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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDI9ÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabal no assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ü
"St.

openshhe
V

índice

UM ANO DE GRACA 1

A "difícil" opcao:
AO MÉDICO ? OU AO BENZEDOR ? 3

Llvro candente:
"O AMOR NO CELIBATO" ..; 14

"TORNE-SE FORTE ORANDO" (cassete) 24

Abolida ou nao ?
E A CENSURA DE LIVROS NA IGREJA ? 25

Recuperacáo ou destrulcao ?
AÍNDA OS CARCERES 39

LIVROS EM ESTANTE 48

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

• * •

NO PRÓXIMO NÚMERO :

Explosáo demográfica: política e consciéncia. — Que ó' o


behaviorismo ? — E os sonhos proféticos ? — Vocé conhece
Beethoven ?

AMIGÓ, NAO SE ESQUECA DE RENOVAR SUA ASSINATURA !


DESEJAMOS CONTINUAR A SERVIR COM O AUXILIO DOS
NOSSOS COLABORADORES.

\ «PERPUNTE E RESPONDEREMOS»
Assinatupa; anitóh .;. , Cr$ 60,00
"Número'aViflso de qualquer mes Cr$ 6,00

EDITORA LAUDES S. A.
REDACAO DE PR ADM1N1STRACAO
Oalxa Postal 2.666 Una S5o Rafael, 38, ZC-09
ZC00 20.000 Rio de Janeiro (RJ)
20.000 Rio de Janeiro (RJ) Tela.: 268-9D81 e 268-27§6
UM ANO DE GRA£A
Novo ano comeca... Nestes dias, os homens indagam
espontáneamente o que esse novo periodo lhes trará : «Terei
saúde ?... Ou a doenga me visitará ? Resolverei meus proble
mas financeiros ? Conseguirei o casamento, o emprego, a pro-
mcgáo... a que aspiro ? E, no mundo, haverá paz ? Assisti-
remos a grandes revolugóes ?... hediondos crimes ? A ciencia
descubrirá o remedio contra o cáncer ?»

Nao faltam prognósticos nem respostas provenientes das


mais diversas fontes para atender a tais perguntas: as esta-
tísticas, as intuicóes, as «profecías» sao aduzidas com freqüén-
cia. Compreende-se isto : é inato em todo homem o desejo de
saber ou de sair da dúvida e da incerteza. O estado de expec
tativa insegura e inquieta, conforme os mestres, é pior do que
a certeza de que algo de mau aconteceu ou está para acontecer.
— Deixemos, porém, de lado as conjeturas, que ás vezes care-
cém de base e fazem perder tempo, e vamos aos prognósticos
certos, para os quais nos encaminha a mensagem crista. Sim ;
nao há dúvida de que o ano de 1976, com as características
próprias e variáveis que ele terá para cada homem, será para
o cristáo

1) um arco de graca... É esta a expressáo consagrada


pelo uso da língua portuguesa. Visto que «graca» é dom, é
sorriso, é benevolencia, a expressáo quer dizer que 1976 será
mais um ano em que o sorriso de Deus brilhará para os homens;
o dom da vida eterna, conquistada por Cristo, será estendido
a mais urna fase de nossa existencia; esse dom e esse sorriso
de Deus poderáo tomar as mais diversas formas (compreensí-
veis ou nao; doenga ou saúde, riqueza ou pobreza...); Deus,
porém, se dará, através dessas formas, a todos aqueles que O
aceitarem de coragáo aberto e generoso. «Tudo é graga», dizia
Bernanos; tudo tem sentido providencial.

2) ... um ano de peregrinagao ou de caminhada para


a Casa do Pai. O sentimento de que estamos em demanda de
algo de maior e melhor ou de algo de definitivo, é espontáneo
em todos nc's. Conseqüentemente, o cristáo nao se deixa «amar
rar» por coisas transitorias, «pois passa a figura deste mundo»
(ICor 7, 31). Importa-lhe, antes, fazer a reta escala dos valo
res, colocando cada bem e cada acontecimento no lugar certo,
a fim de desabrochar harmoniosamente para a plenitude da
vida. Nao seja a chamada «morte» surpresa, desinstalagáo ou
susto, mas, sim, maturidade e consumado !

— 1 —
3) ... um ano de crescimento. Caminhando, vamos cres
cendo em nossas dimensóes definitivas. Configuramo-nos cada
vez mais 'á estatura do Cristo Jesús. É impressionante a ima
gem do anáo : trata-se de alguém que tem muitos anos ou
mesmo decenios, mas nao cresceu em sua estatura corporal.
Um anáo no plano físico é raro. Seráo táo raros os anóes no
plano da personalidade e no da filiacáo divina? Se pudéssemos
olhar para dentro dos hornens, nao verificaríamos com sur-
presa que sao numerosos aqueles que váo somando anos, mas
nao crescem interiormente? Que esta imagem desperté os cris-
táos para urna vida mais dinámica, mais consciente e coerente!
Os días desta vida nos sao concedidos como moratoria para
que assumamos de maneira mais decidida a nossa conversáo
(cf. Rm 2,4s).
4) ... um ano de construcáo de um mundo melhor ou
mais conforme os designios de Deus. Pelo fato mesmo de ser
cristáo, o discípulo de Cristo tem de ser o mais competente
dos profissionais ; ele é responsável pela gloria de Deus entre
os homens. De resto, nao somente trabalhando, mas também
sofrendo em comurrháo com Cristo, construimos o Reino de
Deus.
É á luz destas verdades que também PR entra em novo
ano — o 17» — de sua existencia. A Providencia do Pai tem
sustentado este veículo de idéias, que conta também com a
benevolencia e a colaboragáo de todos os seus amigos. Juntos,
levemos adiante essa obra de diálogo entre os homens ou de
confronto de idéias; procuramos, em nivel elevado e sereno,
científico, colocar frente á frente perguntas e respostas ou
problemas e solugóes (ou pistas para solugáo). É este programa
de PR que sugeriu aos responsáveis da revista o subtitulo
CONFRONTO, que figura em nossa nova capa. Confrontamos
o pensamento cristáo e o mundo de hoje, nao para dividir e
separar, mas para procurar os pontos de contato e langar um
olhar de fé sobre as múltiplas e, por vezes, tumultuadas reali
dades de nossos días. Iluminar as novas e novas facetas da vida
contemporánea com a luz da fé, mostrando onde se coloca o
Evangelho ñas variegadas situagóes de nossos tempos, eis o
objetivo que PR tem em mira e que a nova capa pretende colo
car em mais realce.
Queira o Senhor Deus abengoar este intuito e levá-lo a
bom termo ! Queira Ele também retribuir «divinamente» aos
amigos e leitores que tanto nos tém ajudado e certamente con-
tinuaráo a nos ajudar com suas observagóes, suas criticas e
com a difusáo de PR entre parentes, amigos e conhecidos !
E. B.
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano,XVII — N? 193 — Janeiro de 1976

A "difícil" opgáo:

ao médico ?
ou ao benzedor?
Em síntese: £ grande o número de pessoas que v5o procurar ben-
zedores é curandeiros para se tratar ou tlvrar de males físicos e psíquicos.
NSo se pode negar que essa "medicina livre" tenha seus efeitos positivos
em favor da saúde do paciente. Todavia note-se que a sua ac§o é psicote-
rapéutica. O curandeiro (ou médium ou ministro "messiánico") desencadela
no seu cliente urna atitude de otimlsmo, paz e conflanca, que concorrem
fortémenté para inverter o processo psicológico donde multas vezes se
deriva o mal do paciente. As molestias que os curandeiros atingem, s3o
geralmente molestias funcionáis, cujo fundo é um confuto ou bloquelo
psíquico. O poder da sugestáo (consciente ou inconsciente) é enorme,
como comprovam numerosas- experiencias taitas sobre enfermos. O doente
que recorre a um curandeiro, é particularmente sugestlonável, pois multas
vezes otha para a béncao ou o passe como pata a sua última tábua de
saivacao ; esta Ihe é apresentada em termos de "misüca"-impressionante,
depois que o paciente procurou em vSo a saúde entre os recursos da
ciencia médica.

Embora os centros espiritas e outros ambientes de cura religiosa


possam contribuir para o alivio dos seus pacientes, nlo se pode recomen
dar nem aprovar a consulta a tais centros, pois na verdade a cura por
sugestfio obtlda em tais lugares contribuí para alienar poderosamente o
paciente; este, doravante, se julgará dependente da entidade do Além em
npme da qual tiver sido dada a béncao. Os fiéis católicos tém a forca
redentora de Cristo presente nos sacramentos e na oragao ; quem neces-
sita de tratamento psicológico, procure-o entre os profissionais da medi
cina,' qué podem curar sem alienar o paciente. Ademáis a consulta a um
curandeiro ou ministro "messiánico" é, ao menos indiretamente, a prática
de falso culto religioso — o que é Intolerável da parte de quem tem
consciéncla da fé que professa.

Comentario: Nota-se que váo tomando vulto crescente as


soitas e os grupos religiosos que em nome da Divindade e do
além anunciam curas de doencas. Além dos diversos centros
de espiritismo e terreiros de macumba, pode-se mencionar a
chamada «Igreja Messiánica» (Sheiko-No-Ié), cujos ministros

3
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

oram, de modo a obter a cura dos enfermos em termos que


muita gente julga milagrosos. Diante destes fatos, nao poucas
pessoas, mesmo católicas, váo procurar alivio para seus males
nesses grupos religiosos. Há fiéis católicos que perguntam se
nao podem ir á Igreja Messiánica ou ao centro espirita só para
pedir curas, sem ter a intengáo de aderir ás crengas profes-
sadas pelo ministro ou médium respectivo.

Eis o problema que vamos abordar nestas páginas.

De antemáo desejamos acentuar que náó tencionamos


negar a Deus o poder de fazer milagres ou curas maravilhosas;
o Criador e Senhor da natureza pode ultrapassar as leis das
criaturas e realizar portentos segundo o seu beneplácito; as
Sagradas Escrituras — em particular, o Evangelho — atestam
tais milagres efetuados pelo Senhor Jesús. Todavía deve-se
acentuar que os milagres de Deus tém sempre um sentido de
Palavra ou Mensagem para os homens; constituem urna res-
posta sabia de Deus a um contexto religioso digno; nunca sao
meros «shows» ou ostentacáo de poder da parte do Senhor
Deus. O que impressiona o cristáo nos milagres de Deus, nao
é só o caráter portentoso dos mesmos, mas também, e neces-
sariamente, o valor de mensagem de que se revestem estes
feitos maravilhosos.

Ora, nos muitos relatos de «curas milagrosas» noje espar-


sos, nota-se que se dá atengáo principalmente ao caráter por
tentoso do fenómeno; desde que essa índole maravilhosa se
verifique, costumam os «devotos» atribuir o fato a alguma
intervencáo do Além (podendo esse Além ser concebido em
termos de espiritismo, de umbanda, de «Ciencia Crista», de
Pentecostalismo, de Sheiko-No-Ié...). Entre os «devotos»,
pouco se levam em conta as conclusóes da psicología e da
parapsicología de nossos dias, que explicam grande número
de curas maravilhosas como conseqüéncias de processos psico
lógicos desencadeados tanto no enfermo como no respectivo
médium ou curandeiro. — Em vista do ecleticismo religioso
que assim se origina, proporemos algumas nogóes que poderáo
projetar luz sobre a problemática.

1. Doen$as psicossomátieas

Quem examina os casos de doengas curadas pelos médiuns


e curandeiros, verifica que sao, em grande maioria, molestias
funcionáis ou entáo «doengas sem causa» (dores, paralisias,

_ 4 —
AO MÉDICO ? OU AO BENZEDOR ?

fraqueza geral...). Tais molestias estáo estreitamente asso-


ciadas a estados psíquicos; sao psicogénicas ou, ao menos, for-
temente psicossomáticas.

De modo geral, deve-se dizer que o ser humano é um só


todo em que o físico e o psíquico se interpenetram mutua
mente. Em conseqüéncia, perguntam muitos médicos se a ori-
gem de graves infecgóes é táo somente o bacilo ou o virus
respectivo; nao se deveria, antes, afirmar que tais molestias
nao sao senáo sinais e consecuencias de um estado de dese
quilibrio total (psíquico e físico) do paciente? — Neste caso,
nao se deveria falar de doencas abstratamente, mas, sim, de
possoas doentes, levando-se em conta o quadro geral do pa
ciente (temperamento, vida passada, ocupagóes e interesses do
momento...). Diz o Dr. Rene Biot: «Nao há doencas; estas
nao sao coisas existentes em si... As bacterias talvez nao
sejam mais do que as testemunhas de um processo patogé
nico infinitamente mais sutil» («Vers l'unité de la Médecine»,
p. 336).

Os estudos psicanaliticos confirmam tal conclusáo: os con-


flitos psíquicos abrem, muitas vezes, a porta as doengas. O
fato de que, dentre mimares de pessoas que vivem em ambien
tes contaminados por bacilos, somente algumas contraiam a
doenga respectiva (nem sempre as menos resistentes do ponto
de vista físico) leva a pensar seriamente sobre a influencia do
estado psíquico do sujeito sobre a sua resistencia física.

De modo especial, sao doengas psicossomáticas:

a) as úlceras do estómago. Em 1950 fez-se um inqué-


em Clínica sueca a respeito de 108 doentes de úlcera esto
macal. Donde resultou que

54 dentre eles sofriam de conflitos mentáis agudos,


29 sofriam de conflitos mentáis crónicos,

22 apresentavam síntomas de desequilibrio psicológico sem


conflito,

3 apenas nao manifestavam síntomas psicopatológicos.

Sabe-se, de resto, que grande número de perturbagóes


digestivas tém por sede pessoas que sofrem por nao ser
amadas.

— 5 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

b) As molestias cutáneas (urticaria, verrugas, ecze


mas ...) sao geralmente o motivo de fama de todo curandeiro
principiante. • ""•''

c) A asma, o hipertiroidismo, os fibromas...

d) Além destas, há as doengas «sem causa»: enxaque-


cas, nevralgias, palpitagóes, insuficiencia hepática, paralisias
parciais... O exame .fisiológico do paciente nada descobre
de anormal no mesmo'; parece inútil querer entáo tratar do
fígado, do estómago, do coragáo, pois estes órgáos estáo
sadios. O que o terapeuta deve atingir em tais circunstancias,
é o mesencéfalo ou o sistema nervoso do paciente; e para
tanto, ninguém está mais habilitado do que o próprio paciente.

Vem a propósito a seguinte noticia de nossa imprensa:

"O Dr. Mauricio Knobel, pslcanatista argentino, presidente do Colegio


Internacional de Medicina Psicossomática, conta o caso de um pediatra,
ex-aluno seu, que sempre desconflou multo e reslstlu á compreensSo da
visita psicossomática. Esse médico fo! chamado numa noite á casa de urna
familia para atender ao filho, que eslava com forte dor de garganta. Era a
sétima vez que isso acontecía naquele Invernó. O médico tlnhá que se
levantar tarde da noite e ir ver o cliente. Ao chegar, perguntou biincando:

— Como é ? Por que vocé tem tanta dor de garganta ?

A inocente pergunta, ouvlu surpreso a seguinte resposta:

— Quando fico doente, papal e mam Se nao brigam.

Na verdade, seus país viviam brigando e nSo se davam bem. A


partir daquele episodio com o menino, o pediatra confessou ao Dr. Knobel
que comecou a dar malor Importancia 'a essas coisas de que o Sr. falava'.
Encaminhou o casal á orientacSo psicológica — o que resultou, depois
de algum tempo, na melhoria do relacionamento familiar. O menino nao
teria mais dor de garganta" ("O Globo", Suplemento de domingo
19/X/1975, p. 2).

Prossigamos agora a nossa exposigáo.

