre tal fenómeno.

1. Causas o*o ateísmo contemporáneo

A pesquisa das causas que geram o ateísmo de nossos


dias, é especialmente recomendada pelo Vaticano n :
«A Igreja tenta descobrir no pensamento dos ateus as causas
ocultas da negacáo de Dus, consciente da gravidade dos problemas
que o ateísmo levanta. E, guiada pela caridade para com todos os
homens, julga que ésses problemas devem ser submetidos a um seno
e mais aproíundado exame (Const. «Gaudium et Spes» n' 21, 2).

Os fatóres que originam ou fomentam o ateísmo em nos-


sos dias, podem ser compreendidos sob dois títulos: 1) fatóres
decorrentes da cultura e da civilizapáo contemporánea; 2) fa
tóres decorrentes da própria Religiáo.

A. Cultura moderna e ateísmo

Há inegávelmente estreita correlac.áo entre o ateísmo e


certas características da vida de nossos dias, como se poderá
depreender da exposigáo abaixo.
Em nossos tempos registra-se:

1} Um agucamento do senso crítico

O homem de hoje, sacudido por duas guerras mundiais


sucessivas, é, com razáo, exigente de autenticidade; tende a
«repensar» a civilizacáo e as antigás instituicóes, a fim de
se livrar de falsos principios ou falsos valores. O cidadáo do
séc. XX se senté adulto, quer evitar atitudes ingenuas ou
infantis, pede provas que o persuadam, rejeita o que nao seja
funcional...
Ésse espirito critico é, de modo especial, agucado por
certos elementos da vida moderna, como
a) o progresso das ciencias ditas «exatas» (a física, a
matemática...). O cultivo de tais ciencias pode levar o homem
a julgar que nao há certeza fora désses ramos do saber; os
principios e as conclusóes do saber humanista (filosofía, di-
reito, moral, religiáo...) podem, conseqüentemente, parecer
vagos e discutíveis, já que nao caem sob o regime da mate
mática. — Ora a Religiáo é, por si mesma, o contato com o
Misterio e o Transcendental; suas proposigóes nao sao irra-

— 450 —
«CAUSAS DO ATEÍSMO CONTEMPORÁNEO 3

donáis, mas também nao podem ser todas demonstradas pelas


ciencias exatas, pois ultrapassam o alcance destas. Daí a dis
tancia entre a mentalidade do homem moderno (que desde
seus primeiros anos vive numa civilizagáo cientificista, brin
cando com trens elétricos, mecanos, etc.) e a mentalidade re
ligiosa. Esta continua tendo seu pleno valor; todavía o homem
de hoje se lhe tornou, em grau maior ou menor, impermeável,
declinando fácilmente para o indiferentismo religioso e o
ateísmo.
Nos países marxistas, a propaganda atéia é sistemática
mente levada a efeito como se fósse servico prestado á «ideo-
logia científica» (tal é o nome do ateísmo naquelas regióes).

b) O progresso das ciencias psicológicas. A psicología


das profundidades cultivada por Freud levou-nos a descobrir
as riquezas e os recantos da alma humana ; certos tipos de
comportamento sao explicados como conseqüéncias de recal
ques e complexos... Ora muitos psicólogos e analistas moder
nos, a partir do próprio Freud, interpretan! a Religiáo pre
cisamente como resultado de um serio desvio psicológico ;
segundo o fundador da psicanálise, a Religiáo é urna grande
ilusáo que está fadada a se extinguir. Em conseqüéncia, mui
tos jovens e adultos se póem a duvidar da autenticidade de
suas atitudes religiosas, tendendo fácilmente a interpretá-las
como deformagóes de sua verdadeira personalidade.

c) O progresso da técnica proporciona ao homem mo


derno facilidades que lhe dáo a impressáo de poder dispensar
Deus e seu auxilio ; muitos dos favores que os povos outrora
pediam a Deus, o cidadáo contemporáneo os pode obter me
diante os recursos da técnica.

d) A rápida circulacáo do idcias, em nossos dias, favo


recida pelos meios de comunicagáo de massa, póe o homem
em contato com os mais diversos modos de pensar e viver
(no plano civil, nacional e no plano religioso), sugerindo-lhe
a relatividade dos varios pontos de vista. O ecletismo e ó
indiferentismo assim se instauram em lugar da verdadeira
fé religiosa.
Aqui nao se pode deixar de observar quáo grande é a
responsabilidade dos que dirigem a imprensa escrita e falada;
caso atendam ao sensacionalismo e ao lucro comercial mais
do que la difusáo da verdade, causam enorme daño ao público.
Éste daño é tanto mais ponderoso quanto se sabe que muitos
e muitos dos camponenses e cidadáos modernos nao recorrem

— 451 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 1

a outras fontes de informagáo fora do radio, da televi&áo,


dos jomáis e das revistas ilustradas.

e) O pluralismo vigente ñas sociedades democráticas


ocasiona a afirmagáo e propagagáo dos mais diferentes con-
ceitos e costumes ; o cidadáo, principalmente quando carece
de meios ou tetnpo para estudar, é constantemente interpe
lado por sentengas e opinióes contraditórias, que o desnor-
teiam, induzindo-o por vézes ao ceticismo parcial ou total no
tocante á Religiáo.
Com esta observagáo nao se quer negar a legitimidade
do pluralismo ou da existencia de diversas atitudes na socie-
dade. É preciso, porém, que cada cidadáo trate de averiguar
o que há de certo e erróneo em cada proposigáo que lhe é
transmitida ; caso nao o faga, arrisca-se a ceder á confusáo
o á descrenga.

f) O fim do regime de Cristandade. Por «Cristandade»


entende-se a civilizagáo inspirada pelo Cristianismo tanto em
suas instituigóes religiosas como em sua organizagáo civil. Ora,
a partir do século XVI, registra-se a laicizagáo crescente da
vida pública ; o Estado se separa da Igreja é governa como
se Deus e a Religiáo fóssem valores meramente relativos e
opcionais.
Com isto nao se quer dizer que, em nossos tempos, todo
e qualquer Govérno deva professar determinado Credo reli
gioso. É preciso, porém, que o Estado reconhega e favorega
a Religiáo e suas manifestagóes na vida dos súditos.

g) O esfacelamento da familia e de suas tradicocs. Moti


vos profissionais e económicos levam muitos trabalhadores a
emigrar de urna nacáo para outra, deixando seus familiares,
por tempo mais ou menos longo, na patria. Além disto, razóes
de ordem moral (adulterio, divorcio...) acarretam freqüen-
temente a dissolugáo dos lares. Ora a familia está intimamente
associada á Religiáo ; é no lar que esta comega a ser trans
mitida e vivida. Por isto, com a ruina da familia registra-se
também o abalo da Religiáo.
Estes diversos fatóres que integram a vida moderna, pro-
duzem inegávelmente o criticismo em relagáo aos valores in-
visíveis. Nao poucas pessoas falam conseqüentemente de urna
«desmitizagáo» da Religiáo, desmitizacáo que consiste nao
sómente em eliminar os mitos ou os conceitos religiosos in-
fantis e defeituosos que por vézes desfiguram a verdadeira
Religiáo, mas também em erradicar o próprio oonceito de Deus
e a Religiáo como se fóssem mitos.

— 452 —
«CAUSAS DO ATEÍSMO CONTEMPORÁNEO» 5

Consideremos agora outro fator (remoto ou indireto) do


ateísmo em nossos días.

2) A ofirmajóo da eonsciéntia personalista

Em nossos dias é cada vez mais realgada a dignidade da


pessoa humana, dignidade que se manifesta principalmente na
autonomía que compete ao ser humano.
O crescente desejo de autonomía leva a procurar eman-
cipagáo ou libertagáo... Na verdade, a época moderna vem
assistindo a urna serie de movimentos de emancipagáo :
a) emancipagáo política, que se manifesta na repulsa
do colonialismo e na ascensáo das nagces jovens do Terceiro
Mundo ;
b) emancipagáo económica: as classes trabalhadoras
procuram tornar-se mais e mais proprietárias ;
c) emancipacao social: a mulher vai adquirindo o lu
gar que ]he compete na sociedade, em antítese á posigáo
inferior a que era relegada : a mulher vota, a mulher estuda,
a mulher lidera. — Também os jovens tendem á emancipagáo;
d) emancipagáo racial: os homens de cor procuram
dissipar qualquer preconceito racial;
e) emancipado intelectual: reivindica-se hoje em dia
a liberdade de pensamento e de expressáo.
Nesta serie de movimentos «emancipacionistas», coloca-se
também a emancipagáo religiosa. A Religiáo vem a ser con
siderada por muitos como tutela, tutela a ser rejeitada por
urna humanidade «adulta».

Na verdade, a ReligiSo é a elevagao do homem a Deus. Ora


«servir a Deus é reinar», é consecugáo da verdadeira soberanía e
liberdade!

Muitos chegam a julgar que negar a Deus é condigáo


necessária para que se salve ou promova a pessoa humana ;
Deus seria obstáculo ao progresso. Quanto menos o homem
fór religioso, dizem, tanto mais será homem.

Sao palavras de Sartre :

«Se Deus existe, o homem é o nada. Se o homem existe, Deus


nao existe» («Le Diable et le Bon Dieu»),
«Ser homem é tender a ser Deus... O homem é fundamental
mente desejo de ser Deus» («I/Étre et le Néant», pág. 334 e 653).

— 453 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 1

Anteriormente dizia Nietzsche:


«Todos os deuses estto mortos, queremos agora que viva o
Super-Homem» («Assim falou Zaratustra»).

3) A ofirmasóo da consciéncta comunitaria

Registra-se no mundo um processo de socializagáo eres-


cente. Ésse processo desperta nos homens o senso da historia
e dos deveres que lhes cabem no decorrer dos sáculos; o hori
zonte dos individuos e dos povos se dilata cada vez mais, no
tempo e no espago.
Ora a descoberta dessa dimensáo horizontal da existencia
e das tarefas que ela implica, parece a nao poucos homens
estar em confuto com o ideal religioso. A Religiáo é tida
como «alienante» ou como fator que trava o dinamismo das
sociedades e da historia. Sao conhecidas as frases dos grandes
mentores do comunismo, das quais vai aqui destacada a se-
guinte, devida a Lenine:

«A religiáo, bergando na esperanca de urna recompensa celeste o


homem que sofre a vida inteira na miseria, ensina-lhe a paciencia e
a resignagáo. Quanto aqueles que vivem do trabalho alheio, ensina-
-lhes a praticar a beneficencia neste mundo, oferecendolhes assim
urna fácil justificativa da sua existencia de exploradores, vendendo-
-lhes a prego barato bilhetes de participagáo na felicidade celeste. A
religiáo é o opio do povo; a religiáo é urna especie grosseira de água-
-ardente espiritual, na qual os escravos do capital afogam o seu ser
humano e as suas justas reivindicagoes em favor de urna existencia
digna do homem».

Palavras análogas encontram-se ñas obras de Karl Marx


e dos marxistas contemporáneos.

4) A descoberta da historia

A partir de Darwin, os homens tém mais e mais a cons-


ciéncia do fator «evolugáo» e de seu significado ; as ciencias
empíricas manifestam cada vez mais as mudangas e transfor-
magóes por que tém passado, passam e passaráo o género
humano e as realidades sensiveis.
«Tudo muda!» Esta verificagáo sugere relativismo. Em
vista disto, muitos perguntam se a própria verdade nao está
sujeita a mudanga ou se ainda existe própriamente verdade
nos setores da filosofía e da Religiáo. A Religiáo com suas
«verdades» nao seria algo de contingente, algo de associado
a formas de cultura e civilizagáo já ultrapassadas ? Respon-

— 454 —
«CAUSAS DO ATEÍSMO CONTEMPORÁNEO» 7

dendo positivamente a estas dúvidas, nao poucos homens ade-


rem ao indiferentismo religioso e ao ateísmo.

5) A dissipajño da vida moderna

A civilizacáo contemporánea é, evidentemente, dissipante:


é a civilizagáo do barulho e da pressa. As grandes aglomeragoes
urbanas dificultam ao homem o encontró consigo mesmo no
silencio e na solidáo; o cidadáo, vivendo em apartamentos e
escritorios, vai perdendo o contato com a natureza; os meios
de comunicagáo de massa (radio, televisáo...) interpelam con
tinuamente a pessoa, queira-o ou nao. Enfim divertimientos e
solicitagóes se multiplicam, tornando a vida variada e atraente.
Ora éste quadro geral tem sua repercussáo na orientagáo
religiosa dos homens: diminui-lhes as possibilidades de se
recolher, ler ou estudar, justamente num periodo da historia
em que o senso. critico se torna mais exigente (exigente de
maior reflexáo). Os valores transitorios assim tendem a po
larizar a atengáo dos homens, o que favorece o agnosticismo.
As características de civilizagáo que acabam de ser apon-
tadas, verificam-se principalmente no mundo ocidental. Elas
tendem, porém, a recobrir a térra inteira, de sorte que tam-
bém no Oriente — cuja populagáo é profundamente religiosa —
a indiferenga e a descrenga se váo implantando.
Resta agora examinar outra categoría de elementos que
favorecem o moderno ateísmo.

