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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESErsfTAgÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir {1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
responderemos
SUMARIO

Passageira e, por isto, preciosa...

A consciéncia que Jesús tinha de si


h- e da sua missáo

O caso "Charles Curran"

O demonio anda soltó por al?

"Fatos e mitos sobre a Virgem María"

Religióes Afro-Brasileiras e Catolicismo

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ANO XXVII - NOVEMBRO - 1986 ¿94


PERGUNTE E RESPONDEREMOS NOVEMBRO - 1986

Publicacao mental y ■ >... '¡


••'•{ NS 294

Diretor-Responsável: SUMARIO
Estévao Bettencourt OSB PASSAGEIRA E, POR ISSO, PRECIOSA 1
Autor e Redator de toda a materia
publicada rteste periódico A teología felá sobre

Oirator-Administrador
A CONSCIÉNCIA QUE JESÚS TINHA DE SI
E DA SUA MISSÁO 2
D. Hildebrando P. Martins OSB

Um Teólogo perde a cátedra


Adminirtracao e distribuicao: O CASO "CHARLES CURRAN" 18
Edicoes Lumen Christi
Dom Gerardo, 40-59 andar. S/501 Como dizem
Tel.:<021> 291-7122 O DEMONIO ANDA SOLTÓ POR AÍ? 22
Caixa postal 2666
20001 - Rio de Janeiro - RJ Um livro que revela
"FATOS E MITOS SOBRE A VIRGEM
MARÍA"? 30

"MAKQUCS'SARAIVA" E o caso da Máe Meninínha


«w Snu RMrfgun. a» - RELIGIÓES AFRO-BRASILEIRAS E
«»; Z79HN
-27S-9UI-RI
CATOLICISMO 42

ASSINATURA EM 1987:
NO PRÓXIMO NÚMERO
Até 31 de dezembro de 1986 Cz$ 150,00
A partir de Janeiro de 1987 Cz$ 160,00
294 - Novembro - 1986
Número avulso: Cz$ 15,00

Queira depositar a importancia no Banco


do Brasil para crédito na Conta Córrante Tatiana Goritcheva fala. - "Origem das ino-
f|S 0031 304-1 em nome do Mosteiro de vacóes da Igreja Romana" - O divorcio e o aborto
Sao Bento do Rio de Janeiro, pagável na na Irlanda. - Secularizacáo e Secularismo. - "Ho
Agencia da Praca Mauá (n* 0435) ou en rizonte de Esperanca" <J. Arduini).
viar VALE POSTAL pagável na Agencia
Central dos Correios do Río de Janeiro.
COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

RENOVÉ QUANTO ANTES COMUNIQUE-NOS QUALQUER


A SUA ASSINATURA MUDANCA DE ENDERECO
Passageira e, por isto, preciosa...

O m§s de novembro se abre com a recordado de nossos mortos e


da própria morte. - Isto despena um sentimento de tristeza em multas
pessoas. Do ponto de vista cristio, porém, a perspectiva da morte é ab-
sorvida pela de Páscoa: a vida nao nos é tirada, mas transfigurada, de
modo que a morte vem a ser a passagem para a plenitude dos valores
aos quais aspiramos nesta caminhada de peregrinos.

A reflexáo sobre a morte ajuda-nos também a valorizar a vida pre


sente; ela nao abate, mas estimula a quem pensa com serenidade. - É
precisamente esta conclusáo que nos vem transmitida através de uma
historieta de origem judaica, tao graciosa quanto profunda. Com efeito;
narra o escritor Chaim Potok um diálogo que teve com seu pai:

"Eu tinha seis anos de idade e desenhava... a imagem de meu pai


que olhava um passarinho deitado de lado, á beira da calcada parto da
nossa casa. 'Esta morto, papai?', perguntei, senrter a coragem de olhar
para o pássaro. 'Afinal por que morreu?' - Tudo o que vive, deve mor-
rer, meu filho'. - 'Tudo, pai?' - 'SImj' - 'Tu também, papai? E mamae?'
- 'Siml' - 'E eu?' - 'S¡m', dlsse o pai. Depois acrescentou em yiddisch:
'Mas será talvez depois de teres vivido uma boa e longa vida, meu fi
lho'.

Eu nao conseguía compreender. Fiz um esforcé para olhar o pas


sarinho. 'Tudo que vive, será um dia como esse passarinho? Por qué?',
perguntei. - 'Foi assim que o Eterno fez seu universo, filho!' - 'Por
qué?' - 'Para que a vida seja preciosa, filho. Uma coisa que tu possuas
para sempre, nunca é preciosa' " (Chaim Potok, Meu nome é Asher Lev.
New York 1972, p. 156).

Sim. É pelo fato de que nossa vida na térra passa, e passa rápido,
que damos valor e sentido a cada um dos nossos dias. Quem possui um
tesouro muito grande, fácilmente (talvez inconscientemente) o desperdi
ga e esbanja; mas quem só dispóe de uma conta certa, é espontanea-
mente levado a aproveitar melhor o que tem. O cristáo repete isto com
especial conviccáo, pois ele sabe que esta caminhada de poucos decenios
na térra implica a construcio da sua eternidade! Como soa a cléssica
fórmula, o cristáo vive "os anos da grac,a de Nosso Senhor Jesús Cristo"
de 1986/7...

E.B.

481
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
ANO XXVII - NS 294- Novembro de 1986

A Teología fala sobre

Á Consciéncia que Jesús


tinha de sí e da sua missáo

Em sfntese: A ComissSo Teológica Internacional, órgáo oficial da Santa


Sé destinado a aprofundar questdes teológicas de atualidade, publicou recen-
temente um estudo sobre a consciéncia que Jesús tinha de si e de sua mis-
sSo. Tal documento compreende quatro grandes proposicdes:

1) Jesús, como homem, tinha consciéncia de ser Filho de Deus em


sentido singular ou de ser Ele mesmo Deus.

2) Jesús tinha consciéncia da missáo que o Pai Lhe confiara como ho


mem: anunciar o Reino de Deus edara vida por todos os homens a fím de os
reconciliar com o Pai.

3) Jesús quis fundara Igreja e deu-lhe a sua estrutura essencial.

4) Jesús Cristo reaSzou a sua obra de salvacáo por amor a todos os


homens reconhecidos cada um pessoalmente.

Estas proposicdes nada inovam em Teología, mas tomam nova énfase,


porque repeSdas num contexto histórico como o nosso, que nem sempre as
respeita. É desejo da Santa Sé que sirvam de norma nos cursos de Crístoto-
gia e catequese assim como na pregacáo crista.

Os teólogos tém procurado sondar o Intimo de Jesús, verdadeiro


Deus e verdadeiro homem. O Concilio de Calcedonia1 em 451, após lon-

1Perto de Istambul, na Turquía de hoje.

482
CONSCIÉNCIA DE JESÚS

gas controversias, chegou a fórmula final, que é definicáo de fé: "Em Je


sús há urna so Pessoa (a segunda da SS. Trindade) e duas naturezas", o
que quer dizer: em Jesús havia um só sujeito ou um só eu suporte de to
das as suas acfies; este estava unido á Divindade ou á natureza divina
(comum ás tres Pessoas da SS. Trindade) e unido também á natureza
humana (assumida no seio de María Virgem). Com outras palavras: o
único eu de Jesús podia agir segundo todo o potencial da Oivindade (res-
suscitava morios, multiplicava páes, convertía agua em vinho...) e segun
do todo o potencial da humanidade (comia, tinha sede, sofría cansaco,
dor ffsica e psíquica...).

