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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorlzagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'.■" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
Responderemos propoe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
__ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
-. dissipem e a vivencia católica se fortalega
■'■* no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.


Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
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• "... • I

ANO IX N? 108 DEZEMBRO 19é


ÍNDICE
Pág.

AO LEJTOR

L FILOSOFÍA SOCIAL

1) "Revolugáo violenta I Como encara o comunismo as re-


vohigóes armadas ?" *

II. SAGRADA ESCRITURA

2) "Pode-se reconstituir a origem dos Evangelhos ?


Como apareceram éles na Igreja ?" 50S
(Com gráfico á pág. 515)

m. DOGMÁTICA

S) "Como foi reformulada a lisia das indulgencias que po-


dem ser lucradas pelos fiéis ?"

IV. MORAL

i) "Em vista dos numerosos acidentes automovilísticos re


gistrados no mundo inteiro, fala-se hoje da 'doenca do automóvel'.
Que diz a conuciéncia crista a respeito ?" 52fi

RESENHA DE LIVROS 5SS

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


AO LEITOR

Ao abrir o n« de «P.R.» íinal de 1908, permita o amigo que lhe


dirija algumas palavras mais pessoais.
Passei os dois últimos meses nai Europa, a fim de participar
de urna Semana Bíblica no Pontificio Instituto Bíblico de Roma
(23-29/IX/68) e visitar alguns centros de cultura religiosa; estive em
Bruxelas, Louvain, Maredsous, Chevetogne, Saint-André e outros pon
tos da Bélgica, assfm como na Holanda, procurando ver, ouvir e
observar com grande atencáo. Tive muito prazer por poder freqüentar
algumas aulas do Instituto de Pastoral «Lumen Vitae» de Bruxelas
e da Universidade Gregoriana de Roma.
As impressdes colhidas nesse percurso íoram muito positivas do
ponto de vista religioso. Sem pretender íormulá-las de maneira exaus-
tiva e sistemática, tomo a liberdade de aqui consignar as seguintes
notas:

1) Rcalizacoes valiosas. Embora estejamos vivendo urna fase


diíicil da historia da Igreja, nao podemos deixar de reconhecer
quanto nela se realiza de grandioso: observa-se em boa parte do
clero e do povo fiel da Europa o desejo de desemponharem a sua
missáo crista neste mundo, desfazendo barreiras desnecessárias entre
o homem de hoje e a Igreja. portadora da Palavra e da Vida de Deus.
A consciéncia da responsabllidade se desperta mais e mate em grande
numero de católicos.
Os empreendimentos e as formas; do apostolado moderno sao
dignos de aprécó: nota-se zélo em grande número de sacerdotes e
leigos abnegados no atendimento paroquial, nos movimentos de jo-
vens, na pastoral do matrimonio... A liturgia é participada consci
entemente pelos fiéis. Procura-se dar aos ritos e formularios da
S. Missa, do Batiste, do Matrimonio um significado claro, prenhe
de mensagem teológica e pastoral. As publieagoes religiosas de valor
se multiplicam; encontram-se livros de formacáo religiosa (nao só-
mente ñas livrarias, mas em estantes ás portas das igrejas) desti
nados aos diversos tipos de pessoas interessadas.

2) Espirito de compreensSo. A renovagáo conciliar na Europa,


principalmente nos países nórdicos, se proce&sa com relativa sereni-
dade, com compreensáo e raciocinio mais do que com emocáo; a
atmosfera religiosa la é mais tranquila do que na América Latina,
pois nao é tüo exacerbada pelas questoes políticas e sociais como
nos mossos países,
Há, sem düvida, opiniSes contraditórias em materia de disciplina
e liturgia da Igreja, mas essas opinióes nao se radicalizam tanto
como entre nos. Na própria Holanda, ouvem-se pareceres contradi-
torios sobre a pastoral da Igreja; nem tudo é «revolucáo» religiosa,
mas nota-se por vézes urna sadia estima da tradicao. Alias, o Cris
tianismo na Europa tem seus templos, santuarios, igrejas antigás e
medievais com suas tradigoes e formas de piedade próprias. que nao
é possíveí tnem desejável) remover simplesmente pelo fato de serem
formas tradicionais; a piedade do povo foi bercada por essas formas

— 489 —
2 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968

e através délas vibra naturalmente. O peso da tradicao tala muito


através dos monumentos da Europa e comunica certa estabilidade
benéfica ao Catolicismo (coisa que aiáo se dá entre nos).
Tive a ocasiáo de assistír a sessóes de diálogo entre marxistas
e católicos em Bruxelas; as opinioes divergentes foram entáo profe
ridas com toda a lealdade, más com grande respeito mutuo, em tom
construtivo, mais do que polémico (sem que houvesse desdouro para
a íé católica).

3) Liberdade. Certo é que nem tudo é róseo nesta fase da


Igreja. O desejo de assumir a corresponsabilidade própria leva nao
poucos presbíteros e leigos a tomar iniciativas arbitrarias em mate
ria de liturgia e pastoral. Poem assim em xeque a autoridade; dese-
jam por vézes colocá-la diante de fatos consumados a fim de receber
subseqüentemente a respectiva legitimacao.
Esta atitude nao pode ser louvada nem imitada, principalmente
na S. Igreja, onde se sabe que a autoridade nao é delegada pelo povo
cristáo aos s'eus pastores, mas é oriunda do próprio Deus. Diz Jesús
em sua última oracáo, referindo-se aos Apostólos: «Assim como
Tu, Pai, me enviaste ao mundo, também eu os envío ao mundo»
(Jo 17,18).
Muitas vézes as novas formas de pastoral sao perfeitamente orto
doxas (embora nao autorizadas pelas autoridades competentes). To-
davia revelam urna mentalldade que, levada as últimas coinseqüén-
cias, poderia ser extremamente daninha á S. Igreja. — Verdade é
que os católicos avaneados na Europa nao desejam cisma; a muitos
a idéia de romper a unidade da Igreja parece absurda, justamente
nesta época de ecumenismo e aproximacSo de todos os homens. Éste
aspecto da situacáo tranquiliza o observador.
Poder-se-ia mencionar aínda o caso do famoso Catecismo Ho
landés que até hoje espera as devidas emendas, e outros casos dolo
rosos ha vida da Igreja da Europa. Parece, porém, que as noticias
divulgadas a tal respeito sao, por vézes, exageradas e sensacionalistas.
«Estamos á procura. ..> (... á procura de novas express6es de urna
realidade perene), é esta urna resposta humilde que os católicos
europeus, mesmo na Holanda bulicosa, propóem freqüentemente a
quem os interroga sobre a sua situacáo religiosa.

Em suma, confiemos no Espirito Santo nesta hora importante da


Igreja. Procuremos dissipar todo espirito de divisáo ou desconfianza
entre nos irmáos, discípulos de Cristo; esforcemo-<nos por compre-
ender-nos' mutuamente; rixas. partidos e correntes prejudicam, em
vez de edificar a S. Igreja de Cristo.
Felizes aqueles que vlvem conscientemente a hará presente!...
Hora rica de exemplbs. de apelos, de obras em construcáo, que
pedem a colaboracáo de cada católico (colaboracao de preces e de
trabalho), nao permitindo que alguém se feche no.egoísmo ou na
mediocridade Na Polonia, na Alemanha Oriental, enfim nos países
onde a perseguicáo religiosa- se faz sentir, os católicos estao ooesos
e zelam pela sua unidade; a preocupado com a sobrevivencia da
S. Igreja nao lhes permite deter-se em litigios fraternos. Compre-
endamos tal exemplo; procuremos todos o bem da S. Igreja da ma-
neira mais objetiva e eficiente posslvel.

— 490 —
AO LEITOR

Estas consideracSes levam-me a pedir aos caros leitores e amigos


que proponham ao abaixo-assinado as suas observac6es e sugestoes
cancernentes a «P.R.»:

1) Está-se desenvplvendo numa linha construtlva?


2) Está auxiliando a quem o Ié?
3) Como poderla tornar-se mate útil e interessamte?

Levaremos em considaragáo as respostas, procurando correspon


der na medida do possível.
De coracSo agradecemos a colaboracáo de todos aqueles que nos
queiram angariar novos assinantes.
Aproveitando o ensejo, a equipe de Redacao e Adminlstrasao de
«P.B.» deseja a todos os seus amigos e leitores um Santo Natal e
Feliz Ano Novo, cumulado de gragas e béngaos.

Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1968

D. Eslcváo Bettencourt O.S.B.

— 491 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano IX — N' 108 — Dezembro de 1968

I. FILOSOFÍA SOCIAL

1) «Revolugáo violenta! Gomo encara o comunismo as


revolugoes .armadas?»

Resumo da resposta: Segundo o marxismo, a revolucáo violenta


é inevitável no mundo inteiro, a íim de se estabelecer a justica so
cial; a classe possuidora e dominadora sómente mediante a fórga será
desalojada pela classe trabalhadora e oprimida. Constituir-se-á, em
conseqüéncia, a ditadura do proletariado. Esta, porém, cederá final
mente a nova e definitiva ordem de coisas, em que cada • cidadáo
estará plenamente ccnscio de seus deveres e os cumprirá sem as
severas leis da ditadura; a producáo e a distribuicáo dos bens mate-
riais satisfaráo a todos os membros da sociedade; ter-se-á entáo a
sociedade comunista própriamente dita.
Que dizer a respeito?
a) A filosofía marxista professa, entre os seus grandes princi
pios, que todas as coisas se acham em perpetuo vir-a-ser, pois todas
sao precarias; admite que a sociedade mesma estará em constante
evolugáo. Donde se vé que há urna contradicáo entre o ideal de urna
sociedade satisíeita e estável (como a que se pretende obter mediante
revolucáo e ditadura) e a tese de que a socidade evoluLrá perpetua
mente.
b) Nota-se também que o marxismo apresenta a revolueáo mun
dial como algo de semelhante a urna redencáo messiánica; nisto trans-
parece a mentalidade judaica de Karl Marx. O messianismo mar
xista, porém, é ateu — o que o torna totalmente váo. É impossível
ao homem redimir-se de seus males sem o auxilio do Criador.
c) Deve-se também observar que o odio revolucionario e a
guerra genam odio e guerra. É pela convicgáo e o amar, nao pela
violencia que se devem elevar e unir os homens entre si.
Em urna palavra: falha é a tese marxista segundo a qual a
revolucáo universal é meio necessário e inevitável para sanear os
males da sociedade. O Cristianismo contrapSe á revolucáo violenta
marxlsta a tese da reforma moral dos Individuos: na medida em que
cada cidadáo, por temor e amor a Deus, se libertar do egoísmo e
da cobica desregrada, a sociedade e suas instituicóes se renovarao.
O Cristianismo apregoa também um messianismo, baseado nao na
violencia dos homens, mas no amor de Deus aos homens e dos ho
mens a Deus e aos homens.

Resposta: Nos tempos modernos fala-se freqüentemente


de revolucáo. Éste conceito se tornou particularmente impor-

— 492 —
REVOLUCAO VIOLENTA?

tante desde que o marxismo comegou a agir no mundo. É por


isto que nos interessa ter clara nogáo do significado de «revo-
lucáo» na ideología marxista. Abaixo será ele proposto junta
mente com algumas reflexóes a respeito.

1. A doutrina marxista

1) «Inevitável revolujño»

Marx tinha constantemente ante os olhos a sociedade fun


damentada sobre a propriedade particular dos meios de pro-
ducáo. Nessa sociedade, segundo ele, duas classes antagónicas
se defrontam: a classe possuidora e dominadora utiliza sua
posicáo superior para impor tiranía e exploracáo á classe
inferior.
Ora o comunismo marxista está disposto a destruir essa
pretensa situacáo mediante revolucao. É o que se depreende,
por exemplo, do «Programa da Internacional Comunista» da
tado de l/IX/1928:

«Os comunistas lutam com denodo e ardor em todos os setores


da frente internacional de classes, na firme certeza de que a Vitoria
do proletariado é inevitável e nao pode ser impedida. Os comunistas
desdenham ocultar suas doutrinas e seus objetivos. Declaram aberta-
mente que a sua meta só é exeqüível caso se derrubem. as atuais
condicóes socíais. Que a classe dominante trema perante a Revolucáo
Comunista! Os proletarios nada tém a perder senáo as suas cadeias.
Peto contrario, tém um mundo a ganhar».

Segundo o marxismo, a revolugáo social é inevitável. Ela


faz parte de um grande processo evolutivo e irreversivel que
terminará em urna nova sociedade; dentro do presente sistema
social estáo em acáo as sementes da sua própria ruina.
E que há na íntima natureza da sociedade atual para"
tornar inevitável o seu desmoronamento?

Responde o marxismo que há urna contradicáo crescente:


o atual modo de produgáo opóe-se ao modo segundo o qual
os homens se apropriam dos frutos da produgáo.
Eiin termos mais explícitos, essa tese quer dizer o seguin-
te: nos primordios da historia, os homens possuiam a térra
em comum. Depois a agricultura se desenvolveu de modo que
a posse coletiva se tornou um entrave para a produgáo. Tsve
que ser substituida pelo sistema da propriedade particular.
Na Idade Media as materias primas e os instrumentos de

— 493 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 1

trabalho eram propriedade dos individuos; era natural entáo


que cada um tomasse para si os frutos do seu trabalho ou os
vendesse honestamente.
A sociedade permaneceu constituida sobre tal sistema eco
nómico até os séculos XVIE/XIX. 9 progresso da industria
entáo exigiu que os meios de producáo passassem para socie
dades ou coletividades, pois eram tais que sómente urna cole-
tividade de homens os poderia devidamente articular e utilizar.
Desta forma, a oficina individual foi suplantada pela fá
brica Os produtos comecaram a sair nao das máos dos indi
viduos, mas da colaboragáo de milhares de pessoas. —• £ disto
que decorre a grande falha ou contradicáo da sociedade mo
derna- os produtos industriáis resultam do trabalho de muitos,
mas sao apropriados por alguns poucos individuos apenas, ou
seja pelos proprietários das fábricas. Nisto esta o desajuste
da sociedade contemporánea, desajuste que cresce constante
mente, e exige a queda do presente sistema social e económico;
ouase todos os homens trabalham, e uns poucos individuos,
proprietários capitalistas, absorvem a riqueza produzida pelo
grande exército dos trabalhadores.
Eis por que os mentores do comunismo julgam inevitável
a revolucáo social.

2) Que tipo de revolujáo ?

A revolugáo comunista terá as seguintes características:


a) Diferirá das revolugoes burguesas, pois estas apenas
substituem um grupo explorador por outro; ao contrario, a
revolucáo comunista colocará no poder os trabalhadores.
b) Será violenta. Conforme os mestres do comunismo,
a violencia é essencial á revolucáo proletaria, pois sem ela a
classe exploradora, que ocupa o poder, nao o cedería. O comu
nismo, dizem, preferiría realizar a transtormagao social por
meios pacíficos; julga, porém, que este ideal e utópico.
c) Terá ámbito internacional. A revolugáo visará estabe-
lecer o comunismo no mundo inteiro.

3} Como se desenvolveré o processo ?

A finalidade ¡mediata da revolucáo marxista é a instau-


racáo da ditadura do proletariado. Esta é necessana para
esmagar a resistencia da classe exploradora.