B. Religióo depauperada e ateísmo

Observa o Concilio do Vaticano II:


«O ateísmo, considerado em seu conjunto, nao tem a sua origem
em si mesmo; é, antes, originado por causas diversas, entre as quais
se enumera urna .reagáo critica contra as religioes e, em algumas
regi5es, sobretudo contra a religlSo crista. Por esta razáo, na génese
do ateísmo, grande parte podem ter os crentes, na medida em que.
negllgenciando a educacáo de sua íé, ou usando de íalaz exposigáo
da doutrlna, ou cometendo faltas na sua vida religiosa, moral e so
cial, se poderia dizer que mais escondem do que manifestam a face
genuina de Deus e da religiáo» (Const. «Gaudium et Spes» n' 19, 3).
É certo que os homens tendem a julgar Deus e a Religiáo pela
apresentagáo que de tais valores prop5em os homens ditos «reli
giosos». Ora o Cristianismo, nos séculos XVIII e XIX, ressentiu-se
profundamente da influencia daninha de correntes de pensamento
heterogéneas: o racionalismo de Kant e outros autores, o positivismo
de Comte, o jansenismo, a mentalidade barroca com sua piedade
exuberante, mas carente de teologia profunda...
Pode-se admitir que, nao dando lúcido testemunho de sua fé, os
cristSos tenham decepcionado seus semelhantes, induzindo-os á indi-
ferenca (talvez nao seja fácil ao homem crer que a verdnde continua

— 455 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 1

a ser verdade. mesmo quando seus adeptos nao a traduzem devida-


mente).
A propósito se enoontram ulteriores consideragoes em «P.R.»
92/1967, pág. 326-9.

Passemos agora a urna

2. Reflexóo sobre o «teísmo

Os estudiosos verificam que o ateísmo contemporáneo nao


é o resultado de urna pesquisa ou de um estudo do problema
de Deus, mas é simplesmente urna opcáo. Em outros termos:
quem afirma que Deus nao existe, nao o diz porque tenha
certeza do que assevera, mas simplesmente porque escolheu
dizé-lo. O ateu moderno nao se interessa pelas questóes ati
nentes a Deus e 'á Religiáo ; nao examina provas da existencia
ou náo-existéncia de Deus ; mas simplesmente opta por nao
crer em Deus. Sua posigáo nao se deriva de urna clareza inte
lectual adquirida por raciocinios, mas se baseia apenas na
livre recusa de admitir Deus.
Há quem diga que a explicagáo do universo dada pela
ciencia nos liberta da existencia de Deus. Pois bem ; o ateu
aceita esta afirmagáo sem cuidar de a averiguar.

«A pretensüo, sustentada pelo ateísmo moderno, de ser o resul


tado da ciencia serve para mascarar o incontestável fato histórico
de que o ateísmo se deriva de um protesto de Índole irracional, pro
testo para o qual as razóes objetivas sao de importancia secundaria.
A luz da psicología moderna, devemos asseverar que ésse protesto
ocorre por motivos, ao mesmo tempo, conscientes e inconscientes, e
que as aparatosas razóes cientificas que o ateu aduz, servem para
mascarar a si e aos outros a realidade dos fatos» (Siegmumd, «Storia
e diagnosi dell'ateismo moderno», tr. it., 1961, pág. 534).

Observa o Pe. Inácio Lepp, que durante longos anos ade-


riu ao marxismo :

«Poucos sao os incrédulos de hoje, principalmente entre as pes-


soas cultas, que o sejam por motivos rigorosamente racionáis. Os
argumentos racionalistas contra a religiáo geralmente nao tém valor
para o ateu senáo porque o ateu tem razóes de ordem existencial
para nao crer» («Psychanalyse de l'athéisme moderne» .París, 1961,
19s).

Por sua vez, escreve Verneau :

«O ateísmo contemporáneo nao é tanto a negacáo de Deus quanto


a recusa de crer néle... A negacáo é urna tomada de posicáo obje
tiva; a recusa é puramente subjetiva. O ateísmo, em nossos días,
nao é urna posigüo tomada pelo espirito ou... pela i-azao enquanto

— 456 —
«CAUSAS DO ATEÍSMO CONTEMPORÁNEO» 9

tende para a verdade, como seria o juizo 'Deus ¡nao existe'. Éste juízo
seria de índole metafísica; ora o que caracteriza a mentalidade da
nossa geragáo... é a recusa de entrar nessa ordem de consideragóes,
ñas quais a razáo supera o plano da experiencia... do fenómeno, e
afirma por via lógica a existencia do transcendental...
Mas, se o ateísmo nao se nos apresenta como urna verdade meta
física, entao que é? Urna escolha, consciente e deliberada, a respeito
do bem ou do último fim do homem ou, em última aníilise, a respeito
do próprio Jiomem. O ateu nao quer crer em Deus para poder crer
no homem; recusa-se a admitir a existencia de Deus para que o
homem possa existir ou, como se diz, sair do seu estado de alienagao,
libertarse psicológicamente de todo sentimento de independencia,
afirmar-se como liberdade absoluta, fazer-se ou criar-se por si» (ci
tado por G. Girardi, «Riflessioni sull'ateismo». Roma 1967, pág. 62).

Na verdade, essa atitude do ateu equivale a ura ato de fé,


urna fé as avessas, cujo conteúdo nao é adesáo a Deus, mas,
ao contrario, urna tomada de posicáo contra Deus. Com efeito,
o ateísmo nao é algo de evidente, que se imponha ao raciocinio;
o ateísmo simplesmente nao é evidente, como também nao é
evidente por si a fé crista (com seus sagrados misterios). Isto,
de um lado, deveria levar os cristáos a compreender o ateísmo
dos ateus e, de outro lado, deveria impelir os ateus a «re
pensar» a sua incredulidade, desde que tomassem consciéncia
de estar aderindo a algo de que nao tém evidencia. «O ateísmo
é urna fé... A incredulidade é, antes do mais, urna crenca»
(Henry, «L'athéisme d'aujourd'hui», em «L'athéisme, tentation
du monde, réveil des chrétiens ?». París 1963, pág. 37s).
Ora a «fé» (ou a posicáo) dos que nao créem em Deus,
é artificial e pouco humana. Muito mais razoável é a atitude
dos que admitem Deus, pois se toma difícil, se nao impossível,
admitir que o universo e o homem se expliquem sem um Ser
Infinito e Transcendente. Com efeito, muitos ateus, para sus
tentar o seu ateísmo, fecham os olhos a certas questóes, como
as que dizem respeito á origem do mundo, do homem, a morte
e ao sentido geral da existencia humana ; julgam que tais
questóes nao devem ser colocadas, pois implicam «ficeóes»
absurdas.
Eis, por exemplo, como, desde Lucrecio (f 55 a.C.) até
Sartre e Simone de Beauvoir, há quem procure afastar qual-
quer reflexáo sobre a morte :

«Enquanto existimos, a morte nao está presente; e, desde que a


marte se torna presente nao mais existimos. A morte, portante
nada é, .nem para os vivos, nem para os mortos, pois, para aqueles
que sao, ela nao é, e aqueles para quem ela é nao sao mais» (Lu
crecio, citado por Roger Mehl em «Le vieillissement et la mort»,
P.U.F., 1956).

— 457 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 1

Nesse «raciocinio» há um sofisma, pois na verdade a


morte nos está sempre presente, sempre impregnada e atuante
no ser humano desde que ele nasce. Impóe-se, pois, a todo
homem a reflexáo sobre a morte ou sobre o «donde» e o
«para onde» vamos ; sem clareza nestes pontos, o homem difí
cilmente se realiza.
O episcopado polonés, em carta pastoral coletiva de
15/VI/67, propós as seguintes consideragóes sobre o assunto:

«O ateísmo se coloca falsamente contra a experiencia milenar


de todo o género humano. Ontem, como hoje, o homem é instintiva
mente levado a reconhecer a existencia de Deus. É o que se verifica
nao sómente nos povos primitivos que sobreviveram até nossos dias,
mas também ñas nacóes mais evoluidas. Essa unanimidade universal
dos povos fica sendo um íato irrefutavel e atesta que o ateísmo está
em desacordó com a natureza humana.
O Concilio nos ensina que o ateísmo 'faz o homem decair da sua
nobreza nativa'. Deus criou o homem inteligente e livre, mas princi
palmente 'como filho Ele o chamou á sua intimidade e ao consorcio
da sua própria felicidade' (Const. «Gaudium et Spes» 21). A negac&o
da existencia de Deus separa o homem da fonte dos mais profundos
valores humanos.
Numa palavra, o ateísmo é contra o homem. O Papa Joáo XXIII.
de santa memoria, bem o afirmou numa de suas encíclicas: 'O homem
separado de Deus torna-se terrtvel para si mesmo e para seus irmáos
(ene. «Mater et Magistra'» 4,1).
O ateísmo deixa sem resposta as questOes mais angustiantes que
todo homem deve enfrentar: o sentido da vida, o sentido do sofri-
mento e da marte. 'Assim muit&s vézes os homens mergulham no
desespero. So Deus Ihes pode responder de maneira cabal e irre-
cusável, file que nos convida a urna reflex&o mais profunda e a urna
procura mais humilde' (Const. 'Gaudium et Spes' 21)» («La Documen-
tation Catholique» n" 1512, 3/III/68, col. 422).

Estas observagSes feitas ao ateísmo estáo longe de signi


ficar que se devam distanciar cristáos e ateus, ignorando-se
ou hostilizando-se mutuamente. O cristáo deverá sempre dis
tinguir entre o ateísmo e os ateus; rejeitará aquile, e amará
sinceramente a estes, mantendo-se aberto ao diálogo com todos
os homens.
Sobre a genuína atitude dos cristáos frente ao ateísmo,
haverá um artigo no seguinte fascículo de «P.R.».

Pequeña bibliografía:
Georg Siegmund. «O ateísmo moderno. Historia e psicanálise».
Edic6es Loyola. Sao Paulo 1966.
Giulio Girardi, «L'Ateísmo contemporáneo». Roma 196)8.
Cornelio Fabro, «God in exile». Glen Rock 1968.
Paúl Haubtmann, «Foi et athéisme». Toulouse 1968.
Varios «L'Athéisme, tentation du monde, réveil des chétiens?»
París 1963).
J. Javaux, «Prouver Dieu?». Desclée 1967.

— 458 —
«ILUSÓES DA PSICAMALISE» 11

II. CIENCIA E RELIGIAO

2) «Um novo livro do Prof. Silva Mello: 'Ilusoes da Psi-


canáliso'... Que pensar ?»

Resumo da resposta: O livro de Silva Mello apresenta seus as


pectos positivos: valoriza a influencia do psíquico no somático, mani
festando através de numerosos exemplos — que revelam notável
experiencia médica —, a acáo de fatóres inconscientes, sugestdes e
pretextos, no comportamento da pessoa. £ desta base que parte a
psicanálise freudiana. — Silva Mello, porém, recusa o dogmatismo
de Freud: embora reconheca os méritos do médico vienense, julga
que suas teses nao sao irreformáveis, pois as profundidades da alma
humana sao tais que nao se podem sempre enquadrar dentro das cate
gorías de Freud. Os psicamalistas dissidentes, como Jung, Stekel,
Dreikurs, bem evidcnciam como a psicanálise ainda está k procura
de teses definitivas. Ao süblinhar tais fatos, Silva Mello presta
grande servigo ao público brasileiro. Com muito acertó, o autor cha
ma a a tenca o para o abuso de remedios em nossos dias; o homem
moderno é, por vézes, excessivamente preocupado com doencas e
medicamentos — o que cancorre para prejudicar a saúde fisica e
psíquica de muitas pessoas.
O aspecto negativo do livro de Silva Mello consiste no seu mate
rialismo: o homem nao seria mais do que um ser regido pelas lejs
da biologia, ou seja, por instintos cegos, á semelhanca dos demais
animáis. O pensamento, a filosofía, a moral deveriam acomodar-se á
biologia, em vez de tentar orientar e dirigir os apetites da matureza.
Segundo o autor, a infelicidade do homem moderno está, em grande
parte no fato de ter procurado construir urna filosofía repressora dos
instintos, dando á inteligencia a primazia sobre os sentidos. Ao afir
mar isto, Silva Mello diverge de Freud, mas erróneamente.
Na verdade, o homem é um ser essencialmente racional, dotado
de alma ¡material, cujas aspiracSes se dirigem para a Verdade, a
Beleza, o Infinito! segundo tais aspirag5es deve ele .nortear sua vida,
para poder encontrar realmente a felicidade. Quem faz dos instintos
cegos o criterio de sua conduta, nao pode deixar de se sufocar. Dai
a reserva com que há de ser lido o livro de Silva Mello.