Últimamente, desejando penetrar mais a fundo dentro do misterio


de Jesús, os teólogos tém colocado a seguinte questáo: Jesús, qual no-
mem verdadeiro, tinha urna consciéncia psicológica como todos os no-
mens tém; essa consciéncia psicológica humana de Jesús sabia que Ele
era Deus..., Deus feito homem?... Sabia que Ele tinha urna missáo a cum-
prir como Salvador, e que daría a sua vida em resgate do género huma
no? Ou será que Jesús ignorou até o fim da vida a sua verdadeira identi-
dade e o alcance da tarefa que o Pai I he assinalara? Ter-se-á iludido, co
mo os Profetas podiam iludir-se, a ponto de clamar desesperado no alto
da Cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" (Me 15,34; SI
21,1 s). Pensava Ele que o Reino de Deus vi ría plenamente ¡á na primeira
geracáo dos seus discípulos, quando na verdade a Igreja é que continua
ría a sua obra, na expectativa da consumacio do Reino?

Há quem responda positivamente a estas tres últimas perguntas,


quase atribuindo a Jesús um eu meramente humano, e sem levar na de
vida conta que o único eu de Jesús era divino; ao assumir a natureza
humana no seio da Virgem, esse eu da segunda Pessoa da SS. Trindade
nada perdeu do que Ele tinha desde toda a eternidade (a oniciéncia, a
onipoténcia...).

Dada a importancia de tal assunto para a teología e a piedade crista,


a Comissao Teológica Internacional (CTI), nomeada pelo Santo Padre,
dedicou-se ao estudo minucioso do mesmo e elaborou finalmente um
documento, que com muita precisáo esclarece o problema. Tal estudo
comecou em 1980, suscitado pela questáo: como aprésenla r aos cristáos
de hoje a consciéncia que Jesús tinha, de ser o Filho de Deus e de fundar
a Igreja, comunháo de fiéis resgatados pelo seu sangue?

Em 1983 foi instituida, para aprofundar tal pergunta, urna subco-


missáo. Era presidida pelo Pe. Christophe von Schónborn O.P., professor
da Universidade de Friburgo (Sulca); os seus membros eram os profes-
sores Pe. Ferenc Gal, Walter Casper, Cari Peter, Candido Pozo S.J., Ber
na rd Sesboüé S.J. e Jan Walgrave O.P. O primeiro texto elaborado por

483
4 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

tal subcomissáo foi submetido ao plenário da ComissSo em outubro de


1985; haviam colaborado na confeccáo do mesmo também os bispps
Jorge Medina-Estévez e José Boaventura Kloppenburg O.F.M., além do
Pe. John Tornhill S.M., membros da CTI. - A sessáo plena ría de 1985 de-
volveu o texto á Comissáo elaboradora para que o retocasse em alguns
pontos devidamente indicados; o novo texto foi discutido em novembro
de 1985 recebendo entáo novas emendas; a terceira discussao do docu
mento realizada em dezembro de 1985 resultou na aprovagáo do texto
atual por quase unanimidade da parte dos membros da CTI; o texto fi
nalmente foi ratificado pelo Cardeal Joseph Ratzinger, presidente da CTI.

Verifica-se que o documento em pauta aborda apenas a questáo:


que consciéncia tinha Jesús de si mesmo e da sua missáo? Deixa de lado,
para ulterior estudo, a questáo: como conhecia Jesús?... ou a doutrina
dos diversos saberes do Senhor (o divino, o infuso, o humano, o místico
e o profetice..).

A fim de proceder didaticamente, a CTI redigiu o seu documento


em quatro proposites fundamentáis, as quais se acrescentam comenta
rios derivados das fontes da S. Teología (S. Escritura, Tradicáo, Magiste
rio).

A seguir, transcreveremos o importante documento em traducjio


portuguesa, certos de que poderá ser útil nio somente aos professores
de Teología, mas também a todos os fiéis interpelados pelas referidas
questóes. Em notas de roda-pé procuraremos explicar ou explicitar as
expressóes mais técnicas do texto.

INTRODUCÁO

A Comissáo Teológica Internacional j¿ por duas vezes se ocupou


com a Cristologia. No trabalho publicado em 1980, alguns membros
falavam da necessidade de elaborar algo sobre a soteriologia, a acres-
centar-se á doutrína do Concilio de Calcedonia relativa á pessoa e ¿s
duas naturezas de Jesús Cristo. Nesse contexto fez-se alusao á dificlli-
ma questáo da consciéncia e da ciencia1 de Cristo. A seguir, tratamos

Ciencia de Jesús", no caso, é o saber de Jesús em sentido global, e nao


apenas o saber científico no sentido moderno.
Cristologia é a doutrína referente a Jesús Cristo ou ao misterio da uniáo
da DivMade e da humanidade mima só pessoa: estuda quem é Jesús Cristo.
Soteriologia é o estudo da obra de salvacáo fsoteriaj realizada por Jesús
Cristo desde o seu nascimento até a súa Ascencao e Pentecostés. (Nota do
Tradutor).

484
CONSCIÉNCIA DE JESÚS

da preexistencia de Jesús Cristo e do aspecto trinitario da sua PaixSo.


Sem querer definir algo para o futuro, a Comissáo observou que o es-
tudo da consciéncia e da ciencia humana de Jesús ainda devia ser com
pletado.

A Comissáo deseja agora por em relevo a funcáo que, na salva-


cao dos homens, tocou á humanidade de Cristo e aos diversos miste
rios da sua vida terrestre, como o Batismo, as tentacóes, a agonia do
Getsémani. Dal a decisáo de empreender nova pesquisa sobre o conhe-
dmento e os afetos daquele que conhece o Pai e O quís revelar aos
homens. A Comissáo nao tenciona abordar todos os aspectos relativos
a este tema, embora muito importantes; os nossos tempes, porém, exi-
gem que demos resposta ao menos a algumas das perguntas que, a
respeito de Jesús Cristo, agitam ho¡e o pensamento e o coracao dos
homens.

Sim, qual a pessoa sensata que acertaría colocar a sua esperance


num individuo destituido de alma ou de inteligencia humana? Este nao
é um problema que possamos deixar para os homens do século IV,1
visto que conserva ainda toda a sua importancia, embora num contexto
diferente.

A apücacáo do método histórico-crltico aos Evangelhos faz surgir


dúvidas sobre Jesús Cristo: que consciéncia tinha Ele da sua Divindade,
da sua vida e da sua morte salvifica, da sua missáo, da sua doutrina e,
principalmente, do plano de fundar a Igreja? Os especialistas de tal mé
todo tém dado respostas diversas e até contraditórias entre si. Com o
passar do tempo, tais questoes estáo longe de ter desaparecido, pois as
vemos constantemente discutidas nao somente ñas revistas científicas,
mas também, de vez em quando, nos quotidianos e nos semanarios, em
um leque de literatura popular e nos modernos meios de comunicacáo.