— 494 —
REVOLUCAO VIOLENTA?

A ditadura constituirá .um Estado Novo: o Estado prole


tario, dotado de órgáos de poder próprios; trabalhará por su
primir a classe burguesa e estabelecer a socializacáo dos meios
de producto e da própria produgáo; estes elementos deixa-
ráo de ser propriedade dos individuos para pertencer á coleti-
vidade A ditadura, porém, nao será o regime comunista pró-
priamente dito, mas apenas urna fase de transigáo do capi
talismo ao comunismo. A ditadura do proletariado, por conse-
guinte, sómente em parte ocasionará a felicidade e o bem-estar
que o comunismo promete aos homens.
A Rússia se encontra atualmente nessa fase de ditadura do pro
letariado fase do «socialismo»; por isto a sua denommacao oficial e
«Uniáo das Repúblicas Socialistas Soviéticas», cujos documentos ofi
ciáis nunca empregam a palavra «comunismo».

Guando preencher a sua tarefa, a ditadura cederá por


completo ao comunismo auténtico. Nesta nova ordem de coisas,
cada individuo estará plenamente satisfeito com o sistema de
produgáo e distribuigáo de bens materiais, de modo que ja nao
precisará das severas leis da ditadura, mas de certo modo sera
capaz de governar a si mesmo. Na sociedade nova, nao havera
Estado ou instituigáo governamental, nem classes sociais; em
lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e seus
antagonismos de classes, surgirá um congragamento em que
o livre desenvolvimento de cada um será a condigao do livre
desenvolvimento de todos.
A duragáo da ditadura intermediaria entre Capitalismo e Comu
nismo há de ser lomea; os cinqüenta anos de ditadura na Rüssla
pS parecerInulto tempo; todavía representam um períodc> amda
exiguo para quem considera que é necessário colocar no pais os fun
damentos económicos e culturáis do comunismo e educar o proleta
riado parai se governar a si mesmo.

Em resumo: no marxismo a Revolugáo por excelencia, en


tendida como a transformagáo da sociedade de classes em
sociedade sem classes, é o desfecho supremo da historia, des
fecho do qual todas as outras revolucóes sao meras prepa-
ragóes.
Impóe-se agora a questáo:

2. É válida a dootrina ?

O pensamento de Marx que acaba de ser exposto, sugere


algumas reflexóes:

— 495 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 1

1) Revolujóo e dialética marxisla

A teoría comunista concernente á Revolugáo deriya-se de


um conjunto de premissas arbitrarias. Expó-las é evidenciar
a fraqueza ou a insustentabilidade de tal teoría.
Com efeito. A revolugáo marxista supóe que o homem e
toda a historia sejam fungóes da materia ou da produgáo dos
meios de subsistencia. Ora em «P.R.» 105/1968, pág. 395-403
já foram apresentadas razóes que levam a rejeitar tal pressu-
posto; a inteligencia humana é anterior e superior á produgáo
material; ela a rege; em última análise, é a inteligencia, jun
tamente com a vontade e os fatóres afetivos do homem, que
neste mundo responde pela configuragáo da historia.
Mais ainda: o marxismo professa um conceito dinámico
ou dialético do mundo. A realidade compóe-se de fórgas con-
traditórias que estáo continuamente a se defrontar e hostili
zar; désse choque de fórgas origina-se o movimento no mundo,
a evolugáo ou o «vir-a-ser» (devenir), que sao a esséncia
mesma da realidade. Dentro da sociedade as fórgas antagóni
cas, postas em choque, sao as duas classes: burguesía e prole
tariado. A luta entre estas duas classes é o que se chama «a
dialética comunista».
Escreve Engels:

«A dialética comunista evidencia a caduddade. de todas as coisas;


para ela, nao existe senáo o processo ininterrupto do vir-a-ser e da
transitoriedade» («Ludwig Feuerbach», {Jág. 49).

Por conseguinte, afirma o marxismo que a historia nao


pode tender a um fim perfeito ou a um estado ideal da huma-
nidade; «urna sociedade perfeita ou um Estado perfeito sao
coisas que só podem existir na imaginagáo... Cada etapa da
historia é necessária e, por conseguinte, justificada dentro da
época e das condigóes de que ela se origina, mas ela se torna
obsoleta e injustificada frente a novas condigóes superiores
que se desenvolvem paulatinamente em seu própno seio. Entao
tal etapa dá lugar a urna etapa superior, que por sua vez entra
no ciclo da decadencia e da morte» (Engels, «Ludwig Feuer-
bach», pág. 13).
Por isto Engels criticou Hegel, que admitía um fim ou
um termo perfeito para a dialética da historia. Hegel admitía,
sim, que, através da dialética de «Tese, Antítese e Sintese», a
humanidade chegaria á Verdade absoluta, e vía a concretiza-
cáo désse termo perfeito na monarquía representativa que Fre-
derico Guilherme HI prometía aos súditos alemaes.

— 496 —
REVOLUCAO VIOLENTA?

Todavia justamente aquí póe-se uma. dúvjdat a crítica


muito justa que Engeís fez a Hegel nao recai sobre a própria
doutrina comunista?
Com efeito. O comunismo visa, mediante luta de classes
e revolugáo, chegar a um termo definitivo, em que classes e
antagonismos estaráo supressos. A sociedade entáo se verá
isenta de toda contradigáo íntima, de todo vir-a-ser... Con-
tudo uma tal sociedade, conforme o próprio marxismo, pódérá
existir? Engeís mesmo nao afirmava que «sociedade perfeita,
Estado perfeito sao coisas que só podem existir na imaginacáo»?
Esta contradigáo entre as premissas filosóficas e o ideal
social do comunismo parece ser uma das mais fortes objecóes
que se possam fazer ao sistema marxista e as suas proposigóes
concernentes á revolugáo social.
A revista «The Economist» de 14/1/1967, pág. 99 apre-
senta o seguinte comentario referente a Mao-Tsé-Tung, instau-
rador do comunismo na China:

«Os comunistas chinases apregoavam. como todos os revolucio


narios desde 1789, que um- ato radical de violencia daría acesso a
sociedade melhor. Esta crenca, Mao agora a pos finalmente em dü-
vida talvez de maneira decisiva... Aquilo de que os Jiomens
necessitam (aquilo também que Mao propds alcancar) é a revolucSo
perpetua ou, para sermos mais precisos, uma sucessao .regular de
revolucoes, a intervalos de uma geracjio ou menos. Mao eré que
nenhuma exigencia inferior a esta mantera vivo o impeto revolucio
nario original».

Embora Mao seja tido como «heterodoxo» em certos1 se-


tores comunistas, as idéias ácima expressas sao confissáo de
genuino marxismo.
O comunista italiano Togliatti, pouco antes de morrer, la-
mentava-se de que os comunistas haviam sido incapazes de
reconhecer as novas formas de alienacáo que éles mesmos
haviam produzido em sua sociedade (informagáo colhida na
revista «Criterio», Buenos Aires, 14/m/68, pág. 141).
A «mística» da revolucáo dissipa-se na mente de quem
considera o conjunto da filosofía marxista. Com efeito, a
Eevclueao marxista nao pode deixar de ser uma revolucáo
semelhante as anteriores; a transformaeSo por ela induzida
nao será mais do que uma transformagáo táo precaria quanto
as precedentes. Em suma, Revolugáo e Transformagáo seráo
apenas pontos de partida para outras revolugóes e transfor-
magóes. Isto porque, como o próprio marxismo reconhece, a

— 497 —
10 tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 1

precariedade (o marxismo diría exageradamente a contradicáo)


está no intimo de tudo que existe.
O Cristianismo reconhece também as' deficiencias de todas
as realidades terrestres; por isto ele nao apregoa a Revolugáo
no sentido marxista, más antes a evolucáo moral do homem
e da humanidade; esta evolucáo moral se inicia na térra e se
consuma na eternidade, onde haverá realmente justiga e paz
perfeita; numa ideologia que admite Deus, pode-se, sem receio,
falar de plenitude e consumacáo.

' 2) Fundo judaico e messianismo

Tem-se dito, e com razáo, que o comunismo em mais de


um dos seus aspectos apresenta características de Religiáo ou
da Religiáo do «Anti-Deus». Isto se explica pelo fundo reli
gioso de Karl Marx (que era judeu).
O judaismo ensina que Israel foi o povo escomido por
Deus, do qual devia sair o Messias ou Salvador para o mundo
inteiro. Ora Marx aplicou esta crenc.a ao, proletariado; éste
veio a ser, na mente do marxista, o povo messianico, destinado
a trazer ao mundo paz é bem-estar sob a forma da sociedade
comunista.
É o que observa N. Berdyaev:

«O povo judeu é, por natureza, um povo histórico, ativo e vo


luntarioso, mas nao possui aquéle poder de oontemplacao que é pe
culiar dos estados mais elevados da vida espiritual dos Arias. Carlos
Marx um judeu tipioo. num periodo tardio da historia, quer im
plantar o antigo preceito da Biblia: 'Comerás o pao com o suor do
teu rosto'. O socialismo marxista emerge de um fundo histórico com
pletamente novo e reitera a sua reclamacáo de um paraíso terrestre.
E certo que, vista por alto, a doutrina marxiste se afasta das tradi-
eoes religiosas dos judeus e se rebela contra todo principio sagrado.
Na realidade, porém, a idéia messianica dos judeus, como povo eleito
de Deus transplanta-se para a classe, para o proletariado. A ciasse
trabalhadora é agora o novo Israel, povo eleito de Deus e destinado
a libertar e salvar o mundo. Todas as características do messianismo
judeu se lhe aplicam. O mesmo drama a palxao e a impaciencia,
que caracterizam Israel, o povo de' Deus, aqui se manifestam» («O
significado da Historia». Landres 1906, pág. 89).

É o espirito «messianico» ácima observado que inspira ao


marxismo o caráter absoluto de suas teses e reivindicagoes;
todo genuino marxista tem uma alma profundamente religiosa
e mística posta a servigo do ateísmo militante.
Ora na verdade só se pode entender messianismo em sen
tido positivamente religioso. É únicamente um ser maior do

— 498 —
REVOLUCAO VIOLENTA? 11

que o homem — Deus — quem pode assegurar aos individuos


e á sociedad^ a superagáo das deficiencias físicas e moráis
que impedem o homem de conseguir a plenitude de suas aspi-
racóes; estas se dirigem a um Bem Maior do que as criaturas
finitas.
Por isto nao é possivel laicizar ou secularizar a idéia de
messianismo; messianismo meramente político é mera palavra,
que impressiona, mas nada contém.
Aprofundemos ainda alguns aspectos da teoría de Marx
relativa á Revolusáo.

3) Revolujóo sángrenla ou reforma do espirito?

Duas observagóes vém a propósito:


a) Toda revolucáo armada tende a gerar um estado so
cial violento e artificial; provoca represalias e vinganga. Quem
atira os homens uns contra os outros, abre brechas e feridas
que difícilmente seráo sanadas.
Observa Milovan Djilas, o oficial iugoslavo que descreveu
suas experiencias de comunismo:

«Nao há, em toda a historia, objetivos ideáis que tenham sido


atingidos por meios desuníanos ou nao ideáis, assim como nao há
sociedade livre construida por escravos. Nada revela a grandeza dos
fins como os meios usados para atingi-los. Quando os homens evocam
o ílm para justificar os meios, é porque há nestes alguma coisa que
■na reafidade nao é válida» <«A nova classe». Rio 1958. pág. 225).

É, pois, pela conviccáo e pelo amor — elementos típica


mente humanos —, e nao pela fórga física, que se faz mister
modificar os homens, elevá-los e uni-los entre si.
Por isto só se pode admitir a revolucáo armada como re
curso extremo, destinado a resolver situagóes que em absoluto
nao admitam solucáo pacifica. O Santo Padre Paulo VI, na
encíclica «Populorum Progressio», enumera as condicóes para
que a revolugáo possa ser lícita e talvez proficua:

«Certamente há situacOes cuja injustioa brada aos céus. Quando


populacSes inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa depen
dencia que Ihes corta tóda iniciativa e responsabilidade e também
toda possibüidade de formagao cultural e de acesso á carreira social
e política, é grande a tentacSo de repelir pela violencia tais injurias
á dignidade humana.
Nao obstante, sabe-se que a insuweicao revolucionaria — salvo
casos de Urania evidente e prolongada que oíendesse gravemente os
dirtftos fundamentáis da pessoa humana e prejudicasse o bem comum

— 499 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 1

üo país — gera novas injustigas, introduz noves desequilibrios, pro


voca novas ruinas. Nunca se' pode oombater um mal real á custa de
urna desgraca maior» (ns. 30sJ: > ■••-

Os moralistas explicitam.nos seguintes termos.as causas


que possam legitimar urna revolugáo armada:

a) Esteja fora de dúvida que a autoridade legitima perdeu seu


encargo, isto é, se converteu em, tiranía ou se tornou incapaz de
administrar o bem comum.
b) É preciso esgotar todos os meios pacíficos para resolver a
situacáo injusta de um povo, antes que a violencia revolucionaria
possa ser considerada licita.
c) Os efeitos bons que se esperam da revolugáo devem superar
os danos previstos.
d) Os cheíes revolucionarios devem poder alimentar urna razoá-
vel esperanca de éxito.
e) Nao se empreguem meios bélicos intrínsecamente maús (prin
cipalmente o ataque-a náoroombatentes).
f) Os descontentes procurem nao exacerbar a situacáo pré-revo-
lucionária com o pretexto de precipitar o desencadeamento da revo
lugáo.

Considerando diretamente a situacáo atual da América


Latina, o S. Padre assim se exprimiu ao inaugurar a II Con
ferencia Geral do Episcopado latino-americano aos 24/VHI/68:

«Devenios favorecer todo esfdrco honesto para promover a reno-


vacaó e a elevacáo dos pobres e de todos aqueles que vivem- em
condic6es de inferioridade humana e social. Nao podemos ser solida
rios com sistemas e estruturas que encobrem e favorecem graves e
oprimentes desigualdades entre as classes e os cidadaos de um mesmo
pais, mas, ao contrario, devemos procurar p6r em execugao um plano
eficiente para remediar ás intoleráveis condicOes de inferioridade de
que sofre a populagáo menos favorecida. Todavía repetimos urna vez
mais: nao é o odio nao é a violencia que faz a fórga da nossa cari-
dade. Entre as diversas vías que procuram urna justa regeneracáo
social, nao podemos escolher nem a do marxismo ateu nem a da
revolta sistemática, e menos ainda, a do sangue ou da anarquía.
Distingamos as nossas responsabilidades daqueles que fazem da vio
lencia um nobre ideal, um glorioso heroísmo, urna complaeente teo
logía. Para reparar os er.ros do passado e sanar os males presentes,
nao cometamos novos erros; seriam contra o Evangelho, contra o
espirito da Igreja. contra os próprios interésses do povo, contra o
feliz genio da hora presente, que é o genio da justica em marcha
para a íraternidade e a paz.

A paz! Lembrais-vos bem, por certo, de quanto ela é cara á


Igreja e a Nos pessoalmente, que. fizemos da paz e da íé os dois
grandes temas do nosso pontificado. Pois bem. aqui... repetimos
nosso augurio de paz: paz verdadeira, que nasce dos coracóes crentes
e fraternos, paz entre as classes sociais na justica e na colaboracáo,
paz entre os povos na prática de um humanismo iluminado pelo Evan
gelho, paz da América Latina, vossa paz!»