Resposta: O Prof. A. da Silva Mello costuma tomar


posigóes francas, em livros grossos, ricos em cultura geral,
fartos em estudos e experiencias de um pesquisador de longa
carreira. Suas obras impressionam o público ledor, obrigan-
do-o a pensar. Tal é o caso, sem dúvida, do volume «Ilusóes
da Psicanálise» (535 páginas), publicado em 1967 pela «Civi-
lizagáo Brasileira».

Procuraremos propor abaixo o oonteúdo da obra; ao que


se seguiráo algumas reflexóes sugeridas pela leitura da mesma.

— 459 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968. qu. 2

1. «Ilusoes da Piscanálíse»

1. O Prof. A. da Silva Mello formou-se em medicina na


Universidade de Berlim anteriormente á primeira guerra mun
dial (1914-18). Muito viajou pela Europa em estudos aprofun-
dados, publicando diversos trabalhos científicos de repercussáo.

Desde cedo interessou-se pela psicanálise, recém-apregoada por


Freud. Estéve em Viena, tomando contato direto oom representantes
das diversas correntes psicanáliticas. Tornou-se especialmente amigo
do Dr. W. Stekel, freudiano dissidente, de modo a obter a vinda déste
dentista ao Rio de Janeiro;, durante quatro meses, os Drs. Silva
Mello e Stekel conviveram e trabalharam no Brasil, ejitregando-se á
clínica e a reflexóes sobre suas experiénicas médicas.
Mais tarde, o Dr. Silva Mello teve por colaborador no Brasil outro
grande analista, R. Dreikurs, com o qual organizou cursos na Santa
Casa do Rio de Janeiro.

O insigne médico brasileiro adquiriu assim vastos conhe-


cimentos, teóricos e práticos, da psicanálise. Na base désse
rico cabedal, quis escrever suas reflexóes sobre a-nova ciencia
no volume «Ilusoes da Psicanálise».
O livro, embora grosso, lé-se com facilidade, poisy^stá
redigido em estilo claro (o autor é membro da Academia Bra-
sileira de Letras). Apresenta numerosos casos concretos e in-
teressantes, ocorridos na carreira de um médico muito expe
rimentado, casos á margem dos quais o autor vai expondo
suas concepcóes sobre o homem, a vida, a historia geral. Con
siderando os grandes problemas com que se defronta a huma-
nidade contemporánea, Silva Mello propóe o que ele julga ser
os principios das respectivas solucóes. O escritor sabe ser sa
tírico, nao poupando Freud, outros cientistas, os valores reli
giosos, costumes da civilizacáo antiga ou contemporánea (cf.
pág. 387, por exemplo).

2. O título «Ilusoes da Psicanálise» já diz algo do con-


teúdo do livro. O autor tem em vista Freud.. . ; julgando-o
iludido por ter pretendido atribuir valor peremptório ás suas
teses e hipóteses referentes á psicología das profundidades.
Silva Mello reconhece, sem dúvida, os ¡mensos beneficios
trazidos á medicina pela consideragáo do fundo psíquico de
numerosos estados patológicos. Lembra que outrora a me
dicina via ñas molestias do organismo fenómenos , antes do
mais, bioquímicos; era, pois, frustrada em nao poucos de seus
diagnósticos. Por conseguinte, segundo Silva Mello, deve-se
estimar a valiosa contribuicáo aduzida por Freud ao penetrar
no fundo da «psique» humana, a fim de ai descobrir as possí-

— 460 —
«ILUS6ES DA PSICANÁLISE»

veis razóes dos comportamentos patológicos. Silva Mello, alias,


exemplifica, com notável profusáo, a influencia do «psíquico»
no «somático» do homem; evidencia claramente a importan
cia do inconsciente ou do subconsciente no comportamento de
todo individuo ; valoriza assim as teses da parapsicología (que
ele, de resto, nao menciona explícitamente).
Todavía Silva Mello julga que as afirmagóes de Freud
sao algo de relativo e, em parte, reformável. As virtualidades
e profundidades da alma humana parecem-lhe ser vastas de-
mais para se enquadrar sempre dentro dos postulados da orto
doxia freudiana. Alias, Silva Mello nao é contrario apenas ao
dogmatismo de Freud; opóe-se, de modo geral, a toda atitude
de pensamento que pretenda ser definitiva. Dir-se-ia que o
autor é genuino representante do que se chama «o livre pen
samento»; parece renunciar a principios filosóficos perenes,
para se prender táo-sómente ao que a experiencia lhe vai
revelando. Nesta perspectiva, rejeita também toda e qualquer
atitude religiosa ; de acordó com sua obra anterior «Religiáo
— Pros e Contras», escarnece implacávelmente a crenga em
Deus, na alma, na vida postuma, etc.; na melhor das hipó-
teses, veria na religiáo urna forma de sugestionamento, válida
talvez para consolar pessoas de formagáo fraca e simples, in
capaz, porém, de satisfazer as aspiragóes do homem moderno.
O brado de liberdade que se afirma no livre pensamento
de Silva Mello, estende-se ainda a outro setor: o escritor pre
coniza (opondo-se conscientemente a Freud) liberdade para
os instintos do homem. O fundador da Psicanálise teria errado
por haver asseverado que nao pode haver civilizagáo nem
ordem social sem controle dos desejos sexuais por parte da
razáo. Silva Mello afirma, ao contrario, que é a repressáo da
razáo que desfigura ou destrói o ser humano, tornando-o infe
liz como sempre foi através dos séculos. As leis primarias do
ser humano sao as da biología ; é segundo seus apetites na-
turais e, em particular, conforme os desejos sexuais, que o
homem se deve reger. Faga, pois, a razáo um programa de
vida plenamente consentáneo com os instintos naturais, em
vez de pretender dominá-los ; a religiáo, as leis sociais, a po
lítica tradiconal, procurando subordinar os instintos á mente,
deformaram a sociedade. A felicidade do futuro, por conse-
guinté, há de ser construida sobre a base dos apetites biológicos.
É preciso «primeiramente viver, depois filosofar» !
Eis as palavras do Prof. Silva Mello :

«Nao se pode estar de acordó com a afirmativa de Freud, quando


admite que a civilizacáo deixaria de existir, caso íizesse o homem

— 461 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 2

tudo que .Ihe agrada. Há nisso um exagero absurdo, porque, afinal,


o homem nao é um criminoso que só procura o mal e a destruicáo.
Ésse pensamento é por demais consciente, tendo sido explorado ate
em direcáo íilosóíica. Mas deve estar completamente errado, porque
o que comandam os instintos é muito diferente, sendo éles que tém
permitido a vida e a felicidade do homem e dos animáis. Sao os
instintos que precisam ser levados em oonsideracáo, devendo ser cal
cadas sobre éles as exigencias da nossa existencia. Tem sido ésse o
principal leitmotiv de diversos dos nossos trabalhos, expostos sob
variadas modalidades. O ditado 'primeiramente viver, depois filosofar
encontrase quase invertido, pois estamos procurando guiar a nossa
vida, pelo pensamento, apesar de o pensamento nao ser senao urna
das manifestares da vida, urna das mais tardias e, certamente, das
que se tém tornado mais artificiáis» (ob. cit., pág. 515s).
«É na natureza que devem ser encontrados os imperativos cate
góricos que canduzem a nossa existencia, aqueles mesmos que nSo
podem deixar de ter procedencia animal. A Biología é que deve
explicar e determinar a nossa existencia, devendo ela própria estar
de acordó com a Física do Universo, dadas as profundas aproximares
existentes entre ela e a Biología» (ob. cit. pág. 518).

Estas consideracóes se encontram no final do livro «Ilu-


sóes da Psicanálise», representando a maneira como o Prof.
Silva Mello intenciona remediar o problema do homem mo
derno, ... problema assim formulado :

«O que se tem tornado evidente, é que o homem se encontra


perdido dentro do mundo, nao havendo néle encontrado o seu verda
deiro lugar, sobretudo devido a sua maneira de pensar» (ob. cit.,
pág. 514).

Eis em suma as grandes linhas do novo livro de Silva


Mello. A obra é volumosa, porque o autor se repete freqüen-
temente e apresenta múltiplos casos de sua longa carreira de
médico.
A propósito de sua prolixidade, diz o autor a pag. 232,
abrindo o seu capítulo décimo quinto :

«Depois das explanacoes dos capítulos anteriores, talvez por de


mais numerosas e variadas, é provável que algum leitor as acné
descabidas e injustificadas num trabaUra que se prop3e estudar ilu-
sóes da Psicanálise. No entanto, foi isso do plano do autor, que assim
aproveitou muito do material que já publicara, visando a outras
finalidades. Desta vez, porém, todo ésse material se funde, se en-
quadra se engrena para corroborar a tese que dá titulo ao presente
livro As pedras e os tijolos sao os mesmos, mas o seu arranjo, a
sua disposicáo deram urna construcáo diferente, de outra significacáo».
Por éonseguinte, o autor nao mediu palavras e frases
para dizer o que pensava.
Á página 302, o Prof. Silva Mello conta algo da genese do
seU livro :

~- 462 —
«ILUSÓES DA PSICANALISE» 15

«Trabalho desagradável, irritante, quase de desesperar, pois es-


tava organizando éste livro sobre Ilusóes da Psieanálise e selecionava
e oortava grande número de artigos sobre o assunlo, já por mim
publicados na 'Revista Brasileira de Medicina'. Grande confusáo pela
mistura dos ¡recortes, muitos dos quais nao engrenavam, nao conse-
guindo eu acertá-los. Sentia-me quase em desespero! Havia dormido
a sesta depois do almdco e em seguida trabalhado até o jantar, ás
8 e meia. Depois de outras leituras, voltei á banca pelas 11 horas,
prosseguindo até muito tarde da noite sem conseguir acertar senáo
um ou outro dos fragmentos. Nao olhei o relógio, como faco nessas
ocasi6es, a fim de nao me dar oonta do tempo e impressionar-me por
dormir pouco. Mas entáo está sempre a noite muito avangada...».

2. Algumas reflexoes

Inegávelmente o livro «Ilusóes da Psicanálise» apresenta


os seus aspectos positivos.

1) Aspectos positivos

a) O prof. Silva Mello sabe valorizar com grande auto-


ridade o estudo dos fenómenos inconscientes que motivam nao
raras vézes a oonduta humana; acentúa muito acertadamente
o caráter psicossomático da genuína medicina. Dentro desta
perspectiva, reconhece justamente os méritos de Sigismundo
Freud.
O leitor será grato a Silva Mello por ter posto a dispo-
sigáo do público táo numerosos exemplós concretos e tantas
experiencias médicas, vividas pelo próprio autor ou colhidos
em vasta bibliografía. Nao sómente o material colecionado,
mas também a maneira simples de o apresentar, agradam ;
Silva Mello sabe conversar com o seu leitor (contanto que éste
tenha um pouco de paciencia, pois o Professor sabe bater qua-
tro, cinco vézes na mesma tecla).
A título de exemplo de passagem muito válida e interes-
sante, seja, dentre outras, citada a seguinte:
«O corpo está de tal modo ligado a alma, as íungóes orgánicas
táo entrelazadas com as psíquicas que nao é justo toma-las separa
damente. O povo conhece essas ligacñes desde a mais longinqua
antigüidade e os bons médicos de todos os tempos nunca as igno-
raram. A linguagem humana encontra-se cheia de express5es dessa
natureza em todas as épocas e em todos os idiomas do mundo. Quando
entre nos, na giria. diz o individuo que anda abofado, com peso ou
pesado, corresponde isso a qualquer coisa de mais profundo, expri-
mindo urna representacao psicofísica do que lhe val no corpo ou na
alma» (pág. 25).

b) As consideracóes do livro sobre «Pretextopatías e


Pretextoterapias» sao igualmente oportunas: há, sem dúvida,

— 463 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 2

pessoas que se tornam doentes porque, no subconsciente, de-


sejam.evitar alguma tarefa incómoda; da mesma forma há
quem, por efeito de sugestóes conscientes ou inconscientes,
consiga libertar-se de um estado patológico.