Isto tudo é sinal de quanto essas perguntas sao importantes nao


somente para os cristáos, mas também para o público em geral. Aos
cristáos torna-se, muitas vezes, difícil dar resposta satisfatória a quem
Ihes peca contas da sua esperance (cf. 1Pd 3,15). Sim; quem quisera ou,
melhor, quem poderia ter confianca num Salvador que ignorasse ser tal
ou nao houvesse desefado ser tal?

Naquela época procuravam os teólogos saber se Jesús leve urna nature-


za humana completa (ou nao mutilada). A resposta válida, encontramo-la em
Sao Gregorio de Nazianzo, segundo o qual seria pura loucura colocar a espe-
ranca em alguém que nao tivesse inteligencia humana (cf. Epístola a Cledónio,
emPG37, 181C e em Corpus Scríptorum Christianorum 208,51).

485
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

Compreende-se entáo que a Igreja atríbua extrema importancia


ao problema da ciencia e da consciéncia de Jesús; nao se trata de te
mas teológicos meramente especulativos, mas do fundamento mesmo
da mensagem e da missao da Igreja. Com efeito; esta, anunciando o
Reino de Deus. convida os homens á penitencia; evangeliza, propóe e
oferece os meios necessários á libertacio, á reconciliacao e a salvacio;
quer comunicar a todos os homens a revelacáo de Deus Pai no Fílho
mediante o Espirito Santo. Nao receia apresentar-se ao mundo inteiro
como investida em tais tarefas. Declara abertamente ter recebido esta
missao e esta doutrina do Senhor Jesús. E a quem indaga a respeito da
verdade, Ela se apressa por responder exprimindo a sua f¿ e a sua cer
teza. Dai a importancia teológica e pastoral, hoje, das questóes concer-
nentes á consciéncia e á ciencia humanas de Jesús.

Quando se enfrentam tais questóes teológicas e pastorais, apare-


cem dois tipos de argumentos.

O prímeiro se refere á S. Escritura: esta pode ser entendida se


gundo métodos estritamente históríco-crlticos como também numa
perspectiva exegético-dogmática; o relacionamento entre um e outro
modo de abordar a Escritura é particularmente dtficit em se tratando do
tema cristológico que temos em vista. Conforme a doutrina do concilio
do Vaticano II, a exegese da Sagrada Escritura "deve investigar o que
os autores sagrados na verdade quiseram dizer". Ora quem procura de
finir a intencáo dos autores sagrados, deve também levar em conta "o
conteúdo e a unidade de toda a Escritura", que há de ser interpretada
"á luz da tradicáo viva de toda a Igreja e da analogía da fé". Atenden-
do a tais normas, a Comissáo Teológica abordará o tema da consciéncia
e da ciencia de Jesús, partindo dos textos bíblicos. Com efeito; o estu-
do da Sagrada Escritura deve ser "como que a alma de toda a teolo
gía".

Outro problema, nao menos difícil, se pde quando se estuda a vi


va tradicáo da Igreja; sim, exístindo na historia, a Igreja e a sua teolo
gía, para propor a explicacao da fé transmitida urna vez por todas, de-
vem servir-se necesariamente da linguagem filosófica do seu tempo, de
maneira apropriada e critica. As controversias sobre o problema que
nos interessa, provém precisamente da diversidade das concepcóes filo
sóficas. Ora na sua explanacáo a Comissáo nao tenciona proceder a
partir de urna determinada terminología filosófica, mas, sim, de urna
pré-compreensáo eomum segundo a qual, enquanto homens, estamos
presentes a nos mesmos em nosso coráceo, sempre que realizamos al-
gum ato. Todavía sabemos que a consciéncia de Jesús participa da sin,-
gularidade e do caráter misterioso da sua pessoa e que, por isto, escapa
a urna consideracáo meramente racional. O problema que nos é propos-

486
CONSCIÉNCIA DE JESÚS

to, nao pode ser abordado senáo á luz da fé, segundo a qual Jesús é o
Cristo, o Filho do Deus vivo (cf. Mt 16.16).1
QUATRO PROPOSIQÓES

O nosso estudo límitar-se-á a algumas afirmacóes sobre o que Je


sús tinha em sua consciéncfa a respeito da sua pessoa e da sua mrssáo.
As quatro proposicoes que se seguem, colocam-se no plano do que a fé
sempre profess u no tocante a Cristo. Intencionalmente nao entrare
mos ñas reflexóes teológicas que procuram dar conta deste depósito da
fé. Por conseguinte, nao faremos alusáo alguma ás tentativas da for
mular o modo como a consciéncia de Jesús pode articular-se dentro da
natureza humana de Cristo.

Os comentarios ás quatro proposicóes seguem, em grandes linhas,


um plano em tres etapas: exporemos, antes do mais, o que a pregacáo
dos Apostólos disse a respeito de Cristo; a seguir, indagaremos o que
os Evangelhos sinóticos, mediante a convergencia de suas linhas, nos
permhem dizer sobre a consciéncia de Jesús; por último, examinaremos
o testemunho do Evangelho segundo Sao Joüo, que, nao raro, diz de
maneira mais explícita o que os Evangelhos sinóticos apresentam de
modo mais implícito, sem que naja oposicáo entre estes e aquele.

Primeira Proposicio:

A vida de Jesús atesta a consciéncia da sua relacáo filial


com o Pai. O seu comportamento e as suas palavras, que sao os
do "Servidor" perfeito, implicam uma autoridade que supera a
dos antigos Profetas e que pertence a Deus so. Jesús derivava
essa incomparável autoridade da sua singular relacáo com Deus,
que Ele chamava "meu Pai". Ele tinha consciéncia de ser o Filho
único de Deus e, neste sentido, de ser Ele mesmo Deus.

Comentario:

1.1. A pregacáo dos Apostólos após Páscoa, que proclama Jesús


como Filho, e como Filho de Oeus, nao é o resultado de um desenvol-

1Estas (rases querem dizer que as consideracóes subseqüentes nao seráo


formuladas dentro dos quadros de vocabulario de alguma escola filosófica
(antiga ou moderna), mas. sim, de acordó com o linguajar obvio e natural dos
homens. Seráo levados em conta também os dados da fé, visto que Teóloga é
"a fé que procura compreender". (Nota do tradutor).

487
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

vimento tardío da doutrina na Igreja antiga; antes, encontra-se já no


coráceo das mais antigás formulares do querígma, das proposicóes de
fé e dos hinos (ef. Rm 1,3s; Fl 2,6-11). Sao Paulo chega a resumir toda
a sua pregacáo na expressáo: "O Evangelho de Deus a respetto do seu
Fitho" (Rm 1,3.9; cf. 2Cor 1.19; Gl 1,16). Particularmente significativas
a proposito, sao as "fórmulas de missio": "Deus enviou o seu próprio
Filho" (Rm 8,3; 61 4,4). A filiecáo divina de Jesús está, pois, no centro
da pregacáo dos Apostólos. Ela pode ser compreendida como uma ex-
pfichacáo, á luz da Cruz e da ressurreicáo, da relacáo de Jesús com o
seu "Abbá".