— 500 —
REVOLUCAO VIOLENTA? 13

Tais palavras berri merecem atenta consideragáo.


Note-se ainda:
b) A revolugáo marxista se dirige contra a propriedade
particular, visando socializar (bu atribuir á coletividade) os
meios de pródugáo e os produtos respectivos.
Tal programa nao pode deixar de ser ilusorio: transiere
a propriedade das máos dos capitalistas particulares para "as
do Estado, que, no caso, vem a ser o maior de todos os capi
talistas. Em conseqüéncia, o povo continua privado de seus
direitos típicamente humanos (direito de informagáo, de loco-
mogáo, de educagáo dos filhos, de prática religiosa, etc.).
Eis o testemunho de Milovan Djilas:

«O Estado ou o govérno comunista tem o objetivo da desperso-


nalizacáo completa do individuo, da nacáo e até de seus represen
tantes. Aspira a transformar todo o Estado num Estado de funcio
narios. Pretende controlar, direta ou indiretamente, os salarios, as
condicOes de moradia e até as atividades intelectuais» («A nova classe»,
pág. 139).

Nao é, pois, contra a propriedade particular e o sistema


económico déla decorrente que se deve hitar revolucionaria
mente, mas é, sim, contra o espirito de egoísmo, ganancia e
cobiga'dos homens que possuem os bens déste mundo. Inúteis
sao todas as reformas de estruturas sociais se os homens nao
se reformam interiormente; ao contrario, a reforma da meri-
talidade e dos costumes dos homens acarreta naturalmente a
remodelagao de todas as instituigóes injustas da sociedade. O
fato de que a propriedade particular seja mal distribuida nao
é culpa da instituigáo mesma da propriedade particular, mas,
sim, dos homens que déla usam e abusam.
Por isto, em resposta á tese marxista de que é necessária
e inevitável a revolugáo sangrenta no mundo inteiro, o Cristia
nismo propóe urna

3. Mensagem positiva

1) O primeiro ponto de um programa de renovagáo da


sociedade é, necessária e inevitávelmente, a reforma moral do
hornera contemporáneo; egoísmo e ganancia háo de ceder a
altruismo e generosidade. Ora essa conversáo interior dos
homens nao pode ser duradoura e eñcaz se nao se baseia em
Deus e na Religiáo; o homem s6 encontra a si mesmo no Bem
Infinito, que é Deus. O homem que nao sabe servir a Deus

— 501 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 1

em primeiro lugar, tende naturalmente a servir a si mesmo


antes do mais; ésse egoísmo desfigura a personalidade humana
e impede a verdadeira colaboragáo entre os homens.

Sao palavras de Pío XI em sua encíclica «Quadragesimo


Anno»:
«Por certo, se examináronos a materia com cuidado e profundl-
dade, veremos claramente que a tao ansiada reconstrugáo social deve
ser precedida da xenovacáo do espirito cristao; infelizmente, déste
espirito se separaram, em todo o mundo, multídfies numerosas, en-
tregando-se exclusivamente aos negocios. Qualquer outro esfdxco será
váo, pois entao o edificio nao assentará s&bre a rocha, mas sobre a
areia movedica».

2) O Estado moderno deve estar consciente de que a sua


finalidade principal é promover o bem-estar dos homens em
geral e (na medida do possível) de cada individuo em parti
cular; o Estado é para o h'omem (pessoa humana) e nao o
homem (pessoa humana) é para o Estado. Ao Estado, por-
tanto, compete organizar a sociedade e as relagóes entre os
seus membros de modo que todos possam livremente desenvol
ver as suas facuidades naturais; o Estado nao tem o direito
de dirigir a vida particular e a mentalidade dos cidadáos; ao
contrario, toca-lhe o dever 3e respeitar cada criatura humana
com seus ideáis (contanto que nao prejudiquem o bem comum).
3) O Cristianismo opóe á revolucáo internacional do mar
xismo a tese do desenvolvimento solidario da humanidade (cf.
encíclica «Populorum Progressio» II parte). É preciso que os
povos mais ricos e poderosos se interessem pela sorte dos mais
fracós, sem procurar servir a si mesmos, mas visando real
mente o bem das nagóes pobres;, os contratos de comercio in
ternacional sejam justos, alheios a qualquer tipo de neo-colo
nialismo; as grandes quantias monetarias que anualmente se
empregam em armas e poder bélico, redundem em proveito das
populágóes famintas, doentes ou nao alfabetizadas.
A observancia de tais linhas de conduta levará os povos
ao desenvolvimento e, por conseguinte, á paz. Na verdade,
«desenvolvimento» é o novo nome da paz. Se a humanidad©
toda se empenhar pelo desenvolvimento da humanidade toda,
nao pensará mais em hita de classes e revolucáo violenta. É,
pois, para desejar que os homens que maquinam guerras
e guerrilhas no interior ..de urna nagáo apHquem rsuas
energías á construgáo da sua patria, colaborando positivamente
no desenvolvimento da mesma em atmosfera de paz. É éste o
cammho que a humanidade, amadurecida pelas duras ligóes da
historia, deve finalmente procurar trilhar.

— 502 —
A ORIGEM DOS EVANGELHOS 15

Bibliografía:

J. Me Fadden, «Filosofía do Comunismo». Lisboa 1961.


P. R. Regamey, «La consdence chrétienne et la guerre», em
«Cahiers Saint-Jacques» n« 8, pág. 31-40.
Gerardo Claps «El Cristiano írente a la revolución violenta», em
«Mensaje» tí> 115, 1963. pág. 142.
Denis A. Goulet, «La revolución: un dilema ético», em «Criterio»,
14/111/68, pág. 138-43.
Mauriac, Ducatillon, Berdiaeff..., «Le communisme et les chré-
tiens». París 1937.

II. SAGRADA ESCRITURA

2) «Pode-se reconstituir a origem dos Evangelhos.


Como apareceram éles na Igreja?»

Sesiono da resposta: O método da historia das formas, expla


nado em «P.R.» 91/1967, pág. 282-290, permite hoje em dia tentar
reconstituir com íidelidade a origem do texto dos Santos Evangelhos.
O Senhor Jesús, por seus ditos e íeitos, é a fonte da mensagem
evangélica ou da Boa-Nova.
Os atos e ensinamentos do Senhor íoram sempre apregoados
pelos Apóstelos e-discípulos de maneira a atender as necesidades
dos ouvintes (crist&os e nao cristaos) aos quais se dirigiam. A pre-
eacao tomava, pois, estilos diversos: oatequese, narrativa litúrgica,
apologética, noticias biográficas... Pode-se dizer. portante que a vida
ou a realidad© concreta das primeiras comunidades cristas lníluiu
na redacao da pregado dos Apostólos.
Após a fase de pregaeao meramente oral, houve o período de
redac&o escrita da Boa-Nova. Os Evangelistas colheram, dentre os
-numerosos dados da tradicao oral,. os elementos com os quais con-
feccionaram o Evangelhb segundo Mateus, Marcos. Lucas... Cada
um dos autores sagrados imprimid a ésses dados o seu estilo próprio;
procurou realcar os aspectos do S«nhor Jesús que mais interessavam
ao próprio Evangelista e aos seus destinatarios.
A critica acetta a historicidade dos Evangelhos. Nota, porém, que
nao sao crónicas em sentido moderno, mas historia formulada' de
modo a realcar com fidelidade a mensagem religiosa dos aconteci-
mentos.

Resposta: Já em «P.R.» 91/1967, pág. 282-290 foi.alpor-


dado o dito «método da historia das formas» («Formgeschichtli-
che Methode, Form-critidsm, École formiste»), método de pes-;
quisa da origem dos Evangelhos. • . ... . -■>

— 503 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu- 2

Ésse método, concebido primeiramente por racionalistas


liberáis entre 1919 e 1922, a principio parecía destruir a histo-
ricidade dos Evangelhos. Cqm efeito, os críticos partiam de
preconceitos insustentáveis; admitiam que as comunidades cris
tas primitivas eram massas anónimas, que criavam lendas sob
a influencia de fatores heterogéneos, principalmente da mito-
logia paga; assim teriam forjado a fé que os Evangelistas con-
signaram nos seus livros.
Todavía bons críticos nao católicos (como C. D. Dodd e
V. Taylor), assim como os exegetas católicos, demonstraram
que o método da historia das formas encerra um notável ceme
de verdade, independente de racionalismo, podendo pois ser
enquadrado dentro dos principios da fé católica. Em conse-
qüéncia, a Pontificia Comissáo Bíblica, pela Instrugáo «Sancta
Mater Ecclesia» de 21/IV/1964, reconheceu a legitimidade do
emprégo do «método da historia das formas», contanto que o
estudioso católico aceite a agáo do Espirito Santo em todo o
processo de formacáo dos Evangelhos. Veja-se a propósito o
ácima citado artigo de «P.R.».
De acordó com as recentes conclusóes do método da his
toria das formas, os exegetas — católicos e nao católicos —
afirmaran! as duas seguintes proposigóes:

1) Os Evangelhos nao sao obras literarias oriundas de urna só


redacáo; íoram sendo compostos lenta! e parceladamente;
2) Os Evangelhos constam de fragmentos ou episodios que a
principio íoram apregoados jndependentemente uns dos outros; eram
pecas avulsas que os Evangelistas receberam da tradicáo anterior
(oral e escrita) e colecionaram em narrativas concatenadas que hoje
sao chamadas «o Evangelho segundo Mateus, o Evangelho segundo
Marcos...».
Esta última conclusao se depreende de varios indicios. Tenha-se
em vista, por exemplo, que o mesmo episodio- pode ocorrer em mol
duras diferentes nos Evangelhos sinóticos: assim a cura do leproso
em Me 140-50 aparece após a cura da sogra de Simáo, ao passo que
em Mt (8,1-4) se dá logo depois do sermáo da montanha e em Le
(512-16) após a vocacáo dos primeiros apostólos. — Note-se também
que as fórmulas de transicáo de um episodio para outro nos Evan-
geUios tém índole vaga, parecendo artificiáis: «e, ent&o, logo, naque-
Íes dias, e aconteceu. que...».

Pergunta-se entáo: Como terá falado Jesús aos Apostólos


e discípulos? De que maneira apregoaram estes a palavra do
Mestre? Como influiram as comunidades cristas sobre a for
macáo da tradigáo evangélica? Como sé deu a transigáo da
tradicáo oral para a tradigáo escrita? Qual foi a parte própria
de cada Evangelista na confeceáo do texto sagrado?

— 504 —
A ORIGEM DOS EVANGELHOS 17

A estas perguntas nao se op5e a fé católica nem o coticeito de


inspiracáo bíblica (a inspiracáo de modo nenhum dispensa o trabalho
dos autores humanos, nem excluí a acáo dos fat6res que costumam
interferir na redacto de um Hvro, como íoi exposto em «P.R.»
21/1959- pág. 379s). Por conseguinte, é a tais perguntas que pro
curaremos responder ñas páginas que se seguem.

I. Jesús, fonte da trodisño evangélica

Por volta do ano 27 (dizem outros: no ano 30), Jesús


inidou o seu ministerio público na Galiléia. Apresentou-se como
(Tarauto da Boa-Nova aguardada por todo o povo de Israel.
Como mestre e pregador, Jesús adotou os métodos dos rabinos
de seu tempo: comentava as Escrituras Sagradas, acomodándo
las com grande liberdade aos seus propósitos doutnnarios.
Tenha-se em vista o texto de Mt 22, 41-46:
«Estando reunidos os íariseus, Jesús lhes perguntou: 'Que pensáis
a respeito de Cristo? De quem é ele filho?1
'De Davi', respondan éles.
'Como é entáo pergunta Jesús, que Davi, inspirado pelo Espirito
Santo, o chama 'seu Senhor' quandoi diz: O Senhor disse a meu
Senhor: Senta-te á minha direita. até que eu ponha os teus immigos
como escabelo de teus pés? Se Davi o chama 'Senhor1, como é ele
seu filho?'
E nlnguém lhe podia responder urna palavxa. Nem qualquer déles
ousou daquele dia em diante íazer-lhe mais perguntas».
Ou ainda:
«Acorrendo a Jesús as multidóes, comecou Ele a dizer: 'Esta ge-
racao é urna geracá.o má. Pede um sinal, mas outro sinal nao lhe
será dado senáo o sinal de Joñas. Assim como Joñas foi um sinal
para os ninivitas, do mesmo modo o Filhd do homem será um sinal
para esta geracáo.
A rainha do sul levantar-se-á no dia do julzo com os homens
desta geracáo e os condenará, porque veio dos extremos da térra
para ouvir a sabedoria de Satomáo, e aqui está quem é maior do que
Salomao.
Os habitantes de Ninive levantar-se-ao no dia do julzo, junto com
esta geracáo e a condenarfio, porque, ouvindo a pregacá© de Joñas,
flzeram penitencia e éste que aquí está é maior do que Jonas> (Le
11, 29-32).
Tal modo livre de tratar as Escrituras era chamado «pesher»
(explicacáo de texto bíblico em funcSo das conjunturas do momento).

Jesús devia nao raro apresentar seus ensinamentos em


frases ritmadas, com palavras incisivas e parábolas viva-
zes. Muitas vézes terá exortado os discípulos com a fórmula
«Ouvi...!», costumeira ñas escolas rabinicas e nos Evangelhos

— 505 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 2

(cf. Mt 13,18; 19,12; Le 18,6). Como bons semitas, os discí


pulos teráo ouvido, repetido e guardado assim importantes
sentengas do Divino Mestre.
Cristo também enviou os discípulos dois a dois a pregar
ñas aldeias mais remotas da Galiléia; deviam transmitir o
ensinamento de maneira semelhante á do Méstre.
Nao podía deixar de haver durante o ministerio público
de Jesús invectivas por parte dos judeus, a quem a pregacáo
do Senhor podía parecer revolucionaria. Jesús aceitava os con-
flitos e respondía aos interlocutores com sabedoría e majes-
tade (cf. Mt 21,23-46; 22,15-46).
Tal é o ponto de partida ou a fonte da tradigáo evangélica.
É Jesús que ai aparece, colocando-se na linha das Escrituras
judaicas e inaugurando urna linha de pensamento que consuma
a antiga. Ele se designa como «Filho do Homem» (titulo mes-
siánico), mas também... simplesmente como «Filho», que tem
relacóes singulares com o Pai (cf. Mt 11,27). Quando ora,
ouvem-no dizer «Abba!» (Pai) em estilo de familiaridade iné
dito entre os judeus.