«Na verdade, qualquer pretexto pode constituir motivacao para


a criagáo de urna eníermidade, assim como qualquer outro servir á
manobra terapéutica» (pág. 119).
«O que se vé comumehte, na verdade, é o doente servindo-se
de eníermidade para resolver situacdes de vida, para escapar de cir-
cinstáncias que nao é capaz de enfrentar ou resolver. Tudo pode servir
para se tornar ele alérgico ou asmático e tudo também servir para
remover tais perturbaeóes» (pág. 88).

c) Também muito digno de nota é o que diz Silva Mello


sobre a hipnose e o seu emprégo na cura de numerosos males;
a sugestáo apresentada pelo hipnotizador pode ser decisiva
para o paciente, como o comprovam os exemplos propostos
pelo escritor á pág. 88.
d) Merecem atencjio outrossim as advertencias do Dr.
Silva Mello sobre uso e abuso de remedios. O Professor acha
que a propaganda comercial torna o homem de nossos dias
excessivamente preocupado com doengas e seus respectivos me
dicamentos :

«O que há, na realidade, é um excesso de interésse e atengao


em torno das doengas, encontrando-se em quase todos os grandes
jomáis e revistas, assim como no radio e na televisáo, informac&es
médicas, ñas quais os leitores aprendem a conhecer enfermidades e
os seus síntomas, com os quais passam a ocupar-se e preocupar-se,
Hoje. sao numerosos os casos levados dirítamente ao consultorio
médico por noticias désse género. É mais urna fonte de angustias,
que se soma as múltiplas que complicam e dificultam a vida do ser
humano. Nao é por outra razáo que muitas molestias, sobretudo
do sistema .nervoso do aparelho circulatorio e do digestivo tém au
mentado de maneira impressionante. As nevroses estao dominando
a humanidade, havendo o número de psicanalistas crescido em pro-
porc6es extraordinarias, estando a criatura humana, cada vez mais,
sob o jugo de fatdres psicológicos, sociais, culturáis» (pág. 104s).
«Os sedativos, as pílulas, o álcool, as vitaminas, entram de tal
forma em cena que quase ninguém pode passar mais sem éles. Sao
homens e mulheres que, nao sabendo viver, procuram fugir da morte»
(pág. 106).

e) Quando Silva Mello tem em mira a psicanalise e suas


ilusóes, nao tece consideraeóes sobre as concepcóes de Freud,
tentando mostrar por que éste dentista se teria iludido ; o
ilustre académico brasileiro nao debate teses, ppis nao é dado
á filosofía.. . (outros adversarios de Freud discutem os prin
cipios e os arrazoados déste mestre, indo realmente ao fundo
dos problemas). O que irrita Silva Mello, é o esquematismo ou

— 464 —
«ILUSOES DA PSICANALISE» 17

a pretensáo la ortodoxia e ao absolutismo que ele atribui a


Freud ; o académico brasileiro tem consciéncia de que Freud
é urna etapa e nao o termo final ñas pesquisas da psicología
das profundidades.
Ora nao se pode compartilhar o antiintelectualismo de
Silva Mello, que cai necessariamente no empirismo superfical.
Todavía, deve-se dar razáo ao escritor, quando afirma que as
proposicóes de Freud sao reformáveis,... quando mostra cer-
tos inconvenientes da psicanálise (tratamentos prolongados e
caros, mas nem sempre necessários). Há pacientes que con-
fiam excessivamente na psicanálise e de bom grado se entre-
gam ao médico, quando talvez pudessem solucionar seu pro
blema com mais independencia, ou seja, mediante um pouco
de disciplina e autodominio.
Ademáis a psicanálise dita «ortodoxa» é, em parte, res-
ponsável pela difusáo de concepcóes filosóficas de todo erró
neas, como o pansexualismo e suas graves conseqüéncias, a
idéia de que nao há propiamente culpas moráis, mas apenas
complexos psicológicos, teorías educativas que exageram o
fator «liberdade»... E certo que os instintos da natureza
humana nao se reduzem simplesmente ao sexo. Por isto nao
se pode deixar de reconhecer o valor das restricóes de Silva
Mello a Psicanálise, embora éste autor nao compartilhe a
crítica que o Cristianismo costuma fazer á filosofía de Freud.
Contudo, ao lado de seccóes muitos positivas, o livro «Ilu-
sóes da Psicanálise» apresenta seus

2) Aspectos negativos

a) Distanciando-se de Freud, Silva Mello apregoa sim


plesmente a satisfagáo dos apetites naturais como condigáo
de felicidade. Tem o ser humano na conta de ser primeira-
mente biológico, equiparável, portante, aos outros animáis ; a
inteligencia no homem deveria reger-se pelas tendencias bio
lógicas (que sao cegas e puramente materiais, hedonistas) em
vez de iluminar e orientar os instintos da natureza animal.
Sao palavras do autor:

«Tem havido dificuldade para se reconhecer que a moral, a justiga,


a verdade tém fundo biológico natural, íazcvndo parte tanto dos atri
butos humanos quanto dos do animal» (pág 520).

Esta tese implica, por sua vez, grave ilusáo ; e isto, por
dois motivos :
— nao reconhece a existencia, no homem, de urna enti-
dade nao material, nao meramente biológica (no sentido das

— 465 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 2

ciencias naturais), mas espiritual, que é chamada a alma


humana, nao oriunda da materia e, por isto, destinada a so-
breviver á materia. Esta entidade, sendo mais nobre do que
a carne, tem aspiragóes a alegrías que sao superiores aos pra-
zeres da carne: a alegría de conhecer a verdade, a de tender
ao heroísmo, ao altruismo, ao Bem Infinito... Sao estas aspi
ragóes que devem nortear o comportamento humano, porque
sao características humanas; atendendo a elas é que a cria
tura racional pode esperar encontrar a saciedade ou a pleni-
tude da felicidade. Quanto aos apetites carnais, devem ser
subordinados á razáo, sem o que o homem se degrada e nunca
encontra a verdadeira alegría.
— De resto, a concessáo de plena liberdade ou satisfagáo
aos instintos carnais poderia levar ás conseqüéncias que Mar-
cuse professa em nossos días: revolta contra toda autoridade
e contra toda ordem social, como se o progresso e a civilizagáo
nao estivessem necesariamente fundamentados no dominio da
inteligencia sobre a carne.
Note-se mais: quando Silva Mello escreve (a pág. 514)
que é preciso «por a moral, a justiga, a estética de acordó com
a Biología» (o que nao tem acontecido, segundo o Professor),
requer-se urna distingáo:

Biología pode ser entendida como conjunto de leis que


regem a conservacáo e a reprodugáo da vida. Entáo é claro
que nao pode haver conflito entre a Moral e a Biología; a
Moral é arauto e tutora das leis da natureza.— Todavía, se
por Biología se entende o conjunto de instintos carnais e cegos
que o homem experimenta dentro de si,é claro que nao os
pode tomar como criterios de seu comportamento. Visto que
o homem possui urna razáo, é segundo a luz desta e nao na
cegueira dos instintos que há de caminhar.

A máxima «primeiramente viver, depois filosofar» significa que


o substrato da vida intelectiva é a vida vegetativa e sensitiva; com
efeito, sem alimentacáo e sem canhecimento sensitivo nao há racio
cinio; a alma humana foi íeita para viver no corpo. Disto, porém,
nao se segué que o pensamento deva estar subordinado aos instintos
biológicos, pois entáo se inverteria a ordem dos valores.

Apregoando livre expansáo para os apetites da carne,


Silva Mello supoe que a natureza humana seja espontánea
mente voltada para o bem, o que na realidade nao se dá, como
comprova sobejamente a experiencia. É utopia a teoría de
Rousseau, pois existem na criatura humana o egoísmo inato.
assim como o antagonismo de tendencias carnais e espirituais.
A propósito, cf. «P.R.» 97/1968, pág. 35.

— 466 —
«ILUSOES DA PSICANALISE» 19

b) É de lamentar que o Prof. Silva Mello nao tenha o


senso religioso. Se o tivesse, compreenderia melhor as causas
da angustia do homem moderno, que abandonou a Deus, e
perceberia mais claramente os principios de solugáo dessa crisé.
Muitas das críticas que o autor (como, alias, outros intelec-
tuais) faz á Religiáo, nao se dirigem á Religiáo auténticamente
concebida, mas, sim, a nogóes e expressoes degenerescentes da
Religiáo. — Esta, genuinamente entendida, é a mais nobre
manifestagáo da natureza humana, pois significa a adesáo ao
Supremo Bem. Na verdade, «servir a Deus é reinar».
Observe-se outrossim que a Religiáo nao é a expressáo
passageira de determinada fase da cultura humana; também
nao se identifica simplesmente com urna escola de morigera-
gáo ou higiene mental ou com um sistema de amedrontamento
ou policiamento, mas paira ácima de todos os valores contin
gentes que o homem possa oonhecer. Na verdade, sem Deus
nao é possível á criatura entender-se a si mesma e respeitar
a dignidade de sua natureza : «Tu nos fizeste para Ti, e in
quieto é o nosso coragáo enquanto nao repousa em Ti?, sao
palavras perenemente válidas de S. Agostinho.

A respeito do livro do Prof. Silva Mello «Religiáo — Pros e


Contras», veja-se «P.R.» 83/1964, pág. 467.

c) O onanismo e a masturbagáo seriam processos tera


péuticos aceitáveis, segundo o Prof. Silva Mello (cf. pág. 119).
Contra esta proposicáo levanta-se a voz da natureza humana:
as fungSes sexuais tém sua finalidade própria. O prazer Ihes
é anexo a fim de que o homem desempenhe mais fácilmente
o dever de perpetuar a sua especie; tal prazer nao é fim em
si mesmo, mas, ao contrario, está subordinado a um objetivo
preciso, sem o qual carece de justificativa.
Diz-se nao raro hoje em dia que a masturbagáo é ato
meramente biológico, destituido de significado moral. — Na
verdade, deve-se responder que a masturbagáo é, por si mesma,
algo de aberrante, que todo individuo há de procurar evitar ;
é possível, sem dúvida, manter a castidade, mesma nos anos
de adolescencia. A muitos, porém, isto pode parecer difícil
ou impossível, porque o ambiente os sugestiona erróneamente.
Se os educadores cuidassem de mostrar quanto a mastur
bagáo é aberrante, em vez de procurar legitimá-la, por certo
ela seria menos praticada. Daí resultariam enormes beneficios
para a juventude, pois a masturbagáo se pode tornar um
vicio obsessivo, causador de perturbagóes físicas e psíquicas.

— 467 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, gu. 3

Após éste breve balango, é natural se formulem votos


para que o público se beneficie de todos os pontos positivos
da recente obra de Silva Mello, sabendo nela distinguir o certo
do menos certo.

III. MORAL

3) «A Moral Católica rejeita o anticoncepcionismo em


nome da lei natural.
Que se entende por lei natural no' caso ? Dizem quo éste
conceito. hoje em dia está superado».

Resumo da rcsposta: Cada fun?ao do organismo tem sua fina-


lidade própria: como o pulmSo foi feito para respirar, assim a funcáo
sexual existe em vista da perpetuado da especie humana. É a essa
ordem de coisas que se dá o nome de lei natural (a qual, alias, tem
outras facetas, como os preceitos «Nao matar, nao roubar...»).
Certas funcaes, como a fungao sexual, tém anexo a si um prazer.
Éste deve facilitar o exercicio da respectiva fungáo; nao é fim, mas
elemento adventicio. Em conseqüéncia, vé-se que nao é licito esteri
lizar as fungoes sexuais a fim de se poder usuíruir apenas o deleite
respectivo. A vida sexual é, antes do mais, um servico.

A antropologia moderna recusa o caráter perene e transcendental


da antropologia clássica. Afirma que o homem é essencialmente
liberdade e responsabilidade; o homem se faz constantemente medi
ante seus atos livres. E nao há criterio para julgar o valor dos atos
humanos senao a consciéncia subjetiva do individuo; cada um é livre
para avaliar o bem e o mal de acordó com a situagáo em que se
encointra. Nao há normas perenes. — Ora tais conceitos depauperam
o homem tirando-lhe o seu caráter de ser aberto para o infinito,
chamado a dominar as situacñes e nao a ser dominado por elas.

Rcsposta: Explanaremos abaixo o clássico conceito de


lei natural, mostrando como pode servir de fundamento á re-
jeicáo do anticoncepcionismo. A seguir, consideraremos urna
tentativa moderna de reformar a nogáo de lei natural.

1. Lei natural e anticoncepcionismo

Quem observa a natureza ou, de maneira particular, o


funcionamento natural do ser humano, verifica que cada fun-
cáo do organismo tem sua respectiva finalidade: o pulmáo
foi feito para respirar; o estómago, para digerir; o ólho,
para ver... Cada um désses órgáos foi confeccionado em
vista de tal finalidade, e só se justifica em mira do seu objetivo

— 468 —
«leí natural e anticoncepcionismo» 21

natural. Também a fungáo nutritiva foi dada ao homem para


que conserve a sua vida. Paralelamente, a fungáo sexual existe
no homem a fim de que perpetué a sua especie mediante a
geracáo ; a finalidade objetiva da vida sexual é, naturalmente,
a geragáo da prole ou a procriagáo. A ordenacáo de cada
órgáo e de cada fungáo do organismo a urna finalidade objetiva
correspondente constitui o que se chama «a lei natural» (esta
tem ainda outras expressóes, como, por exemplo, os preceitos
moráis : «Nao matar, nao roubar, nao blasfemar...»).
A certas funcóes naturais está anexo um prazer ou deleite;
assim o ató de comer é geralmente agradável ao homem ; da
mesma forma, o consorcio sexual é deleitoso. Tal prazer, po-
rém, nao é a finalidade nem pode substituir a finalidade obje
tiva da fungáo respectiva. A natureza, sabia como é, anexou
tal deleite as fungóes mais importantes do homem (conserva-
cáo do individuo e cpnservagáo da especie, alimentacáo e pro-
criagáo), a fim de que tais funcóes sejam preenchidas com
mais facilidade e espontaneidade pelo homem.
Assim quem come, deve ter em vista nutrir-se; caso o faca
sómente para usufruir prazer, sem ter necessidade de se alimentar
(a historia refere que amigamente havia quem deglutisse e depois
lancasse íora o alimento), comete um ato evidentemente desregrado,
contra o qual se insurge o bom senso ou a consciéncia da lei na
tural embebida em todo homem. Da mesma forma, quem provoca
suas funcSes sexuais, a fim de ter mero deleite, excluindo a finalidade
natural dos órgáos genitais, pratica algo que suscita o protesto da lei
natural.