1.2. Na verdade, a designadlo de Deus como Pai, que se tornou


pura e simplesmente o modo cristao de designar Deus, é devida ao
próprio Jesús: trata-se de um dos elementos mais seguros da pesquisa
histórica relativa a Jesús. Este, porém nao apenas chamou Deus Pai ou
Pai meu em geral; dirigindo-se a Ele na oracSo, invocou-o com o apela
tivo Abbá (Me 14,36; cf. Rm 8.15; Gl 4,6) - o que é sinal de algo de no
vo. Com efeito, a maneira como Jesús rezava (cf. Mt 11,25) e a qual Ele
ensinou aos discípulos (cf. Le 11,2), sugerem a distincao (que se tornou
explícita depois de Páscoa, cf. Jo 20,17) entre Pai meu e Pai vosso, o o
caráter único e intransferlvel da relacáo que une Jesús a Deus. Antes
da manlfestacao do seu misterio aos homens, havia na percepeáo hu
mana da consciéncia de Jesús uma certeza singular e profundlssima: a
da sua relacáo com o Pai. A invocacao de Deus como Pai implica, con-
seqQentemente, a consciénda que Jesús tinha da sua divina autoridade
e da sua missSo. Nao é sem razáo que encontramos neste contexto o
termo revelar (Mt 11,27 par.; cf. 16,17). Consciente de ser aquele que
condece perfertamente Deus, Jesús sabe também que 6 o mensageiro
da revelacao definitiva de Deus aos homens. Ele sabe e tem consciéncia
de ser o Filho (cf. Me 12,6; 13,32).

Em virtude desta consciéncia, Jesús fata e age com autoridade


que propriamente compete a Deus só. A atitude dos homens em reía-
cao a Ele, Jesús, decide a salvacáo eterna dos mesmos (cf. Le 12,8; Me
8,38; Mt 10,32). Desde já, Jesús pode chamar os homens a segui-Lo
(Me 1,17); para segui-Lo, é preciso amá-Lo mais do que aos próprios
genitores (Mt 10,37), antepó-Lo a qualquer bem terrestre (Me 10,29),
estar pronto a perder a propria vida "por causa de mim" (Me 8,35). Ele
fala como legislador soberano (Mt 5,22.28), que se coloca ácima dos
profetas e dos reis (Mt 12,41s). Por conseguinte, nao existe Mestre
além dele (Mt 23,8); tudo passaré exceto a sua palavra (cf. Me 13,31).

1.3. O Eyangelho de Sao Joio propóe de maneira mais explícita a


fonte da qual Jesús recebe essa inaudita autoridade: "O Pai está em
mim e eu estou no Pai" (10,38); "Eu e o Pai somos um só" (10,30).

488
CONSCIÉNCIA DE JESÚS

O Eu que fala e que legisla soberanamente, tem a mesma dignidade do


EudeJavélcf. Ex 3,14).

Mesmo ficando no plano meramente histórico, podemos, com só


lido fundamento, afirmar que a primitiva prega?§o dos Apostólos a res-
peito de Jesús como Filho de Deus está baseada sobre a consciéncia
mesma que Jesús tinha de ser o Filho e o Enviado do Pai.

Segunda Proposicáo:

Jesús sabia qual era a finalidade da sua missio: anunciar o


Reino de Deus e torná-lo presente na sua Pessoa, nos seus atos
e ñas suas palavras, a fim de que o mundo fosse reconciliado
com Deus e renovado. Livremente Ele aceitou a vontade do Pai:
dar a própria vida pela salvacio de todos os homens; Ele sabia
ter sido enviado pelo Pai para servir e dar a própria vida "em
favor de muitos" (Me 14,24).

Comentario: -

2.1. A pregacao dos Apostólos a respeito da flltacao divina dé


Cristo inclui também, e inseparavelmente, um significado sotqriológlco.
Com efeHo, o envió e a vinda de Jesús na carne (Rm 8,3), Soto a Lei (Gl
4,4), o seu aniquilamento (Fl 2,7) tém em mira o nosso reerguimento:
tornar-nos justos (2Cor 5,21), ricos (2Cor 8,9) e fílhos mediante á Espi
rito (Rm 8,14s; Gl 4,5s; Hb 2,10). Urna tal partícipapao na fíliacáo divina
de Jesús, que se realiza na fó e se exprime particularmente na oracio
dos cristáos ao Pai, supóea consciéndaque o próprio Jesús tem de ser
Filho. Toda a pregacao dos Apostólos se baseia na conviecáo de que
Jesús sabia ser o Filho, o Enviado do Pai;e, sem tal consciéncia de Je
sús, nao somante a Cristologia, mas também toda a Soteríologia esta
ría destituida de fundamento. •..•'■■

2.2. A consciéncia que Jésus tem da sua singular relacao filial com
o "Pai seu" é o fundamento e o pressuposto da sua missao. Ooutro la
do, podemos da sua missao deduzir a consciéncia que Jesús tinha. Se
gundo os Evangelhos sinóticos, Jesús sabe que foi enviado para anun
ciar a Boa-Nova do Reino de Deus (Le 4,43; cf. Mt 15,24); em vista dis
to Ele "saiu" (Me 1,35 grego) e velo (cf. Me 2,17...).

Através da sua missao em favor dos homens, podemos, ao mesmo


tempo, descobrir Aquele de quem Jesús 6 o Enviado (cf. Le 10,16).
Com gestos e palavras Jesús manrfestou o objetivo da sua "vinda":
chamar os pecadores (Me 2,17), "procurar e salvar o que estava perdi-

489
10 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

do" (Le 19,10), nao abolir, mas cumplir a Lei (Mt 5,17), trazer a espada
da separacio (Mt 10,34), trazer o fogo sobre a térra (Le 12,49). Jesús
sabe que "veio" nao para ser servido, mas para servir "e dar a sua vida
em resgate de muitos" (Me 10,45).

2.3. Esta "vinda" nao pode ter outra origem se nao em Deus. O
Evangelho de Sao Joáo o diz claramente, tornando explícitos, na sua
Crístologia da Missáo {Sendungschristotogie), os testemunhos mais im
plícitos dos Sinóticos sobre a consciéncia que Jesús tinha da sua ¡n-
comparável missáo: sabe que "veio" do Pai (5,43), "saiu" do Pai (8,11;
16,28). A missáo de Jesús, recebida do Pai, nlo Ihe foi imposta de fora:
ela Ihe é própria, a ponto de coincidir com todo o seu ser; ela é toda a
sua vida (6,57), o seu alimento (4,34); é a única coisa que Jesús procura
(5,30), porque a vontade daquele que o enviou é toda a vontade de Je
sús (6,38); as suas palavras sao as palavras do Pai (3,34; 12,49); as suas
obras sao as obras do Pai (9,4), de modo que Ele pode dizer de si
mesmo: "Quem me viu, viu o Pai" (14,9). A consciéncia que Jesús tem
de si, coincide com a consciéncia da sua missáo. Isto vai muito além da
consciéncia de uma missSo profética recebida em determinado momen
to, fosse mesmo "desde o seio materno" (como Jeremías, cf. Jr 1,5; o
Batista, cf. Le 1,15; Paulo, cf. Gl 1,15). Esta missáo tem muito mais as
suas raizes em uma salda ortginéria de Deus ("pois eu sai de Deus",
8,42); ora isto pressupóe, como condicáo de possibilidade, que Jesús
tenha estado com Deus "desde a origem" (1,1.18).