2. O «rcontecimenfo de Páscoa

Sobrevieram a morte e a ressurreigáo de Jesús. O Mestre


e amigo de cada día, condenado á morte, reapareceu aos Apos
tólos como o Senhor da vida. Relutaram para aceitar o fato,
mas, por fim, renderam-se incondicionalmente a evidencia. O
modo de pensar dos Apostólos foi profundamente sacudido;
os atos e as palavras de Jesús tomaram, na mente déles, um
relevo novo. Imagine-se alguém que percorra urna paisagem
durante a noite e, pouco depois, a percorra de novo iluminada
pelo nascer do sol. Páscoa projetou luz nova sobre o grupo dos
discípulos de Jesús, fazendc-lhes perceber o significado pro
fundo do que éles haviam visto e ouvido anteriormente.
Deye-se notar o seguinte: os mesmos homens e mulheres
que haviam acompanhado Jesús pelas estradas e aldeias da
Palestina é que passaram a crer no Ressuscitado; Jesús tornou-
-se realmente, para éles, «o Cristo», «o Messias» ou Jesas
Cristo. Por esta designagáo intencionavam afirmar a identidade
total entre o «Jesús da historia» e o «Jesús da fé»; tratava-se
da mésma pessoa.

Os pioneiros do método da historia das formas asseveraram que


as prüneiras comunidades cristas eram grupos ignorantes, desinte-

— 506 —
A ORIGEM DOS EVANGELHOS 19

ressados dos fatos históricos e criadores de mitos e fábulas. Iludiam-


-se, porém. Como teria desaparecido o grupo de testemunhas da pri-
me'ira hora para dar lugar a essas massas incoerentes ou desinteres-
sadas da historia real?

3. O inicio da pregagáo

O impacto da ressurreicáo do Senhor e, a seguir, ó da


vinda do Espirito Santo em Pentecostés impeliram os Apos
tólos — de tímidos que eram — a deixar a sua vida latente
para proclamar a noticia de que Jesús ressuscitara (cf. At 1,
21s: a característica do Apostólo é dar testemunho da ressur
reicáo de Cristo). Esta verdade tornou-se o ponto de partida
e o cerne de toda a pregacáo evangélica.
Nao lhes era necéssário, de inicio, insistir sobre os por
menores da vida e da morte de Jesús. Quem ignorava em
Jerusalém «o que lá acontecerá naqueles dias?» (cf. Le 24,17).
Testemunhas numerosas poderiam ser interpeladas a respeito.
Os grandes ensinamentos, a Paixáo e o triunfo final do Divino
Mestre deviam ser o objeto da pregacáo crista inicial.

Todavía a Boa-Nova teve que passar para fora de Je


rusalém e da Palestina. Foi preciso, portanto, anunciar aos
judeus e gentíos de outras regióes ulteriores noticias sobre Jesús
de Nazaré; assim o cerne da Boa-Nova se viu acrescido no
decorrer dos decenios seguintes.
Ésse crescimento foi, sem dúvida, estimulado pelo desen
rolar da vida das comunidades cristas antigás. A noticia de
que Jesús de Nazaré ressuscitara, devia dividir os homens:
havia quem a aceitasse como também havia quem a repelisse;
em suma, existiam crentes e náo-crentes. Competía aos Apos
tólos corroborar os primeiros e convencer estes últimos. As
dúvidas e discussóes dai decorrentes fizeram que á memoria
dos Apostólos mais e mais aflorassem os ditos e feitos da vida
mortal de Jesús;... sobre ésses ditos e feitos, após a Ressur
reicáo, se projetava a luz de Páscoa, manifestando todo o al
cance dos episodios que os Apostólos haviam vivido outrora
com a consciéncia añida nao plenamente despertada (os Após
telos certamente cresceram na compreensáo do misterio de
Cristo!).
Vejamos mais precisamente de que maneira a vida das
primeiras comunidades cristas influiu na redagáo da pregacáo
evangélica.
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 2

4. Diversos géneros literarios

Como foi dito atrás, podem-se distinguir dois tipos de


ouvintes da mensagem dos Apostólos e dos primeiros missio-
nários: crentes e náo-crentes. As condigóes désses diversos ou
vintes exigiam modalidades próprias de pregagáo.

1) A prega;5o pora os fiéis

A pregagáo para os fiéis, por sua vez, tomou duas formas:


a catequética e a litúrgica.
a) Catequese: os fiéis, após ter recebido a Boa-
■Nova de Cristo mediante a fé e o Batismo, precisavam de ser
ulteriormente orientados. A esta necessidade atendía a cate-
quese, que se fazia geralmente em reunióes comunitarias, como
atestam At 2, 42; 20, 7-12. Na catequese, os mestres propu-
nham sentencas doutrinárias, exortagóes moráis e parábolas
do Senhor Jesús (militas vézes agrupadas em series de dois,
tres ou rnais elementos...).

Exemplos de sentencias doutrinárias: Mt 5, 1-12 (as bem-aventu-


rancas); 6,19-34 (a Providencia do Pai);
«xortacdes moráis: Mt 5, 21-48 (seis fragmentos consecutivos
sobre a antiga e a nova Leis); Mt 13. 12 (fidelidade); Mt 25,29
(vigilancia);
... parábolas: Le 15, 3-32 (tres quadros de misericordia); Mt 13.
1-35 (.reino dos céus); Mt 25, 1-30 (vigilancia e diligencia).

Surgiam também perguntas e dúvidas entre os fiéis, como


se depreende das epístolas de S. Paulo (cf. 1 Cor 7,1; 8,1; 12,
1; 15,12; 1 Tes 4, 13; 5,1; 2 Tes 2,ls.5). Assim, por exemplo,
interrogavam os cristáos: Será preciso jejuar segundo os eos-
turnes dos judeus? Que é feito' da lei do sábado? Que pensar
das normas rituais e da distincáo entre alimentos puros e
impuros? Até que ponto é preciso perdoar? Quais sao os li
mites da caridade? Como se deve orar? Como julgar o casa
mento e o divorcio?... as taxas e os impostes?... as riquezas
déste mundo em geral? A volta do Senhor estará próxima?
A tais questóes respondiam os Apostólos ou por carta ou
de viva voz, evocando palavras, atitudes e gestos do Divino
Mestre que pudessem esclarecer as dúvidas e os casos de cons-
ciéncia. Pode-se crer que boa parte dos dados dos Evangelhos
foi formulada por ocasiáo de tais perguntas feitas em reunióes
comunitarias. Assim se originaram cadeias de respostas aos
problemas da vida crista.

— 508 —
A ORIGEM DOS EVANGELHOS 21

Veja-se, por exemplo,


a respeito do jejum (atitude judaica e atitude crista): Me 2,18-22;
Mt 6,16-18);
a respeito da obrigatoriedade do sábado: Me 2,23-3,6 (dois episo
dios); a respeito de purificagOes rituais e alimentos impuros: Mt
15, 1-20; Me 7, 1-23;
a respeito do perdáo e dos «limites» da caridade: Mt 18,15-18.
21-35; Mt 5,43-48. 21-28;
a respeito do modo de orar: Mt 6.5-15; 18-19s;
a respeito de casamento e divorcio: Mt 5,31s; 19,3-12;
a respeito de taxas e impostes: Mt 17,23-26; 22,15-22;
a respeito das riquezas em geral: Mt 19,16-29 (tres episodios
concatenados);
a respeito da volta do Senhor: Mt 2436; 13,32; 24,42-25,13 (duas
parábolas).

Mais ainda: á medida que a pregacáo dó Evangelho pe-


netrava no mundo pagáo, os fiéis experinientavam a necessi-
dade de conhecer pormenores a respeito do Divino Mestre.
Perguntavam por exemplo: Qual a parentela do Senhor Jesús?
Como se comportava em tais ou tais circunstancias? Como rea-
gia diante de tal ou tal pessoa ou situagáo?
Diante de tais perguntas, avivavám-se as reminiscencias
dos Apostólos e pregadores; transmitiam-nas entáo, sem se
ater ao lugar e a época precisos dos episodios narrados. Nao
importavam muito aos ouvintes as circunstancias geográficas
e cronológicas dos ditos e feitos de Jesús: «no alto de urna
montanha ou em um vale, pela estrada ou á beira do lago, na
Galiléia ou na Judéia, no inicio, no meio ou no fim do minis
terio sagrado...»

Exemplos de traeos biográficos:


Mt 12, 46-50; Me 3, 13-35 (mae, irmaos e parentes de Jesús);
Mt 13,53-58 (Jesús em sua patria);
Le 8, 1-3 (Jesús e sua comitiva);
Mt 23,1-39 (Jesús e os fariseusX.

b) liturgia: desdé os primeiros días do Cristianismo»


os fiéis se reuniarri para «partir o pao» ou celebrar a S. Euca
ristía (cf. At 2, 42). Nessas assembléias litúrgicas, os Apos
tólos e discípulos evocavam a recordacáo de passagens mais
solenes ou teológicas da vida de Jesús, procurando assim apro-
fundar o misterio de Cristo. Foi provávelmente no decorrer
dos atos litúrgicos que se formaram os relatos da Ceia e da
Paixáo,. das aparigóes do Ressuscitado e da sua Ascensáo, do
Batismo e da Transfíguragáo. Note-se, com efeito, que tais

— 509 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, gu. 2

passagens do Evangelho tém seu estilo hierático e forte cunho


teológico.

2) A pregajóo para os náo-erentes

A narracáo do martirio de S. Esteváo (At 6-7) dá-nos a


saber que os ambientes judaicos eram capazes de reagir vio
lentamente contra a pregacáo crista. De resto, em toda parte,
o anuncio da Ressurreicáo do Senhor provocava duras contro
versias, como referem-os antigos escritores cristáos (para um
pagáo, ressurreigáo significava «volta da alma ao cárcere do
corpo», hedionda perspectiva);
Os cristáos, em tais altercaeóes, deviam-se lembrar de que
o próprio Jesús uvera que discutir com os fariseus; voltavam
á mente dos pregadores da Boa-Nova as réplicas de Jesús
com as respectivas circunstancias. Dai se originaram series
de controversias e apoftegmas do Senhor (os apoftegmas sao
sentengas lapidares provocadas por um acontecimento ou urna
controversia).

Tenham-se em vista, por exemplo,


Me 21-3,6 (cinco controversias);
Mt 22, 23-33 (a ressurreicáo dos morios);
Mt 22. 41-46 (Jesús, Filho e Senhor de Davi);
Mt 21, 33-46 (a parábola dos vinhateiros infléis com sua licSo
final);
Mt 12, 38-42 (o sinal de Joñas).

Ñas discussóes com os judeus, Jesús citava freqüentemente


as Escrituras Sagradas. Os discípulos recordavam-se disto e
faziam o mesmo. Depois de Páscoa, compreendiam melhor as
profecías e os demais textos do Antigo Testamento; percebiam
como realmente todas as normas e instituigóes do judaismo
convergiam para Cristo. Relendo a Biblia, os cristáos nela en-
contravam elementos para elaborar a historia e o misterio de
Jesús Cristo sobre a base de citacóes e alusSes bíblicas. Assim
se formaram repertorios e caJdeias de textos bíblicos ampia-
mente utilizados na pregaejáo.

SIrvam de exemplo.
Me 1, 2s (dtacáo de Mal 31 e Is 40,3);
Mt 1, 23 (citacSo de Is 7,14);
Mt 2. 15 (cltacáo de Os 11,1);
Mt 2, 18 (citacáó de Jer 31,15);
os episodios da infancia de Jesús em Le 1-2 estáo cheios de
alusoes implícitas ou explícitas a passagens do Antigo Testamento.

— 510 —
A ORIGEM DOS EVANGELHOS 23

Na apologética tanibém eram muito apreciadas as narra


tivas de milagres; estes davam a ver que Jesús cumprira as
obras do Messias anunciado, restaurando a ordem de coisas
violada pelo pecado. Os Apostólos teráo feito urna selecáo dos
portentos principáis do Mestre, agrupando-os por vézes em
series.

É o que se encontra,. por exemplo, em Mt 8,1-17 (tres milagres


explícitos e varios outros mencionados em geral); Mt 823-9,8 (tres
milagres); Mt 9,18-34 (quatro milagres).

Destarte se vé como se fbram formando, na pregacáo oral


dos Apostólos e dos primeiros discípulos, blocos ou pecas (pe-
quenas unidades), que eram proferidos de acordó com as cir
cunstancias do auditorio com que se defrontavam os prega-
dores cristáos.
Talvez, porém, diga alguém: a necessidade de corresponder
as questóes e dúvidas dos ouvintes nao terá induzido os prega-
dores da Boa-Nova a inventar e criar novos «ditas» e «feitos»
de Jesús? Pode-se crer que a mensagem de Cristo tenha sido
fielmente transmitida, embora os seus arautos tenham sempre
procurado torná-la viva e concreta?
— Nao tem consistencia a hipótese de que os portadores
do Evangelho hajam traído o pensamento do Senhor Jesús.
Com efeito, os Apostólos faziam questáo absoluta de ser meras
testemunhas de quanto ouviram e viram na companhia de
Cristo (cf. os textos do Novo Testamento citados em «P.R.»
90/1967, pág. 248-250). Ademáis um controle cerrado se
exercia sobre a pregacáo crista: controle por parte dos judeus,
que, infensos ao Nazareno, estavam prestes a denunciar qual-
quer fraude na pregacáo do Evangelho; controle também por
parte das próprias comunidades cristas, que, por meio dos Apos
tólos e missionáríos ambulantes, se mantinham em contato
assíduo entre si, de modo a poder repelir qualquer eventual
desvio na pregacáo.

5. Do Evangelho oral ao Evangelho escrito

Aos poucos foi tomando vulto ñas comunidades cristas o


desejo de possuir um ensinamento mais ou menos completo
a respeito de Jesús. Para tanto era necessário combinar entre
si as diversas unidades da pregacáo oral, isto é* parábolas,
milagres, tragos biográficos, ete.

— 511 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 2

Esse agrupamento mais variegado e denso deve ter sido feito,


tomando-se como criterio, por exemplo, um personagem (Joáo Ba
tista; cf Le 3,1-20), urna palavra-chave (pao; cf. Me 634-730, a
«seceáo dos páes», onde o vocábulo p3o ocorre em 6,37.38.41. 52;
7,2.6.27.28), um cenário geográfico (cf. a jornada típica de Cafar-
naum em Me 121-38), um conceito importante (cf. a «Magna Carta
do Reino de Deus» em Mt 5-7, onde se acham colecionados os dizeres
mais frisantes que o Senhor proferlu em circunstancias diversas de
seu ministerio público; os mesmos dizeres se acham esparsos em
Me e Le).

A mensagem da Boa-Nova ou da Redengáo foi sendo mais


e mais colocada dentro do quadro da vida terrestre de Jesús.
Os arautos do Evangelho conceberam um esquema simples da
vida pública de Jesús, esquema composto de quatro partes:

1) a preparacáo do ministerio de Cristo (Joáo Batista, Batismo


do Senhor, tentacoes);
2) a pregacao na Galiléia;
3) a subida a Jerusalém;
4) os aconteclmentos da última semana na Cidade Santa e a
glorificacao do Senhor Jesús.
Dentro désse esquema biográfico foram sendo enquadradas
as unidades e os blócos que a pregacáo anterior transmitía indepen-
dentemente uns dos outros.