2. Cura psicossomática

1. Como dito, o paciente em numerosos casos (princi


palmente nos mais fortemente psicossomáticos) é causa da
sua própria doenca, ainda que nao o saiba ou mesmo recuse
a hipótese de ser tal. O mesmo, por conseguinte, pode ser
também a causa de sua própria recuperagáo. Para tanto,

— 6 —
AO MÉDICO ? OU AO BENZEDOR ?

basta que o processo psicológico seja invertido; e, a fim de


que isto aconteca, o paciente precisa muitas vezes de auxilio
ou mesmo de um choque.

É neste contexto que se sitúa oportunamente a fungáo do


curandeiro. Este, nao tendo estudado a medicina científica,
nao se pode interessar muito pelo diagnóstico científico das
molestias. Ele tem que visar muito mais ao enfermo do que
á enfermidade como tal. A esséncia da sua arte consiste em
estabelecer um contato de pessoa a pessoa com o seu consu-
lente, consulente que, por via de regra, está cheio de expec
tativas. Nao estando ligado as normas da medicina científica,
o curandeiro pode com habilidade adaptar-se á personalidade
do seu paciente, procurando «simpatizar» com ele («simpati
zar» no sentido etimológico de «padecer com..., identificar-se
com quem sofre»); será autoritario para com uns, paterno e
bondoso para com outros, tornando-se, em suma, para todos
«o homem do momento». Justamente por nao possuir forma-
gáo científica, o curandeiro fácilmente eré possuir um dom
extraordinario — o das curas — assim como a missáo divina
de utilizar essa graga em favor do próximo.

2. Ora é precisamente dessa figura de amigo simpá


tico, «místico», famoso por «prodigios» já operados, que o
paciente muitas vezes necessita. Este nao vai procurar o mé
dium em conseqüéncia de conclusóes científicas ou raciocinio
rigoroso, mas, sim, movido por fatores emocionáis; o que o
impressiona, é a pessoa do curandeiro, tida como extraordi
naria, dotada de poderes taumatúrgicos e de intuigóes místi
cas. É a pessoa do médium, e nao o remedio, que age sobre
o paciente; verifica-se até que o mesmo remedio aplicado ao
paciente por outra pessoa que nao o curandeiro «tal», nao
produz efeito algum.

Mais precisamente: note-se que o estado de ánimo de


quem vai consultar um médium é bem diferente do estado de
quem se dirige a um médico propriamente dito. Quem vai ao
curandeiro, muitas vezes se acha desiludido dos remedios da
medicina ; está psíquicamente abatido... Ouviu repentina
mente falar de tal ou tal «milagreiro», a quem numerosas
curas sao atribuidas. Aceita entáo com avidez a hipótese de
vir a ser também beneficiado por esse «emissário do Alto»;
predispóe-se assim a ser influenciado por este; perde o seu
senso crítico e toma a atitude de urna crianca, que, nao
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

sabendo como salvar-se, confia cegamente nos poderes mara-


vilhosos de quem é maior.

3. Na verdade, os recursos que o curandeiro aplica ao


seu paciente, sao, do ponto de vista médico, pouco ou nada
eficazes; trata-se de aguas lustráis, chas, banhos, gestos ri-
tuais... Tais recursos sao, de resto, aplicados (com poucas
diferencas) a todos os tipos de pacientes. Sao, por si, inade*
quados para resolver a situagáo. Todavía sao suficientes para
mover as forgas poderosíssimas do subconsciente dos enfer
mos, forcas essas que influem decisivamente sobre a saúde ou
a doenga. Assim é que a visita a um curandeiro pode obter o
efeito desejado, nao pelo valor dos recursos aplicados, mas
porque estes exercem a funcáo de catalisar, isto é, de acele
rar um processo psíquico já iniciado no paciente. Este pro-
cesso psiquico é que provocará finalmente a cura (real ou
aparente, duradoura ou transitoria...; isto depende das cir
cunstancias de cada caso) da molestia que acabrunha o con-
sulente.

Assim se explica que em nao poucos casos o encontró do


enfermo com o curandeiro provoque realmente a restauragáo
(ao menos aparente) da saúde. O tratamento entáo é psí
quico, e nao somático. Em muitos casos o paciente se senté
aliviado, mas nao está curado; a raiz de seus males nao foi
atingida pelo contato com o benzedor.

4. Merece ainda atengáo o seguinte: muitas das pessoas


que dizem ter sido beneficiadas por curandeiros ou médiuns,
sao pessoas cujas doencas eram um tanto indefinidas ; acha-
vam-se iracas, mal podiam ficar em pé, sofriam de dores de
cabega, estavam na perspectiva de ser operadas e foram pou-
padas disto, nao podiam mover o braco... É muitas vezes
isto que se lé nos noticiarios populares de curas maravilhosas.
Ora tais fórmulas nao sao científicas, dado o seu teor vago;
perguntar-se-ia : achavam-se iracas por qué ?... sofriam de
dores de cabega precisamente onde, quando?... iam ser.ope
radas de qué, segundo qual médico?... nao podiam em hipó-
tese alguma mover o braco?... e desde quando? Nao raro
acontece que tais pacientes de doencas mal definidas ou «sem
causa» váo procurar um médico para receber um tratamento
adequado; o clínico, depois de atento exame, declara ao pa
ciente que este nao está sofrendo de molestia alguma; alguns
médicos acrescentam mesmo oportunas explicagóes sobre «ima-
ginacáo, neurose, psicose, males funcionáis», etc., no intuito

— 8 —
AO MÉDICO ? OU AO BENZEDOR ?

de ajudar o paciente a se libertar do seu sofrimento. Embora


tais doengas nao tenham causa orgánica, nao sao doencas ima
ginarias, mas, sim, molestias reais, que fazem sofrer dura
mente os respectivos pacientes. Tais pacientes esperam do
médico nao so a explicagáo, mas principalmente o alivio de
suas enfermidades... Diante da explioagáo científica que o
médico lhes dá, assegurando-lhes que nada tém de orgánico,
muitos pacientes se indignam como se estivessem sendo tra
tados como loucos; váo entáo consultar mais dois ou tres mé
dicos, dos quais ouvem a mesma explicagáo científica. O
paciente nessas circunstancias exaspera-se, mormente se nin-
guém se lembra de lhe sugerir que vá procurar um tratamento
psicológico. Sentindo-se mal e nao encontrando solugáo por
parte dos médicos, o enfermo comega a apelar para fatores
transcendentais: ou se julga possesso do demonio ou perseguido
por um «espirito encostado»... Muitas vezes, a essa altura
urna pessoa amiga sobrevem, dizendo conhecer um curandeiro
ou benzedor de grande eficacia, autor de numerosas curas
maravilhosas... Tem-se assim mais um cliente para os mé-
diuns e benzedores. Estes, mediante sua influencia pessoal
comunicada através de ritos prcprios, váo agir nao sobre o
físico, mas sobre o psíquico do paciente (pois é o psíquico que
está nervoso e impressionado), conseguíndo bons resultados;
faráo assim as vezes de um psicólogo ou psicoterapeuta.

Completemos estas ponderagóes mediante algumas notas


sobre

3. A forja ¡da sugesfao

A palavra «sugestáo» yem de sub-gerere e significa «le


var, transportar alguma coisa para baixo ou sob...»; vem a
ser tuna insinuacáo ou também urna subordinacáo. Em psico
logía, a sugestáo ocorre quando se leva ao subconsciente de
alguém urna idéia que irá abrindo caminho no consciente desse
sujeito e poderá tomar-se urna persuasáo ou convicgáo. A
sugestáo pode permanecer sempre no subconsciente e, nao
obstante, exercer enorme influencia sobre o comportamento
do sujeito respectivo. Este, sem o saber, estará agindo sob a
forga de urna sugestáo que lhe foi comunicada e que talvez,
em primeira instancia, ele teuha explícitamente rejeitado.
Imagine-se, por exemplo, um amigo que diga a seu amigo:
«Como vocé está mal!'» Este, ouvindo tal juízo, protestará e
afirmará o contrario. Mas, aos poucos, poderá ir-se sentindo
indisposto e crer que está padecendo de algum mal serio, mor-

g
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

mente se em seu íntimo estiver predisposto a tanto. Importa


notar que a idéia sugerida muitas vezes vai tomando vulto e
mesmo lugar primacial na mente de alguém apesar da resis
tencia que essa pessoa lhe queira opor. De modo especial, o
ser humano repele a idéia de ser vítima de alguma sugestáo
ou de nao ser mais ele mesmo no seu modo de pensar ou
agir; ora, apesar dessa repulsa espontánea, o poder da suges
táo é imenso. Sao verídicas as palayras de Claude Bernard,
principalmente quando se tem em vista o subconsciente: «O
homem pode muito mais do que ele julga poder».

Em questóes de saúde e doenea, a forca da sugestáo é


notoria.

Com efeito. Sabe-se quáo benéfico sobre um processo de


recuperagáo da saúde é o otimismo do paciente; urna boa noti
cia comunicada a este pode logo desencadear melhoras fisio
lógicas.

Também sao conhecidos os casos em que «remedios mila


grosos» produziram efeitos altamente positivos em pacientes
gravemente enfermos; tais remedios milagrosos, urna vez ana-
lisados, nao revelaram nenhuma propriedade particular. Re-
fere-se mesmo o adagio irónico: «É preciso apressar-se em
tomar os remedios novos enquanto eles curam».

O Dr. Matthieu chegou a realizar urna experiencia assaz


cruel em seu sanatorio de turberculosos. Anunciou aos enfer
mos que acabara de ser descoberto o antidoto da tuberculose,
que os haveria de curar imediatamente. Depois de ter provo
cado e preparado os ánimos dos doentes durante um período
de tempo razoável, o médico injetou-lhes, por dias seguidos,
um pouco de agua salgada, que ele chamava pelo nome má
gico de antifimose. Entáo os pacientes obtiveram resultados
maravilhosos: a tosse e os escarros diminuiram consideravel-
mente, os doentes comecaram a sentir apetite devorador, que
os fez subir de peso numa media de tres quilos em poucos
dias. Infelizmente, porém, um dos enfermos percebeu que se
tratava de um logro e que o médico nada tinha de especial
para curá-los. Logo as melhoras cessaram e todos os síntomas
da molestia reapareceram em condigóes mais graves, porque
os pacientes estavam desanimados.

Pode-se fazer mencáo também dos cataplasmas que ou-


trora eram aplicados com freqüéncia, obtendo, como se dizia,
bons resultados. A malicia dos comentadores afirma que tais

— 10 —
AO MÉDICO ? OU AO BENZEDOR ? 11

efeitos positivos se devem ao fato de que cada cataplasma


exigía meia-hora de preparagáo; durante essa meia-hora o
doente tinha a oportunidade de ansiar pelo tratamento e de
se compenetrar da eficacia do mesmo!

Narra o Dr. Maurice Colinon- em seu livro «Les Guéris-


seurs» que, a título de experiencia, se dedicou ele mesmo
durante alguns meses a prática do magnetismo (especie de
curanderismo pela aplicagáo das ondas magnéticas do curan-
deiro). Aconteceu-lhe entáo o fato que o próprio Colinon
assim descreve:

"Em certa época, fiz-me curandeiro a título benévolo. Entáo multas


vezes ouvi meus pacientes descrever as sensagSes diversas que eles atri-
bulam ao meu 'Huido' pessoal. Uns experimentavam brusco calor; outros,
ao contrarío, um 'vento frió*. Outros ainda sentiam 'como que pequeñas
pontadas'... Se de fato existe fluido humano, é preciso reconhecer que
as manifestacoes do meu fluido eram estranhamente dissemelhantes se
gundo os Individuos que se beneficlavam dos seus efeitos I Mas será que
o fluido existe mesmo ? Multas vezes realizei urna experiencia assaz signi
ficativa neste setor. Todas as vezes que um paciente declarava 'sentir níti
damente o meu fluido', eu afastava lentamente as minhas maos do seu
corpo e chegava a cruzá-ias sobre as costas; nSo obstante, a pseudo-
-sensacSo nSo diminuía. A idéia de realizar esta prava veio-me depois
que serví de assistente a um hipnotizador que fazia essa demonstracSo
sobre o palco, sem ser jamáis desmentido. Ele intencionava assim demons
trar que os seus clientes obedeciam a urna simples sugestao de palavras"
(obra citada, p. 93).

Sáó estes alguns exemplos de como é influente a suges-


táo. Quem tem consciéncia disto, compreende melhor certos
fenómenos (mesmo curas) portentosas sem ter necessidade de
recorrer ao Além para explicá-los.

Podemos agora responder á pergunta inicial deste artigo:

4. .. . Só para ser curado ?


É freqüente a pergunta: Será que um fiel católico nao
pode ir a um centro espirita ou a alguma assembléia de culto
nao católico só para tentar obter a cura de urna doenga, sem
tencionar aderir as arencas espiritas ou outras que inspiram
tal culto?

Em resposta, observamos:

— Deus nao se torna mais presente aos homens pelo espi


ritismo ou por algum culto nao cristáo do que pelos sete sacra
mentos instituidos por Nosso Senhor Jesús Cristo.

— 11 —
12 tPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

Nem os anjos e santos se tornam mais presentes num


centro espirita ou no culto Sheiko-No-Ié.

— Os cultos nao católicos oferecem a ocasiáo de orar


pelos enfermos. Ora a prece nao é específica nem exclusiva
de assembléias espiritas ou «messiánicas»; ao contrario, é pra-
ticada também em assembléias católicas. É de notar que os
grupos carismáticos ou grupos de oragáo no Espirito Santo,
constituidos por fiéis católicos, se interessam especialmente
pela prece em favor dos enfermos, até mesmo com o gesto de
imposigáo das máos (no; catolicismo, este gesto nada tem de
mágico ou de eficaz por si mesmo, mas é um símbolo de
oragáo e de transmissáo da graga).

O que os cultos nao católicos oferecem em elevado


grau, é urna agáo psicoterapéutica, que os clientes costumam
aproveitar em beneficio da sua saúde. Sim; a ambientagáo, o
ritual, as palavras de qualquer forma de curandeirismo reli
gioso penetram fundo no consciente e no subconsciente dos
respectivos pacientes. Tal psicoterapia pode ser mais eficaz
do que a de um profissional legítimamente estabelecido, pois
o poder dos motivos religiosos é imenso.

Todavía essa psicoterapia nao atinge o fundo do problema


do seu paciente; apenas o transfere. O cliente de um centro
espirita, aínda que diga guardar a sua fé católica, torna-se
dependente de um mundo imaginario e das forcas {pessoais
ou neutras) em nome das quais foi obtida a presumida cura.
O paciente sente-se, de entáo por diante, devedor a esta ou
aquela entidade superior que, como lhe disseram, o livrou do
mal e quer ser homenageada para continuar a livrá-lo de
males.

Por isto, em hipótese alguma se pode conceber que um


fiel católico procure urna assembléia religiosa nao católica
para pedir curas. Volte-se para Deus com amor e confianca,
dente de que Ele é Pai; recorra aos meios de salvacáo do
corpo e da alma existentes na Igreja de Cristo. E nao negli-
gencie a medicina científica em suas diversas formas, inclu
sive a psicoterapia, pois a fé nao excluí os recursos da razáo
e do saber humano, mas, ao contrario, os recomenda e favo
rece. — Além do mais, o recurso ao espiritismo ou á Igreja
Messiánica vem a ser, ao menos indiretamente, a prática de
um culto que nao se coaduna em absoluto com as concepgóes

— 12 —
AO MÉDICO ? OU AO BENZEPOR ? 13

da fé católica; isto é intolerável aos olhos de um auténtico


discípulo de Cristo.
A respeito veja
B. Munlz de Souza, "A experiencia da salvado". S&o Paulo 1969.
Maurlce Collnon, "Les Guérisseurs". Paris 1957, llvro do qual multo
nos servimos na elaboracio deste artigo.