2.4. A consciéncia que Jesús tem da sua missáo implica portante


a consciéncia da sua "preexistencia". Na verdade, a missáo (temporal)
nao é essencialmente separável da processáo (eterna), mas é a "prolon-
gacáo" desta (cf. S. Tomás, In Sententüs I, d.15, qu.4, a 1, sol; l,9, 43, a
2, ad 2). A consciéncia humana da própria missáo "traduz", por assim
dizer, na linguagem de uma vida humana, a eterna relacáo com o Pai.

Esta relacáo do Filho Encarnado com o Pai supóe, antes do mais,


a mediacao do Espirito Santo, que por isto deve ser sempre incluido na
consciéncia de Jesús enquanto Filho. Jé a sua existencia humana mes-
ma é o resultado de uma acio do Espirito; a partir do Batismo, toda a
obra de Jesús - quer se trate de acóes, quer de sofrimento entre os
homens, quer de comunhio de oracáo com o Pai - nao se realiza senáo
no Espirito e mediante o Espirito (Le 4,18; At 10,38; cf. Me 1,12; Mt
12,28). O Filho sabe que, ao cumprir a vontade do Pai, Ele é guiado e
sustentado pelo Espirito até a Cruz. Nesta, terminando a sua missáo
terrestre. Ele entrega [parédoken) "o seu espirito" ipneuma) (Jo 19,30)
- passagem na qual alguns véem uma alusáo ao dom do Espirito. Des
de a sua Ressurreicáo e Ascensao, Ele se torna, como homem glorifica
do, o que era com Deus desde toda a eternidade: "espirito doador de

490
CONSCIÉNCIA DE JESÚS M

vida" (1Cor 15,41; 2Cor 3,17), Senhor capaz de difundir soberanamen


te o Espirito Santo para que nele sejamos elevados á dignidade de f¡-
Ihos.

Mas esta relacio do Filho encarnado com o Pai exprime-se, ao


mesmo tempo, de maneira "kenótica"1. Para poder realizar a obedien
cia perfeita, Jesús renuncia Hvremente (Fl 2,6-9) a tudo o que poderia
opor-se a esta atitude. Por isto nao quis, por exemplo, recorrer ¿s le-
gióes angélicas que Ele poderia obter (Mt 26,53); quis, como um ho
mem, crescer "em sabedoria, idade e grapa" (Le 2,52), aprender a obe
decer (Hb 5,18), enfrentar as tentacóes (Mt 4,11, par.), sofrer. Nada
disto é incompatlvel com as afirmacóes de que Jesús "sabe tudo" (Jo
16,30), "o Pai Ihe mostrou tudo o que Ele faz" (Jo 5,20; cf. 13,3; Mt
11,27), se tais afirmacóes sao entendidas no sentido de que Jesús re
cebe do Pai tudo o que Ihe permite realizar a sua obra de revelacáo e
de redencáo universal (cf. Jo 3,11.32; 8,38. 40; 15,5; 17,8).

Terceira proposicüo:

Para realizar a sua missio salvffica, Jesús quis reunir os


homens em vista do Reino e convocá-los em torno de si. Em
conseqüéncia, Jesús realizou ates concretos que, tomados em
seu conjunto, s6 podem ser interpretados como a preparadlo da
Igreja que havia de ser constituida definitivamente por ocasiio
dos acontecimentos da Páscoa e de Pentecostés. É, por conse-
guinte, necessário afirmar que Jesús quis fundar a Igreja.

Comentario:

3.1. Na base do testemunho dos Apostólos, a Igreja é ¡nseparável


de Cristo. Segundo urna fórmula usual ñas epístolas de Sao Paulo, as
Igrejas estáo "em Cristo" (1Ts 1,1; 2,14; 2Ts 1,1; 61 1,22), sao as
"Igrejas de Cristo" (Rm 16,16).2 Ser cristao significa que "Cristo está

^Kenótico vem do grego kénosis, esvaziamento. Significa o estado de


despojawento que o FUho de Deus assumiu quando se fez homem. (Nota do
tradutor).

2A palavra "Igreja" no plural significa o que também chamamos "dioceses".


"comunidades eclesiais", "igrejas particulares". Nao significa, porém, que Je
sús tenha fundado mais de urna Igreja: a Igreja universal consta de dioceses
ou de igrejas particulares. (Nota do tradutor).

491
_12 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

em vos" (Rm 8,10; 2Cor 13,5), é "viver em Cristo Jesús" (Rm 8,2):
'Todos vos sois um em Jesús Cristo" (Gl 3,28). Esta unidade se expri
me principalmente mediante a analogía da unidade do corpo humano. O
Espirito Santo é a fonte da unidade desse corpo: corpo de Cristo (1Cor
12,27), ou "em Cristo" (Rm 12,5) e também "Cristo" (1Cor 12,12). O
Cristo celeste 6 o principio de vida e de crescimento da Igreja (Cl 2,19;
Ef 4,11-16); Ele e "a Cabeca do corpo" (Cl 1,18; 3,15 etc.), a "plenitu-
de" (Ef 1,22s) da Igreja.

Ora esta indissolúvel unidade de Cristo com a sua Igreja tem as


suas rabes no ato supremo da vida terrestre de Jesús: o dom da sua
vida na cruz. Porque a amou, "Ele se deu por Ela" (Ef 5,25), pois quería
"apresentar a Si mesmo a sua Igreja toda gloriosa" (Ef 5,27; ef. Cl
1,22). A Igreja, Corpo de Cristo, tem sua origem a partir do corpo en
tregue sobre a Cruz, a partir do "sangue precioso" (1Pd 1,19) de Cris
to, que é o proco do nosso resgate (1Cor 6,20). Segundo a pregacáo
dos Apostólos, a Igreja 6 precisamente a finalidade da obra salvrfica
realizada por Cristo durante a sua vida terrestre.

3.2. Quando apregoa o Reino de Deus, Jesús nfio anuncia slm-


plesmente a (mínente e grande mudenca escatológica, mas convoca, an
tes do mais; os homens a entrar no Reino. O gormen e o inicio do Rei
no é "o pequeño rebanho" (Le 12,32) daqueles que Jesús veío chamar
para junto de si e dos quais Ele é o pastor (Me 14,27 par.; Jo 10,1-29;
cf. Mt 10,16 par.). Ele que veio para reunir e libertar as suas ovelhas
(Mt 15,24; Le 15,4-7). Jesús refere-se a essa convocacáo sob as ima-
gens dos convidados ao banquete de nupcias (Me 2,19 par.), da semen-
te de Deus (Mt 13, 24; 15,13), da rede do pescador (Mt 13,47; Me
1,17). Os discípulos de Jesús formam a cidade em cima da montanha,
vistvel de longe (Mt 5,14); constituem a nova familia da qual Deus
mesmo é o Pai e na qual todos sao irmáos (Mt 23,9); constituem a ver-
dadelra familia de Jesús (Me 3,34 par.). As parábolas de Jesús e as
bnagens das quais se serve para falar daqueles que Ele veio convocar,
comportam urna "Eclesiologia implícita".