2. Todos os povos, cristáos e pagaos, até nossos dias


sempre reconheceram a existencia da lei natural, ou seja, de
urna ordenacáo incutida la natureza em vista do bem mesmo
da natureza. Tal ordenacáo nao depende da vontade humana;
é anterior a qualquer deliberacáo, pois se faz ouvir espontá
neamente na consciéncia de cada individuo. Foi o Autor do
homem ou o Criador quem imprimiu á natureza tal ordenacáo,
com seus variados preceitos, de tal sorte que ao homem nao
é lícito retocar a lei natural.
Vejamos alguns dos mais significativos depoimentos dos
antígos concernentes a lei natural:
a) Sao Paulo, na sua carta aos Romanos (2, 14-16), fala
dos pagaos, que nao conhecem a Lei de Moisés ; diz entáo que
«cumprem naturalmente o que a lei manda ; embora nao
possuam a lei, tornam-se lei para si mesmos. Mostram ter
gravadas em seus coracoes as prescricóes da lei». Nesta pas-
sagem, o Apostólo supóe claramente a existencia, em todos
os homens, de urna luz moral natural. Segundo o Apostólo, a

— 469 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 3

distingáo entre o bem e o mal é possivel tanto a um pagáo


quanto a um cristáo ; isto quer dizer que tal distingáo está
baseada na natureza das coisas e é perceptível á razáo humana
como tal.
Referindo-se ainda aos costumes depravados dos pagaos,
Sao Paulo menciona o pecado contra a natureza:

«Deus os entrcgou a paixSes infamantes. Suas mulheres troca-


ram as relagóes naturais por aquelas relacóes que sao contra a na.
tureza. Do mesmo modo, também os homens, abandonando o uso
natural da mulher, abrasaram-se em desejos uns para oom os outros,
homens praticando torpezas com homens» (Rom 1, 26s).

b) É muito importante o testemunho dos pagaos em


favor da lei natural.
Tais sao, por exemplo, os dizeres de Cicero:

«Há urna verdadeira lei, adequada á natureza, difundida em todos


os homens. constante, sempiterna... A essa, lei nao é licito íazer
oposicáo, mem derrogar em parte ou por completo. Nem podemos
ser dispensados dessa lei pelo Senado ou pelo povo. Nem se po'de
desejar expositor ou intérprete que se afaste dessa leL Tal lei tam
bém nao se diversifica em Roma e em Atenas, agora e depois, mas,
ao contrario, urna única lei sempiterna e imutável abrange todos os
povos e todos os tempos» (citado por Latáncio, em «Instituigóes
Divinas», 1. VI, c. VIH).

O mesmo Cicero continua :

«Essa lei nao é escrita, mas inata; nao a aprendemos nem a


recebemos ou lemos (na escola), mas, a partir da natureza mesma,
a depreendemos, tiramos e exprimimos. Para reconhecer essa lei, nao
recebemos alguma instrucao, mas íomos feitos; nao seguimos alguma
instituigáo. mas fomos imbuidos» («Pro Milone» IV 10).
«Vejo que esta foi a sentenca dos mais sabios: tal lei nao íoi
concebida por um homem poderoso, nem é alguma norma dos povos,
mas é algo de eterno» (citado por A. Molien, «Leis», em «Dictionnaire
de Théologie Catholique» IX 1, col. 880).

O filósofo Platáo (t 348 a.C), por mais inclinado que


fósse a atribuir direitos ao Estado, coloca as seguintes pala-
vras nos labios de Sócrates acusado por seus juízes :

«Se dissésseis: 'Sócrates, nos te absolvemos e despedimos, á con-


dicáo, porém, de que deixes de filosofar',... eu vos respondería sem
hesitar: 'Atenienses, eu vos honro e% vos amo; mas obedeceré! aos
deuses antes que a vos!'» («Apología de Sócrates»).

A mencáo de «deuses» nos labios de Sócrates nao significa


supersticáo nem idolatría, pois é notorio que Sócrates tinha
idéias religiosas muito elevadas. «Filosofar», no sentido de

— 470 —
«LEÍ NATURAL. E ANTICONCEPCIONISMO 23

Sócrates, significa «procurar conhecer e viver as virtudes


naturais».

As mesmas concepg5es se encontram ñas obras «República» e


«Górgias» de Platáo.

Sófocles (f 405 a.C.) reproduz idéntico pensamento na


sua pega «Antígone». A heroína Antigone é levada á presenga
de Creon, cujas ordens ela violara, dando sepultura a seu irmáo
Polinice ; disse entáo ao juiz:
«Nao julguei que texis editos, emanados de um mortal, tivessem
o poder de anular as leis nao escritas, mas imutávels, dos deuses.
Essas leis nao íoram promulgadas ontem, mas estao em vigor desde
todos os tempos e ninguém sabe quando foram dadas» («Antigone»,
w. 446-460).
Em «Édipo-Rei» escreve Sófocles: «Dessas leis, sómente o Olimpo
é o pai; nao íoi o homm quem as fez» (w. 863-871).

Tais afirmagóes mostram como, pela simples ausculta da


natureza, o homem é capaz de reconhecer a voz do Criador
que lhe fala pela consciéncia.
Consideremos agora mais detidamente as relacóes entre

2. Leí natural e vida sexual

1. O amor conjugal apresenta, entre outras, duas gran


des características :

1) é amor unitivo ou amor que tende a estabelecer a uniáo


entre os cónjuges. Tal uniao é, antes do mais, uniáo de eoragoes.
Todavía ela tende naturalmente a se tornar urna uniáo de corpos;
em tal caso,
2) o amor conjugal é também proorlador.

O amor entre esposos, portante, por sua própria natureza,


está ordenado á prole, de tal sorte que qualquer intervencáo
artificial nessa orientagáo vem a ser urna violacáo da natureza
ou da lei de Deus expressa pela natureza.
Em outros termos: sexo e vida sexual nao sao meros
meios de prazer individual para o ser humano, mas sao ins
trumentos de um servigo a ser prestado á comunidade. «Usar
do sexo» deve ser realmente um «servir á sociedade», perpe
tuando-a ou dando-lhe novos e eflcazes membros.
Estas afirmacóes nao querem dizer que os cónjuges devam
ter filhos indefinidamente. Ao contrario, é necessário praticar
a paternidade responsável, que saiba planejar a familia, de
modo a só procriar filhos quando haja condicóes para os educar
dignamente. Contudo o exercício dessa paternidade responsável

— 471 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 3

se fará nao mediante interferencia artifical no processo gene


rativo, mas, sim, mediante continencia sexual.

2. É muito importante o aspecto de servigo (o qual coin


cide com a fungáo biológica) que compete ao sexo. É ésse
aspecto que fornece normas objetivas para o uso do sexo. Caso
éste seja emancipado das leis da biología para se tornar ape
nas a expressáo do amor, pode-se dizer que entra em xeque
a própria virtude da castidade; nenhuma norma objetiva res
tará para orientar o comportamento sexual do homem e da
mulher. Éste será entáo norteado únicamente pelo conceito
de amor, conceito que fácilmente se torna algo de subjetivo
e cegó. A paixáo e o instinto poderáo entáo «legítimamente»
reger o comportamento sexual do homem e da mulher. Re-
pita-se, portante : «sexo» importa missáo e servigo, o que
quer dizer em última análise : sacrificio,... o sacrificio de
procriar ou o sacrificio de abster-se do sexo quando nao é
possível procriar. De resto, a experiencia ensina que em todo
servigo, em todo «sair de si para se dar a urna grande causa»
há profunda alegría, alegría que nao se encontra na procura
desvirtuada ou desenfreada do gozo.
Deve-se acrescentar que o amor pode perfeitamente sub
sistir mesmo quando nao há consorcio carnal, pois na yerdade
o amor humano procede de alma espiritual e nao está confi
nado aos limites do sexo ; em caso contrario, desde que nao
fósse possivel o consorcio camal entre os esposos, cessaria o
próprio amor conjugal.
As idéias até aqui propostas supóem o conceito clássico
de natureza humana e leí natural. Objeta-se-lhes, porém, que
éste conceito está hoje em dia sendo revisto. Examinemos entáo

3.. O novo conceito de natureza humana

1. Os fautores da nova tese opóem-se ao tradicional con


ceito de natureza humana definida, dotada de essencia imutável
e de aspiragóes perenes, aspiragóes segundo as quais se de-
vería nortear o comportamento do individuo.
Certos pensadores modernos opóem natureza e liberdade;
em nome da liberdade, recusam a nogáo de lei natural. Esta
lhes parece ser algo de meramente biológico, infra-humano.
A conseqüéncia destas idéias é que nao há lei decorrente da
natureza que seja válida em todos os tempos e lugares. É a
liberdade, com suas opgóes múltiplas e contraditórias, que ca
racteriza o homem.

— 472 —
«leí natural e anticoncepcionismo» 25

Em outros termos: a antropología moderna parte geral-


mente da premissa de que o homem é, antes do mais, libcrdade
ou afrimagáo livre, consciente e responsávei de si mesmo; desde
que um ato seja livre e responsávei, ele é plenamente humano
e digno. O homem se faz,... se faz em cada ato livre (con-
ceito existencialista); o homem nato é. E ésses atos livres de-
pendem da situagáo concreta em que o individuo se ache ; sao
as circunstancias precisas ñas quais a pe&soa se vé colocada,
que lhe indicam o que deve e o que nao deve fazer; o bem
e o mal éticos, portante, se depreendem de cada situacáo con
creta; sao conceitos mutáveis, como as situagóes sao mutáyeis.
Para mim, pode ser moralmente bom o que para meu vizinho
é moralmente mau ; para os homens de hoje pode ser lícito
e recomendável aquilo mesmo que para os de outrora era
condenável. A moral cai assim no relativismo e no subjetivismo.
No tocante ao uso dos anticoncepcionais, segue-se de tais
principios que é lícito ao homem recorrer a estes elementos
desde que o faga com literdade, visando atender ao seü ponto
de vista próprio. Nao é necessário que a pessoa se guie por
criterios ditos «perenes», derivados de leis «constantes» da
natureza; as normas da moral sexual «se fazem» de acordó
com cada situagáo em que se encontré o individuo, pois o
homem é a situagáb, é o seu ato livre.
2. A esta tese podem-se fazer algumas observagóes.

A nogáo clássica de natureza humana nao considera ape


nas os aspectos biológico e instintivo, nem pretende reduzir o
homem a um ser estático, destituido de dinamismo. Ao con
trario, a antropología tradicional afirma que,

de um lado, o homem se insere no mundo animal, compartí-


lhando as sortes, Jiecessidades e sujeigóes de todos os animáis;
de outro lado, porém, o homem possui a capacidade de emergir
ácima do mundo anima]; há néle um principio de independencia em
relacáo ao mundo material, pois o homem participa de outro mundo,
que é o mundo do espirito, mediante a sua alma racional.