Wilhelm Poli, "A sugestSo". SBo Paulo 1962.

"O Globo", Suplemento de domingo 19/X/1975, pp. 1 e 2.

PR 32/1960, pp. 317-325.

(ContinuacSo da 3? capa)
Já foram publicados os volumes I (Dos primordios a Sao Gregorio Magno,
t 604) e II (A Idade Media, 600-1500); faltam ainda o vol. III (Reforma e
Contra-Reforma, 1500-1715) e o vol. IV (Século das luzes, revolucSes, res-
tauracóes, 1715-1848). Do vol. V, que chega até nossos días, salráo tres
tomos, dos quais o primeiro vai aqui apresentado.

A obra se distingue pela sua riqueza de Informacdes e pela citagao


de numerosas fontes; ao apreciar os tatos, usa de criterios sadlos e equi
librados, evitando julgamentos unilaterais. Especialmente interessantes sBo
as páginas dé Aubert, neste V volume, a respeito da crise modernista e do
integrismo; novas conclusóes sao apresentadas, resultantes de recentes
estudos.

Este livro será útil as pessoas que desejem aprofundar sua cultura
religiosa. A historia da Igreja, em última análise, é a historia da prolongarlo
da obra da EncarnacSo; por ela se revela a sabedoria de Deus, que, ser-
vlndo-se dos homens, transmite a grasa e a vida eterna.

Deus em busca do homem, por Abraham J. Heschel. Traducio do


Prof. Alberico de Souza. — Ed. Paulinas, Sao Paulo 1975, 110x190mm,
546 pp.

Já apresentamos a obra "O homem nSo está so" de Abraham Heschel,


mestre judeu que escreveu também "O homem á procura de Deus" (cf. PR
179/1974, p. 459). Trata-se de urna séiie de reflexde3 sobre a filosofía reli
giosa do judaismo ou também sobre a revelag§o que Deus fez de si a Israel.
Estas ponderagóes contém, sem dúvida, Importantes atlrmacSes para um
cristáo, embora envolvidas em roupagem marcadamente judaica. Em slntese,
o autor procura mostrar como é plausivel a Idéia de que Deus se quls
revelar ao homem : nao somente as criaturas vislveis atestam a agfio de
Deus, mas também o homem experimenta Deus no "insight", na ¡ntu¡?áo e
no momento vivido. O autor nao ó antiintelectuallsta, mas procura inculcar
a validade e mesmo a absoluta necessidade de urna abordagem experimental
do misterio de Deus.
O livro tem valor nao só pelo seu conteúdo, mas também pelo fato de
que contribuí para mais aproximar judeus e cristfioa numa hora em que, no
Brasil e no mundo, os passos se tém multiplicado nessa caminhada de
mutua compreensfio. Quem conhece melhor o pen3amento judaico, mais
apto está a dialogar com o povo de Israel.
E. B.

— 13 —
Livro candente...

"o amor no celibato"

Em síntese: O livro "O amor no celibato" de Lulse Rinser e Egidio


Gentil! S. J. propóe que um sacerdote ou um Religioso consagrado a Deus
pelo celibato possa amar urna muiher com amor "sustentado pela torga
Idealizante do eros" (p. 13) ou com "amor quase nupcial" (p. 64), sem
violar o seu celibato. Os autores defendem esta tese alegando que a
presenca da muiher é necessárla para a maturidade de um homem.

Na verdade, o livro parte de premissas falsas, supondo aue nSo


possa haver celibato sem falhas ou sem tensoes interiores — males estes
que só se sanearlam se o Religioso se voltasse para a muiher, sem, porém,
chegar ao relacionamento sexual. Ora tal pressuposto é falso; concede
lugar exagerado ao erótico dentro do pslquismo humano.

Alóm disto, a tese é perigosa, pols abre a porta para leviandade,


quedas e escándalos. Os exemplos de S. Francisco de Assls e Sta. Clara
ou de S. Francisco de Sales e Sta. Joana Frémlot de Chantal nao deveriam
ser aduzidos como prototipos para fundamentar a tese de Rlnser-Gentili,
pois tais santos levaram profunda vida de oracáo associada a continua
prática da penitencia num grau que raramente é imitado hoje em dia.
Atualmente, mais do que nunca, é para desejar que o sacerdote evite as
ambigüldades em sua vida; sSo estas que o desprestigian! aos olhos do
público; dé um testemunho de conduta una e indivisa, coerente e nítido.
Isto nao quer dizer que se deva castrar psicológicamente, mas que eleve
a sua sensibilidade ao plano da sensibilidade de Cristo, que era em tudo
Impelido peta sua missáo de levar a Boa-Nova a todos os homens e
mulheres.

Comentario: Apareceu há poucos meses (1975) um livro


da Editora Vozes intitulado «O amor no celibato. O que fará
o padre que ama e sabe ser amado?» 1Deve-se a dois auto
res: Luise Rinser, escritora responsável pela primeira parte
da obra («O celibato e a muiher»), e Pe. Egidio Gentili S. J.,
responsável pela segunda parte («O amor no celibato»).
L. Rinser publicou seu trabalho em 1967, enquanto o Pe. Egi
dio Gentili em 1969. Visto que este autor fazia eco (favorá-
vel, com algumas restrigóes e complementagóes) a Luise Rin-

M37 x 210 mm, 138 pp.

— 14 —
«O AMOR NO CELIBATO»» 15

ser, um editor italiano houve por bem publicar os dois escri


tos num só volume, do qual a Editora Vozes de Petrópolis
apresentou a tradugáo de 1975.

O livro aborda um problema delicado e complexo, indi


cado pelo seu próprio subtitulo. Vamos abaixo expor suma
riamente o pensamento dos dois autores, ao qual acrescenta-
remos os comentarios que parecem oportunos.

1. A tese do livro

1. Luise Rinser julga que «somente um relacionamento


com a mulher pode dar ao padre urna perfeita maturidade de
homem», pois «os dois sexos necessitam um do outro, e tam-
bém o padre, que é homem, nao está fora desta lei» (p. 43).

Luise admite, pois, que entre um padre celibatário e urna


mulher possa existir urna amizade, «sustentada pela forga idea
lizante do eros» (p. 13); o eros, no caso, nao significaría amor
sexual nem relagóes sexuais, mas também nao se confundiría
simplesmente oom a espiritualidade do ágape. Por conseguinte,
diz Luise, «deve ser possivel a um padre que tenha encon
trado o que se chama o seu aSter ego, o seu tu, viver esta rela-
cáo — pouco importa o nome que se lhe dé: amizade ou
amor — em toda a sua plenitude, sem violar o seu celibato»
(p. 15).

A autora quer confirmar a sua posigáo, asseverando que


o amor a Deus tem como intermediario o amor á criatura
humana (p. 31). É pessimista quanto á possibilidade de se
manter a castidade perfeita: «Provavelmente será impossivel
hoje, para um homem consciente, um comportamento comple
tamente objetivo diante do sexo: urna quebra aqui e acola
haverá sempre» (p. 25).

2. O Pe. Egidio Gentili eré na possibilidade de que um


sacerdote, consagrado a Deus pelo celibato, possa ter, para
com urna mulher, «um amor menos encarnado, mas nao me
nos profundo, do que o amor que dois cónjuges crístáos pos-
sam ter legítimamente um pelo outro» (p. 64). Admite um
amor «quase nupcial» entre o padre e a mulher.

— 15 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

Aceitando esta posslbilidade, o autor cerca-a de ressalvas:


afirma que nao se identifica com a terceira viaJ (p. 55), nem
com o «amor-paixáo» e o «amor louco», más, sim, com o
amor auténtico «que nutriram certos santos» (p. 64). Reco-
nhece o risco prático decorrente da sua tese:

"NSo se deve subestimar o risco. Por sua natureza, o amor nSo


transformado torna-so excessivo e exclusivo, digamos logo a palavra:
louco; e o amor louco nao é compatlvel com as sagradas exigencias de
um celibato voluntario" (p. 74).

Repetidamente o autor, sem desdizer a sua tese, afirma


a necessidade de se aplicarem cautelas para que tal amor nao
degenere. A p. 82, cita o famoso jesuíta alemáo Peter Lippert:

"Peter Lippert, t3o aberto a tudo quanto é santamente humano, no


que concerne ao relacionamento com a. mulher, nao tem dúvldaa a res-
peito: 'Tenho aprendido a considerar mais severamente as relagfies entre
os homens. Se fóssemos com placantes e compasslvos, deverfamos pou-
par-lhes a dor da separacSo. Mas há situacCes em que se deve dizer a
urna pessoa com severldade draconiana: — E agora vá embora, para
nunca mais nos vermos I — Nenhuma palavra, nenhuma carta, nenhuma
saudacSo, nada mais. Do contrario estará tudo perdido I As vezes é a
única colsa a ser feita. A propósito é admlrável o conheclmento da vida
de Cristo, que em certos casos defende como neceeséria esta violencia:
Se o teu olho te escandalizar...1" (p. 82).

Apesar dessas reservas, o Pe. Gentili termina seu livro,


dizendo que «langou urna sementé, a qual nao será sufocada,
mas germinará para um celibato mais seguro e mais feliz. A
Igreja ficará surpresa e edificada» (p.. 133).

Que dizer a respeito?

2. Reflexoes

Proporemos gradativamente algumas ponderacóes sobre o


assunto em pauta:

2.1. Reta inten$áo

Pode-se recanhecer tranquilamente a reta intencáo que


move os dois autores citados ao proporem sua tese: créem que
apresentam idéias aptas a resolver problemas de consciéncia

*A "terceira via" é a intermediarla entre o matrimonio e o celibato.


Admite complementasáo dos dois sexos tal que só nao realiza a cópula
carnal.

— 16 —
<O AMOR NO CELIBATO 17

de sacerdotes e pessoas do sexo feminino. Esforcam-se por


ponderar a questáo através de varios ángulos, encarando obje-
cóes que se possam fazer á sua tese.

Certamente o Pe. Egidio Gentili se mostra mais maduro,


informado e circunspecto do que a Sra. Luise Rinser, a qual
é mais categórica- em suas afirmagóes, e... categórica de ma-
neira pouco convincente, pois argumenta e sentencia em assun-
tos que escapam totalmente á sua experiencia pessoal. Real-
gamos as seguintes palavras de Gentili:

"Fique bem claro. NSo somos absolutamente fautores de exageras


que, na América especialmente, sSo abusivamente denominados de 'terceira
vía'. Também Schoonenberger fez alusáo a isso recentemente, numa en
trevista a 'Splegel', reproduzida por 'Nostro Tempo' (20 de abril de 1969)...
Nio fazia propriamente sua a teoría, mas nem deixava clara a verdadeira
doutrina. Seria multo desejável que semelhantes assuntos delicados ios-
sem levados ao público com a necessária pondoracSo e com o senso de
responsabilldade. O padre celibatárlo que tem amlzade sadia com a mulher,
nao só nSo tem o dever de cultivá-la 'asslm', mas tem como primalra obri-
gacáo guardar sua sagrada solidSo a dois com Oeus como indispensável
condlcSo de verdade no relacionamento" (p. 133, n. 1).

A respeito de Luise Rinser, pode-se observar que, como


mulher, lhe cabe, sim, interpretar o papel da mulher que ama
um padre, mas o inverso nao lhe é natural; nao obstante, a
autora nao hesita em entrar em conjeturas minuciosas da psi
cología de um sacerdote (cf. pp. 16-21.30s) e em dar sugestóes
ou conselhos de «mestra» aos padres, as vezes tocando em
assuntos de foro intimo, que lhe sao por si estranhos. Isto
parece especialmente despropositado pelo fato de que o Padre
Gentili, embora seja sacerdote, é muito mais sobrio quando
considera a mesma problemática.

Ademáis Luise Rinser comeca sua exposicáo estabelecendo


antítese entre um texto de Paulo VI e urna afiímacáo do Car-
deal Julio Doepfner, como se o Papa apontasse diretrizes de
cautela e prudencia, ao passo que o Cardeal sería favorável a
liberalidade; surpreendentemente, a autora descobre nos dize-
res de Doepfner normas e perspectivas que absolutamente nao
estáo contidas ñas palavras do mesmo; leiam-se, por exemplo,
as pp. 11 e 12 do livro em foco. Nao se foge á impressáo de
que Rinser encara o assunto com preconceitos.

Deve-se ainda notar que Rinser e Gentili ecentuam o


aspecto de sacrificio (pp. 39. 64. 71) do celibato, como se
quem renuncia ao matrimonio nao fosse chamado á conquista

— 17 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

de valores que só o celibato pode proporcionar (liberdade inte


rior e exterior, disponibilidade total para Deus e o próximo,
isencáo de preocupagóes transitorias...). Quando Sao Paulo
aponta a vida una em ICor 7, aponta-a precisamente como a
melhor parte ou como a mais bela vocagáo (cf. ICor 7,1.8.
28-32.40). Por que entáo apresentá-la qual «sacrificio», como
se a vida conjugal nao exigisse duros sacrificios da parte dos
dois consortes? A vida matrimonial auténticamente vivida nao
significa menos renuncias do que a vida una.

Dito isto, nao nos podemos furtar a mais estritas ressal-


vas á posigáo de Rinser-Gentili.

2.2. As premissas da tese

1. Ambos os autores, principalmente Rinser, parecem


valorizar excessivamente os imperativos do eros. O cidadáo
contemporáneo sofre, sem dúvida, a obsessáo do sexo. Geral-
mente nao entende amor, alegría e felicidade em que nao
entrem as compensagóes do eros. É fazendo eco a essas pre
missas que os autores encaram o problema do amor no celi
bato e procuram resolvé-lo dando-lhe tonalidade de eros (em-
bora muito cautelosamente, de modo a nao propor tese que
fira o celibato ou a castidade ou a virgindade).

Ora parece-nos que, se a fidelidade ao celibato nem sem-


pre é fácil hoje em dia, é preciso tentar resolver o problema
discutindo as premissas admitidas por Rinser-Gentili: será
que realmente nao pode haver plena realizagáo de urna per-
sonalidade com amor, alegría e felicidade, independentemente
de conotagóes eróticas (ainda que estas nao cheguem a impli
car contatos sexuais) ? — É certo, sim, que o amor em qual-
quer ser humano é amor de urna criatura psicossomática e
sexuada; é, portante, um amor em estilo mesculino ou em
estilo feminino; mas dai nao se segué que deva ter expres-
sóes que se assemelhem ás do esposo e da esposa.

Aceitamos que o convivio com o sexo oposto possa ser


altamente benéfico ao desenvolvimento de urna personalidade;
mas eremos que nao é necessário, para tanto, que o sexo
oposto se concretize numa pessoa determinada que venha a
ser amada em estilo quase nupcial. Houve, sim, santos que
se completaran! mutuamente num singular reíacionamento
nao sexual. Todavía esses santos (S. Francisco de Assis e

— 18 —
tO AMOR NO CELIBATO» 19

S. Clara, S. Francisco de Sales e S. Joana Frémiot de Chantal)


foram pessoas de vida extremamente austera e dadas a intensa
prática da oragáo, de tal modo que difícilmente podem ser
tomadas como prototipos para quem nao tenha semelhante
grau de vida ascética e mística.

Comenta o Pe. J. de Guibert S. J. :

"Resplandecen! de pureza e de ternura amizades tais como a de


um S. Francisco e urna S. Clara, a de urna S. Catarina de Sena com o
Bem-aventurado Raimundo de Cápua ou com esses jovens da sua idade
que a cercavam como mié, ou aínda a amlzade de um S. Francisco de
Sales e de urna S. Joana Francisca de Chantal... N9o nos deteremos
nesses casos; parece que se situam num plano análogo aquele em que
se acham os mais altos cumes da vida mística. Nessas almas já maravllho-
samente purificadas por anos de penitencia e de caridade extraordinarias,
encontramo-nos diante de casos privilegiados; por esses casos Deus nos
quer encorajar em nossa penosa marcha de pobres peregrinos, mais do
que deseja oferecer-nos exemptos que nos possam servir de norma nessa
marcha" ("Les amitiés dans ia vie religieuse", em "Gregorianum" XXII
[1041], p. 174).