Nao se trata de afirmar que esta intencao de Jesús implica a von-


tade expressa de fundar e estabelecer todos os aspectos institucionals
da Igreja, como se foram desempolvando no decorrer dos sóculos. Mas é
necessario afirmar que Jesús quis dotar a comunidade que Ele reuniu
em torno de Si, de urna estrutura que permanecerá até a plena realiza-
cao do Reino. É preciso recordar aquí a escolha, em primeiro lugar, dos
Doze e de Pedro como Chefe dos mesmos (Me 3,14-19). Essa escolha,
nítidamente intencional, visa a definitiva fundacao escatológica do povo
de Deus, que seria aborto a todos os homens (cf. Mt 8,11s). Os Doze
(Me 6,7) e os outros discípulos (Le 10,1-12) participara da missao de

492
CONSCIÉNCIA DE JESÚS 13

Cristo, das suas faculdades, mas o próprio Jesús vem, e em Jesús está
presente Aquele que O enviou (Me 10,40).

A Igreja terá també™ a sua oracáo própria, aquela que Jesús lhe
entregou (Le 11,2-4); ela recebeu principalmente o memorial da Ceia,
centro da "Nova Alíanca" (Le 22,20) e da nova comunidade reunida na
fracio do pao (Le 22,19). Aqueles que Ele convocou para junto de Si,
Jesús ensinou um "modo de agir" novo, diverso do modo dos antigos
(cf. Mt 5,21-48), dos pagaos (Mt 5,47), dos grandes deste mundo (Le
22,25-27).

Quis Jesús fundar a Igreja? Certo; mas esta Igreja é o Povo de


Deus, que le reúne primeiramente a partir de Israel, através do qual
Ele tem em vista a salvacio de todos os povos. Com efeito; Jesús sabe
que, antes do mais, foi enviado "¿s ovelhas perdidas da casa de Israel"
(Mt 10,6; 15,24) e a elas envía os seus discípulos. Urna das expressdes
mais comoventes da consciéncia que Jesús tinha da sua dignidade e da
sua missáo, é o lamento (o lamento do Deus de Israel!): "Jerusalém,
Jerusalém..., quantas vezes quis reunir os teus filhos como a gatinha
reúne os pintinhos sob as asas e nao o quisestel" (Le 13,34; cf. 19,41-
44). Na verdade, Deus (Javé) no Antigo Testamento procurava inces-
santemente reunir os filhos de Israel em um s6 povo, o seu povo. Preci
samente aquele "Nao o quiseste" mudou nao a ¡ntencao, mas o cami-
nho da convocacSo de todos os homens em torno de Jesús. De entáo
por diante, "o tempo dos pagaos" (Le 21.24; cf. Rm 11,1-6) marcaría
a Ecclesia de Cristo.

Cristo tinha consciéncia da sua missáo salvifica. Esta comportava


a fundacSo da sua Ecclesia, isto é, a convocacáo de todos os homens na
"familia de Deus". Em última Instancia, a historia do Cristianismo se
funda sobre a IntencSo e a vontade, de Jesús, de fundar a sua Igreja.

3.3. Á luz do Espirito, o Evangelho de SSo Joao vé toda a vida de


Cristo como que iluminada pela gloria do Ressuscítado. Assim o circulo
dos discípulos de Cristo que se abre a todos aqueles que "pela sua pa-
lavra crerSo em mim" (17,20). Aqueles que durante a sua vida terrestre
estiveram com Ele, aqueles que o Pal Lhe tinha dado (17,6), que Ele ti
nha guardado e em favor dos quais "Ele se tinha consagrado" (17,19)
dando a sua vida, esses já representam todos os fiéis, todos aqueles
que haveriam de amá-Lo (1,12) e que creriam nele (3,36). Mediante a
fé, estáo unidos a Ele como ramos ao tronco da videira, sem o qual se-
cam (15,6). Esta Intima uniáo entre Jesús e os fiéis ("Vos em Mim, e Eu
em v6s", 14,20) tem a sua origem no designio do Pai, que "dá" os dis
cípulos a Jesús (6,39.44.65), mas se realiza definitivamente mediante a
livre doacio da vida de Jesús (10,18), "em prol dos seus amigos"

493
_14 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

(15,3). O misterio pascal fica sendo a fonte da Igreja (cf. 19,34): "Eu,
quando for elevado ácima da térra, atrairei todos a Mim" (12,32).

Quarta Proposicáo:

A consciéncia que Cristo tem de ser enviado pelo Pai para


a salvacao do mundo e para a convocacáo de todos os homens
no povo de Deus, implica, de modo misterioso, o amor de todos
os homens, de tal modo que todos podemos dizer: "O Filho de
Deus me amou e se deu por mim" (Gl 2,20).

Comentario:

4.1. Desde as suas primeiras formulacóes, a pregacáo dos Apos


tólos implica a conviccáo de que "Cristo morreu pelos nossos pecados
segundo as Escrituras" ÜCor 15,3), "deu-se pelos nossos pecados" (61
1,4), e isto segundo a vontade de Deus Pal, que "O entregou á morte
pelos nossos pecados" (Rm 4,25; cf. Is 53,6), "por todos nos" {Rm
8,32), "para resgatar-nos" (Gl 4,4). Deus, que "quer que todos os ho
mens sejam salvos" (1Tm 2,4), nao excluí ninguem do seu designio de
salvacSo, que Cristo abraca com todo o seu ser. Toda a vida de Cristo,
desde "o seu ingresso no mundo" (Hb 10,5) ató a doacáo da sua vida, é
um s6 e único dom "em nosso favor". Foi isto precisamente que a
Igreja pregou desde os seus primordios (cf. Rm 5,8; ITs 5,10; 2Cor
5,15; 1Pd 2,21; 3,18, etc.).

Morreu por nos, porque nos amou: "Cristo nos amou e se entre
gou, oferecendo-se em sacrificio por n6s" (Ef 5,2). Este "nos" indica
todos os homens que Ele quer reunir na sua Igreja: "Cristo amou a
Igreja e se entregou por Ela" (Ef 5,25). Ora, tal amor, a Igreja o enten-
deu apenas como urna atrtude geral, mas como um amor tio concreto
que cada criatura humana se torna objeto de consideracSo pessoal. Es
ta conviccao da Igreja é corroborada pelas palavras de Sao Paulo a
resperto dos "fracos": "Nao facas perecer por causa do teu alimento al-
guém pelo qual Cristo morreu" (Rm 14,15; cf. 1Cor 8,11; 2Cor 5,14s).
Aos cristSos de Corinto dilacerados em faccóes Paulo póe a pergunta:
"Cristo estaría dividido? Paulo teria sido crucificado em vosso favor?"
(ICor 1,13). Justamente a este propósito Paulo (que nao conheceu Je
sús "durante a sua vida terrestre", Hb 5,7) poderé afirman "Vivo na fé
do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim" (Gl 2,20).

4.2. Os testemunhos dos Apostólos ácima recordados a resperto


da morte que Jesús sofre em amor, e de maneira muito pessoal, "por

494
CONSCIÉNCIA DE JESÚS

nos", "por mim" e "pelos meus irmios", póem ante os nossos olhos o
amor, setn limites, do "Filho de Deus" (Gl 2,20) preexistente, Aquele
que é reconheddo, ao mesmo tempo, como o "Senhor" glorificado. Es
te "por nos" cheio de amor de Jesús tem, pois, o seu fundamento na
preexistencia, e permanece também no amor do Cristo glorificado, que
- após haver-nos amado {cf. Rm 8,37) na sua Encarnacao e na sua mor-
te - agora "intercede por nos" (Rm 8,34). O amor "preexistente" de
Jesús constituí o elemento continuo que caracteriza o Filho em todas
estas tres etapas (preexistencia, vida terrestre, existencia glorificada).