Mais aínda: a fim de garantir a fidelidade na transmissáo


do Evangelho, algumas comunidades cristas antigás puseram-
■se a redigir por escrito os ensaios biográficos que inicialménte
eram meramente oráis; fizeram-no tanto em aramaico como
em grego. É o que S. Lucas atesta por volta de 65/70, quando
diz que «muitos tomaram a iniciativa de redigir a narracáo
dos acontecimentos...» (Le 1,1). Assim a tradigáo oral e a
tradigáo escrita foram-se acompanhando mutuamente; urna
influenciava a redagáo da outra. Como se compreende, cada
urna dessas narragóes (oral ou escrita) trazia o cunho da sua
comunidade de origem, refletindo a vida, a catequese, a litur
gia, os embates de tal comunidade.
Um dos primeiros ensaios escritos do Evangelho foi o de
S. Mateus, redigido em aramaico por volta do ano de 50. Nao
nos chegou as máos em sua forma aramaica, mas apenas em
tradugáo grega, que data do ano de 70. Obedecía a duas ten
dencias: agrupar os ehsinamentos do Senhor Jesús em cinco
grandes serm5es (Mt 5-7; 10; 13; 18; 24) e esbogar urna bio
grafía dentro do esquema atrás mencionado. Dessa catequese
de S. Mateus fizeram-se em breve diversas tradugóes gregas,
das quais urna se tornou a oficial, aínda hoje em uso.

— 512 —
A ORIGEM DOS EVANGELHOS 25

Os numerosos dados (oráis e escritos) atinentes a Jesús


e formados paulatinamente ñas comunidades cristas desde o
dia de Pentecostés (ano 30 ou 33 da era crista) tomaram-se
a base a partir da qual os Evangelistas confeccionaran! os seus
quatro Evangelhqs. Note-se que Mateus, Marcos, Lucas e Joáó
nao foram meros compiladores de episodios; embora se tenham
conformado á tradicáo oral s escrita anterior (o que é pa
tente principalmente em Mt, Me e Le), éles elaboraram os
dados que receberam; selecionaram-nos e propuseram-nos se
gundo a feigáo teológica e o estilo próprios de cada Evan
gelista.

6. A ftdelidode dos Evangelistas

1. A tentativa de reconstituir a origem dos Evangelhos


ácima proposta é plenamente ortodoxa, ou seja, compatível
com a fé católica. Resulta da aplicacáo do método da historia
das formas ñas escolas católicas, aplicagáo feita de modo a
ressalvar a agáo do Espirito Santo na confeceáo dos textos
evangélicos.
Em outros termos: o exegeta católico reconhece, de um
lado, com toda a lealdade os resultados adquiridos pela crítica
moderna. O Evangelho escrito tem realmente a sua pré-
-história,... pré-história muito marcada pela vida das pri-
meiras comunidades cristas. Doutro lado, o estudioso católico
afirma que o texto do Evangelho nao se deve exclusivamente
a fatores e embates humanos (os quais poderiam, sim, ser
deturpadores), mas, ao contrario, a pregacáo oral e a redagáo
escrita da Boa-Nova sempre foram orientadas pelo Espirito
Santo prometido por Jesús á sua Igreja, de tal sorte que o
texto oficial dos SS. Evangellios é realmente a expressáo fiel
de quanto Jesús apregoou aos Apostólos e ao mundo.
2. É importante verificar em que termos precisos os
Evangelistas foram fiéis á mensagem de Cristo.
Por certo, S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. Joáo nao
intencionaran! ser cronistas, que relatam a seqüéncia dos acon-
tecimentos «dia por dia», apresentando simplesmente a face
exteritír dos episodios ocorridos! Outra foi a tarefa dos Evan
gelistas: quiseram ser historiadores que permitissem aos seus
leitores experimentar o valor religioso dos acontecimentos que
éles relataran^ tencionaram iniciar o público no misterio da
pessoa de Jesús Cristo. Os Evangelistas procuraram, antes do
mais, comunicar a fé e o amor que haviam recebido de Cristo

— 513 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 2

através de fatos históricos; por isto foram menos exatos do


que o cronista ou repórter, porque expressaram enfáticamente
a mensagem (ou o conteúdo de verdade) que cada episodio do
Evangelho encerra. Em outros termos: os Evangelistas podem
ser ditos «teólogos que, a partir de fatos reais, quiseram intro-
duzir os leitores no misterio do Homem-Deus».

Entre um cronista e um Evangelista existe a diferenca


que vai de um fotógrafo para um retratista. O retratista apre-
senta figuras reais, pondo, porém, em realce especial os traeos
marcantes de cada personalidade retratada.
O quadro colocado á pág. 27 [515] déste fascículo ilustra
quanto acaba de ser proposto sobre a génese dos Evangelhos;
chama a atengáo para dois fatos:
os Evangelhos se foram formando paulatinamente; sao,
pois, como um terreno sedimentar em que se podem descobrir
diversos estrados;
há um liame muito sólido entre os Evangelistas, as pri-
meiras comunidades cristas e a pessoa mesma de Jesús de
Nazaré; essa linha de continuidade foi guiada pelo Espirito
Santo de modo que nenhuma deturpacáo nela se produzisse.

— 514 —
EV. OE MATEUS
(Palestina, - 70)

EV.OE LUCAS
REDAMAD (Antioquia.te5-70)

EV. DE MARCOS
(Roma. ±60-65)

EVANGELHOS ORÁIS
E PRIMEIROS ENSAIOS DE REOACAOÉSO)

AGRUPAMENTOS
de pequeñas unidades literarias

Apología Controversia Catequese

QUERI6MA:
O S E N HOR
LABORACAD RESSUSCITOU

N8o-crentes
L Crentes

f~ Comunidade primitiva

| Familiares APO'STOLOS

O ACONTECIMIENTO PASCAL (ano30)

| Familiares APD'STOLOS

FONTE

JESÚS DE MAZARE

— 515 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 3

III. DOGMÁTICA

3) «Como foi reformulada a lista; de indulgencias que


podem ser lucradas pelos fiéis?»

Besump da resposta: As páginas que se seguem, sup&em o ar


tigo de «P.R.» 90/1967, pág. 252-261. PropSem as principáis ocasioes
as quais a nova legislacáo da Igreja associa o lucro de indulgencias.
Há, antes do mais, tres concessOes gerals de indulgencias, que
sao aptas a dar novo valor a toda a vida do cristáo:
1) pode lucrar indulgencia parcial quem, no cumprimento de seus
deveres ou no sofrimento, proíere alguma invocagáo piedosa (varios
exemplos de tais invocacOes sao enunciados no texto do artigo);.
2) pode lucrar indulgencia parcial quem, por amor a Deus, serve
aos irmáos indigentes;
3) pode lucrar indulgencia parcial o cristáo que, por espirito
de penitencia, se abstenha espontáneamente de algo de agradável e
licito.
Como se vé, tais concessoes gerais de indulgencias visam fomen
tar a prática da virtude e da uniáo com Deus em todos os fiéis. O seu
alcance pastoral é valioso.

Além dé tais cláusulas; a S. Igreja concede indulgencia (plenária


ou parcial) a quem pratique certos atos de piedade específicamente
mencionados no texto que se segué.
É de lembrar que, para que um cristáo lucre indulgencia, deve
nutrir em si profundo espirito de dovaeao, alheio á rotina.

Resposta: Em nossa resposta, proporemos sucintamente


algumas nocóes capitais referentes as indulgencias, nocóes já
mais difusamente explanadas em «P.R.» 90/1967, pág. 252-
-261. A seguir, examinaremos as principáis ocasioes em que,
segundo a nova legislacao da Igreja, é possível ao cristáo
lucrar alguma indulgencia.

1. Que sao as indulgencias ?

1) «Indulgencia» é o perdáo da pena temporal que cor


responde á expiacáo de pecados já perdoados. — O funda
mento teológico desta nocáo foi apresentado no artigo de
«P.R.» ácima citado.
2) As indulgencias podem ser plenárias (quando equiva-
lem á remissáo de toda a pena temporal) ou parclais (quando
sómente urna parte da pena é cancelada). A expressáo «indul
gencia parcial» nao se acrescenta mais a determinacáo de dias

— 516 -^
INDULGENCIAS: NOVO ESTATUTO 29

ou anos, como se fazia outrora, pois a ayaliacáo de dias e anos


supunha a praxe da penitencia pública vigente na Igreja
antiga.
3) A indulgencia parcial é estimada do seguinte modo:
Quem realiza urna obra boa, adquire sempre certo mérito
(variável de acordó com o fervor com que a pessoa se desem-
penha ao agir). Dado, porém, que essa obra boa seja indul
genciada pela Igreja, o cristáo adquire o duplo do mérito res
pectivo.
Assim formulada, a praxe das indulgencias vem a ser um
estímulo para que os fiéis se afervorem em sua vida espiritual,
procurando sempre, e cada vez mais, agir por amor.
4) A indulgencia plenária só pode ser adquirida urna vez
por dia. Todavía, se alguém se achar diante da morte imi-
nente no dia mesmo em que tiver lucrado indulgencia ple
nária, poderá adquirir a indulgencia plenária concedida aos
moribundos.
As indulgencias parciais podem ser adquiridas varias vézes
por dia.
5) As indulgencias adquiridas podem sempre ser utiliza
das em sufragio das almas do purgatorio. Se nao, elas bene-
íidam a pessoa mesma que as lucra; nao podem ser adquiri
das em favor de outra pessoa viva neste mundo.
6) Para lucrar a indulgencia plenária anexa la visita de
determinada igreja, é necessário que, por ocasiáo da visita, o
cristáo reze um «Pai Nosso» e um «Credo».
7) Para obter indulgencia plenária, requer-se, além da
obra prescrita, o cumplimento de tres condicóes: confissáo
sacramental, comunháo eucarística, oracáo segundo as inten-
cóes do S. Padre. É necessário também que o cristáo extinga
em si todo apego ao pecado (aínda que leve) e tenha a inten-
cáo de ganhar a indulgencia que lhe é oferecida.
As tres condigóes ácima poderáo ser preenchidas alguns
dias antes ou depois da obra indulgenciada; convém, porém,
que a S. Comunháo e a prece segundo as intencóes do S. Padre
tenham lugar no dia mesmo em que se cumpre a obra indul
genciada.
8) Com urna só Confissáo podem-se lucrar varias indul
gencias plenárias. Todavía requer-se urna Comunháo e urna
oracáo ñas intengóes do Sumo Pontífice para cada indulgencia
plenária.

— 517 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968. qu. 3

9) A prece segundo as intengóes do S. Padre pode cons


tar de um «Pai Nosso» e urna «Ave María». É, porém, licito
a cada pessoa escolher outra qualquer oragáo.
10) O confessor pode trocar ou a obra prescrita ou as
condigóes para lucrar indulgencia, em favor de pessoas que
estejam legítimamente impedidas de satisfazer as determina-
góes vigentes.
Eis agora o catálogo dos atos (obras boas e preces) indul
genciados segundo a nova legislagáo da Igreja.

2. O catálogo de indulgencias

Distinguem-se, numa primeira categoría, tres concessóes


gerais. A seguir, enumera-se urna serie de obras distintamente
especificadas.

A. Tres concessóes gerais

Estas tres primeiras concessóes podem ter por objeto


qualquer ato da vida crista. Desde que realizada com fervor
ou em espirito de oragáo e uniáo com Deus, toda agáo do
cristáo pode nao apenas redundar em aumento da graga san
tificante em sua alma (efeito éste que se segué sempre a qual
quer ato fervoroso), mas também pode obter remissáo da pena
devida a pecados anteriormente cometidos pelo cristáo e alivio
para as almas do purgatorio. Toda a trama da vida crista,
desde que vivida de maneira consciente (afastada a rotina,
que depaupera os atos humanos), pode assim adquirir valor
e significado novos. Todavía é necessário, para tanto, que o
cristáo procure elevar freqüentemente o seu espirito a Deus,
sacudindo a tendencia á indiferenga ou á mediocridade que
constantemente ameagam a vida do homem sobre a térra.

Eis as tres grandes concessóes:

1) É concedida indulgencia, parcial a todo cristáo que,


no cumplimento de seos deveres e no' suportar as tribulacóes
da vida' presente, levante a mente a Deus com humilde con
fianza, proferindo, ao mesmo tiempo, alguma invocacáo piedosa.
Esta invocacáo pbde ser dita mentalmente apenas, nao sendo
necessária urna oracáo' vocal ou labial.

— 518 —
INDULGENCIAS: NOVO ESTATUTO 31

Mediante esta primeira norma, a S. Igreja tem em mira


estimular os seus filhos a fazer de toda a sua vida urna ora-
Cáo continua, de acordó com o preceito do Senhor: «É preciso
orar sempre» (Le 18,1). Visa também exortar os fiéis a cum-
prir os deveres de seu próprio estado de modo a conservar e
aumentar a uniáo com Cristo.
Sugerem-se, entre outras, as invocagóes abaixo transcri
tas. Cada cristáo poderá escolher a que mais convier á situagáo
em que se ache. Nada impede, porém, que a pessoa mesma
formule espontáneamente a prece ou jaculatoria que mais cor
responda á sua devogáo.
É também de notar que as jaculatorias ou invocagóes como
tais nao sao indulgenciadas (á diferenga do que se dava ou-
trora). Atualmente as jaculatorias indulgenciadas devem ser o
complemento de urna obra (ou seja, do dever cumprido ou da
tribulagáo suportada).
Poderá, portante, alguém dizer:

«Senhor, salva-nos; estamos a perecer!> (Mt 8, 25)


«Permanece «mosco. Senhor!» (Le 24. 29)
«Salve, ó cruz, esperanga única!» (do Breviario)
«Meu Deus e meu tudo!»
«Meu Senhor e meu Deus!» (Jo 20, 28)
«Ensina-me a íazer ai tua vontade, pois és o meu Deus» (SI
142, 10)
<rPai, em tuas máos entrego o meu espirito» (Le 23, 46; SI 30. 6)
«Meu Jesús, misericordia!»
«Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo!» Mt 16, 16)
«Senhor Deus, sé propicio a mim pecador!» (Le 18, 13)
«Misericordioso Jesús, dai-lhes o repouso!»
«Gloria ao Pai, ao Filho e ,ao Espirito Santo!»
«Bendita seja a Santissima Trindade!»
«Senhor. aumenta-nos a íé» (Le 17, 5)
«Cristo vence! Cristo reina! Cristo impera!»
«Sagrado Coracao de Jesús, em Ti confio»
«Sagrado Coracáo de Jesús, tudo seja por Ti!»
«Sagrado Coracáo de Jesús, tem piedade de nos!»
«Sagrado.Coracáo de Jesús, ardente de amor por nos, inflama o
nosso ooracáo no amor de Ti!»
«Louvado e adorado seja para sempre o Santissimo Sacramento!»
«Senhor, íaca-se a uniáo das mentes na verdade e a uniáo dos
coracoes na caridade!»
«Doce Coracáo de María, sé a minha salvacáo!»
«Santa María, roga por nos!»
«Rainha concebida sem pecado original, roga por nos!»

— 519 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 3

«Roga por nos. Santa Máe de Deus, para que sejamos dignos das
promessas de Cristo!»
«Máe minha. coníianga minha!»
«Máe dolorosa, ora par nos!»
«Jesús, María, José!»
«Jesús, María, José, eu vos dou o meu coracáo e a minha alma!»
«Jesús, María. José, assisti-me na última agonia!»
«Jesús, María, José, dormlrei e repousarel em paz oonvosco!»
«Todos os Santos e Santas de Deus, intercedei por nos!»