Parece-nos, pois, abusivo colocar ante os olhos do leitor


S. Francisco de Sales e S. Joana de Chantal como prototipos
do relacionamento «erótico» entre o homem celíbatário e
urna mulher. Esse modelo só seria válido se fosse aceito com
toda a carga de mortificagáo e profunda oragáo que caracte-
rizavam os dois santos.

2. Outra premissa da tese em foco é a afirmagáo de


que nao há amor a Deus que dispense do amor a um ser
humano concreto: «quem quer saltar por cima do homem,
joga-se no vazio, em vez de jogar-se nos bragos de Deus»
(p. 31).

Luise Rinser, em conseqüéncia, traduz o «Só Deus basta»


de S. Teresa por «Eu te amo, ó minha amada, mas tu nao
me pederás jamáis bastar, se eu nao amo a Deus em ti e
no nosso amor. O que em ti me satisfaz, és tu, como aquele 1
em quem Deus se encarna de algum modo verdadeiro» (p. 32).

Ora é evidente a índole forgada e exagerada desta afir-


macáo. Com que experiencia e autoridade a escritora propóe
tal sentenga? É maior do que ela pensa o número daqueles
que diretamente se voltam para Deus num amor auténtico e,

1 Possivelmente erro de imprensa: deve-se ler aqueta em vez de


aquele.

— 19 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

em conseqüéncia, se dirigem a seus irmáos com sincerídade


e ardor destituido de conotagóes de eros. Quem ama o pró
ximo enfermo, leproso, miserável física e moralmente, anciáo
necessitado ou esclerosado, crianga anómala ou tarada, geral-
mente ama-o porque conhece e ama a Deus e quér testemu-
nhar o seu amor ao Senhor no atendimento á criatura indi
gente, destituida de títulos atraentes.

2.3. Utopia

O tipo de relacionamento quase conjugal que os autores


em foco propóem para o homem celibatário e a mulher «da
sua vida», é teóricamente licito, mas na prática é perigoso e
de difícil realizagáo. Com efeito, para que alguém viva real
mente o seu celibato, deve-se colocar em atitude de entrega
radical ao Senhor. Feita a op?áo pelo náo-casamento, é neces-
sário que o Religioso e o sacerdote procurem viver táo coe-
rentemente quanto possível a vida una e indivisa.

Procurar concessóes 'á natureza, ainda que sem a ínten-


cáo de chegar ao contato sexual, é arriscar-se a queda (a
natureza é fraca, embora o espirito esteja disposto para o bem,
diz o Senhor em Mt 26, 41) ; suscita situagóes ambiguas, que
desedificam ou mesmo escandalizan! o povo de Deus e rara
mente contribuem para que o sacerdote se sinta mais sacer
dote ou mais ministro de Deus. Se hoje em dia muitos ministros
do Senhor perdem crédito junto aos fiéis, isto se deve nao a
eventuais intengóes de infidelidade á sua vocagáo, mas, sim,
ao fato de que, talvez de boa fé, seguem teorías sobre sexua-
lidade que em si poderiam ser inocentes, mas que na prática
váo contribuindo para fazer que tal ou tal padre aparega como
urna figura ambigua, desorientada, sem fibra, sem coeréncia
ou sem definicáo. — O Senhor mostra no Evangelho que, em
vez de dilatar e facilitar os caminhos para Deus, a vocagáo
crista póe o discípulo de sobreaviso pedindo-lhe que esteja
disposto a renunciar até aos valores mais legítimos quando se
tornarem entraves para seguir a Cristo:

"Se teu otho for para ti causa de pecado, arranca-o e lanca-o fora,
pols é melhor perder-se um dos teus membros do que todo o corpo ser
atirado á geena. E, se a tua máo direita for para ti causa de pecado,
corta-a e lanca-a fora, porque é melhor perder-se um só dos teus mem
bros do que todo o teu corpo ser lancado á geena" (Mt 5,29s).

— 20 —
«O AMOR NO CELIBATO» 21

Donde se vé que uma vocacáo crista plenamente vivida


tendé a ser cada vez mais invadida pelo Espirito de Deus.
que instaura em seus fiéis um progressivo processo pascal de
morte e ressurreicáo ou de renuncia até aos valores mais
honestos e naturais, para que a vida do Senhor ressuscitado
se introduza mais e mais no cristáo fiel.

Estas proposicóes nao querem dizer que o sacerdote se


deva castrar mentalmente. Mas, sim, que o amor por ele
dedicado a seus irmáos é.amor marcado pela vocagáo sacer
dotal, que é a vocagáo para comunicar Cristo e o Reino de
Cristo aos irmáos; o amor do padre é, mais do que qualquer
outro, o amor do Coraeáo de Cristo, que dizia: «Vim trazer
o fogo sobre a térra, e que quero senáo que se acenda ?»
(Le 12,49).

A própria sensibilidade do padre deve estar assumida e


envolvida no amor teológico que Cristo nele depositou.

3. Observares fináis

1. Em suma, duvidamos de que a tese de Rinser-GentHi,


uma vez sistemáticamente posta em prática, traga mais brilho
para a vocagáo sacerdotal, mais felicidade para o homem
consagrado a Deus e mais edificacáo para o povo de Deus.
Parece-nos que, ao contrario, seria responsável por uma serie
de ambigüidades, incoeréncias e escándalos. A quem se con-
sagrou a Deus, compete procurar viver nao só físicamente,
mas também mental e psíquicamente, a vida una e indivisa
(cf. 1 Cor 7, 29-35). A complementagáo de que toda criatura
necessita, o sacerdote a encontra diretamente em Deus, cul
tivando a sua vida de oragáo, de trabalho apostólico, de
renuncia e pobreza ; quanto mais alguém tem o senso de
Deus (fazendo de Deus nao uma palavra, mas um Tu vivo e
polarizante), tanto mais pode abster-se de ambiguas con-
cessóes á sensibilidade. O principio de solugáo do problema
está precisamente em descobrir a face da Beleza Infinita já
na vida presente e os atrativos que ela exerce sobre quem a
procura sinceramente.

2. Está claro que o sacerdote, como criatura, está sujeito


a tentacóes e as fainas daí decorrentes. Todavia nao se deve-
ria crer que nao. é possivel viver de maneira pura e coerente
o celibato consagrado; Deus nao chama alguém para o impos-

— 21 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

sível nem para a realizacáo mediocre de sua vocagáo; isto


seria absurdo. O sacerdote que procure praticar aoragáo e
a renuncia, consegue viver com edificagáo e alegría a vida una.

3. É necessário que se remova o tabú do sexo. Até de


cenios atrás, o sexo era tabú por nao se poder falar dele;
as coisas mais naturais" «escandalizavam». Hoje o sexo é
tabú porque se julga falsamente que, onde nao naja urna
ponta de eros, nao há felicidade nem auto-realizagáo. Quem
aceita esta tese, há de sentir-se naturalmente subjugado por
«imperativos» da sexualidade; esses imperativos nao existiriam
com a mesma veeméncia, se o sujeito nao lhes atribuisse a
importancia que hoje se lhes costuma dar.

4. O que desagrada na leitura do livro de Rinser-Gentili,


sao precisamente as premissas que os autores supóem, mas
nao provam : colocam, pois, falsamente o problema e falsa
mente pretendem resolvé-lo, como se se tratasse de encontrar
urna fórmula de relacionamento quase conjugal para o homem
consagrado a Deus. Procurando atingir esta meta, os autores
(principalmente Rinser) nos deixaram páginas que diluem a
grandeza da vida sacerdotal; esta pode realmente tornar-se
simplesmente a vida de um funcionario da Igreja, se nao for,
antes do mais, encarada com fé e amor sobrenaturais. Falta
um tanto deste enfoque no livro analisado. Tenha-se em vista,
por exemplo, ainda o seguinte tópico de Luise Rinser:

"Urna objetividade relativa diante do sexo pode ser também fruto de


urna inibi;So, de urna impotencia, de urna repressüo ou mesmo fruto de um
longo esforco espiritual" (p. 25).

É monstruosa a justaposigáo (quase a equiparagáo) de


impotencia, inibigáo e longo esforco espiritual. — Longo
esforco espiritual seria alguma aberragáo ou anomalía ?

Como dito, o bom padre nao é aquele que extingue a sua


sensibilidade, mas aquele que a integra em urna consciéncia
de «outro Cristo», cuja missáo é precisamente fazer que a
Páscoa e a vida eterna transfiguren desde já as realidades
terrestres.

5. Vale a pena ainda salientar dois tópicos (desta vez,


positivos) tirados das páginas do Pe. Egidio Gentili:

a) O autor observa com muito propósito á p. 134,


nota 14 :

— 22 —
«O AMOR NO CELIBATO» 23

"É sobretudo nos prlmelros anos de ministerio que o padre deve


estar alerta, porque no seu entusiasmo ingenuo de dedicado nem sequet
chega a sonhar com os percalcos. N§o deve esquecer o que até o pagio
Eurípides ressalta em sua obra 'Hipólito' e que pertence á problemática
sexual da castidade consagrada de todos os tempos: a atractta toda
especial que exerce sobre o espirito feminino o jovem puro e devotado
ao ministerio sacro (a mesma coisa se poderla afirmar a respeito da
lovem Religiosa). Comentando o texto que conta a paixáo ardente de
Fedro por Hipólito, vendo-o aió nos misterios de Eléusis, Vigolo cita uma
observacSo multo precisa de um psicólogo estrangeiro, Klug, sobre
a atracáo mórbida, aberta ou velada, que certas mulheres sentem pelo
sacerdote. E refere-se, logo em seguida, á observacSo de Cario Falconi de
Gli Spretati: 'Sobretudo se for casto, como na Igreja Católica, o padre
exerce na mulher um fasclnlo, também humano, que pode chegar e até
ultrapassar o mórbido. Geralmente se eré, nos asslm chamados escándalos,
que a iniciativa era do padre. Nao raro, o contrario é verdade'... A possl-
bilidade de uma amizade feminina depende muitlssimo da mulher".

Este texto é baseado na experiencia nao só de ambientes


europeus, mas também da realidade brasileira. Ele comunica
uma palavra de advertencia amiga nao só aos jovens sacer
dotes, mas também ás pessoas do sexo feminino. O espirito
genuinamente cristáo deve levar uma moga (ou uma senhora)
a contribuir para que o padre fervoroso seja cada vez mais
fiel a sua vocacáo; em vez de lhe preparar, consciente ou
inconscientemente, ciladas e obstáculos, ajude-o a se firmar
cada vez mais na trilha iniciada; esse auxilio poderá exigir
que a mulher deixe de demonstrar a sua especial simpatia
para com a figura do bom padre.

b) Diz aínda o Pe. Gentili:

"Nos Estados Unidos se discutiu, no seio de uma Ordem religiosa,


tradicionalmente conhecida pela sua grande austeridade, se, no periodo de
formacSo, o candidato ao sacerdocio nSo poderla cultivar uma amizade
com uma moca, sair com ela, irem juntos ao teatro, ao cinema e á prala...
Semelhante atitude nao pode ser admitida por Superiores responsáveis. O
candidato que achar que isto é necessárlo para o amadureclmento psico
lógico e espiritual, nSo pode continuar no Seminario. Primeiro precisa
resolver, fora, os problemas psicológicos e afetlvos e só depols poderá
pensar a serio em levar avante o propósito de servir a Deus no celibato
perpetuo, assumido llvremente através de um voto sagrado. Esta foi a
resposta dada pelo Pe. Pedro Arrupe S. J., Geral da Companhia de Jesús,
numa carta a um Provincial da América" (p. 136, nota 35).

Tal alvitre é certamente muito sabio. Na verdade, há


psicólogos que julgam que as relaeñes sexuais constituem urna
prática preliminar indispensável para que o sacerdote possa
escolher maduramente o celibato; só assim poderia ele optar
com conhecimento. de causa. Ora deve-se dizer que nao é a
prática do sexo que gera a maturidade no ser humano; mas,

— 23 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

ao contrario, é a maturidade que torna possivel urna tal prá-


tica. Sim; no decorrer da adolescencia os desejos do jovem
sao mais ou menos penetrados de sexualidade : amigos do
mesmo sexo, colegas do outro sexo, o próprio sujeito (nar
cisismo) sao encarados com sexualidade mais ou menos apa
rente. Somente quando a adolescencia chega ao fim e o
individuo atinge a sua maturidade sexual é que ele se define
em favor das relacóes (eletivas) para com o outro sexo...
e, mais definidamente, para com urna pessoa do outro sexo;
ele entáo pode desejar sexualmente alguém que venha a ser
consorte numa vida a; dois; as demais pessoas, ele as amará
independentemente de tendencias eróticas. Vé-se, pois, que a
maturidade afetiva é que vai levar o individuo 'á opcáo em
favor do uso do sexo ou nao, e nao vice-versa (nao é o uso
do sexo que leva o sujeito a maturidade afetiva).

Possam estas ponderacóes contribuir para que o nosso


público reflita sobre a onda de erotismo que domina a socie-
dade contemporánea, e assim se liberte dos percalgos de teo
rías que, aparentemente científicas, sao na verdade deletérias
dos mais genuínos valores cristáos e humanos!

"TORNE-SE FORTE ORANDO" (cassete)

Texto e locucáo de Joáo Mohana. Ed. Paulinas, Sao Paulo:


Discos e careóles 0017

O Pe. JoSo Mohana, há tempos, escreveu um Hvro sobre a oracáo:


"Paz pela oragao" (cf. PR 163/1975, p. 299). Agora oferece-nos urna íita
gravada sobre o mesmo tema, mediante a qual o autor quer incutlr aos
ouvintes o valor e os méritos da vida de oraféo. NSo se pode defxar de
louvar a intencao. Apenas observamos que Mohana exaltou, com énfase
desproporcional, os aspectos psicológicos e pslcoterapéutlcos ("tranquili
zantes") da prática da oracáo. Acentúa a presenta de Deus no crlstao em
termos demasiadamente fisiclstas: "Músculos de mlnhas pernas, do abdomen,
do tórax, dos bragos, do pescoco... descoptraiam-se para se encher de
Deus" ou "porque Deus está em mlm" ou "para que Deus se torne tudo
em mlm". Ora tal estilo nao somente se torna monótono (é próprio para
"relax"), mas também lembra o das religióes orientáis pantelstas e da Yoga,
que'assoclam exercfcios corporais e o sentimento da presenca de Deus no
homem. NSo há dúvlda, o Pe. Mohana se conserva fiel á espirituatidade
católica, mas desenvolve urna faceta lateral da mesma, com perigo de
eventual mal-entendido para o ouvinte; slm, a oragao é, antes do mais, o
contato da criatura com o Criador para adorar, louvar e agradecer ao
Senhor; ela também visa a pedir... Quem pratica Isto, sente-se tranquilo
e harmonizado, sem dúvida, mas apenas em conseqüéncia de ter bem
rezado; a oracSo nao deveria ser entendida primeramente como fator psl-
coterapéutico. De resto, estas observares nao sao novidade para o bene
mérito autor de "Torne-se forte orando".

— 24 —
Abolicao ou nao ?

e a censura de livros na isreja?