Esta continuidade do seu amor, encontramo-la expressa ñas pala-


vras de Jesús. Segundo Le 22,27, Jesús traduz o conjunto da sua vida
terrestre e do seu comportamento, sob a imagem de "aquele que serve
á mesa". "Ser o servidor de todos" (Me 9,35 par.) é a regra fundamen
tal no circulo dos discípulos. O amor de servico chega ao seu auge na
cela de despedida, durante a qual Jesús se sacrifica e se entrega como
Aquele que deve morrer (Le 22,19s par.). Na Cruz, a sua vida de servi
co se transforma totalmente em urna morte de servico "por muitos"
(Me 10,45; cf. 14,22-24). O servico de Jesús, ao viver e ao morrer, era,
em última análise, um servico do "Reino de Deus" em palavras e em
atos, a ponto que Ele pode apresentar a sua vida e a sua obra na gloria
futura como um "servico á mesa" (Le 12,37) e como urna intercessáo
(Rm 8,34). O servico era o servico do amor, que associa o amor radical
de Oeus e o amor cheio de abnegacáo para com o próximo (cf. Me
12,28-34).

O amor, do qual toda a vida de Jesús é um testemunho, se revela,


antes do mais, como universal, no sentido de que nao exclui nenhum
daqueles que vao a Ele. Este amor procura "o que estava perdido" (Le
15,3-10 e 11-32), os publícanos e os pecadores (cf. Me 2,15; Le 7, 36-
50; Mt 9,1-8; Le 15,1s), os ricos (Le 19,1-10) e os pobres (Le 16,19-31),
os homens e as mulheres (Le 8,2-3; 7,11-17;13, 10-17), os doentes (Me
1,29-34, etc.), os endemoniados (Me 1,21-28, etc.), os aflitos (Le 6,21) e
os oprimidos (Mt 11,28).

Esta abertura do Coráceo de Jesús a todos quer intentíonalmente


ultrapassar os termos da sua geracio, como se torna evidente na "uni-
versatizacao" da sua mtssSo e das suas promessas. As bem-aventuran-
cas vao alem dos limites dos seus imediatos ouvintes; eontemplam to
dos os pobres, todos os famintos (Le 6,20s). Jesús se identifica com os
pequeños e os pobres (Me 10.13-16): quem acolhe um destes pequeni-
nos, acolhe o próprio Jesús, e em Jesús acolhe Aquele que O enviou
(Me 9,37). Somonte no último jubo se verá abertamente até que ponto
esta identificacáo, por enquanto aínda velada, foi profunda (Mt
25.31-46).

495
J6 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

4.3. Este misterio se encentra no coráceo da nossa fé: a inclusio


de todos os homens no amor eterno com que Deus amou o mundo a
ponto de dar o seu próprio Filho {Jo 3,16). "Foi assim que conhecemos
o amor: Ele (isto 6, Cristo) entregou a sua vida por n6s" (1 Jo 3,16). Na
verdade, "o Bom Pastor dá a vida por suas ovelhas" (Jo 10,11); Ele as
conhece (Jo 10,14) e chama cada uma pelo seu nome (Jo 10,3).

4.4. Precisamente por ter reconhecido esse amor pessoal para


com cada um, muhos cristáos se dedicaram ao amor aos mais pobres,
sem discriminado; e continuara a testemunhar esse amor que sabe ver
Jesús em cada um "destes meus irmaos menores" (Mt 25,40). "Trata-se
de cada homem, porque cada um foi incluido no misterio da Redencáo,
e com cada um Cristo se uniu para sempre através deste misterio"
(Joáo Paulo II, ene. Redemptor Hominis n? 13).

O documento aqui apresentado tem a autoridade de uma Comissáo


de Teólogos convocados de diversas nacóes pela Santa Sé para aprofun-
darem temas discutidos do momento. Tal Comissáo tem considerado es
pecialmente a Ecleslologia e a Cristologia, que últimamente tém sido
abordadas de maneira pouco condizente com os principios da fé ejn
obras de repercussao internacional; tenham-se em vista, entre outros, os
escritos de Freí Leonardo Boff: "Jesús Cristo Libertador", "Eclesiogéne-
se", "Igreja: Carisma e Poder".

A partir dos dados da S. Escritura, a CTI deduziu quatro proposi-


cóes fundamentáis sobre a consciéncia psicológica de Jesús:

1) Jesús sabia que era o Filho de Deus em sentido singular ou que


Ele mesmo era Deus. Isto quer dlzer que nao se pode reduzir Jesús &
condicáo de um profeta como os outros; estes sablam que eram meras
criaturas chamadas por Deus a uma mlssao que muitas vezes os assusta-
va; cf. Jr 1,6-8 (Jeremías); Ex 4,1.10-17 (Moisés); Ez 3,9 (EzequieD... Os
profetas falavam em nome de Javé, ao passo que Jesús falava em seu
próprio nome; cf. Mt 5,21 -48; Me 2,27s; Mt 25,31 -46...

2) Jesús tinha consciéncia da missáo que o Pai Ihe confiara como


homem: anunciar o Reino de Deus e dar a vida por todos os homens a
fim de os reconciliar com o Pai. - Isto quer dizer que nao se pode conce-
ber Jesús como um profeta que morreu desesperado na Cruz porque o
Pai nSo o salvou dos inimigos, nem se pode dizer que, ao instituir a Eu
caristía na última ceia, Jesús ignorava que esta seria a perpetuado do
sacrificio da nova Alianca.

496
CONSCIENCIA DE JESÚS 17

3) Jesús quis fundar a Igreja e deu-lhe a sua estrutura essencial. -


Nao se diga, pois, que Jesús aguardava a vinda iminente do Reino de
Deus e, por isto, nunca pensou em fundar sua Igreja. Esta teria sido fun
dada pelos Apostólos sob a guia do Espirito Santo, visto que de fato o
Reino de Deus nao se consumou com a morte de Jesús. Tal interpretado
faz violencia aos textos do Novo Testamento.

4) Jesús Cristo realizou a sua obra de salvacáo por amor a todos os


homens. - Jesús teve, pois, urna visao ampia de todas as gerac,óes hu
manas e cada um dos seus componentes, que Ele amou com amor pes-
soal e ¡rreversível.

Estas proposicóes nada inovam na teologia católica; sejam obser


vadas e transmitidas fielmente nos cursos de Cristologia e catequese as-
si m como na.pregacao católica!

"REDE NACIONAL DE MISSÓES CATÓLICAS"

Ordem dos Padres Exorcistas do Brasil

Tém chegado á Redacáo de P*R diversas cartas pedindo esclareci-


mentos a respeito da ¡nstituicáo ácima. A propósito podemos noticiar que
nao se trata de entidade católica, embora tome as aparéncias de Catoli
cismo num auténtico abuso e plagio. - A Curia Metropolitana de Sao
Paulo (SP) vem divulgando a seguinte nota em seu jornal "O SAO PAU
LO":
JAIR PEREIRA NAO É PADRE
A Arquidiocese de Sao Paulo, para esclaretímento público, decla
ra que o candidato a deputado federal "Padre Jair Pereira" nao é padre
da Igreja Católica Apostólica Romana.
Os Revmos. Srs. Párocos, Vigários Paroquiais, Reitores de Igreja.
leiam este aviso ñas funcóes religiosas que serSo realizadas ató o día 19
de outubro corrente.