Recorrendo a tais invocagóes para santificar as suas obri-


gagóes e dores, o cristáo estará realizando o ideal freqüente-
mente incutido pela Escritura Sagrada, guando diz:
«Velai sobre vos, para que vossos coragóes nao se embru-
tegam pelos cuidados desta vida... Vigiai, portante, orando
sem cessar» (Le 21, 34-36).
«Quer comáis, quer bebáis, quer fagáis qualquer outra
coisa, fazei tudo para a gloria de Deus» (1 Cor 10, 31).
«Tudo que fizerdes, seja por palavra, seja por obra, fazei
tudo em nome do Senhor Jesús, dando por intermedio déle
gragas a Deus» (Col 3, 17).
«Entregai-vos continuamente, pelo Espirito, a toda especie
de oracáo e súplica. Dedicai-vos a estas práticas com perseve-
ranga incansável» (Ef 6, 18).
«Vigiai e orai para nao entrar em tentagáo» (Mt 26, 41).
«Orai sem cessar. Dai gragas por tudo» (1 Tes 5, 17s).

2) J5 concedida indulgencia parcial ao cristáo que, mo


vido por espirito de fé e misericordia, dolotea a sua pessoa
ou os seus bens ao servico dos irmaos que padecem neces-
sidatie.

Desta forma deseja a S. Igreja incentivar o ardor da


caridade nos fiéis, levando-os a servir ao próximo. Todavía
nao qualquer obra de caridade é indulgenciada; requer-se seja
prestada em favor de quem precise de algum beneficio, quer
corporal (alimento, roupa, dinheiro...), quer espiritual (con
soló, instrugáo...).
Praticando essaa obras com fervor, o cristáo vivera as
grandes normas ditadas pelo Senhor Jesús e os Apostólos:
«Tive fome, e vos me destes de comer. Tive sede, e vos
me destes de beber. Estive desabrigado, e me escolhestes; nu,

— 520 —
INDULGENCIAS: N6VO ESTATUTO 33

e me vestistes; doente, e me visitastes. Estivé no cárcere, e


vieste ver-me. Em verdade vos digo que, todas as vézes que
fizestes isto a um déstes meus irmáos mais pequeninos, foi a
mim que o fizestes» (Mt 25, 35-36.40).
«Eu vos dou um novo mandamento: que vos améis uns
aos oütros. Assim como eu vos amei, vos vos deveis amar
uns aos outros. Por éste sinal todos conheceráo que sois meus
discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 34s).
«A religiáo pura e sem mancha diante de nosso Deus e
Pai é esta: confortar os órfáos e as viúvas em suas afligóes e
conservar-se puros da corrupcáo déste mundo» (Tg 1, 27).
Cf. Tg 2, 15s.
«Se alguém possui bens déste mundo e, vendo seu irmio
passar necessidade, lhe fechar o coracáo, como pode habitar
néle o amor de Deus? Filhinhos, nao amemos nem de palavra,
nem de língua, mas por atos e de verdade» (1 Jo 3, 17s).
O Concilio» do Vaticano II, por sua vez, incutiu oom grande
énfase os deveres da caridade:

«Onde quer que haja alguém que careca de comida e bebida, de


roupa, casa, medicamentos, trabalho, instrucáo. de condicSes necessá-
rias para tuna vida realmente humana, que esteja atormentado pelas
tribuíales ou pela doenca, que sofra exilio ou prisáo, ai a caridade
crista deve procurá-lo e descobri-lo, aliviá-lo com carinhosa assisténcia
e ajudá-lo com auxilios oportunos» (Decreto «Apostolicam Actuosita-
tem», n' 8).
«O Pai quer que reeonhecamos Cristo como irmáo em todos os
homens e amemoa eficazmente tanto em palavras como em atos,
prestando assim testemunho a Verdade e comunicando aos outros o
misterio de amor do Pai celeste» (Const. «Gaudium et Spes» n' 93).

3) É concedida indulgencia parcial ao cristáo que, mo


vida/por espirito de penitencia, se abstenha espontáneamente
de algo que lhe seja lícito e agradável.

Esta terceira grande determinacáo representa algo de


novo na praxe da Igreja. Visa atender aos tempos atuais; as
leis do jejum e da abstinencia foram mitigadas; nao obstante,
os fíéis sao exortiados a praticar a.penitencia por outras vias.
Na verdade, a penitencia nunca poderá ser supressa na vida
crista, pois dá aos fiéis partitipacáo áa Paixáo de Cristo a
fim de que possam ter parte igualmente na ressurreicáo glo
riosa do Senhor. £ por isto que a S. Igreja procura estimulá-
-la mediante a determinacáo ácima.

— 521 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 3

A abstinencia e as privagóes voluntarias do cristáo se


tornam frutuosas por excelencia, quando sao associadas á ca-
ridade, ou seja, guando redundam em beneficio do próximo;
que o cristáo dé aos mais pobres aquilo de que nao usa em
seu proveito!
A penitencia é recomendada por numerosos textos bí
blicos:
«Se alguém quer seguir-me, renuncie a si mesmo, tome
a sua cruz todos os dias e siga-me» (Le 9,23).
«Se nao fizerdes penitencia, todos pereceréis do mesmo
modo» (Le 13,5).
«Todos aqueles que participam das lutas (do estadio),
abstém-se de tudo. Éles, para obter urna coroa corruptível;
nos, pelo corttrário, urna inoorruptível. De minha parte, por-
tanto, também corro, mas nao na incerteza; pratico o pugilato,
mas nao como quem fere o ar. Trato rudemente o meu corpo
e o conduzo como escravo» (1 Cor 9, 25-27).
«Trazemos sempre conosco, em nosso corpo, a morte de
Jesús, para que também a vida de Jesús se manifesté em
nosso corpo» (2 Cor 4, 10).
«(Cristo) veio ensinar-nos a renunciar & impiedade e aos
desejos mundanos e a viver neste mundo com ponderacáo, jus-
tiga e piedade» (Ti 2,12).
«Na medida em que participáis dos sofrimentos de Cristo,
alegrai-vos, para que, na manifestagáo de sua gloria, vos ale
gréis também e exultéis» (1 Pe 4, 13).
Vém agora

B. Outras concessóes

. A Igreja, segundo a praxe tradicional, quer também in


dulgenciar os fiéis que pratiquem certas obras ou oragóes
precisamente especificadas. Essas obras e preces sao oficial
mente em número de setenta, das quais as principáis podem
ser assim discriminadas:

1) Leitura da S. Escritura. Concede-se indulgencia par


cial ao cristáo que leia devotamente a Biblia Sagrada. A in
dulgencia é plenária, desde que a leitura dure ao menos meia-
-hora.
2) Visita ao SS. Sacramento. Concede-se indulgencia par
cial a qúem visite o SS. Sacramento para O adorar. A indul-

— 522 —
INDULGENCIAS: N6VO ESTATUTO 35

géncia é plenária, caso a visita se protraia por meia-hora ao


menos.

3) Rosario. Concede-se indulgencia plenária a quem re


cite o Rosario (quinze misterios) ou numa igreja ou em fami
lia ou numa comunidade ou numa associacáo religiosa. A
indulgencia é parcial ñas demais circunstancias possíveis.
A recitagáo do ter§o (cinco misterios) também se atribuí
indulgencia plenária, desde que
— as dezenas sejam ditas sem interrupgáo,
— se una á oragáo vocal a meditagáo dos respectivos
misterios.

4) Vía Sacra. Concede-se indulgencia plenária a quem


pratique o exercício da Via Sacra.
Para que éste se possa realizar, requerem-se quatorze
cruzes postas em serie ícom alguma imagem ou inscricáo, se
possível) e devidamente bentas. O cristáo deve oercorrer essas
cruzes, meditando a Paixáo e a Morte do Senhor (nao é ne-
cessário que siga as cenas das quatorze clássicas estacóes;
pode utilizar algum livro de meditacáo). Caso o exercicio da
Via Sacra se faga na igreja. com grande afluencia de fiéis,
de modo a impossibilitar a locomoráo de todos, basta que o
dirigente do sagrado exercício se locomova de estagáo a es-
tagáo.
Quem nao possa realizar a Via Sacra ñas condicóes ácima,
lucra indulgencia plenária lendo e meditando a Paixáo do
Senhor pelo espago de meia-hora ao menos.

5) Oracá» mental. O cristáo que realize- piedosamente a


sua oragáo mental, lucra de cada vez urna indulgencia parcial.
6) Prepa^áo. O cristáo que, atenta e devotamente, assista
á pregacáo da palavra de Deus, adquire indulgencia parcial.
Concede-se indulgencia plenária a quem, por ocasiáo das
sagradas Missóes, ouga alguma das pregagóes e participe do
solene encerramento das mesmas.

7) Primeva Comunhao. Aos fiéis que fagam a sua Pri-


meira Comunhao ou assistam ás respectivas cerimónias, é coni-
cedida indulgencia plenária.

8) Comunhao espiritual. £ atribuida indulgencia pardal


a quem realize urna Comunhao espiritual, qualquer que seja á
fórmula entáo utilizada.

— 523 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 3

9) Exercícios espirituais. Concede-se indulgencia plenária


ao cristáo que se aplique a exercicios espirituais era retiro pelo
espago de tres días ao menos.
10) Recolhimento ntensal. Aos fiéis que realizam umdia
de recolhimento mensal, concede-se de cada vez indulgencia
plenária.
11) Catequese. O cristáo que se aplique a ensinar ou
de recolhimento mensal, concede-se de cada vez indulgencia
parcial.
12) Atos de virtudes. Quem devotamente recita um ato
de fé, esperance, caridade ou contricáo (qualquer que seja a
fórmula legítima) adquire de cada vez indulgencia parcial.
13) Visita de cemitério. Quem visite, com ánimo reli
gioso, um cemitério e néle ore pelos fiéis defuntos, lucra indul
gencia em favor das almas do purgatorio, indulgencia que de
1» a 8 de novembro é plenária, e nos demais días do ano é
parcial.
14) Objetos de piedade. Quem usa devotamente algum
objeto de piedade (crucifixo, rosario, escapulario, medalha),
bento por qualquer sacerdote, lucra indulgencia parcial.
Se o objeto fór bento pelo Sumo Pontífice ou por algum
Bispo, o cristáo, usando-o devotamente, pode obter indulgencia
plenária na festa dos Apostólos S. Pedro e S. Paulo, contanto
que recite entáo urna profíssáo de fé.
15) Em artigo de morte. Dado que algum cristáo esteja
em grave perigo de morte e nao haja sacerdote que lhe possa
assistir, a Igreja lhe concede indulgencia plenária, contanto
que ésse cristáo esteja devidamente disposto (contrito de seus
pecados) e durante a sua vida tenha habitualmehte feito algu-
mas preces. Para adquirir essa indulgencia plenária, recomenda-
-se o uso de um crucifixo (a ser osculado ou contemplado).
16) Culto dos Santos. Quem no dia da festa de algum
Santo, recite em sua honra a oragáo respectiva contada no
Missal ou outra prece aprovada, lucra indulgencia pardal.
17) Sinal da Cruz. Obtém indulgencia parcial, quem se
persigne, dizendo as palavras: «Em nome do Pai e do Fllho
e do Espirito Santo».
18) Promessas do Batismo. Lucra indulgencia parcial
quem renové as promessas de seu Batismo. A indulgencia é
plenária quando a renovagáo ocorre na celebrágáo da vigilia
de Páscoa ou no aniversario do respectivo Batismo.

— 524 —
INDULGENCIAS: N6VO ESTATUTO 37

19) Igreja paroquial. Concede-se indulgencia plenária ao


cristáo que visite devotamente a sua igreja paroquial
— na. festa do respectivo titular ou
— no dia 2 de agosto (dia da Porciúncula).
Urna e óütra~ destás indulgencias podem ser, adquiridas
em outro dia, estipulado pelo Ordinario do lugar segundo ás
conveniencias dos fiéis.
Além dos casos até aqui indicados, deve-se observar que
a S. Igreja concede indulgencia também,a quem recite piedo-
samente certas oragóes como
«O anjo do Senhor» ou- «Rainha do céu» (ind. parcial)
«Alma de Cristo, santificai-me» (ind. pardal)
«Creio em Deus...» (ind. parcial)
o Oficio dos Defuntos: Laudes ou Vésperas (ind. parcial)
o SI 129 — «Das profundezas do abismo...» (ind. parcial)
o SI 50 — «Miserere» (ind. parcial)
«Eis-me aqui, ó bom e dulcíssimo Jesús» (depois da Co-
munháo, diante de urna imagem do Crucifixo, indulgencia
plenária ñas sextas-feiras da Quaresma e da Paixáo; indul
gencia parcial nos outros dias do ano)
Ladainhas do SS. Nome de Jesús, do Sagrado Coragáo,
do Preciosíssimo Sangue, de Nossa Senhora, de S. José, de
Todos os Santos (ind. parcial)
«Magníficat» (ind. parcial)
«Lembrai-vos, ó piedosa Virgem María» (ind. parcial)
os Oficios Menores da Paixáo do Senhor, do Sagrado Co-
racáo de Jesús, de Nossa Senhora, da Imaculada Conceicáo,
de S. José (ind. parcial)
«Salve Rainha» (ind. parcial)
«Te Deum» (ind. parcial; no dia 31 de dezembro, ind. ple
nária)
«Vinde, Espirito Santo» (ind. parcial).
Eis os principáis meios pelos quais se podem lucrar indul
gencias. Seja lícito repetir: a nova legislagáo tende a fazer da
instituicáo das indulgencias um estimulo para a renovagáo da
vida crista, aprofundando-a e afervorando-a. Está removida
toda aparéncia de obtengáo «mecánica» da salvagáo. Doutro
lado, pode-se crer que, para quem deseja viver urna vida
crista fervorosa, nao é difícil lucrar indulgencias; estas sao

— 525 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 4

sempre proporcionáis ao fervor (maior ou menor) de quem


realiza a obra indulgenciada.
Recomenda-se, pois, aos pastores de almas, aos catequis
tas, orientadores e a todas as pessoas que tém o zélo da santí-
ficagáo, divulguem ao máximo o novo catalogo de indulgencias,
principalmente as tres concessóes gerais mencionadas em pri-
meiro lugar.

A respeito podem-se consultar:


«Enchlridion Indulgentiarum». Vaticano 1967.
Ernesto Mura, «Comstitutionis Apostollcae 'Indulgentiarum Doctri
na' breve commentarium». Vaticano 1967.

IV. MORAL

4) «Em vista dos numerosos acidentes automobilísticos


registrados no mundo inteiro, fala-se hoje da 'doenca do
automóvel'.
Que diz a consciéncia crista a respeito?»

Resumo da resposta: Os desastres automobilísticos, cujo número


val crescendo no mundo inteiro, preocupam nao sómente as autori
dades civis, mas também os médicos e os moralistas. Fala-se da
«doenca do automóveb ou da «furia do volantes, que.causa a morte
ou a desgrana nao apenas aos motoristas, mas também a grande
número de pessoas inocentes.
As causas de tao íreqüentes desastres no mundo de hoje sao
varias:
o excesso de velocidade. Está averiguado que a velocidade propor
ciona ao motorista urna certa volúpia ou euforia;
o álcool, que ém grau maior ou menor perturba as faculdades
visuais e perceptivas de quem guia;
o menosprézo das leis do tráfego;
as «compensacSes psicológicas»: é no volante que nao poucas
pessoas, de certo modo oprimidas pelo peso da vida, pretendem afir
mar o que elas sao ou desejariam ser.
Ora diante désse quadro a consciéncia crista lembra decidida
mente aos motoristas a obrigacao de se precaver contra desastres; as
leis que regulamentam o tráfego decorrem de certo modo, do quinto
mandamento («Nao matar») e do sétimo preceito («Nao roubar, nao

— 526 —
A «FURIA DO AUTOMOVEL» 39

ejudicar o próximo em seus bens materiais») da lei de Deus. É para


sejar que o motorista crlstáo guie em espirito religioso ou cristáo.