Em sfnlese: A Igreja sempre se sentiu responsável pela conservac&o


e transmissao da doutrina da fé e da Moral reveladas por Cristo. Desde
antigás épocas denunciava e condenava escritos heréticos. Na Idade Media
as Universidades assumiram a si o papel de preservar a reta doutrina.
Com a invencao da Imprensa (1450) essa tarefa tornou-se mais sistemática.
Em 1487, o Papa Inocencio VIII deu as prlmeiras normas, válidas para a
Igreja Universal, relativas ao exame de livros a ser publicados. Os Papas
subseqüentes as confirmaran! e completaran). O Código de Direito Canó
nico em 1917 deu-lhes a forma mais explícita.

O Concilio do Vaticano II (1962-1965) criou um clima de revlsfio de


tais determinares. Em conseqüéncia, após prolongados estudos, em marco
de 1975 foram publicadas as atuais normas para exame previo de livros.
EstSo estritamente sujeitas á censura previa as edicdes da S. Escritura e
suas introducOes ou notas, os livros litúrgicos e os de oracáo particular,
os catecismos e outros livros didátlcos em uso na catequese de qualquer
nivel. Além disto, a S. Igreja recomenda que todos os escritos atinentes á
fé e á Moral sejam submetidos a previo exame, embora nSo o exija jurí
dicamente, lsto significa que um leitor católico poderá ter em meos um
lívro de doutrina teológica que nao corresponda exatamente á mensagem
da fé; lsto o obrigará a procurar ter urna fé adulta e capaz de discernir
entre as prposlgoes do Credo e as hipóteses dos estudiosos.

Quanto ao índice de iivros proibidos, já nSo tem forca jurídica desde


1966. Todavía cada fiel católico continua obrigado em consciéncla a nSo
expor a sua fé ao enfraquecimento e á deterioracfio mediante lelturas
deletérias. Cada um avalie diante de Deus se tem ou nao motivos para
ler qualquer obra concernente á fé e á Moral (ou depravacSo moral}.

Comentario: A palavra «censura», na linguagem de hoje


significa por vezes repreensáo. Nao é neste sentido que ela
ocorre no presente artigo, mas, sim, em sua significacáo ori
ginaria de «exame, análise, julgamento»; Plínio o Romano
falava' de «faceré censuram» dos vinhos (9.72.2) ; Plínio
(14.8.10) e Horacio (2Ep. 2.109) falavam de «censura»
(exame) dos escritos de alguém.

Desde remotas épocas, houve, por parte dos pastores da


Igreja, vivo interesse em que nao se disseminassem escritos
portadores de erros contra a reta fé e os bons costumes;

— 25 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

compete, sim, k autoridade velar pela íntegra conservagáo do


depósito entregue por Cristo á Igreja e aos homens. Essa
vigilancia sobre os escritos exerceu-se de diversos modos de
acordó com os diversos periodos da historia da Igreja. A
última modalidade foi promulgada em marco de 1975, modifi
cando notavelmente as normas vigentes até 1966.

A seguir, percorreremos as grandes etapas da historia


da censura de livros e finalmente nos deteremos sobre o
documento da Santa Sé datado de 19/IH/1975.

1. Antes de Gutenberg (1450)

O primeiro modelo de Índice de livros proibidos que se


conheca, é o chamado «Decreto Gelasiano», atribuido ao
Papa Gelásio I e datado aproximadamente do ano 495. Enu
mera Escrituras apócrifas e livros de herejes como obras
que nao devem ser lidas por fiéis cristáos. Cf. Denzinger-
-Schonmetzer, «Enquiridio dos Símbolos e Definigóes» nn. 354s
(165s).

No século VI, deu-se a condenagáo de proposigóes tiradas


dos escritos de Orígenes de Alexandria (t 250 aproximada
mente) por iniciativa de Justiniano I, o «imperador teólogo»
de Bizáncio. Essa condenagáo parece ter sido confirmada pelo
Papa Vigilio, quando esteve em Constantinopla (547-555).
Cf. Denzinger-Schonmetzer, ESD n. 403-411 (203-211).

Os erros de Pelágio foram condenados pelo Concilio de


Cartago XV (ou XVI) em 416. a. ESD n. 222-230.

Sao Leáo Magno (t 461), Papa, rejeitou os escritos raa-


niqueus e priscilianistas que estavam em curso na sua época,
disseminando a crenga no destino e no fatalismo, assim como
professando a existencia de um principio por si mesmo mau.
Cf. ESD n. 283-286.

Os escritos dos nestorianos foram condenados pelo Con


cilio de Éfeso em 431 e os dos monofisitas pelo de Calcedonia
em 451.

No decorrer da Idade Media registrou-se a condenagáo


de obras de herejes por parte de Concilios ecuménicos ou
regionais. Todavia a vigilancia da Igreja sobre escritos dou-

— 26 —
CENSURA DE UVROS

trinários teve que se exercer maisassiduamente através das


grandes Universidades da época. Nestas, os textos distribuí-
dos aos estudantes sob forma de apostilas se multiplicavam,
exigindo atengáo especial da parte dos pastores. Assim em
1336 os delegados do Papa Urbano V na Universidade de
París determinaran! que «nenhum professor ou bacharel no
exertício do magisterio direta ou indiretamente erítregasse o
seu texto aos copistas antes que esse texto fosse examinado
pelo chanceler e pelos professores da Faculdade de Teologia».

A Faculdade de Teologia de Colonia em 1398 incluiu nos


seus Estatutos quase as mesmas palavras: «Os professores
nao entregaráo o texto de suas aulas aos copistas antes que
tenha sido examinado e aprovado pela Faculdade de Teologia».

O Concilio de Oxford-Londres (1408-1409) dispunha:

"Os opúsculos ou textos que Joáo Wíclef tenha escrito no passado


ou recentemente ou que ele venha a escrever no futuro, doravante nao
sejam lidos ñas escolas se antes nao tenham sido examinados;... se
nao tenham sido aprovados expressamente por nos e por nossos suces-
sores;... se em nome e por autorldade da Universidade nio tenham sido
entregues aos copistas. Estes, depols de exato confronto, os cederao aos
compradores por justo preco, ficando os origináis guardados para sempre
em arqulvo especial da mesma Universidade."

Com a invencio da imprensa, o exame dos escritos a


serem dados ao público deixaria de ser prática esporádica e
local para tornar-se urna instituicáo estável e extensiva a
toda a Igreja.

Vejamos, pois, o que se deu

2. De Gutenberg ao Código «fe Direito Canónico (1917)

1. Joáo Gensfleisch, dito Gutenberg (1400-1468), inven-


tou a imprensa, de modo a dar novas possibilidades de divul-
gacáo a qualquer tipo de escritos. De passagem note-se que
no veráo de 1456 Gutenberg imprimiu 180 exemplares da
Biblia.

O primeiro documento eclesiástico que se refíra á inven-


cáo do sabio, é o Breve do Papa Sixto IV «Accepimus litteras»
de 1479 ; neste Breve o Pontífice nao faz explícita mencáo
de censura previa, mas louva o zelo com o qual oReitor e os
decanos da Universidade de Colonia «tinham proibido a lei-

— 27 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

tura, a impressáo e a venda dos livros contaminados de


heresia», e, «a fim de que pudessem levar a bom termo o
que tinham iniciado de bem», concedia-lhes «licenga e per-
missáo para reprimir com censuras eclesiásticas e outros re
medios adequados os homens que decidissem imprimir tais
livros».

Nao se sabe como a Universidade de Colonia utilizou a


licenga de Sixto IV. Sabe-se, porém, que pouco depois (1486)
o arcebispo de Mogúncia Bertoldo de Henneberg instituiu a
primeira comissáo diocesana encarregada de «examinar os
livros destinados á imprensa». No ano seguinte ■(17/XI/1487),
o Papa Inocencio VHI, pelo decreto «ínter multíplices», es-
tendeu á Igreja o que vigorava na diocese de Mogúncia:

— exame previo obrigatório de todos os escritos a ser


entregues ao prelo ;

— concessáo de licenca para impressáo («Imprimatur»)


apenas aos escritos nao contrarios á sá doutrina e aos bons
costumes ;

— sangóes espirituais e financeiras a quem imprimisse


algo em contravencáo a tais disposigóes ;

— destruigáo (geralmente pelo fogo) dos escritos con


trarios á fé e aos bons costumes.

O Papa Alexandre VT em 1501 confirmou estas normas


por urna Constituigáo homónima. Leáo X em 1515 fez o
mesmo pela Constituigáo «ínter sollicitudines». Em 1753 re-
gistrou-se a Constituigáo «Sollicita ac Provida» de Bento XIV
e em 1897 a «Officiorum ac munerum» de Leáo XIII, as
quais confirmavam a legislagáo anteriormente estabelecida no
tocante á publicagáo de livros. Compreende-se, porém, que
com o passar do tempo já nao se podiam aplicar sangóes
financeiras aos contraventores das normas eclesiásticas nem
se podia pensar em destruir pelo fogo as obras proibidas. Ape
nas é de notar que ñas bibliotecas de Escolas, Universidades
e mosteiros destinadas a estudos de erudigáo existiam, sem
dúvida, as obras proibidas, as quais eram guardadas em lugar
próprio chamado «Inferno» ; ai os estudiosos as podiam con
sultar.

— 28 —
CENSURA DE LIVROS 29

. Finalmente o Código de Direito Canónico em 1917 con-


substanciou e reafirmou as normas até entáo vigentes, as
quais foram aplicadas até o Concilio do Vaticano II.

2. Quanto á origem do Índice de livros proibidos, note-se


o seguinte:

No sáculo XV as Universidades comegaram a redigir


catálogos de livros nocivos á fé e aos bons costumes, para
orientagáo dos estudiosos. Essa iniciativa foi assumida pelo
Imperador Carlos V, que em 1529 publicou o primeiro Índice
oficial de livros proibidos para os habitantes dos Países-Bai-
xos. Tal Índice serviu de modelo para outros semelhantes
publicados em Veneza e Paris nos anos de 1543 e 1546 res
pectivamente. Considerando essas iniciativas, o Papa Paulo IV
procedeu á compilacüo do primeiro Índice eclesiástico válido
para a Igreja universal e promulgado em 1557. Os padres
sinodais do Concilio de Trento (1545-1568) insistiram na
necessidade de urna revisto desse primeiro Índice — revisáo
que o próprio Paulo IV empreendeu, levando-a a termo em
1564. A seguinte revisáo ocorreu em 1900. por iniciativa de
Leáo XHL Nos anos subseqüentes, o índice foi reeditado; em
1946 o Papa Pió XII mandou acrescentar-lhe um Apéndice,
que continha os livros condenados entre 1940 e 1945.

Ao promulgar o Índice em 1557, Paulo IV confiou a vigi


lancia sobre os livros á Congregagáo Romana do Santo Oficio.
O Papa Sao Pió V (1566-1572), porém, instituiu a Congrega
gáo do Índice para atender a essa tarefa. Tal Congregagáo
foi extinta pelo Papa Bento XV aos 25/IÜ/1917, voltando as
incumbencias, relativas á censura de livros para a Congregagáo
de S. Oficio.

Vejamos sumariamente o conteúdo dos principáis cánones


promulgados em 1917.

3, O Código de Direito Canónico (1917)

1. Os cánones 1385-1394 referem-se á censura de livros


anterior 'a publicagáo dos mesmos. Incluem nesta categoría:

as edicóes da S. Escritura; os comentarios e as notas


relativas a esta ;

— 29 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

— as obras concernentes á S. Escritura, a teología da


fé, á historia da Igreja, ao Direito Canónico, á teología natu
ral, á ética e a outras semelhantes disciplinas moráis e reli
giosas ;

— os Iivros de preces e de formagáo religiosa, moral,


ascética, mística ;

— de modo geral, os escritos portadores de algo que


interesse á religiáo e aos bons costumes ;

— as imagens sagradas impressas, com ou sem oracóes


anexas.

2. Os cánones 1395-1399 tratam da proibigáo de Iivros.


Sao declarados proibidos, entre outros, pelo próprio Direito
Canónico :

— as edigóes da S. Escritura feitas por acatólicos tanto


ñas linguas origináis bíblicas como em tradugóes. Todavía o
canon 1400 permite aos estudiosos de teología e S. Escritura
utilizar tais edicóes, contanto que nelas nada 'naja que se
oponha 'ás verdades da fé católica;

— os Iivros que propaguem novas visóes, revelagóes, pro


fecías, fatos portentosos, sem ter sido previamente aprovados
pela autoridade da Igreja ;

— os Iivros que difundam qualquer tipo de superstigáo,


magia, evocagáo dos mortos ;

— os Iivros que propugnan o duelo, o suicidio, o divorcio


ou a maeonaria.

Os cánones 1400-1405 prevéem a concessáo de licenca


para a leitura de tais livros, licen^a a ser concedida ou pelo
bispo diocesano ou pela Santa Sé a pessoas que a pegam legi-
timamente. Tais pessoas, usando livros proibidos pelo Direito
Canónico, sao obrigadas a evitar que tais escritos passem a
máos alheias.

3. O canon 2318 § 1 estabelece a excomunháo reser


vada «de modo especial» á Santa Sé para os editores de livros
de apóstatas, herejes e cismáticos que defendam a apostasia,
a heresia ou o cisma. A mesma pena é instituida para todos

— 30 —
CENSURA DE LIVROS 31

aqueles que defendam, leiam cientemente e retenham esses


livros ou outros proibidos nominalmente por decreto da
Santa Sé.

Essa disciplina, minuciosamente severa, passou por re-


visáo em conseqüéncia do Concilio do Vaticano II, como se
verá abaixo.

4. A nova disciplina

1. Durante o Concilio do Vaticano II (1962-1S35), os


padres sinodais insistiram na necessidade de se reestruturar
a Congregagáo do S. Oficio. Tal solidtacáo foi sendo atendida
por etapas.

Já aos 7 de dezembro de 1965 Paulo VI publicou a Carta


Apostólica «Integrae Servandae», em que mudava o nome do
Santo Oficio para o de «Congregagáo para a Doutrina da Fé»;
estabelecia outrossim que nenhum livro fosse condenado sem
que tivesse sido ouvido o seu autor e sem que se tivesse dado
a este a oportunidade de se defender.

Aos 16 de Janeiro de 1966, a S. Congregagáo para a


Doutrina da Fé publicou urna comunicagáo referente ao Índice
de Livros Proibidos, onde se 3é o seguinte :
"Esta S. Congregasáo para a Doutrina da Fé informa que o índice
conserva sua obrigatoriedade moral, enquanto ensina aos fiéis cristaos
que, dé acordó com as exigencias do direito natural, devem precaver-se
contra os escritos que possam constituir um perigo para a fé o os bons
costumes. Todavía o índice em si mesmo com as penas anexas nSo tem
mais forca de leí eclesiástica".

Este texto quer dizer que nao há mais livros proibidos


pelo Direito da Igreja, nem, por conseguinte, excomunháo
para as pessoas que depois de junho de 1966 tenham lido os
livros outrora proibidos. Todavía o cristáo há de consultar a
sua consciénda moral; esta lhe diz que nao deve ler, sem
motivo muito serio, livros que constituam perigo para a sua
fé e os seus bons costumes. Aínda que abolida a torga legal
do índice, fica de pé o imperativo moral, que é anterior á
prescrigáo jurídica.

A declaracáo de Roma referente ao Índice foi, por muitas


pessoas, entendida como aboligáo (de fato, se nao de direito)
das normas de censura e aprovagáo vigentes para a publicacáo
de livros teológicos na Igreja. Com efeito, após junho 1966,
foram editadas sem aprovagáo ou imprimatur muitas obras

— 31 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

que deveriam ter sido previamente censuradas e aprovadas,


conformé o canon 1385. Diversos bispos manifestaram as difi-
culdades que experimentavam para aplicar a lei do Imprimatur,
embora se sentissem conscientes do dever que lhes incumbía,
de vigiar sobre a doutrina da fé e da Moral católicas. O Car-
deal F. Marty, arcebispo de París, em fevereiro 1974, teve
ocasiao de se manifestar publicamente contra o livro «Les fíls
dépossédés» do Pe. Berñard Feillet; escrevia entáo ao Pe.
Feillet, da cápela de S. Bernard de Maine-Montparnasse
(París) :

"Se, como expressamerite pedí a todos, V. S. tlvesse submetldo seu


texto ao Imprimatur, nao terlamos chegado a este ponto. O Imprimatur é,
antes do mais, um servico fraterno e um aviso para os leltores. é manl-
festa a sua utllldade para o bem da comunldade Intelra" ("La Documen-
tatlon Cathollque" 16/11/75, n? 1670, p. 194s).