Há, pois, no homem urna simbiose de animalidade (no


sentido genérico) e espiritualidade. Ora por seu espirito o
homem é livre e dinámico ; por seu espirito (ou por sua alma
espiritual) ele se abre para o Infinito ; toda a vida humana
vem a ser conseqüentemente urna tendencia em demanda de
um fim que dilata o homem e deve ser atingido progressiva-
mente ; tal fim é Deus.
Nao se pode dizer que a clássica antropología é estática,
ao passo que a moderna é evolutiva e dinámica. Também o

— 473 —
26 «FERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 4

oonceito tradicional é dinámico; ele se formula muito nítida


mente na máxima já mcutida pelos gregos : «Torna-te aquilo
que és». Éste principio sugere que o homem tem urna estru-
tura perene, mas embrionaria, estrutura que com grande ánimo
ele mais e mais deve procurar realizar ; é lutando e compro-
vando-se que o homem «se realiza», mesmo na clássica an
tropología.
Urna vez reconhecida a liberdade humana, com todo o
seu dinamismo, deve-se dizer que ela nao é um valor absoluto;
agir livremente nao é urna finalidade, mas é mero meio para
atingir urna meta ou um termo ideal. Em outras palavras:
é meio para que o homem se dirija a um fim que está fóra
déle e que é o Bem Infinito ou Deus, único termo capaz de
saciar as aspiragóes do ser humano.
Há, portanto, no homem algo de transcendental, pois ele ¡
só se realiza, só encontra saciedade entregando-se ao Infinito. '
Disto se segué que o homem nao foi feito para se deixar en- j
quadrar pelas situagóes em que se acha; ele as deve dominar i
com sua visáo do Infinito e suas aspiracóes transcendentais, ¡
em vez de se deixar dominar por elas. Toca ao homem passar
pelas situacóes configurando-as segundo suas idéias superio
res, em lugar de se deixar configurar por elas A liberdade é
precisamente a faculdade que a natureza deu ao homem para
dominar as situagóes em vista de seu verdadeiro fim que é
o Bem Infinito. Na antropología clássica, o homem é consi
derado maior do que as situagóes ; por isto as normas do
seu comportamento nao sao deduzidas de tais situagóes, mas,
sim, a partir de valores eternos e absolutos. Sao estes que
libertam realmente o homem dos limites das coisas transitorias.
Estas poucas reflexóes sao suficientes para mostrar como
a antropología dita evolutiva, em vez de engrandecer, depau
pera os conceitos de homem e natureza humana; ela os des
liga do Perene e Absoluto, colocando-os sob o signo da con
tingencia e da transitoriedade. Tal antropología, relativista ¡
como é, nao se concilia com a visáo crista do homem, segundo -
a qual há no íntimo de cada consciéncia o cunho e o apelo
do Eterno.

IV. QUESTÓES SOCIAIS


I
4) «Como se explica a reheliáo geral da juventude de
lioje, ocorrente nao somente no Brasil, mas no mundo mteiro?»
Resumo da resposta: A rebeliáo da juventude de 1968 se explica /
por ac&o
a/»3/\ de
Ha fatdres
fntArAe* múltiplos.
«m'liHnlnS '

— 474 —
«AS CAUSAS DA REBELIAO» 27

Os jovens de hoje tém de se preparar para a vida proíissional


mediante estudos e aprendizagem — coisa que outrora nao era
necessária, pois a técnica era relativamente exigua; os trabalhadores
aprendiam pela prática do seu oficio ou pelo empirismo. Também se
nota que outrora os jovens se casavam muito cedo; hoje em día,
ao contrario, nao se podem casar antes de ter uma base profissional
e financeira. — Ora esta situacáo causa Impaciencia na juventude
sujeita aos pais, aos mestres e á escola, a juventude se vé limitada
em seu raio de acáo; nao obstante, é entusiasta e ardorosa, desejando
participar na vida pública. Estas circunstancias levam os jovens a
querer aíirmar-se na sociedade, constituindo o «Poder Jovem».
Os mais velhos, conseqüentemente, se p5em em atitude de defesa
diante dos joveins — o que concorre para aumentar as distancias entre
jovens e velhos.
Nao se pode dizer que determinada ideología política esteja ins
pirando a rebeliáo da juventude. É, antes, o principio de cantestacáo
geral que os move; nao aceitam o que esteja estruturado e escle-
rosado; desejam liberdade para criar, reíazer, derrogando mesmo os
mais sagrados principios da filosofía e da moral. Uma ponta de anti-
intelectualismo faz que a juventude queira ceder á fantasía e á
imaginacáo mais do que é razáo. Nisso tudo se nota a forte influencia
de Herbert Marcuse.
Ora em tal quadro existem, sem dúvida, predicados valiosos entre
os jovens de hoje. Há, porém, pontos negativos, como o principio de
contestagSo geral, a espantaneldade exagerada, que nao respeitam
regras nem valores.
Aos adultos compete ter paciencia e espirito de compreensáo com
os jovens. Procurem dialogar, aproveitando tudo que a juventude
aprésente de bom e pondo em evidencia as lacunas da rebeliáo gene
ralizada. Trata-se de uma crise de crescimento. É de crer que, dentro
<3e alguns anos, os jovens venham a aceitar tranquilamente o estatuto
lúe lhns compete na sociedade contemporánea.
X

Besposta: A resposta a esta questáo utilizará idéias


apresentadas pelo Prof. André Berge, famoso educador fran
cés, em palestra feita no Rio de Janeiro em agosto de 1968.
As consideragóes déste mestre tém em vista principalmente
os acontecimentos de maio de 1968 na Franca ; aplicam-se,
porém, em grande parte á situacáo da juventude nos países
ocidentais em nosos dias.
Seráo explanadas, em primeiro lugar, as causas do fe
nómeno ; ao que se seguirá uma reflexáo serena.

1. As causas da rebeliáo

Nos últimos anos já se notava uma atitude geral de insa-


tisfagáo da juventude — atitude manifestada em pequeñas
rebelióes como a das vestes, a das cabeleiras, a dos «hippies»...;
eram rebelióes de índole um tanto vaga ou indefinida. Em 1968,
porém, parece que se realizou um conjunto de condicóes que
favoreceram a explosáo plena do descontentamento dos jovens.

— 475 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 4

Por certo, a revolta da juventude em nossos dias é algo


de muito complexo; nao pode ser reduzida a urna só causa.
Assemelha-se, na verdade, a urna explosáo de fábrica, em que
diversos fatóres intervém; com efeito, no mal-estar dos jovens
contemporáneos influem elementos de ordem biológica, psico
lógica, social, filosófica, como abaixo se verá.

1) Os fatóres biológica e psicológico

Perguntemo-nos: quais sao exatamente as condigóes em


que vivem os adolescentes em nossos dias ?
— A adolescencia é urna fase da existencia que corres
ponde á antecámara da vida social. Os jovens sao entáo obri-
gados a esperar e se preparar devidamente mediante estudo
e aprendizagem para poder entrar no seu curriculo profissio-
nal, social, político, etc. Hoje em dia a vida é de tal modo
complexa e exigente (sob os mais variados aspectos) que nn>
guém a pode mais enfrentar sem ter passado por um período
de formacáo e preparacáo.
No século passado (como, alias, em épocas anteriores),
podia um menino comegar a trabalhar em fábrica aos doze,
treze anos (ainda nao havia leis trabalhistas que o proibissem!);
poderia ser para o resto da vida um bom operario, cada vez
mais perito no seu oficio. Hoje em dia, na dvilizagáo da
técnica, isto já nao se dá; mesmo o trabalhador manual pre
cisa de se formar para poder garantir o seu futuro; muito
mais precisam de se preparar e esmerar os jovens que pre-
tendem seguir carreiras liberáis; nao é mais possível o em
pirismo.
Outrora também o casamento ocorria precocemente: aos
quinze, dezesseis anos (ou mesmo antes), os jovens se uniam
conjugalmente. Isto em nossos tempos se tornou inexeqüivel,
pois é necessário que tanto o jovem como a jovem se adestrem
para assegurar a estabilidade financeira do lar; os nubentes
costumam trabalhar ou estudar antes de se casar.
Tais condigóes de vida fazem que o homem de hoje tenha
de passar a fase inicial de sua vida (quicá até os 21 anos)
em expectativa ; a juventude possui ideal e ardor, mas nao
está devidamente capacitada para entrar em agáo ; nao tem
diploma nem título profissional, nao goza de plenos direitos
políticos ; está militas vézes sob a dependencia dos pais (ao
menos, no tocante a economía, mesadas, etc.), sob a depen
dencia de professóres, escolas, autoridades diversas, etc. — Ora
ésses varios anos assirh decorridos fácilmente impacientan!
os jovens; difícilmente contém a sua vitalidade entusiasta, que

— 476 —
«AS CAUSAS DA REBELIAO» 29

entra em ebuligáo; véem-se constantemente impelidos por seu


ardor a comegar a agir, antecipando as atitudes que só mais
tarde lhes competiriam.
Assim os jovens tentam afirmar-se na sociedade como urna
nova classe ; reivindicam para si um lugar próprio ; querem
ser reconhecidos como tais (haja vista a expressáo «o Poder
Jovem»), recusando ser confundidos com os adultos.
Os mais velhos nao raro tomam posigáo de defesa contra
a juventude. Esta atitude concorre para confirmar a existencia
consciente da classe jovem. Outrora o vocábulo «jovem» era
um adjetivo ; indicava algo de transitorio e amissível na vida
do homem; hoje faz-se do mesmo vocábulo um substantivo:
«os jovens...». Cria-se assim, talvez de maneira involuntaria,
um hiato crescente entre «jovens» e «adultos»; ésse hiato gera
preconceitos mutuos, que dáo origem á discussáo — discussáo
muitas vézes estéril, porque tem em vista adversarios pura
mente imaginarios, irreais.
Neste quadro geral deve-se mencionar também o papel
da propaganda comercial. Esta se dirige com especial énfase
á juventude, pois os jovens se tornaram, entre outras coisas,
também um poder consumidor. Vivendo em grupos solidarios,
tentando afirmar-se de varios modos, langando modas, os jo
vens precisam de fazer suas despesas (despesas que muitas
vézes váo onerar o erario dos genitores).

2) Os fatóres ideológicos (filosóficos, políticos)

Nao se pode dizer que a insatisfagáo da juventude con


temporánea seja motivada por alguma determinada ideología,
filosofia ou algum partido político. Com efeito, a rebeliáo se
registra tanto nos países Hvres (Franca, Italia, Alemanha,
Brasil...) como nos países socialistas (Polonia, Iugoslávia,
México...). Há jovens rebeldes contra o Partido Comunista
como os há em favor do comunismo, e do comunismo de linha
chinesa.

1. O que caracteriza a juventude descontente, é a revolta


contra tudo que parega estruturado e esclerosa*!». Essa re
volta generalizada assume facetas múltiplas :
revolta tíontra as hieriarquias e a autoridae na socie
dade, mais do que contra determinada autoridade ;
revolta contra a civilizacáo da técnica ou contra as
instituigdes do mundo técnico; estas parecem esmagadoras ou
demasiado exigentes para o jovem. A técnica desumaniza o
homem, dificultando-lhe um género de vida mais natural ou

— 477 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 4

espontáneo. Entre as inscrigóes gravadas ñas paredes da Sor


bonne de París, lia-se: «Ici on spontane» (Aqui espontaneiza-
mos), ou seja, «vivemos de maneira espontánea, evitando arti
ficios e convengóes». A juventude nao quer ser «polarizada»
(«on ne veut pas étre polards»).
— revolta contra os métodos de ensino. Estes parecem
demasiado magistrais. Hoje em dia, custa a muitos tomar
consciéncia de que estáo recebendo, aprendendo. — Urna ins-
crigáo afixada na Sorbonne aos 14 de maio era mais radical
ainda:

«Até agora impuseram-nos urna educacáo burguesa, cujo conteúdo


nao podíamos contestar... Por que ésses locáis, por que ésses cré
ditos, por que ésses professdres? Contestamos a íinalidade mesma do
ensino».

—r revolta contra a estandardizacáo. Apregoa-se a disso-


ciacáo do poder e do saber, ao contrario da situacáo hoje
vigente, em que a sociedade exige saber (conhecimentos, estu-
dos) para outorgar o exercicio do poder. Doravante, portante,
nao se deveria mais dizer que aquéle que governa deve ter
saber.
— revolta antiintelectual. A mentalidade dos jovens insa-
tisfeitos é anti-realista ou irrestritamente aberta á imaginacáo,
em oposicáo as regras da lógica e do pensamento em geral;
tais regras impóem disciplina e freios que contrastam com a
índole ardente ou efervecente da juventude.

Sobre as paredes da Sorbonne lia-se: «Preñez vos désirs comme


si c'était des réalités», tL'imagination commande» (Faga de oonta
que seus desejos sao realidades, A imaginacáo comanda).

2. A revolta contra as estruturas em geral redunda,


como se compreende, em reivindicagáo de igualdade para todos
e em tudo. ... de modo especial

— no plano do sexo: observa-se a tendencia a rejeitar as


normas do recato entre rapazes e mocas; os jovens universi
tarios de París queriam penetrar no pavilháo das mogas;
— no plano da cultura: seja o ingresso da Universidade
franqueado a todos os candidatos. Os jovens, julgando dema
siado estreita a porta dos estudos superiores, sentem-se angus
tiados; o futuro se lhes afigura incerto («que pederemos fazer
na vida, que realizar, se os estudos nos sao vedados?»). Ora
a angustia provoca agressividade.
Nao se pode dizer que motivos económicos ou razóes de
progresso industrial sejam fator de grande influencia na rebe-

— 478 —
«AS CAUSAS DA REBELIAO» 31

liáo juvenil. Tenham-se em vista, por exemplo, os dizeres colo


cados no dia 13 de maio á entrada da Sorbonne em París:

«Recusamos um mundo em que a certeza de nao morrer de fome


é adquirida ao risco de perecer de tedio. A revolucáo que comeca,
colocará em xeque nao sómente a sociedade capitalista, mas também
a civilizacáo industrial. A sociedade de consumo deve perecer de morte
violenta. A sociedade da alienacüo deve desaparecer da historia. Inven
tamos um mundo novo, original».