Resposta: Os desastres de automóvel em nossos días nao


preocupam apenas as autondadés ciyis e os técnicos da indus
tria, mas também os médicos, os psiquiatras, os sociólogos, os
criminalistas... Dizem que o homem frente ao volante se
toma aos poucos um animal perigoso e que «a doenga do
automóvel» é um dos grandes males da época presente.
A fim de explanar o assunto, proporemos abaixo: 1) o
problema em suas grandes linhas, 2) as principáis causas dos
desastres, 3) urna reflexáo ñnal.

1. O problema

Há algufts anos atrás ainda era relativamente, reduzido


o número d«*¿ motoristas que se entrégavaih áo nervosismo e
á violencia no exercíció de sua. profissáo. Hoje em día, porém,
verificam os peritos que muito numerosas sao as pessoas con
taminadas pela «furia do automóvel»: homens de responsabi-
lidade, jovens educados e corteses em todo o seu comporta-
mentó, sao «transformados» pelo carro, tornando-se em poucos
momentos pessoas irascíveis e violentas; a disputa de um lugar
para estacionar ou a realizagáo de urna manobra pouco feliz
sao suficientes para desencadear reacóes brutais...
A «furia automobilística» produz vítimas cujo número au
menta de ano para ano, como sugerem as estatísticas, das quais
váo abaixo transcritos alguns poucos elementos (comidos sem
intengáo sistemática):
A Organizagáo das Nacóes Unidas deu a saber que, em
1963, 80.000 pessoas encontraran! a morte ñas estradas da
Europa, e 43.000 ñas dos Estados Unidos da América.

Na Bélgica, registraram-se os segirintes casos:

1953 1963

Desastres automobilísticos 101.810 214.993


Vitimas falecidas instantáneamente 702 1.207
Feridos gravemente 6.090 15.145
Feridos menos gravemente .. 30.768 70.808

— 527 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 4

Em 1965, o mesmo país contou mais- de 1.800 mortos em


desastre de automóvel.

A Franga oferece, entre outros, os seguintes dados:

Número de mortos
ñas estradas-

1960 8.277
1963 10.227
1964 12.100

Nao basta ponderar apenas o número de vítímas diretas


dos desastres automobilisticos. Há também as vítímas indire-
tas: enancas que se tornam órfás, cónjuges que enviúvam,
familias que sofrem abalos em sua situagáo financeira por
causa das despesas de médico ou indenizagáo, pessoas que fí-
cam profundamente marcadas em sua vida psíquica pelo trau
matismo de um desastre sofrido...
Nao será necessário tecer longas consideragóes para lem-
brar quáo dolorosos e trágicos sao freqüentemente os desastres
automobilisticos, nao sómente para o próprio motorista, mas
também para um conjunto de outras pessoas...
Impóe-se agora examinar

2. Qucris as causas ?

Dentre os varios fatóres de acidentes automobilísticos, qua-


tro merecem particular atendió:

1) A volúpia da velocidade

A velocidade fácilmente exerce fascinagáo sobre o moto


rista, principalmente quando jovem. É o que atesta a expe
riencia cotidiana, corroborada por certos casos famosos:
A escritora francesa Francoise Sagan confessa que em
1961/1962 guiava de pés descalzos o seu carro esportivo;...
de pés descalgos, a fim de poder experimentar mais vivamente
o prazer de calcar o acelerador...
Nos Estados Unidos, James Deán, cognominado «o deus
dos jovens», encontrou a morte quando guiava um veículo á
velocidade de 140 km por hora.

— 528 —
A «FURIA DO AUTOM6VEL» 41

Aldous Huxley, em seu livro «Chrome Hellow», refere a


seguinte historia:

«Um jovem extremamente tímido possuia um carro, que ele


guiava com facilidade, tornando-se surpreendentemente corajoso e
seguro de si quando aplicado ao volante. Ésse jovem amava urna
moca, á qual, porém, nao tinha a coragem de revelar seus sentimen-
tos íntimos; ora íoi justamente quando um dia em estrada perigosa
guiava a 150 km por hora que ésse rapaz, tendo ao lado a namorada.
concebeu o ánimo de a pedir em casamento».

Todavía nao se pode dizer que a volúpia da velocidade


afete apenas os jovens. Também a idade madura está sujeita
a cometer imprudencias nesse setor; verdade é que nao raro
os mais velhos procuram urna justificativa para os seus
arroubos:

«Tenho um encontró com hora marcada, e íui retido quando ia


sair de casa... Nao posso perder a hora».
«Tempo é dirtfieiro».
«Conhego os meus reflexos, e sei dominá-los».

O Dr. Lantheaume, tendo analisado 10.000 casos de de


sastres automobilísticos, redigiu o quadro seguinte, que tenta
ilustrar a relagáo existente entre a gravidade dos ferimentos
acarretados por um desastre e a velocidade do carro aci-
dentado:

até 60 km/ora: contusoes, íraturas simples,


de 60 a 80 km/hora: contusóes e ferimentos graves, ira turas ex
postas,
de 80 a 110 km/hora: há notável proporcáo de mortos nos de
sastres,
ácima de 110 km/hora: a morte se torna quase certa em caso
de desastre.

Estes dados de experiencia constituem urna ligáo digna de


toda a atengáo.
Pode-se registrar outrossim que, dentre os 214.993 desas
tres ocorridos na Bélgica em 1983,

32.993 eram devidos a excesso de velocidade,


23.790 a ultrapassagem perigosa,
5.905 ao eíeito de bebidas alcoólicas.

A Franga registrou os seguintes dados concementes a


1963: dentre tres mortos em desastre automobilístico, um fóra
vítima de velocidade excessiva, e outro de bebida alcoólica.

— 529 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 4

Deve-se, pois, mencionar agora

2) O álcool, ou seja, a euforia que mata...

Nao sao as pessoas viciadas pelo álcool que aqui vém


primeiramente em consideracáo. A bem da verdade, deve-se
dizer que varios alcoólatras tém consciéncia de suas limita-
góes e, por isto, nao se aventuram a dirigir quando se sentem
inabilitados; outros sao impedidos de o fazer por intervengáo
de seus familiares ou da policia.
O perigo vem nao sómente dos «habitúes» do álcool, mas
também, e muito freqüentemente, dos ebrios de urna noite
festiva, de urna aventura ou de urna festa popular; a embria
guez ou simplesmente a euforia entáo produzida é capaz de
ocasionar desastres que se tornam mortais.
A propósito, o Dr. Soubiran publicou eloqüente estatística,
que foi reconhecida pela Academia de Medicina de París.
Segundo ésse estudioso, se o risco de acídente sem previo con
sumo de álcool pode ser representado pelo símbolo 1 (um),
ele sobe a
3 (tres), quando a cota de alcoolemia (número de gra
mas de álcool por litro de sangue) vacila entre 0,15 e 0,99
por mil;
13 (treze), quando a cota de alcoolemia varia entre 1 e
1,49 por mil;
54 (cinqüenta e quatro), quando a cota de alcoolemia é
superior a 1,5 por mil.
Estes dados sugerem as seguintes aplicacóes:
Um automobilista que, em agradável excursáo, regué o
seu almóco com um aperitivo, um litro de vinho e um ou dois
digestivos, deve saber que sua cota de alcoolemia oscilará entre
1,3 e 1,8; correrá, portanto, um risco de desastre que será de
13 a 54 vézes maior do que antes do almóco.
Imagine-se também um homem que certa vez beba em
jejum 1/3 de litro de cerveja ou vinho. Em quarenta e cinco
minutos atingirá urna cota de alcoolemia equivalente a 0,65,
correndo assim um risco de desastres tres vézes maior do que
se nao tivesse bebido.
Verifica-se, alias, que as cercanias dos centros gastronó
micos e das famosas casas de bebida sao freqüente teatro de
acidentes.

— 530 —
A «FURIA DO AUTOM6VEL» 43

Pergunta-se, porém: Como se explica que o álcool seja a


raíz de tantos dramas na estrada?
— O consumo do álcool produz perturbagóes do orga
nismo que influenciam o comportamento do automobilista.
Dentre essas perturbaeóes, note-se: alteracáo da visáo, alte-
ragáo na apreciagáo da distancia e da veloddade de outros
veiculos, excitagáo psico-motriz, prolongamento dos chamados
«intervalos de reagáo»... Éste último fenómeno merece aten-
cáo mais detída:
Entre determinado sinal (acústico, ótico ou táctil) e a
respectiva reagáo do sujeito a quem ele é dirigido, costuma
decorrer certo intervalo de ternpo. Essa reagáo é geralmente
automática ou inconsciente nos automobilistas ou ciclistas que
tenham um pouco de experiencia. Ora certas observagóes mi
nuciosas deram a ver que os intervalos anteriores as reagóes
se tornam mais longos sob a influencia do álcool. Assim urna
embriaguez tida como leve (com a alcoolemia de 1 por mil,
por exemplo) já é suficiente para perturbar nítidamente o
automatismo do paciente. Caso a reagáo do sujeito implique
um ato de escolha, um olhar atento, urna rápida coordenagáo
de movimentos, nota-se que urna alcoolemia pouco inferior a
1 por mil já prolonga de 10% o intervalo anterior (á reagáo;
o número de erros entáo cometidos aumenta de 80%. Alias,
embriaguez tida como leve (com a alcoolemia de 1 por mil,
por exemplo) já perturba o comportamento do sujeito.
Na base déstes dados, leve-se em conta o seguinte: a 70
km/h, um veículo percorre 17,5 m por segundo; a 120 km/h,
30 m; a 150 km/h, 37,5 m... Compreende-se entáo, caso a
agáo do motorista sobre o seu freio seja retardada de alguns
decenios de segundo (o que é bem possível sob o efeito do
álcool, como foi dito ácima), ésse motorista se expóe a desas
tres mortais nao sómente para ele mesmo, mas também para
os seus eventuais passageiros.
Merece atengáo ainda a seguinte observagáo: urna alcoole
mia de 0,5 por mil (cota mínima para que se tripliquem as
probabilidades de desastre) corresponde ao consumo de meio-
-litro de vinho a 1V> por parte de um homem que pese setenta
quilos,

3} O Código de Trófego menosprezado

Outra notável fonte de desastres é a ignorancia ou o


menosprézo das leis que regem o tránsito.

— 531 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 4

Fácilmente pode o motorista convencer-se de que náo^pre-


cisa de estudar o código do tráfego: a experiencia de alguns
anos, urna constante boa sorte, o tino e a habilidade lhe pare-
ceráo suficientes para preservá-lo de desastres no futuro,
como o preservaram até o presente. — Nao obstante, a reali-
dade cotidiana atesta quáo freqüentemente os desastres ocor-
rem por inobservancia das leis do tránsito, mesmo após anos
de bom éxito no volante.

Na Bélgica, por exemplo, dentre os 214.993 desastres registrados


em 1963,
72.118 eram devidos á violagáo do direito de prioridade,
11.393 íoram originados por contra-mao,
22.780 foram causados por ultrapassagem em lugar ou circuns
tancias proibidos.

Donde se vé que o menosprézo das leis do tráfego pode


ser responsável por 50% dos casos dolorosos verificados ñas
nossas rúas e estradas.
É preciso acrescentar a poderosa influencia das

4) Compensacóes psicológicas

O auto é por si um meio de locomogáo, um instrumento


de trabalho ou um fator de recreio... Todavía pode tornar-
-se, para nao poucas pessoas, ocasiáo — quigá inconsciente —
de se compensaren! psicológicamente, afirmando sua superic-
ridade ou virilidade, dando expansáo aos seus instintos agres-
sivos, alheando-se enfim á realidade da sua própria existen
cia... Realidade da própria existencia, que sao os aborreci-
mentos de cada dia, as decepcóes, as dificuldades de paga
mento no fim do mes, a indisciplina e os caprichos dos filhos,
as rixas em casa, as derrotas no esporte, etc.
Numa página consagrada á pressa (em geral), o escritor
Jean Dutourd, detentor de premio literario em 1952, observava
recentemente:

«As pessoas que tém a preocupacáo da pressa, que fazem da


pressa urna finalidades um objetivo, sao geralmente pessoas acabru-
nhadas por alguma incapacidade, da qual elas assim tomam ilusoria
revanche. Sao pessoas que nSo conseguem realizar algo de útil na
vida, algo que lhes daria a sensacao de seguranca e lhes mostrarla
a habilidade do seu espirito».

A propósito escreve também o Dr. Gravel, presidente da


seccjío médica do Automóvel Clube de Franca:

— 532 —
A «FURIA DO AUTOMÓVEL» 45

«No carro, o homem se encentra num mundo que é déle, bem


próprio a ele. Após ter fechado a porta- do carro e virado a chave
de contato, torna-se outro homem, um supnr-homem. Basta-lhe apoiar
sobre o pedal, e ei-lo que parte a 100 km/h, ele, o tímido locatario
do sexto andar, geralmente intimidado pela esposa e pela sogra, ator
mentado pela porteira, ridicularizado pelo patráo. Tem motivos sufi
cientes para se sentir amargurado... Meia-hora mais tarde, ésse
mesmo individuo estará sentado á sua mesa de trabalho, resignado
no escritorio,... vivendo de novo como o anónimo Sr. X, longe de
ser o Fangio que ele era poucos minutos antes».