Entrementes em Roma desde 1969 o problema foi sendo


estudado pela Congregagáo para a Doutrina da Fé; esta,
enquanto reconsiderava a questáo, nao deixava de reafirmar
a validade das normas do Código de Direito Canónico relativas
á previa censura de livros.

Finalmente, após numerosas consultas feitas á Comissáo


de revisáo do Código e a bispos de metrópoles onde o movi-
mento editorial é mais intenso, a S. Congregado para a
Doutrina da Fé submeteu ao S. Padre Paulo VI urna nova
legislado sobre o assunto, legislagáo que foi aprovada pelo
Pontífice aos 7/DI/1975 e assinada pelo Cardeal Seper, Pre-
feito daquela Congregagáo, aos 19 de margo de 1975. O texto,
sob forma de Decreto, foi publicado, em primeira máo, pelo
jornal «L'Osservatore Romano» aos 10 de abril de 1975,
tendo por título «A respeito da vigilancia dos Pastores da
Igreja sobre os livros».

2. Percorramos os principáis traeos dessa nova dispo-


sicáo legislativa :

Preámbulo

O Decreto se abre com urna justificativa de si mesmo.


"Para conservar e defender a integrldade das verdades da fé e dos
costumes, compete aos Pastores da Igreja o dever e o direito de vigiar
para que a fé e os costumes dos fiéis nSo sejam prejudlcados por escritos
e, por isso também, de exigir que a publicacSo de escritos relativos á fé
e aos costumes saja submetlda á sua aprovacáo previa. Compete-lhes
também reprovar livros e escritos que ataquem a reta fé ou os bons
costumes".

— 32 —
CENSURA DE MVROS 33

Alias, a conservagáo das verdades da fé e da integridade


dos costumes sempre foi o principio inspirador de todas as
Constituigóes papáis relativas ao Imprimatur. Tal solicitude
se compreende bem desde que se leve em conta o fato de
que a missáo de interpretar auténticamente a Paiavra de
Deus toca táo somente aos bispos, como lembra a Constituicáo
«Dei Verbums^n» 10, do Concilio do Vaticano II:
"O offcio de Interpretar auténticamente a Paiavra de Deus escrita ou
transmitida (oralmente) foi confiado únicamente ao magisterio vivo da
Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesús Cristo. Tal magisterio
evidentemente nSo está ácima da paiavra de Deus, mas a seu servlco;
nao enslna senáo o que foi transmitido; por mandato divino e com a assis-
téncía do Espirito Santo, píamente ausculta aquela paiavra, santamente a
guarda e fielmente a expfie".

Artigos 2, 3 e 4 : que livros ? 1

Os artigos 2, 3 e 4 do Decreto dizem respeito ao tipo


de livros que háo de passar pela censura da Igreja antes de
serem publicados.

Como dito atrás, o Código de Direito Canónico (can. 1385


§ 1) abrangia grande número de publicacóes sob a exigencia
da censura. Alias, essa disposicáo do Direito Canónico já
significava um notável abrandamento das leis que durante
cerca de trezentos e cinqüenta anos vigoraram na Igreja. Sim;
até 1848 todos os escritos publicados por fiéis católicos deviam
ser submetidos a censura previa; foi em 1848 que o Papa
Pió IX resolveu restringir a censura aos livros que direta ou
indiretamente tocassem a fé e a Moral, pois o número de
publicacóes naquela época já era táo volumoso que os censores
nao davam conta da tarefa. O Código de Direito Canónico
em 1917 ficou dentro do ámbito trabado por Pió IX.
Quanto as novas disposigóes promulgadas em 1975, elas
enunciam apenas tres categorías de livros para as quais se
requer a aprovagáo previa da autoridade eclesiástica:

1) Os exemplares da S. Escritura, tanto em lingua ori


ginal como em qualquer traducáo. Ao magisterio da Igreja
nao compete controlar a Paiavra de Deus com o seu Impri-
mator, mas verificar a autenticidade e integridade do texto
a ser publicado. Ademáis requer-se que qualquer traducáo da
Biblia destinada ao grande público seja acompanhada de
notas explicativas.

i O artigo n<? 1 será estudado juntamente com o 6?; cf. p. 36.

— 33 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

O Decreto nota ainda que «as tradugóes da S. Escritura,


acompanhadas das convenientes explicagóes, podem, com o
consentimento do Ordinario do lugar, ser preparadas e publi
cadas pelos fiéis católicos também em colaborado com os
irmáos separados». Esta cláusula faz eco ao texto da Consti-
tuigáo «Dei Verbum» n'-22 do Concilio do Vaticano II; repre
senta certamente grande novidade em relagáo ao texto do
Código de Direito Canónico e se explica como conseqüéncia
do intenso trabalho de aproximagáo realizado pelo Secretariado
para a Uniáo dos Cristáos.

2) Os livros litúrgicos e as suas traducóes em línguas


modernas háo de ter a aprovagáo da autoridade da Igreja.
O mesmo se diga dos devocionarios e outros livros que se
destinam á oragáo particular. Entende-se tal prescrigáo pelo
Eato de que as fórmulas de oragáo devem estar em consonan
cia com as da fé; através de textos de piedade pouco crite-
riosos podem-se difundir proposigóes ou atitudes de fé erró
neas ou ridiculas.

3) Os livros de conteúdo religioso ou moral (S. Escritura,


Teología sistemática, Direito Canónico, Historia da Igreja,
disciplinas religiosas ou moráis...) sao distribuidos em duas
categorías:

— os catecismos, os escritos destinados á educagáo da


fé, de qualquer nivel desde o primario até o universitario, só
podem ser utilizados ñas escolas caso ten'ham aprova^áo da
competente autoridade eclesiástica;

— os livros que abordam materias teológicas e, mais


amplamente, os que se relacionam com a religiáo e a hones-
tidade dos costumes, se nao sao destinados as escolas, nao
precisam, a rigor, da autorizagáo eclesiástica para ser publi
cados. Todavía o Decreto recomenda sejam previamente sub-
metidos á aprovagáo da Igreja; trata-se, pois, de um conselho
de peso, nao, porém, de urna imposigáo — o que é novidade
em relagáo a legislagáo anterior.

Artigo 5 : Que autores ?

Depois de haver considerado a materia sujeita a censura,


o Decreto passa em revista os autores de escritos: clérigos,
Religiosos, Jeigos.

— 34 —
CENSURA DE LIVROS 35

As disposicóes do Direito Canónico eram assaz severas,


como se depreende do texto do canon 1386 :

"§ 1. Aos clérigos seculares sem llcenca do Ordinario respectivo,


aos Religiosos sem a permissSo do Superior malor e do Ordinario do
lugar, nao é licito publicar nem mesmo llvros que tratem de assuntos pro
fanos, nem escrever em jomáis, folhas ou periódicos, nem dirigir tais
periódicos.

§ 2. Em Jomáis ou em periódicos que costumam combater a religlSo


católica ou a Moral, nao escrevam coisa alguma nem mesmo os lelgos
católicos, a menos que para Isto haja causa justa e razoável aprovada
pelo Ordinario do lugar".

As novas normas diferem notavelmente do canon ácima.


Nao falam dos livros de conteúdo profano. Mesmo para os de
índole religiosa e moral, apenas «recomendam vivamente que
os clérigos procurem ter a aprova?áo do seu Ordinario e os
Religiosos a do seu Superior maior para publicar seus escritos
(a menos que as Constituic.óes dos Religiosos obriguem a
pedir a licen^a do Superior Religioso)».

Estas disposicóes, na prática, significam que um leitor


católico poderá ter em máos obras de autores católicos que
nao correspondam exatamente á doutrina da fé e da Moral
católicas; deverá, pois, procurar informar-se sobre o valor de
tais obras ou confronta-las com outras, a fim de nao se
iludir sobre a autoridade das teses ou hipóteses que tais escritos
transmitam. Em suma, o fiel católico deverá saber que hoje
em dia nem tudo o que é publicado por membros da Igreja
— clérigos, Religiosos ou leigos — em materia de fé e de
Moral tem o mesmo grau de ortodoxia; há, sim, obras publi
cadas por eruditos para o público iniciado em questóes teoló
gicas e destinadas a provocar o debate e o possível progresso
da teología. A S. Igreja permite a publicagáo de tais obras
para nao entravar a pesquisa e o coloquio dos estudiosos;
Ela assim indiretamente póe seus filhos nao iniciados em teo-
logia na contingencia de procurar ter urna fé madura, adulta,
ciente do que professa, e nao dependente de tal ou tal autor
famoso.

A abertura que tais normas representam, exigiu urna res-


tricáo expressa no final do art. 4 do Decreto em foco:

"Ñas Igrejas e nos oratorios, nio é licito expor, vender ou distribuir


llvros ou outros escritos que tratem de questOes religiosas ou moráis,
desde que nao tenham sido publicados com a aprovacSo da competente
autoridade eclesiástica".

— 35 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

Esta cautela é justificada: é preciso que os fiéis possam


ter a garantía de que, ao menos nos lugares sagrados, só lhes
sao oferecidos livros indiscutidos, aptos a confirmá-los e ilus-
trá-los em sua fé.

Quanto aos jomáis ou periódicos que costumem combater


manifestamente a religiSo católica ou a Moral, nao é permitido
aos leigos escrever neles a nao ser por justo e razoável mo
tivo; nao se requer, para tanto, licenga alguma da autoridade
eclesiástica. Os clérigos e Religiosos só o poderáo fazer com
a permissáo do Ordinario do lugar. Note-se nesta norma um
abrandamento em relacáo ao canon 1386 § 2; merece especial
atengáo o adverbio da frase «que costumem combater mani
festamente...»; tal adverbio falta no canon citado.

Artigos 1 e 6 : A autoricfade que' aprova

Pergunta-se agora : quais sao as pessoas jurídicamente


competentes para aprovar a publicagáo de algum escrito ?

A resposta se desenvolve em duas partes, das quais urna


diz respeito ao Ordinario que autoriza, e a outra ao censor
que examina o manuscrito.

1) Quanto á primeira parte, o autor de livro ou artigo


poderá dirigir-se ou ao Ordinario do lugar.em que ele reside,
ou ao Ordinario do lugar em que o escrito deve ser publicado
(o canon 1385 enumerava também o Ordinario do lugar em
que a obra seria impressa — o que já nao é possível). Está
claro que, se um dos dois prelados em foco recusa a aprovagáo
a determinado livro, ao respectivo autor nao é licito pedi-la
ao outro sem o informar da recusa antecedente. Cf. artigo 1
do Decreto.

2) Quanto ao censor, o Decreto prevé

— ou que cada Ordinario designe pessoas de sua confianga


para proceder ao exame de livros e outros escritos,

— ou que as Conferencias Episcopais em cada país


designem censores aptos a realizar tal tarefa. — Este alvitre
é, certamente, de grande utilidade as dioceses menos providas
de pessoal disponível para táo delicada missáo.
O censor há de ser pessoa «eminente por sua ciencia, reta
doutrina e sabedoria». Ponha de lado «todo tipo de parciali-
dade ou de acepcáo de pessoas, e tenha em vista apenas a

— 36 —
CENSURA DE LIVROS 37

doutrina da Igreja referente á fé e á Moral como ela é pro


posta pelo Magisterio da Igreja» (art. 6, 2).

A atitude de um censor de livros é sabiamente descrita


pelo Papa Bento XIV (1740-1758), que, cioso do Direito dentro
de espirito notoriamente cristáo, estipulou as seguintes normas:

"III. Saiba o censor que é chamado a julgar varias opiniSes e sen-


tencas contidas nos livros com ánimo isento de preconceitos. Por Isto
livre-se de qualquer propensáo em favor de alguma nagSo, familia, escola
ou instituto. Remova de si qualquer partidarlsmo; tenha os olhos abertos
tSo somente á doutrina que é comum aos católicos: doutrina contida nos
decretos dos Concilios ecuménicos, ñas Constitulcdes dos Pontífices Ro
manos, no consentimento dos Padres ortodoxos, e nos doutores. Quanto
ao mais, é pacifico que nSo poucas opiniQes parecem mais do que certas
a urna escola. Instituto ou nacáo e todavía, sem algum daño para a fé
ou para a religiáo, sSo refutadas e impugnadas por outros católicos, que
defendem as posicóes contrarias, com o conheclmento e a comunháo da
Sé Apostólica, a qual deixa cada urna dessas opinides no seu próprio
grau de probabilidade.

IV. Outro ponto de grande Importancia: nao se pode emitir um


julzo objetivo sobre o pensamento de um autor, se o livro nao elido por
inteiro em todas as suas partes, se nao se confrontam entre si os assuntos
dlspostos e expostos em lugares diversos do livro, se nSo se consideram
atentamente em seu conjunto o pensamento e a intencáo do autor. Por
isto o fuizo sobre o livro há de ser proferido nio a partir de urna ou
outra proposito avulsa e independentemente de outras proposicSes con
tidas no mesmo livro...

V. Se a algum autor, conhecido como católico e de boa fama pela


sua rellgiao e cultura, escapa alguma expressao ambigua, a justica pede
que, com as devidas explicacBes, o seu pensamento seja entendido no
sentido aceitável" (transcrito do artigo de E. Baragll, citado na bibliografía).

Como se vé, o papel do censor, neste espelho de normas,


é descrito em termos dignos e magnánimos. Se a Igreja sempre
julgou dever interessar-se pelas publicares de livros, Ela o
fez (e faz) únicamente por fidelidade á missáo que Cristo lhe
confiou, de depositaría e transmissora da verdade revelada
por Deus. Assim como o poder civil tem a obrigagáo de pre
servar a saúde física dos cidadáos de um país, controlando
alimentos e remedios, denunciando medicamentos e víveres
deteriorados ou aguas poluidas, assim á S. Igreja toca o dever
de zelar pela saúde espiritual e moral de seus filhos, evitando
lhes sejam oferecidas publicacóes que deturpem ou debiliten!
a fé dos mesmos. Assim como os cidadáos sao gratos ao
Estado que desempenhe auténticamente a sua funcáo.também
os fiéis católicos nao podem deixar de reconhecer com gra-
tidáo o papel de vigilancia, exercido pela Igreja sobre as publi
cacóes de livros e artigos.

— 37 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

Dir-se-á: os homens — mesmo os fiéis católicos — dese-


jam hoje sentir-se adultos, de modo a exprimir tudo o que
pensam ou a ler tudo que possa ser escrito.

A esta objegáo dá-se a seguinte resposta:

1) É precisamente por isto que a S. Igreja vem mais e


mais abrandando as suas normas referentes a censura e proi-
bicáo de livros. Quem considera a legislagáo hoje vigente, nao
pode deixar de verificar a grande diferenca para com as deter-
minacóes do Código de^Direito Canónico e de épocas anterio
res. A Igreja tem, pois, consciéncia da ansia de tratamento
adulto que caracteriza os homens de nossa época, sejam lei-
tores de livros, sejam pesquisadores e escritores de teologia,
filosofía e outras disciplinas.