Poder-se-ia alongar a descricáo do fenómeno «rebeliáo da


juventude». Todavía as grandes linhas até aqui apontadas
parecem fiéis á realidade e suficientes para se instituir urna
reflexáo sobre o assunto. No Brasil, a insatisfacáo juvenil toma
aspectos próprios, um tanto diferentes, por vézes, daqueles que
caracterizaram o movimento de maio de 1968 na Franca. Como
quer que seja, o fenómeno brasileiro faz parte da onda geral
de rebeliáo que agita a juventude no mundo inteiro.
Procuremos, pois, formular algumas consideracóes sobre
os dados atrás apresentados.

(As idéias abaixo já nao se devem ao Prof. Berge, mas ao autor


déste fascículo)

2. Reflexóes sobre a rebeliáo ¡ovem

1. Crise de crescimento

Antes do mais, faz-se mister procurar compreender o


fenómeno por suas causas psicológicas.
O estudo, o preparo profissional, enfim, a formaQáo sao
algo que a vida do século ou dos decenios passados nao exigía
como hoje. Atualmente, os jovens que aspirem a um futuro
digno na sociedade, nao se podem furtar aos anos de preparo.
Compreende-se entáo que a juventude estudantil se sinta, mais
do que outrora, em fase de transieáo ou crescimento; ora o
crescimento se faz por crises. É preciso que os jovens tenham
consciéncia disto e procurem conter a sua impaciencia. Doutro
lado, é necessário que os adultos reconhecam as novas condi-
Cóes em-que é colocada a juventude de hoje; procurem com-
preendé-la e déem-lhe a resposta adequada — resposta que nao
poderá ser simplesmente de repulsa.
■ É de esperar que nos próximos decenios os jovens aceitem
o período de preparo para a vida como algo de normal, enqua-
drando-se mais fácilmente no respectivo estatuto.

— 479 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 107/1968, qu. 4

2. Pontos positivos

Em muitas das atitudes dos jovens agitados, apontam-se


valores inegáveis como
— a procura de autenticidade, a fuga do mero forma
lismo,
— o desejo de participar na construcáo da sociedade e
da nagáo,
— a ansia de possibilitar estudos e formagáo adequada
a todos os jovens, evitando a «elitizagáo» do ensino,
— o senso de responsabilidade. Éste desperta cedo nos
rapazes e mogas que sao obligados pelas circunstancias da
vida a assumir um emprégo, a fim de aliviar o orgamento da
casa paterna ou que sao impelidos a sair de casa para poder
trabalhar e estudar em cidade distante.

3. Pontos negativos

Todavía é preciso reconhecer que também há tragos nega


tivos na agitagáo da juventude moderna. Parecem resumir-se
em dois grandes itens:
— o espirito de insatisfagáo e repulsa generalizadas ou
radicalizadas,
— as concessóes á liberdade sexual.

Tais elementos negativos se devem, em grande parte, á filosoíia


de Marcuse, já apresentada em «P.R.» 106/1968,

A contestará©' por principio ou sistemática é urna falha


da mente; ela nada tem de auténtico. Para poder contestar,
o homem tem primeiramente que afirmar; afirmando, a pessoa
cria pontos de referencia, em vista dos quais poderá fazer cri
ticas construtivas. Enquanto alguém nao sabe o que quer,
refuta, procure chegar á clareza sobre seus objetivos; depois
estará capacitado para apontar com eficiencia as falhas da
realidade.
Á espontaneidade é urna qualidade positiva, na medida
em que é recusa de artificialismo vazio, puramente formal,
na medida em que exprime generosidade e grandeza de alma.
Todavía ela nunca pode deixar de estar sujeita á razáo, á
lógica e ao bom senso. O homem deve-se nortear em tudo por
seu pensamento e seu raciocinio. A espontaneidade, na medida
em que reflete instintos, paixóes, tendencias desregradas, de
grada o homem, tornando-o joguéte de impulsos cegos.
É utópico querer romper por completo com o passado.
A vida se desenvolve em continuidade com suas raízes e seus
elos intermediarios. Ninguém pode pretender recomegar a civi-

— 480 —
«AS CAUSAS DA REBELIAO» 33

lizagáo, a cultura e as ciencias; o homem do sáculo XX nao


pode deixar de aceitar a heranca dos séculos anteriores; tra
tará, apenas de depuraJa de seus elementos contingentes, de-
vidos a épocas ultrapassadas, e de assimilar os dados positivos
que a época atual oferece. É num ritmo de assimilacáo e eli
minado que a vida se conserva e transmite.
A ciencia e a técnica sao valores preciosos, que o homem
conquistou oom seu estudo e trabalho. — Verdade é que a
civilizagáo da técnica acarreta o perigo de «mecanicizar» o
cidadáo, tornando-o exageradamente dependente da máquina
e levando-o a perder o senso da natureza e da vida. Faz-se
mister, portanto, contornar tal «ameaca» da técnica, nao,
porém, amaldigoar a esta. E, para evitar que o homem se
materialize na civilizagáo da máquina, só há urna via: a adesáo
a Deus e aos valores invisíveis; enquanto o homem nao reco-
nhecer senáo a materia, difícilmente se libertará das seducóes
e do jugo déla.

4. Aos adultos e aos ¡ovens

Aos adultos (pais, mestres e autoridades) compete pro


curar compreender a juventude e entrar em diálogo com ela.
Isto requer dos mais velhos paciencia e renuncia; é, porém,
indispensável.
No íilme «A Chinesa» o Professor é um modelo de dialogante:
com calma e bom senso, leva sua jovem interlocutora (universitaria
da linha chinesa) a ver que ela nao sabia o que quería; intencionava
destruir sem saber o que faria depois; representava urna minoría
de estudantes, e nao o conjunto dos universitarios...

Os mais velhos precisam dos jovens, oomo estes também


precisam daqueles. A juventude tem a plenitude de suas fórgas
físicas, possui energías «virgens»; por isto é propensa ao entu
siasmo e aos grandes ideáis. Ora os mais velhos necessitam
de se rejuvenescer e entusiasmar constantemente em contato
com a juventude; também necessitam dos jovens para conti
nuar a obra que iniciaram.
Todavia a juventude carece de experiencia; propóe, por
vézes, planos utópicos ou inexeqüíveis, porque nao mede devi-
damente o alcance de suas possibilidadesj falta-lhe a escola
da vida, escola que nenhum curso ou diploma pode substituir.
Por isto é que os jovens, por sua vez, precisam dos mais
velhos; a experiencia déstes possibilita-lhes evitar desatinos e
insucessos.
O filósofo Aristóteles (t 322 a. C.) já insinuava estas verdades
quando, no seu livro de Retórica (II 12s), tentava descrever a atitude
dos jovens e dos mais velhos perante a vida: os jovens vivem para

— 481 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 4

o belo, pros to kalón, (para o ideal, para o heroísmo e as grandes


laganhas; tenha-se em vista o ideal do atleta grego), ao passo que
os mais provectos vivem para o útil; visam, antes do mais, baseados
na prudencia e no cálculo, aquilo que possa trazer proveito físico.
Ora — pode-se dizer — o beta que prescinda totalmente do útil, nao
presta seu devido servigo ao homem, como também o útil que menos-
preze o belo e o heroico contribuí, antes, para depauperar o homem.

No diálogo, é necessário que genitores e mestres se apre-


sentem como tais, ou seja, como quem tem algo a comuni
car, ... algo de próprio e característico, adquirido no estudo
e na experiencia de cada dia. Pais e mestres, por muito que
procurem compreender, nunca se deveráo tornar simplesmente
colegas ou companheiros de pesquisas de seus filhos e alunos;
é preciso que se ocupem o lugar que a vida mesma lhes assinalou
e nao hesitem em falar, apresentar, ensinar com bondade e
paciencia, sempre que fór oportuno (nunca, porém, fora de
propósito); os jovens precisam de sentir a presenta de geni
tores e mestres que sejam realmente tais, além de sentir a
presenga de seus colegas e companheiros.
Nao se pode dizer que na escola professóres e alunos estao
simplesmente «'á procura da verdade», como se os professóres
nao tivessem algo mais. É necessário, porém, que os profes
sóres nao imponham friamente a ciencia que possuem, usando
exclusivamente do monólogo em sala; ao contrario, recorrendo
aos métodos da pedagogía moderna, saibam, na medida do
possível, levar o aluno a encontrar e assimilar as verdades da
sá filosofía e da ciencia.
Por último, deve-se notar: o convivio e a complementacjío
de jovens e adultos nao seráo plenamente proficuos se nao
se colocar ñas oonsciéncias o Valor Supremo, que é Deus.
Justamente urna das grandes causas — se nao a principal
de todas — do desatino da juventude e da sociedade contem
poráneas é a ausencia de Deus entre os homens; banindo ou
esquecendo o Pai Celeste, os homens nao podem deixar de se
sentir vazios e sequiosos; daí a agitagáo que move a sociedade
contemporánea. É, pois, para desejar que os jovens de hoje
reconsiderem os valores religiosos. Nao há juventude mais
nobre e bela do que aquela que, com seu idealismo e entu
siasmo, sabe aplicar-se á mais elevada das causas, que é o
Reino de Deus — Reino de justiga, paz e amor — nesta térra.
É preciso almejar ardentemente também que os adultos
tenham a fé devida e criem em si a disposicáo de nao silenciar
essa fé, mas, ao contrario, exprimi-la na presenga dos jovens
com palavras e obras lúcidas. Sem isto, váo se tornará todo
afá de resolver a crise da sociedade moderna e, em particular,
a rebeliáo da juventude.

_ 482 —
«CAMINHAMOS PARA A FOME NEGRA» 35

V. VIDA MODERNA E RELIGIÁO

5) «Caminhamos para a fomo negra. Em 1975, o Ter-


ceiro Mundo estará a "morrer por falta de alimentos. Fot
conseguinte, é preciso limitar drásticamente a natalidade».

Resumo da resposta: Nos últimos tempos, os técnicos publica-


ram livros que prevéem fome negra para o Terceiro Mundo em 1975.
Baseavam-se no decréscimó da producáo agrícola verificada entre 1968
e 1966.
Observa-se, porém, que a producáo agrícola em 1967 aumentou
de maneira imprevista e espetacular, atingindo os Índices dos tempos
de bonanca.
Ademáis verifica-se que a produgáo de alimentos do Terceiro
Mundo pode ultrapassar o crescimento demográfico do mesmo. O au
mento de populagáo no globo nao impede necessariamente o aumento
da produgáo de alimentos; mas, ao contrario pode favorecé-lo. A
técnica moderna fornece ao homem meios para explorar mananciais
de alimentos aínda nao utilizados.
Todavía a exploracáo dos recursos da natureza e a conseqiiente
melhora das condigdes alimentares só seráo possiveis se houver soli-
dariedade entre os povos e se fizerem entre os governantes planos
de acao sabios e altruistas.
X

Resposta: As afirmagóes do cabegalho ácima, assaz di


fundidas em nossos dias, devem-se, em grante parte, a estudos
publicados por técnicos na Europa e nos Estados Unidos da
América. Tenham-se em vista os livros:
W. e P. Paddock, «Famine 1975». Ed. Little Brown C».
Bostón e Toronto;
R. Dumont e B. Rosier, «Nous allons á la famine».
Ed. Seuil.
Principalmente o engenheiro agrónomo Dumond, levando
em conta a baixa da produgáo agrícola do Terceiro Mundo
nos anos de 1963-1966, apresentou ao público urna visáo si-
nistra do futuro, assim concebida:

«O ritmo medio de expansao agrícola do Terceiro Mundo — ape


nas 2% ao ano — e o das disponibilidades alimentares nao conse-
guem acompanhar o aumento demográfico, que já atinge a cota de
2,5 % por ano... Se nada fdr feito para conjurar ésse flagelo, se as
tendencias atuais se prolongaren!, entao a fome, que já em 1966 se
vai implantando duramente na India, poderá estender-se progressiva-
mente a mor parte do Terceiro Mundo (obra citada, pág. 74).

Os irmáos Paddock (obra citada) julgavam que em 1975


dezenas de milhóes de homens morreráo de inanigáo e aos
americanos tocará escolher quem haverá de sobreviver!
Acontece, porém, que, após a publicagáo das obras ácima
mencionadas, novos dados do problema entraram em cena,

— 483 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 5

permitindo urna atitude de espirito mais confiante e otimista.