Estas observaeóes de psicología sugerem urna análise re


trospectiva aos motoristas que fácilmente cedem á furia da
velocidade.
Ainda outros motivos de desastres se poderiam apontar,
pois a imprudencia tem facetas variegadas: uso de faróis defi
cientes, descuido na conservagáo dos freios e do carro em
geral. Todavía o que foi dito até agora, basta para que passe-
mos a urna

3. Reflexao final

Diante désse mal crescente que sao os desastres auto-


mobilísticos, os poderes'públicos e a policía reagem, tomando
medidas que visam persuadir os motoristas de sua responsa-
bilidade, assim como coibir os infratores. É necessário que
assim procedam, pois o bem comum deve ser salvaguardado.
Todavía a policía nunca conseguirá seu intento se os próprios
motoristas nao se compenetraren! de que a seguranca no trá-
fego depende, em última análise, déles mesmos, e de que pro-
mové-la e defendé-la é grave dever de consciencia para cada
motorista.
Com efeito, as leis do tráfego e a ética automobilística
concernem, antes do mais, a vida humana. Ora esta é de ines-
timável valor. Todo homem é obrigado a respeitar a vida — a
sua própria vida assim como a dos outros. E, juntamente com
a vida, impóe-se absoluto respeito lá saúde e á integridade
física de cada ser humano. Mais ainda: a prudencia na estrada
está em relacáo também com es bens do próximo; acarretar
prejuízos materiais para outrem por imprudencia ou incons
ciencia equivale a lesar injustamente o próximo ou, de" certo
modo, defraudá-lo. Ora a consciéncia moral opóe-se veemen-
temente a qualquer abuso em tais setores.
Nao sómente os moralistas lembram tais verdades; tam
bém os pastores de almas e, de modo (special, os Srs. Bispos

, _ 533 _
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968, qu. 4

nos últimos tempos, principalmente na Europa, tém incutido


a grave obrigagáo que em consciéncia toca a todo automo-
bilista, de respeitar as leis do tránsito. Sejam aqui transcritas
as observacóes de D. Gil Barthe, bispo de Toulon e Fréjus na
Franca:

«As leis do tránsito sao, para nos, a voz de Deus. Nao nos ilu
damos: há casos em que desprezá-las se torna falta grave; tenha-se
em vista o exagero de velocidade em certas estradas, a ultrapassagem
na íim de urna subida, numa curva ou em terceira posicáo sem
visibilidade suficiente. Ainda que a sorte vos tenha sido propicia cem
vézes, sabéis o que acontecerá na centésima primeira vez? Pensemos
nos perigos que há em nao usar luz baixa quando necessário, ou nao
observar as normas de iluminacáo,... em viajar com faróis deterio
rados, as vézes inutilizados (como fazem certos ciclistas); nao res
peitar as paradas ('stops') devidas e os direitos de prioridade. Qual-
quer destas iníracoes pode ter oonseqüéncias catastróficas. Urna vez
verificado o desastre, pode-se dizer que ninguém o quis diretamente;
isto é evidente. Mas nao há abuso no fato mesmo de que o automo-
bilista tenha ocasionado o desastre negligenciando urna regulamenta-
cáo imperiosa?
Sem mencionar os casos cuja gravidade nos comove, podemos
lembrar aqueles, muito numerosos, em que se verificam faltas de
caridade, reacdes de mau humor e rispidez, as quais violam a cor-
tesia desejável em nossas relagóes humanas. De tais casos resulta
um pouco mais de incompreensáo e sofrimento na vida dos outros,
e talvez em nossa própria vida. Por vézes, trata-se de um turista
que, admirando descuidadamente a paisagem, provoca engarrafamento
do tránsito; outras vézes, trata-se de um carro que, estacionando em
lugar errado, perturba a circulagáo ou fecha a salda de urna garage.
Por certo, em nenhum déstes casos se provoca a morte de alguém;
é certo também que o turista tem o direito de admirar a paisagem,
e bons motivos podem explicar um estaclonamento anormal. Mas
pergunta-se: nao seria possivel que o turista e tal outro inírator
atendessem aos seus direitos sem impor aos outros automobilistas
os transtornos que éles mesmos nao gostariam de sofrer?
Nao tenhamos médo das paiavras. Há faltas que muitos cristáos
nunca — ou raramente — julgam dever acusar em confissáo. Entre
essas faltas estáo muitas das que se cometem na estrada».

Em urna palavra: a consciéncia crista pede a cada auto-


mobilista, queira considerar com espirito realmente religioso a
disciplina e as leis do tránsito; queira viver o seu Cristianismo,
ou seja, o seu amor a Deus e ao próximo nao sómente na
igreja, em casa, no escritorio ou na oficina, mas também ñas
rúas e estradas, sabendo que é o próprio Deus, pela voz da
consciéncia, que o interpela quando as normas do tránsito Ihe
pedem ateneáo e respeito.

__ 534 _
RESENHA DE LIVROS 47

RESEN1IA DE LIVROS

Revelacñp e Teología, por Edward Schillebeeckx. Tradugáo de Ge


rardo Dantas Barrete Colecáo «Revelacáo e Teologia» n» 1. — Edicdes
Paulinas, Sao Paulo 1968, 145 x 210 nun, 351 pp.
O nome de Schillebeeckx é controvertido... Trata-se de um teó
logo dominicano flamengo, proíessor em Nimega (Holanda), que re-
cebeu sólida formacao escolástico-tomista. Os seus primeiros escritos
manifestam claramente ésse patrimonio doutrinário; aos poucos, po-
rém, Schillebeeckx vem tentando exprimir as verdades da íé em termos
novos, mais próximos do pensamento filosófico moderno. Éste intento
corresponde as aspirag5es. do Vaticano II; todavía é arduo. É na exe-
cucáo de tal tarefa que Schillebeeckx (embora tencione conservar ín
tegra a fé) tem proferido afirmac&es ambiguas.
Como quer que seja, o livro «Revelacáo e Teologia» paira ácima
de qualquer contradicho; sabe unir em si formacáo tomista e abertura
aos problemas modernos. Consta de varios artigos teológicos publi
cados pelo autor a partir de 1943 até os anos mais recentes; ésses
artigos íoram agrupados sob grandes títulos que, juntos, perfazem
urna introducáo a Teología, com seus temas habituáis: natureza da
Revelacáo, fungao da Escritura, da Tradicáo e do magisterio, valor dos
símbolos da íé, análise do conhecimento humano e do ato da íé...
Esta obra de Schillebeeckx recomenda-se a todos os que se quei-
ram iniciar em sadia teologia.

Da Graja e da Humnmldade de Jesús, por Jacques Maritain. Tra-


ducáo de Leopoldo Aires. — Editora Agir, Rio de Janeiro 1968, 120 x
190 mm, 165 pp.
- Jacques Maritain é o conhecido pensador, autor de notáveis obras
filosóficas, que sabe unir ciencia e espiritualidade (ou mística) em
seus escritos. Acaba de apresentar-nos um livro de teologia, que re-
produz conferencias feitas aos «Irmáos de Jesús» na Franca. O con-
teúdo versa sobre a Paixáo do Senhor. a ciencia e a oonsciéncia de
Cristo, os diversos estadios da vida do Salvador... O estilo é marca
damente tomista; longe, porém, de ser árido, pode levar o leitor á
meditacáo e a prece. Assim esta nova obra de Maritain visa enrique-
cimento religioso e edificacáo, ficamdo alheia á polémica.
Estado sobre a Cela do Senhor, por Jean-Jacques von Allmen. Tra-
ducáo do francés por urna equipe de professdres e alunos da Facul-
dade de Teologia Metodista de Sao Paulo, Colecáo «Teologia hoje>
n* 1 — Livraria Duas Cidades, Sao Paulo 1968. 135x210 mm, 148 pp.
O autor é um teólogo protestante que, desde 1958, leciona na Uni-
versidade de Neuchatel (Suica) e recentemente visitou o Brasil em
ciclo de conferencias.
O' livro apresenta seis teses sobre a Eucaristía, baseadas nos
documentos da Escritura Sagrada e da Tradicáo crista. As observacóes
e as conclusSes de von Allmen coincidem, em seus grandes traeos,
com as da teologia católica. Principalmente o capitulo IV, intitulado
«Pao vivo e sacrificio», parece reproduzlr a clássica doutrina que ñas
escolas católicas traz o titulo de «Eucaristía: sacramento e sacrificio».
Van Allmen reconhece a real presenca de Cristo obtida pela consagra-
Cáo do pao e do vinho; reí uta, porém, contra o vocábulo «transubstan-
ctacaos, que ainda decentemente foi incutido por Paulo VI na encíclica
«Mysterium fidei»; prefere urna terminología mais livre, variável de

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48 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 108/1968

época em época da historia (nótem-se, porém, os equívocos que os


termos «transignificacáo» e «transfinalizacjao» suscitaram na- Holán-'
da). Von Allmen admite a índole sacrifica! da S. Eucaristía, reconhe-
cendo que é professada pela Escritura e pela Tradicao crista.desde,
os seus inicios; convida consecuentemente os teólogos protestantes a
rever sua posicáo anticatólica ueste setor; está fora de propósito dizer.
que a Missa é «urna abominável idolatría», como faziam os Reforma
dores do séc. XVI. Doutro lado, von Allmen exorta os católicos a que
nao insinuem que a MLssa renova (no sentido de «repetos ou «multi
plica») o sacrificio do Calvario — o que contraria a Hebr 10,: KWA."
O autor tem razáo: a Missa perpetua, ou torna, de ndvo presente sobre
os altares o único e infinitamente valioso sacrificio da Cruz, sem o
multiplicar; o que se renova ou multiplica, é a Cela da Quintai-feira
Santa,
Em sumía, o livro de von Allmen é mais um testemunho da cres-
cente aproximacáo mutua de católicos e protestantes. £ o fruto de
um espirito leal, que nao tem recelo de pesquisar e de professar a
verdade encontrada. Recomenda-se a todos os cristáos, máxime aos
que se interessam pelo ecumenismo (feita a ressalva "de que von
Allmen, em um ou outro ponto secundario, se distancia da doutrina
católica).

Perscrutando as Escrituras — O Querigma, por Frei Martinho


Penido Burnier O.P. — Editora Vozes, Petrópolis 1968 160 x 225 mm,
143 pp.
O livro apresenta roteiros para Círculos Bíblicos a ser efetuados
em quatro semanas sueessivas. O tema désses Circuios é o livxo dos
Atos dos Apostólos, enquanto refere o Querigma ou a proclamacáo
do Evangelio tal como foi feita por Sao Pedro e S. Estéváo. Desta
forma Frei Martinho fornece1 ao leitor substancioso comentario dos
oito primeiros capítulos dos Atos, comentario que abrange os aspectos
literarios, históricos, arqueológicos, doutrinários e espirituals de cada
seccSo analisada. As observacóes do autor supdem serios estudos de
exegese bíblica; prop5em-nos, porém, de maneira acessível ao grande
público, que assim se poderá beneficiar de valioso instrumento para
o estudo e o apostolado bíblicos.

Magníficat, por Martinho Lutero. — Editora Vozes, Petrópolis


1968, 135 x 185 mm. 111 pp.
O livro é expressáo típica da época ecuménica em que vivemos:
urna Editora católica publica escritos de Martinho Lutero — o Re
formador do séc. XVI — prefaciados pelo Cardeal Martín, de RuSo
(Franca), e o monge protestante Roger Schutz, de Taizé.
Trata-se de excertos do comentario de Lutero ao «Magníficat»,
canto de Maria SS. consignado em Le 1,46-55. Os excertos íoram
escolhidos. de modo a evitar qualquer tipo de polémica e fornecer a
todos os cristáos valiosos temas de meditagao; Lutero soube subünhar
a figura de Maria humilde e pobre, que aínda em nossos dias é exem-
plo para todos os discípulos de Cristo e, sem dúvida, genuino objeto
de veneracáo. O livró é interessante nSo apenas por seu conteúdo.
mas também — e talvez mais ainda — por contribuir para aproximar
dos católicos e dos ortodoxos orientáis (que multó veneram María)
os irmülos protestantes. Quem lé os comentarios de Lutero verifica
que a piedade protestante originariamente, longe de ser intensa a
María, reconhecia a obra de Deus na sua serva humilde; conseqüen-

— 536 —
RESENHA DE UVROS ? ¿y.. ,, ' - 49

temente, os irmáos evangélicos que hoje queiram ser coerentes com


os principios de sua teologia, nSo se recusaráo a unir-se aos católicos
e ortodoxos num filial devotamente á M§e de Deus. Para que isto-
realmente se dé é necessário-que os' católicos se abstenham de pie-
dadé sentimentai e arbitraria para com María; assim evitaráo qual-
quer eventual pedra de tropéco para os irmáos separados.
Mariá, por quem Cristo veio ao mundo, já nao pode ser motivo
de divisao entre os discípulos de Cristo. É o que^ proclama a opor
tuna edicáo do «Magníficat» de Lutsro. '

Humanismo Soviético: Mito ou Realidada?, por Ulisse A. Floridi.


Traducáo do italiano por Gemma Scardius. Cotecáo «IEPS», vol. 17.
— Editora Agir. Rio de Janeiro 1968, 160 x 230 mm, 313 pp.
O autor e ura jesuíta italiano, que se tornou profundo conhecedor
da lingua e da alma russas; alguns de seus artigos foram comentados
pela imprensa soviética. — Em seu livro, Floridi tenciona manifestar
as contradicSes que afetam o comunismo na U.R.S.S. Embora pre
tenda elevar o ser humano, o regime soviético nao corresponde a
ésse ideal. Operarios e camponeses sao submetidos a dura legislacáo
de trabalho. Os camponeses aínda se sentem explorados e reagem
com sabotagem. Os interésses políticos muitas vézes prevalecem sobre
os da economía no país. Em relacáo aos intelectuais, o regime sovié
tico nao é menos opressor; segundo Floridi, os estudiosos na Rússia
trabalham como «rodas e parafusos» do Partido, impedidos de desen
volver livre atividade cultural (é típico o caso de Boris Pasternak).
Quanto á Religiao, foi e é perseguida na Rússia por urna legislacáo
iníqua. O Estado tenta constranger as autoridades do Patriarcado de
Moscou a colaborar com os seus planos de consolidacác e expansáo
Ido comunismo.
A volumosa obra de Floridi apresenta rica documentacao para
comprovar suas afirmacOes; livros, jomáis e revistas, tanto da Rússia
como do estrangeiro, sao freqüentemente citados no carpo e nos roda-
-pés do livro.
Na verdade, deve-se evitar a polémica. Parece, porém, que nem
por isto se pode deixar de manifestar a realldade; o amor ao próximo
exige que se lhe diga toda a verdade. Ora é sob esta luz que se deve
considerar o livro do Pe. Floridi; tende a mostrar que o apregoado
humanismo soviético até hoje é um sonho ou mito, e nao urna rea-
lidade. O autor n3o apenas afirma, mas documenta tartamente as
suas afirmacóes.

Nota: Em «P.R.» 105/1968, pág. 48 (404) encóntra-se urna res-


posta ao Sr. Renato Jobim, onde as palavras «adaptagáo a tudo que
hoje agrada» figucam entre aspas. — A titulo de esclarecimiento,
desejamos salientár que tais palavras nao sao do Sr. R. Jobim, mas
do abaixo-assinado, que assim intencionou referir com énfase um
hipotético conceito de renovacáo.

D. Estévüo Bettencourt O.S.B.


NO PRÓXIMO NUMERO:

Secular¡zac5o e dessacralizasao

O cristáo perante o ateísmo

Judas traidor ou traído ?

Por qué construir igrejas ?

Inferno : realldade digna de Deus ou «estória» ?

A oitava de oracóes pela Unidade dos cristaos

O Papa e a «Sedia Gestatoria»

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

porte comum NCr$ 17,00


Assinatura anual J
porte aéreo NCr$ 22,00

Número avulso de qualquer mes e ano NCr$ 1.00

Número especial de abrü de 1968 NCr$ 3,00


Volumes Encademados: 1957 a 1963 (preco unitario) .. NCr$ 10,00
Volumes Eneademados: 1964 e 1967 (preco unitario) .. NCr$ 15,00
Índice Geral de 1957 a 1964 NOr$ 7,00

Índice de 1967 NCr* «»


Encíclica «Populorum Progressio» NCr$ 0,50
EncSdioá «Humanae Vitaes (Regulagáo. da NataUdade) NCr$ 0,70

EDITORA BETTENCOURT I/EDA.


BEDAgAO ADMDOSTRAg&O
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Rio de Janeiro (GB) Blo de Janeiro (GB) - ZC-05

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