2) A S. Igreja nao julga ter o direito de abrir máo, por


completo, da censura de livros, porque na verdáde Ela sabe
que o número de pessoas adultas e maduras na fé é relativa
mente exiguo ; mesmo as pessoas de notável erudicáo pro-
fissionalizante ou técnica sao despreparadas ou pouco forma
das no que diz respeito as doutrinas da fé e da Moral. Sendo
assim, o controle exerddo pela Igreja vem a ser um auténtico
servigo prestado a quem disto precisa; como observamos, é
justamente no setor dos livros fundamentáis (de Biblia, Litur
gia e Catequese) que se exerce a vigilancia da Igreja; os
demais, que nao sao de primeira necessidade, nao estáo sujei-
tos a censura obrigatória.

Em última análise, pode-se dizer que as novas disposigóes


da Igreja relativas á publicagáo de impressos dáo mais urna
vez a reconhecer a sabedoria da Igreja, Máe e Mestra.

A guisa de bibliografía:

E Baragli "Una costante preoccupazione pastorale delta Chiesa:


IMmprlrnatur", em "La Civilta Cattollca" 2999, 7/VI/75, pp. 436-449.
G. Caprlle, "Nuove Norme per l'lmprlmatur", em "La Clviltá Cattollca"
2997, 3/V/1975, pp. 263-267.

F. Panini, "O índice dos llvros prolbldos e seu atual significado", em


REB 26, set. 1966, pp. 657-660.

SEDOC 84, set. 1975, cois. 135-137 (texto do Decreto analisado neste
artigo).
PR 138/1971, pp. 278-285 (normas para o exame de doutrinas sus-
pellas de heresla, datadas de 15/1/1971).

— 38 —
Recuperado ou destruigao ?

aínda os cárceres...

Em.BÍnlese: O presente artigo volta á problemática da vida caree-


rária já abordada em PR 184/1975, pp. 177-186. Apresenta documentos do
ano de 1975, principalmente dentre os que foram redigidos por ocasiáo
da II Semana da Pastoral Penal realizada no Rio de Janeiro de 13 a 17
de outubro de 1975.

O intuito desses estudos é possibilitar com mais probabllidade de


éxito a recuperagáo do homem preso. O problema é urgente, visto que,
conforme as estatisticas, 60 % dos egressos dos cárceres recaem no
crime e, conseqüentemente, retornam ás prisSes.

Comentario: Em PR 184/1975, pp. 177-186 foi publi


cado um artigo que procurava oferecer urna idéia dos perigos
físicos, psíquicos e moráis acairelados pela vida, privada de
liberdade e muitas vezes reduzida á inercia, do homem (e da
mulher) encarcerado(a). Em vez de serem um meio de re-
cuperagáo, as prisóes no mundo inteiro correm o risco de
desumanizar mais ainda a sua populagáo e perpetuar os
homens no crime; as estatisticas revelam que cerca de 60 %
dos presidiarios recaem no crime e voltam ás penitenciarias.
Entre outros tópicos da imprensa, citamos o «Jornal do Brasil»,
caderno especial de 10/VIII/1975, p. 6, onde é transcrita urna
entrevista de Michel Foucault ao jornal «Le Monde», da
qual váo aqui extraídas as seguintes palavras :

"A prisao é um centro de recrutamento para o exército do crime.


Este é o seu resultado. Por duzentos anos todo o mundo tem dito: Ws
prisdes estfio fracassando: tudo o que conseguem, é produzir novos
" criminosos'".

Em vista disto, as autoridades civis e eclesiásticas tém-se


interessado pelo problema dos cárceres ; fala-se de reforma
do sistema penitenciario.

No Rio de Janeiro a Comissáo Arquidiocesana de Pastoral


Penal integrada por um sacerdote e varios leigos promoveu
a H Semana da Pastoral Penal de 13 a 17 de outubro de 1975,

— 39 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

sob o patrocinio tío Sr. Cardeal D. Eugenio de Araújo Sales.


O tema desse certame «A reabilitagáo do homem preso» foi
entáo abordado através de diversos prismas.

Os aspectos jurídicos ficaram aos cuidados dos Srs. Dr.


Alvaro Mayrink da Costa, Juiz de Direito, Dr. Augusto G.
Thompson, Diretor do Departamento do Sistema Penitenciario
do Rio de Janeiro, Dr.' Waldy Genuino, Promotor Público,
Capitáo Osvaldo da Silva, Diretor do Instituto Presidio Eva
risto de Moráis.

Os aspectos psicossóciais da reabilitagáo do homem preso


estiveram a cargo dos Srs. Dr. Miguel Chalub, médico psiquia
tra e professor da PUC-RJ, Dr. Jorge Adelino Rodrigues da
Silva, médico psiquiatra, Dra. Dda Lopes Rodrigues da Silva,
assistente social, professora da PUC-RJ, Profa. Tania Maria
D. Pereira, Diretora da Divisáo de Servico Social do Sistema
Penitenciario (RJ).

Por último, encarou-se o que se tem feito e o que se pode


fazer pela recuperacáo do homem preso — aspecto este con
siderado pela profa. Marlene Barros de Carvalho, assistente
social responsável no Banco da Providencia pelo servico social
dos egressos das prisóes, por Roberto José dos Santos, uni
versitario, Secretario Executivo do Sistema Penal, e pelo
Pe. Bruno Trombetta, Coordenador Geral da Pastoral Penal.

Fazendo eco a tal certame e tentando levar ao público o


conhecimento de urna realidade que geralmente é desconhe-
cida, embora seja das mais pungentes e desafiadoras do nosso
quadro. social, vamos abaixo publicar dois documentos. O pri-
meiro será o texto da conferencia que o Pe. Bruno Trombetta
pronunciou aos 13/X/75 por ocasiáo da abertura da Semana
do Sistema Penal.

O segundo texto será um excerto do opúsculo publicado


pouco antes da referida Semana com o título «A evangelizagáo
do homem enoarcerado>. Esse livrinho, da autoría da Comis-
sáo Arquidiocesana da Pastoral Penal do Rio de Janeiro,
descreve de maneira enfática o que seja a dura vida das
prisóes (dura, principalmente do ponto de vista moral) e o
que se pode ou mesmo deve fazer em vista de humanizar e
cristianizar a situacáo do homem preso.

O conhecimento dos fatos será apto a suscitar novos


agentes de Pastoral ou apostólos que procurem dar a sua

— 40 —
A VIDA NOS CARCERES 41

contribuicáo a fim de que as pessoas detidas nos cárceres


reencontrem o seu caminho para a sociedade e para Deus.
Em todos os pontos do territorio nacional este trabalho se
faz urgente.

O PENSAMENTO E A A?ÁO DA IGREJA


DIANTE DO PROBLEMA DAS PRISÓES

Pe. Bruno Trombetta

1. Fundamentos bíblicos

A simplicidade da doutrina de Jesús nos confunde. Ele


nos deu, segundo sua própria expressáo, um "Novo Manda-
mento". Esta novidade nos foi legada como um testamento
que deveria ser elaborado e concluido por nos: "Nisto conhe-
ceráo que sois meus discípulos". Esta tarefa nada mais é
que o exercício da caridade: "Amai-vos uns aos outros como
eu vos amei" (Jo 13,34).

Mas qual seria o novo e táo singelo mandamento? Aínda


que a fórmula já fora conhecida na antigüidade, a sua com-
preensáo, a sua dimensáo e o seu conteúdo recebem urna
visáo mais completa e radical em Cristo. O próprio Mestre
disse: "Se amardes os que vos amam, que recompensa
tereis? E, se saudardes somente vossos irmaos,... que fareis
de extraordinario ?" (Mt 5,46s). "Eu vos digo : Amai vossos
inimigos" (Mt 5,44).

Sempre estáo vivos em nossa mente os personagens e


os elementos característicos das parábolas de Cristo: o filho
pródigo, a ovelha perdida, o bom Samaritano, e até a ale
gría peía conversáo do pecador. Sim, somente com a gra-
tujdade, o amor é capaz de responder ás exigencias e ne-
cessidades do homem.

Foi neste sentido que a Igroja sempre entendeu o Novo


Mandamento de seu Mestre; as comunidades cristas primiti
vas procuraram manifestar concretamente e em profundidade
esta gratuidade, conforme o conhecido relato dos Atos
(At 2,44-45;4,32-37).

— 41 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 193/1976

A agáo da caridade é apresentada pelo próprio Cristo


como sinal de sua agáo messiánica (Mt 11,4-5) e a Igreja, diz
o Vaticano II, reivindica as obras de caridade como dever seu
e direito inalienável (Conc. do Vaticano II, Decreto "Apostoli-
cam Actuositatem" n? 8).

Por isto a Igreja dá especial atengao ás obras de mise


ricordia, sejam materiaís (como saciar a fome, a sede, vestir
os ñus, dar hospitalidade aos peregrinos, visitar os enfermos
e remir os cativos) sejam espirituais (como ensinar os igno
rantes, perdoar, aconselhar, consolar, corrigir, e orar pelos
vivos e os morios):

"Onde quer que haja alguém, diz o Vaticano II, que


cares a de comida e bebida, de roupa, casa, medicamentos,
trabatho, instrucáo, de condicóes necessárias para urna vida
realmente humana, que esteja atormentado pelas tributacóes
ou pela doenga, que sofra exilio ou prisáo, af a caridade crista
deve procurá-lo e descobri-lo, aliviá-lo com carinhosa assis-
téncia e ajudá-lo com auxilios oportunos ("Apostolicam
Actuositatem" n<? 8).

Entre as obras de misericordia, urna hoje nos interessa


particularmente: "remir os cativos". Das obras de amor talvez
seja a mais esquecida e escondida. Entre os pobres deste
mundo, o preso é o mais indigente de amor. Ele é conside
rado perigoso, agressor da sociedade e merecedor de puni-
gáo. No entanto, Cristo coloca, pela descricáo do evangelista
Mateus (25,36), como atitude bendita e do agrado de nosso
Pai Comum, ¡o amor para com os cativos : "Estava no careare
e viestes ver-me".

De todos os segregados da sociedade, como os doentes,


os indigentes, as meretrizes e outros mais, os encarcerados
sao aqueles que vivem no deserto mais sombrío: privados
da liberdade, punidos e maltratados por uns, separados por
outros que Ihes negam a confianga e o respeito de seres
humanos; deixados por outros mais, até pela familia, por
vergonha de assumi-los e de aceitá-los com seus erros; des
personalizados e tratados como criangas; descaracterizados,
porque induzidos á bajulagáo e a subserviéncia; reprimidos
se s§o sinceros, eles procuram conciliar a honestidade com
a sobrevivencia.

Para que se consiga realizar a redengáo do cativo, é


necessário que nos o libertemos de sua ignorancia, sua dú-

— 42 —
, A VIDA NOS CARCERES 43

vida, sua tristeza, seu pecado; é preciso que ele saiba per-
dbar, suportar, orar e sinta que nos estamos com ele, como
na expressáo da epístola aos Hebreus: "Lembral-vos dos encar-
cerados como se estivesseis juntamente presos com eles" (13,3).

2. A realidade das prísóes e a c$5o da Igreja

As penas na ántigüidade eram de tres tipos: a pena


de morte, a pena corporal e a pena patrimonial.

As prisóes nao eram o lugar do cumprimento da conde-


nagáo, mas serviam tio somente para assegurar ao réu a
sua presenga no processo e a execugáo do mesmo. Com o
passar do tempo, os cárceres substituem a pena de morte
e as penas patrimoniais e se tornam cada vez mais duros
para compensar os castigos corporais, que tinham sido sus
pensos teóricamente.
í

■•'•■ Eram espagos subterráneos, escuros e exiguos, onde


ímperáva a promiscuidade, procurava-sa ferir o condenado,
ofender a sua honra e dignidade. A falta de assisténcia e
higiene, a péssima alimentagáo e a pouca circulas3o de ar<
nao raro, traziam a morte a muitos encarcerados. Em alguns
lugares, as prisóes eram verdadeiros calabougos (cárceres
interiores), onde a noite era eterna.

A Igreja, desde os seus primordios, sentiu concretamente


esta realidade. Desde os Apostólos, encontramos na narrativa
dos Atos. as experiencias vividas no cárcere por Pedro, Paulo
e. Joáo: mas foi sobretudo cotí as perseguicóes que a Igreja
encarnou em seus filhos a triste experiencia das prisSes.

Um teste mu nho cristáo de 259/60 dizia:

"Nao há palavras que possam descreyer os dias e as


noites que ali passamos. Nada há que se iguale aos tormen
tos do cancere nem modo capaz de descrever a atrocidade
daquele lugar" (Atas do Martirio de S. Montano e seus com-
panheiros ocorrido em Cartago, sob o Imperador Valeriano).

Havia varias formas de tortura, desde os grilhóes, o cepo


(tronco com buracos regulares para os pés), a fome e a sede
como elementos de tortura, trabalhos toreados e, ás vezes,
até o corte do tendáo de um dos pés e o vazamento de um
dos olhos.

— 43 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1976

Documento de especial valor que comprova esta situac3o,


sao os "Responsa ad consulta Bulgarorum" do Papa Nicolau I,
que em 866 dizia:

"Se um ladráo ou salteador é apanhado e nega aquilo


de que o acusam, afirmáis entre vos que o juiz deve que-
brar-lhe a cabeca a pancadas e atravessar-lhe as ilhargas
com pontas de ferro, até que ele confesse a verdade. Isso,
nao. o admite nem a Lei divina nem a humana. A confissSo
nao deve ser toreada, mas espontánea. Nao deve ser extor-
quida, mas voluntaria. Se acontece, enfim, que depois de ter
infligido tais penas, nao descobris nada daquilo de que cul
páis o acusado, nao tereis vergonha ao menos nesse momento
e nao reconhecereis quáo ímpio foi o vosso juízo ?

Do mesmo modo, se o culpado, nao podendo suportar


tais torturas, confessa crimes que nao cometeu, quem, per-
gunto eu, fica com a responsabilidade de tal impiedade senáo
quem o constrangeu a essa confissáo mentirosa? Mais. Todo
o mundo sabe que, se alguém diz com a boca o que nao
tem no espirito, nao confessa, mas apenas fala. Abandonai tal
procedimento. Amaldicoai do fundo do coracáo o que tivestes
a loucura de praticar até agora".

Tudo isto era fruto da concepeáo de que era necessário


maltratar os presos e torná-los infelizes; foi assim que o
cárcere comecou a ser o lugar de expiacáo do delito come
tido. O Estado pouco se preocupava com as benfeitorias que
eram objeto da atencáo da Igreja.

A Igreja foi, sem dúvida, a instituicáo que agiu como


elemento moderador, e procurou amenizar os sofrimentos dos
cativos.

Apesar da pouca mudanca estrutural das prisoes nos tem-


pos antigos, medievais e modernos (e disto nos temos a
certeza pela consciéncia dos horrores vividos por muitos
homens nos célebres cárceres dos Fossos Venezianos, dos
Fornos de Monza, da Torre de Londres e da Bastilha, para
somente citar alguns), a atuacáo da Igreja no processo de
humanizacáo dos cárceres se fez sentir mediante a dedicacáo
de misericordia de muitos de seus homens ; estes levaram
para os encancerados a alegría de serem semelhantes ao
Senhor Jesús, que também experimentou tal flagelo, urna
esperanca maior, urna fé mais profunda e um amor mais
radical.

44
A VIDA NOS CÁRCERES 45

Entre tantos ilustres, salientamos a pessoa de S. Vicente


de Paula (1581-1660), sacerdote francés, que dedicou toda.
a sua vida á miseria humana, desde a dos condenados ás
galeras até a dos escravos cristaos na África, desde a dos
mendigos até a dos prisioneros, desde a das changas aban
donadas até a das mulheres perdidas e a dos doentes.

Além disto, o Papa Inocencio X (1647-1655) mandou


construir em Roma aquilo que seria urna tentativa de huma-
nizagáo das prisoes, ou seja o Novo Cárcere.