É o que observam varios estudiosos, entre os quais G. Blar-
done, no artigo «La famine peut étré vaincue» publicado na
revista «Croissance des jeunes nations»¡ m.0 1968, págs. 27-30.
Abaixo procuraremos resumir os argumentos déste arti
culista:

1) A producóo agrícola do Terceiro Mundo pode ultrapassar


o crescimento demográfico do mesmo.

As previsóes pessimistas baseavam-se no baque agrícola


de 1963-66. Ora em 1987 verificou-se um recrudescimento de
produgáo táo espetacular quanto imprevisto. Com efeito, nos
países subdesenvolvidos a produgáo agricola, por habitante,
evoluiu do seguinte modo entre 1957 e 1967:
1957-59 100
1963-64 103
1965 102
1966 98
1967 104

Foi a india — considerada pelos irmáos Paddock como


país irrecuperável, juntamente com o Egito — que obteve em
1967 os melhores resultados de producáo agricola, assim con
figurada:
1965 93
1966 89
1967 104

O recordé precedente da India data de 1961, quando foi


atingido o índice 108.
Nos países desenvolvidos o aumento de produgáo agrícola
foi fraco, passando de 112 a 113 (um ponto apenas) entre
1966 e 1967. O acréscimo de seis pontos ñas térras do Ter
ceiro Mundo permitiu recuperar o terreno perdido desde 1964.
Estes acontecimeritos, de importancia considerável, suge-
rem algumas reflexóes:
— É arriscado julgar definitivas as tendencias que se váo
manifestando nos fenómenos naturais. Na verdade, o desen^
volvimento nao se processa necessáriamente em linha reta.
A realidade da vida e da luta dos homens é mais complexa
do que os esquemas retilíneos.
É certo que a evolugáo positiva da produgáo agricola
recém-registrada também nao é definitiva. Apenas se pode
dizer que nao há fatalidade em materia de desenyolvimento.
Nao se deve ter por desesperada alguma situagáo en-
quanto os homens nao desesperarem nem da sua capacidade

— 484 —
«CAMINHAMOS PARA A FOME NEGRA» 37

de dominar a natureza nem da natureza mesma. A experiencia


ensina que é preciso mobilizar todos os recursos humanos,
imediatamente e ano por ano, a fim de dominar a natureza.
Mais vale, pois, estimular os homens a pensar e traba-
Ihar por debelar a fome do que paralisá-los pelo médo da
possível fome.

Em escala mundial, a producáo de víveres apresenta os seguintes


resultados (em milhióes de toneladas):
Cereais alimenticios, 1966 551
1967 571

Arroz 1966 241


1967 262

Centeio 1966 30
1967 32

. Trigo 1966 280


1967 278 (pequeño recuo)

2} O aumento da popula;áo do mundo nao ¡mpede necessá-


riamente o aumento da produ$áo de alimentos.

Um relatório da FAO (Organizagáo das Nanees Unidas


para a Alimentacáo e a Agricultura) sobre alimentacáo e
agricultura em 1966 dá a saber o seguinte: segundo um in-
quérito realizado em 55 países, num total de 1.600.000.000 de
habitantes, os países que mais aumentaram a sua produelo
agrícola sao também os de maior crescimento demográfico.
«Dos 55 países em que há agentes de estatística da FAO, aqueles
cujo aumento demográfico é mais elevado (3 % oa mais por ano),
conheceram nos últimos dez anos um aumento medio anual de sua
producáo agrícola que é igual ou superior ao seu crescimento demo
gráfico. As causas déste estado de coisas merecem ser analisadas,
pois parece paradoxal e contraditório frente ao que geralmente se eré».

Diz-se, pois, que os países que maiores problemas de ali


mentacáo apresentam, nao sao os que mais crescem em popu-
lacáo, mas justamente os que tém mais fraco aumento demo
gráfico. Dos 55 países analisados, 15 estáo nestas condigóes
com um total de 274 milhóes de habitantes). Sao

a Noruega e a Suécia (com 1 % de aumento demográfico),


a Suíca, a Tunisia, o Uruguai, a Argelia (com 1 a 2%...).
o Canadá, o Paquistáo, o Pena, a Colombia, o Chile, Cuba, a Indo
nesia, o Iraque, e o Marrocos (com 2 a 3 %...),

Segundo o Prof. Miguel Cépéde, engenheiro agrónomo e


Presidente do Comité interministerial da FAO, os países que

— 485 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968, qu. 5

sofrem de fome sao aqueles que, em relagáo ao número de


bocas a alimentar, carecem do número suficiente de trabalha-
dores capazes de produzir alimentac.áo.
Estas observagóes levam a concluir que limitar indiscri
minadamente o aumento demográfico acarreta o risco de dimi
nuir a máo-de-obra trabalhadora e dificultar a produgáo agrí
cola. O crescimento das populagóes nao é necessáriamente um
obstáculo ao desenvolvimento agrícola, nem leva inexorável-
mente os países 'á fome.
A limitagáo da natalidade, por si, nao afasta as ameagas
de fome; caso os povos se deixem iludir sobre a eficacia do
controle dos nascimentos c nao concentrem seus melhores
esforgos na producáo, arriscam-se a ter de enfrentar novas
dificuldades. O planejamento da familia é um meio, entre
outros, para prover ao bem-estar da sociedade e, em parti
cular, das próprias familias, mas nao é a solugáo cabal para
o problema do subdesenvolvimento. Ao contrario, verifica-se
o seguinte: os índices de aumento da populagáo das zonas
rurais e ñas cidades da Asia, da África e da América Latina
mostram que sao o desenvolvimento e a urbanizagáo que
fazem baixar a natalidade, e nao vice-versa (nao é a baixa
da natalidade que provoca o desenvolvimento).
O controle dos nascimentos só tem sentido se é associado
a urna política de desenvolvimento e, em particular, de desen
volvimento agrícola.

3) A técnica moderna fornece ao homem meios para explorar


mananciais de alimentac.á'o aínda nao utilizados.

O Prof. B. Rosier, co-autor do livro atrás citado «Nous


allons á la famine», apoiando-se em relatónos da FAO,
escreve:

«Os meios técnicos capazes de aumentar a producáo agrícola das


regióes deserdadas sao extremamente numerosos».

E assinala, entre outros recursos, o uso de aparelhagem


mais eficaz, as técnicas que conservam e melhoram a ferti-
lidade do solo, a alternancia das culturas no mesmo solo, os
métodos de luta contra a erosáo, a protecáo dos vegetáis, a
distribuigáo de agua ou irrigagáo... «A FAO», diz o Professor
Rosier, «julga que a produgáo de numerosos países poderia au
mentar de 50%..., caso se empregassem fertilizantes orgá
nicos e químicos mais eficazes e se fizesse urna alternancia
racional das culturas».

— 486 —
«CAMINHAMOS PARA A FOME NEGRA» 39

É de lembrar também que 10 % apenas das térras sao


cultivados, ou seja, meio hectare por habitante do globo; 20%
das térras de pasto ou de florestas poderiam ser valorizados
de modo a se obter urna produtividade normal. Em suma,
poder-se-iam triplicar as áreas cultivada no mundo, com no-
tável incremento da produgáo alimentar.
A «Rand Corporation», entidade de pesquisas norte-ame
ricana, realizou estudos que sugeriram as seguintes conclusoes:
Desde que se explorem a pesca, o sargago do mar, as
leveduras do petróleo, a fabricagáo de novos ingredientes sin
téticos e se aperfeicoem as técnicas de producáo, o mundo
nao terá a temer nem excesso demográfico nem fome; 28
bilhóes de habitantes poderiam encontrar no ano 2000 a sua
alimentacáo sobre a térra (hoje prevéem-se seis ou sete bi
lhóes de homens para o ano 2000, a padecer, porém, de fome
sinistra).
Sobre a pesca em particular, calcula-se que fornece 1 %
da alimentagáo dos homens e 10 % das proteínas animáis
consumidas pelo género humano. Ora a pesca constituí urna
reserva alimentar de riqueza extraordinaria. Observa Walter
H. Pawley no seu estudo «Possibilités d'accroitre la production
alimentaire» (ed. FAO):

«Se a producáo anual de farinha de peixe fósse triplicada, che-


gando a 9 milhoes de toneladas em vez de tres registradas em 1964,
forneceria o equivalente de aproximadamente 300 mflhóes de ragóes
anuais de proteínas; estaría assim considerávelmente diminuida a
deficiencia de proteínas no mundo».

B. Rosier julga que dentro de dez anos a produgáo mun


dial da pesca poderia estar duplicada.
A cultura das algas, com ou sem agricultores submarinos,
completaría os recursos fornecidos pela pesca. As algas sao
ricas em ácidos aminados e vitaminas, sendo que os japoneses
as consomem na cota de 400.000 toneladas por ano.
Sabe-se também que hoje em día é possível produzir
leveduras a partir do petróleo. Ricas em proteínas e vitami
nas, digestíveis, sem odor, de gósto neutro, essas leveduras
podem ser acrescidas á alimentagáo. Afirma Rosier (ob. cit.,
pág. 65) que, desdé os nossos días, poderiam ser produzidos
por essa via vinte milhóes de toneladas de proteínas puras.
Repartidas entre os homens desnutridos do mundo inteiro,
essas leveduras de petróleo proporcionariam a cada um cérea
de 25 g diarias de proteínas puras, reduzindo notavelmente a
carencia de proteínas das populagóes famintas (50 g de pro
teínas sao consideradas a ragáo normal).

— 487 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 107/1968. qu. 5

Os químicos estáo também elaborando alimentos sintéti


cos que permitiráo completar o valor nutritivo dos alimentos
naturais, especialmente dos cereais.
Concluí M. B. Rosier:

«Existem caminjios, abrem-se perspectivas novas no setor da nu-


tricáo humana, que até agora estéve quase exclusivamente ligada á
agricultura. Todavía, para que sejam utilizados, ainda sao necessá-
rias importantes pesquisas; é preciso suscitar novos costumes, íazer
investimentos de capital e principalmente estabelecer novas relagñes
entre as sociedads humanas» (ob. cit., pág. 70).

4) As condijóes do éxito : solidariedade dos povos e plane-


jamento dos dirigentes.

Caso se queiram realmente debelar as ameacas de fome,


será necessário, antes do mais, atender ao aspecto «homem»
do problema; em outros termos: é mister tomar os homens
conscientes de seus deveres recíprocos e dar-lhes os meios de
se desempenhar dos mesmos.
Em particular, pode-se sugerir aos povos desenvolvidos:
a) coloquem a servico do Terceiro Mundo as suas capa
cidades de pesquisa científica;
b) facilitem, quanto possível, a formagáo de quadros
favoráveis á agricultura do Terceiro Mundo: Israel tem um
assistente técnico para cada grupo de cem agricultores;
c) paguem prego remunerador pelos produtos agrícolas
e industriáis do Terceiro Mundo, encorajando assim os esforcos
dos países mais pobres;
d) queiram organizar um sistema internacional de so
corro de urgencia. Éste sistema se destinaría a acudir a qual-
quer grupo humano que se tornasse vitima de algum flagelo
em qualquer parte do mundo. Assim se desenvolvería o senso
de solidariedade entre os povos. A preservacáo da vida no
mundo bem merece tal esfórgo.
O articulista G. Blardone termina suas consideragóes nos
seguintes termos:

«É erróneo dizer que o Terceiro Mundo caminha inexorávelmente


para a íome. A partir da presente situagáo, ele bem pode ganhar a
batalha do desenvolvimento. Isto se dará, se ele prosseguir os esíor-
cos que tem empreendido, e se aceitarmos (nos, povos mais desen
volvidos) a tareía de organizar, com os povos do Terceiro Mundo,
o respectivo desenvolvimento, nao na base de mossos interésses con
siderados a breve prazo, mas na perspectiva dos interésses recíprocos
devidamente entendidos. Isto exige, antes do mais, homens, imagi-
nagáo e nagóes que tenham um sentido agudo de solidariedade»
(art. cit., pág. 30).

— 488 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

porte comum NCr$ 10,00


Assinatura anual
porte aéreo NCr$ 15,00

Número avulso de qualquer mes e ano NCr$ 1,00

Número especial de abril de 1968 NCr$ 3,00

Volumes Encadernados: 1957 a 1963 (preco unitario) .. NCr$ 10,00


Volumes Encadernados: 1964 e 1967 (preco unitario) .. NCr$ 15,00

Índice Gerai de 1957 a 1964 NCr$ 7,00

Índice de 1967 NCr$ 1,00


Encíclica «Populorum Progressio» NCr5 0,50
Encíclica «Humanae Vitae» (Regulagáo da Nataüdade) NCr$ 0,70

EDITORA BETTENCOUBT LTDA.


REDAgAO ADM1NISTBACAO
Calxa postal 2.666 Av. Rio Branco, 9, sala 111-A
ZC-00 Tel.: 26-1822
Rio de Janeiro (GB) Rio de Janeiro (GB) - ZC-05

Vous aimerez peut-être aussi