Por outr.o lado, o ilustre jurista italiano Cesare Beccaria


(1738-1794), na sua célebre obra "Dei Delitti e delle Pene",
deplora a obscuridade das leis, os métodos inquisitoriais
velados, o uso e abuso da tortura para conseguir a confissáo
do imputado, a, brutalidade das penas, e a inutilidade da pena
de morte (exceto em casos extremos), procurando construir
urna teoría criminalista com base na justica e na humanidade.

Contemporáneamente, na Inglaterra, John Howard expe-


rimentou a prisáo em Brest na Franga, onde pode ver e
sentir a desordem, a promiscuidade, a corrupgáo, o ocio e
as péssimas condigóes de higiene e alimentagáo. Escreveu
dois livros: "A situagáo das prisdes" e "A historia dos Laza
retos", nos quais apresenta alguns principios :

1) A prisáo deve ter como objetivo a emenda do con


denado ; ,

2) A Religiáo e o trabaiho sao os melhores meios para


efetivar essa recuperagáo: "Fazei o homem diligente
e o tereis honesto" ; . ,'.'
3) A recuperagáo nao é possível, se nao se evita a
promiscuidade.

E mostrava como a privagao da Hberdade já era um


castigo suficientemente pesado e que outro nao deveria ser
imposto ao cativo.

Mais recentemente, Silvio Pellico, no século passado,


viveu oito anos preso na Fortaleza de Spielberg (Moráyia) e
no seu livro "Le mié Prigioni" descreveu sofrimentos físicos
e moráis, mostrando ao mesmo tempo o valor do conforto
da Religiáo no sofrimento e no abandono. Ao sair da prisáo,
parecia um misero cadáver ambulante.

— 45 —
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 193/1376

Mas as sociedades, com a psicología e a sociología inci


pientes, sem desenvolví mentó do Direito Social, sem valoriza-
páo da pessoa humana, nao conseguían! analisar com sufi
ciente equilibrio o inter-relocionsmento entre o homem e a
sociedade.

Somente com o término da Segunda Guerra Mundial,


podemos dizer, comecou a existir um anseio por se desco-
brirem caminhos novos, radicalmente novos, que respondem
ás angustias do homem atual.

"Quem nao desejaria, dizia Pió XII na alocugáo aos par


ticipantes dq VI Congresso Internacional de Direito Penal
em 1953, que, durante o longo intervalo que decorreu "desde
Nicolau I, a justiga, nunca se tivesse desviado desta regra ?
Que seja preciso recordar hoje esta advertencia feita há-
1.100 anos (referindo-se ao pronunciamento de Nicolau I;
Papa, a respeito das torturas) é um triste sinal dos extravíos-
da prática judiciária do século XX".

3. ReflexSo final

No día 26 de dezembro de 1958, o Papa Joáo XXIII visi-


tava o cárcere "Regina Coeli" em Roma. Ao falar aos internos,
manifestava duas preocupagoes: a prímeira, devida á per-
cepcáo que tivera, quando mais jovem, da realidade de um
Instituto Penal, ... urna dolorosa impressáo do que aconte
cía a quem tinha prevaricado, muitas vezes, em falta nao
grave e nao tendo ¡ntengáo de cometé-la. A segunda preo-
cupagio do Papa se devia ao fato de que freqüentemente se
procuram vas ideologías para restaurar a humanídade no
progresso e nos esquecemos das quatorze obras de miseri
cordia ; em urna palavra, nos esquecemos de que somos
homens, e temos um bom senso.

Realmente, se é verdade que houve nestes últimos dece


nios urna salutar modificagáo do Sistema Penal no mundo
inteiro, é verdade outrossim que estas reformas nao satisfa-
zem as exigencias do homem bem mais consciente dos seus
direítos e deveres.

Poderiamos perguntar: Qual seria o sentido último dJ


pena? Para alguns, este sentido estaría na medida de pro-
tegáo e defesa da comunidade contra os atos delituosos; para

— 46 —
A VIDA NOS CÁRCERES 4?

outros, estaría na tentativa de reconduzir o culpado á obser


vancia do Direito, portanto a viver honestamente.

Enquanto a protegió nao procura extirpar as causas dos


delitos, cria um circulo vicioso de homens que agridem a
sociedade e sao por ela reprimidos. O segundo sentido pro
cura ao menos estancar as causas que conduzem os homens
ao delito.

Nao nos esquejamos de que o delito é fundamentalmente


falta de amor do homem para com a sociedade, e, multas
vezes, é causado pela falta de amor da sociedade para com
o homem.

Fixemos os nossos olhos nos olhos do encancerado e


coloquemo-nos juntos dele, a fim de sentirmos su as aspira-
cdes, suas preocupagóes e seus sofrimentos.

Que o Espirito Santo, autor de todas as boas obras, nos


ilumine nesta Semana, para descobrirmos novos caminhos
para novas realizagoes !

ii ■'"•;
A EVANGELIZADO DO HOMEM ENCARCERADO

Eis trechos tirados das pp. 12 e 13 do opúsculo que, com


o título ácima, foi recentemente langado pela Comissáo Ar-
quidiocesana de Pastoral do Sistema Penal do Rio de Janeiro :

"Vejamos o ambiente no qual vive o homem que quere


mos evangelizar. O relacionamento entre os presos é carre-
gado de violencia. O tóxico, o jogo, o homossexualismo tém
papel importante na prisáo. A corrupcáo e o comercio tam-
bém. Cada setor (pavilháo, galería, oficina, patio) tem seu
leáo, isto é, o preso que domina naquela área. Ele estabelece
o seu dominio sob o imperio da torca: o detento que nao
quiser se submeter, terá que resolver a questáo também na
forca. Há os que controlam o tráfico de tóxicos, sua vinda
de fora e sua distribuigao interna. Estes naturalmente se
enriquecem rápidamente e tém grande poder entre os presos,
porque o tóxico é a maior válvula de escape do detento.

... Um dos aspectos que mais se estranha no contato


com certos margináis, é a sua insensibilidade frente á vio-

— 47 —
48 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 1S3/1976

léncia: é capaz de atos considerados por nos como extre


mamente desuníanos, sem nada sentir. Sua consciéncia moral
tem outros criterios : bom é aquilo que I he é agradável, apra-
zível, satisfatório; mau, o que desagrada, (he provoca des-
prazer e insatisfacáo. Alias, esta consciéncia moral também
está difundida peto sistema social em que vivemos : bom é
o que rende ; mau, o que nao rende, é possível ao encarce-
rado passar a ter consciéncia moral mais correta e descobrir
seu próprio valor como pessoa humana. Isto depende de
urna serie de condigóes, inclusive do trabal no pastoral. O
homem a quem anunciamos a Boa-Nova, nao descobriu ainda
todos os seus valores nem a sua verdadeira dignidade
humana. Acostumado a viver sem amor na sociedade, ele
precisa de encontrar a sua valorizacáo na amizade e na
confianga do evangelizador, que, ao torná-lo cada vez mais
homem, o levará á plenitude do homem perfeito, o Cristo
Jesús (Ef 4,13)".

O testemunho é assaz eloqüente. Dispensa comentarlos


teóricos; pede resposta eficiente do cristáo, que Cristo chama
a ser seu apostólo junto aos irmáos, principalmente aos mais
necessitados.
Estéváo Bettencourt O.S.B.

livros em estante
Novo Testamento. Traducáo dos origináis mediante a versáo dos mon
gos de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico. 12? edicáo pre
parada e revista pela equipe auxiliar da Editora. — Ed. "Ave María", Sao
Paulo 197$ 130x180mm, 482 pp.

Este votume representa a parte neo-testamentaria da chamada "Biblia


da Ave-Marta", muito usual entre nos. Urna de suas características tipográ
ficas é a colocacáo do número de cada versículo a margem externa do
texto bíblico. Com isto os editores intencionam facilitar a localizacáo do
versículo procurado, será preciso, porém, que o leitor se acostume a pro
curar o inicio do versículo na linha do texto indicada (inicio assinalado por
ponto e virgula, ou por ponto ou por reticencias ou por barra...). Somente
a experiencia dos leitores proferirá o veredicto seguro sobre esta modali-
dade de técnica da nova edicáo. O texto bíblico aparece num portugués
correto, nem vulgar nem "precioso"; conserva certas palavras técnicas
impregnadas de sentido teológico, como "bispo, diácono, justificar, justica,
parábola..."; os nomes de moedas e medidas de distancia figuram no
texto em sua forma arcaica, com explicacoes ao pe da página — o que é
louvável para evitar arbitrariedades de traducáo. Em síntese, deve-se elogiar
a fidelidade da traducáo ao sentido dos origináis.

" " — 48 — ..-.-•-.••


Os editores llustraram o texto com algumas. tabelas e-,com mapas
geográficos de valor, salientando-se a árvore genealógica de Jesús com
suas dlferencas em Mateus e em Lucas, a carta da Palestina com as dis
tancias geográficas em quilómetros, o calendario hebraico com os antlgos
nomes dos meses e a correspondencia destes ao nosso calendarlo.

Em suma, a edicáo fol preparada com carinho. Apenas é para desejar


que urna reedicSo aprésente notas ao pé da página mais rium.ero.sas e
estensas, tanto de teor lingüístico e arqueológico como de contéúdo teoló
gico e espiritual; o público Iniciado em assuntos bíblicos ó raro, cónió'
também sSo raros os comentarlos da Bfblia em lingua portuguesa; dafc.a
grande conveniencia de que as edlcSes do texto bíblico, sejam munidas de
notas explicativas que supram de certo modo a lacuna. Também fazemos
votos para que a introducto geral nos llvros do Novo Testamento (pp. a-17)
seja mais avantajada em próxima reedlcio; trata-se de um instrumental
valioso que nao há de encarecer sensivelmente o prego do volume bíblico.
O processo da fellcidade por Coelet, por Etienne Glasser. TráducSo de
Lulz Jofio Galo. ColecSo "A Palavra Viva" n? 8. — Ed. Paulinas, SSo Paulo
1975, 110x190mm, 278 pp.

O livro de Coelet {— o pregador, em hebraico) ou do Ecleslastes


(=o homem da assembléia, em grego) é assaz difícil para um feitoriiSó-
iniciado em temas bíblicos. Parece incutir o ceticismo e o materialismo,
pois aponta frustrares e decepcSes do autor em sua experiencia de vida.-
NSo obstante, o Ecleslastes (ou Coelet) é livro altamente interessante para,
quem o lela sob a guia de um bom comentador, como é Efienne Glasser.

Este exegeta reconhece que o Coelet faz o processo, jsto é, o acusa


torio da felicidade (esta nao existe nem ñas riquezas, nem na volúpia. nem
no multo saber...); nao é, pois, ñas coisas transitorias deste mundo que
o homem há de encontrá-la, mas ela se encontra no Absoluto,- do qúal o
homem, ás vezes sem o saber nomear, tem sofreguidSo constante. E. Glasser
comenta os doze capítulos do livro, versículo por versículo, esclarecendo
as passagens obscuras e ábiindo perspectivas valiosas. O Coelet (qué é
o autor anónimo do livro) nao ó um cético, mas alguém que sabe se'r reser
vado em relacSo aos bens deste mundo; por expetiéncia conhece°>a exl-
güidade destes; embora ele n&o tenha nocáo de vida postuma lucha e
consciente, eré que Deus levará em conta a fidelidade do homem ao servio.o
do Senhor. O comentario de Glasser se termina com "sugestóes para_leri
Coelet em nossos días"; Glasser traca um paralelo entre os tempós átúáfs;'
e os de Coelet; veriüca que, embora a luz de Cristo fenha sobrevindo
para iluminar nossas mentes diante dos problemas da dor e da • mórte',.-
ainda estamos sujeitos a perplexidades e dúvidas suscitadas pela decor-
réncia mesma da vida de cada dia ; dai a importancia de se reler Coelet
em nossos tempos e sentir os ecos das suas meditagaes. — Apenas deso
jamos notar que Glasser podía ter realcado mais ainda a mensagem que
Coelet insinúa: só o Absoluto pode responder ao homem ; os clamores
decepcionados do autor bíblico constituem um fundo de cena para sa.enten
der melhor ainda que "o homem foi feito para o Senhor Deus e somente
em Deus repousa" (S. Agostinho).

Nova historia da Igreja. Vol. V, tomo I: A Igreja na sociedad? liberal


e no mundo moderno, por Roger Aubert. DlrecSo de L.-J. Roger, R. Aubert
e M D. Knowles. Tradu5§o de P. P. de Sena Madureira e J. Castañon Gui-
marSes. — Ed. Vozes, Petrópolis 1975, 165x235mm, 262 pp.
Este volume faz parte de monumental obra que propóe a historia da
Igreja em perspectiva atuallzada o ampia; considera o curso dos aconte-
cimentos ñas comunidades católicas, protestantes e ortodoxas, e leva em
conta nio somente o cenáiio europeu, mas tambóm o de outros continentes.
(Continua na pág. 13)
AQÁO DE GRACAS
Dom Jo9o José Motta
Arcebispo de SSo Luis do MaranhSo

Permite, ó Pal, que eu Te agradece um pouco o multo que me deste.


Quisera nSo ver o nada das coisas, para ver o Tudo que ésl Acontece,
porém, que eu vejo demals q nada, o transitorio, o corruptfvel, e nfio Te
vejo, Senhor.
Obrigado, no entanto, pela conscléncla desta mlnha cegueira!
' Abrlndo, lentamente, os olhos, descubro que nSo existe o nada em
torno de mim.
É maravllhosa a obra da CriacSo, do grfio de arela que completa a
montanha, até o homem — síntese de todos os seres criados.
Obrigado, Senhor!
Vou fechando, lentamente, os olhos cansados, que nao conseguem
ver todas as belezas criadas, e comeco a ver mais aínda. SBo os teus
segredos escondidos, escondendo mllhares, milhdes de seres potenciáis. Os
olhos da Inteligencia — "partícula" da tua Sabedoria — vSo percebendo tua
ternura de M8e, "brincando de esconder as coisas" para as puras alegrías
dos filhos que as descobrem. As ciencias vio revelando, cada dia, a magni-
tude do teu poder, que dividiste com o homem 1
Obrigado, Senhor I
Agora, olhos soltos nos espacos infindos, busco os limites da CriacSo...
Outra vez, nada vejo, e passo a vislumbrar o comeco do Tudo que Tu ésl
óom os olhos da Fé, através dos rastros da CrlacSo, encontro-me con
tigo, o Criador de tudo e de todos, meu principio e meu (Im I
Obrlgado, Senhor 1
Vejo que Tu estás em tudo que eu chamei nada. Crelo na tua pre-
senca ñas coisas, nos aconteclmentos, na vida, sobretudo no homem — tua
própria "Imagem e semelhanca". Das sentido a tudo I Tens sempre urna
mensagem a comunicar.
Vejo e crelo que viver é ver, é sentir tua presenca na Historia, é con-
vlver contigo sempre presente, sobretudo nos homens. Tu mesmo te fizeste
homem 1
O nada é "crlacáo" da fraqueza humanal O homem é quem se ausenta
de Ti, fechando os olhos para nao Te ver...
Obrigado, Senhor, estou vendo 1
Senhor, mas, multas vezes, eu nao Te vejo e nao Te sinto. Multas vezes
eu fujo de Ti.
Agora eu me envergonho de ter desviado os olhos dos meus Irmáos...
Estou acabrunhado da mlnha Insensibllldade ante tantos sofrimentos de
tantos irmSos meus!
Senhor, estou escondido, porque fugl dos meus limaos... Meus país
fugiram de Ti... Mas Tu os perdoaste.
Obrigado, Senhor, pelo perdfio dos meus pecados 1

(transcrito de "O Estado do Maranháo" de SSo Luis,


édicfio de 23/11/1975)

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