Sao Paulo, 10 de outubro de 1986

Paulo Evaristo. CARDEAL ARNS


Arcebispo Metropolitano de Sao Paulo

CÓNEGO ANTONIO TRIVINHO


do Arcebispado de Sio Paulo

497
Um teólogo perde a cátedra:

0 (aso " Charles Curran "

A imprensa brasileira noticiou a providencia tomada pela Santa Sé


com relscSo ao Pe. Charles Curran, da Untversidade Católica de Wa
shington: perdeu o titulo de Professor de Teología Católica, porque se
obstinou a defender teses favoráveis ao homossexualismo, ao aborto, ao
divorcio, ás relacdes pré-matrimoniais... Tal foi o desfecho de diálogo ini
ciado em 1979, diálogo no decorrer do qual a Santa Sé procurou mostrar
ao Pe. Curran que, como teólogo católico, ele nSo podia ensinar proposi-
QÓes contrarias aos ensinamentos da Igreja Católica. Dada a insistencia
do teólogo, nio restou senfio declarar de público que ele nfio é professor
de Teologia Católica.

Ao proceder assim, a Igreja, como MSe e Mestra, nSo pode deixar


de sofrer. Ela o faz, porém, por fidelidade a Jesús Cristo e ao povo de
Deus; o Senhor confiou a sua Igreja a missfio de dizer ao mundo qual a
autentica mensagem de Cristo e distingui-la de suas contrafacSes (cf. Mt
28,18-20).

A seguir, encontra-se a carta datada de 25/07/86 e enviada pela


Congregado para a Doutrina da Fé ao mencionado teólogo; a traducío
portuguesa é transcrita do jornal L'Osservatoro Romano, ed. portuguesa
de 31/08/86, p.2.

DA CONGREGACÁO PARA A DOUTRINA DA FÉ


AO PROFESSOR CHARLES CURRAN

Rev.mo Prof. Curran,

Esta CongregacSo desoja acusar o recebimento da sua carta de 1S


de abril de 1986, a qual vinha anexa a sua resposta definitiva ás "Ob-
servacdes" criticas que Ihe foram enviadas, a proposito de algumas te
ses sustentadas pelo senhor ñas suas publlcacoes. Vossa Reverencia diz
que "permanece aínda convicto da exatídao destas posicdes...". Simul
táneamente, repropóe o que o senhor mesmo define "um compromb-

498
O CASO "CHARLES CURRAN" 19

so", segundo o qual Vossa Reverencia continuaría a ensinar teología


moral, mas nao no campo da ética sexual.

O objetivo desta carta é comunicar-lhe que a Congregacáo con


firma a sua posicfio, segundo a qual aquele que, como o senhor, discor-
da do Magisterio, nSo pode ser nem idóneo nem eleglvel para o ensino
da teología católica. Por conseguinte, ela nao aceita a sua solucfio de
compromlsso, por causa da unidade orgánica da auténtica teología ca
tólica, unidade que está intimamente ligada, no seu contando e no seu
método, i fidelidade ao Magisterio da Igreja.

As diversas posicóes de desacordó que esta Congregacáo Ihe no-


tfficou, a saber, as relativas ao direito de desacordó público com o Ma
gisterio ordinario, á ¡ndfssolubilldade do matrimonio sacramental con
sumado, ao aborto, á eutanasia, á masturbacao, & contracepcSo artifi
cial, ás relacoes pré-matrimoniais e aos atos homossexuais, foram enu
meradas com a devída exatidao ñas "Observacdes" supramencionadas,
de Julho de 1983, e foram JA publicadas. NSo é, portante, o caso de
entrar nos pormenores sobre o feto de que Vossa Reverenda discorde
de tais questóes.

Todavía, há um aspecto que deve ser posto em evidencia. A sua


afirmacao de fundo é que as suas teses, dado que sao convincentes pa
ra o senhor e divergem só do ensinamento "nao infalfvel" da Igreja,
constituem urna divergencia "responsável", e deveriam portante ser
permitidas pela Igreja. Quanto a isto, parecem necessárias as seguintes
consideracóes.

Em primeiro lugar deve-se recordar o ensinamento do Concilio


Vaticano II que, de modo claro, nao limita o magisterio infalhrel só as
materias de fe ou, entSo, ás definieses solones. A Lumen Gentium, no n.
25, afirma: "... contudo mesmo quando dispersos pelo mundo, ele» (os
bispos), guardando, porém, a comunhSo entre si e com o Sucessor de
Pedro e quando ensinam auténticamente sobre assuntos de fé e moral,
concordando numa sentenca que deve ser mentida de modo definitivo,
entáo enundam infalivelmente a doutrina de Cristo". Além disso, a
Igreja nao constrói a sua vida apenas sobre o seu magisterio infaffvel,
mas também sobre o ensinamento do seu magisterio auténtico ordina
rio.
Á luz destas consideracSes, parece claro que Vossa Reverenda
nao levou na devída conslderaeáo, por exemplo, que a posicao da Igreja
sobre a indissolubilidade do matrimonio sacramental consumado, que o
senhor pretendería fosse mudada, na realidad» foi definida no Concilio
de Trento e, por isso, pertence ao patrimonio da fé. De igual modo,
Vossa Reverenda nio d¿ sufidente peso ao ensinamento do Condlío

499
20 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

Vaticano II, quando, em plena continuidade com a Tradlcfio da Igreja,


condenou o aborto, qualhlcando-o como "delito abominávei". Em todo
caso, os fiéis nao so devem aceitar o magisterio infalfvel, mas sao
chamados a dar o religioso obsequio da inteligencia e da vontade &
doutrina que o Sumo Pontífice ou o colegio dos blspos, no exerdcio do
magisterio auténtico, expressam em materia de fé ou de moral, aínda
que nao entendam proclamá-la como um ato definitivo. Isto Vossa Re
verencia tem continuamente recusado a fazer.

Há, além disto, duas questóes conexas que, sobretudo nos últi
mos meses, foram mal compreendidas durante o exame feito por esta
Congregacáo a respeito das suas obras, e que devem ser esclarecidas.
Em primeiro lugar, Vossa Reverencia protestou publicamente porque
nunca Ihe foi dito quais eram os seus "acusadores". Ora, a Congrega-
cao baseou o próprio exame exclusivamente sobre as obras publicadas
pelo senhor e sobre as suas respostas pessoais ás próprias "Observa-
cóes". Portante, de fato as suas próprias obras foram os seus "acusa
dores" e somonte elas.

Além dlsso, Vossa Reverencia protestou porque nunca Ihe foi da


da a possibilidade de se aconselhar. Ora, desde o momento em que o
exame foi conduzido com base em documentacio escrita, Vossa Reve
rencia teve toda a possibilidade de recorrer a qualquer tipo de consulta
desojada. E é claro que Vossa Reverenda o fez. Na sua carta de 24 de
agosto de 1984, em resposta ¿s "Observacóes" da Congragacáo, o se
nhor mesmo afirmava que as suas posicoes tinham sido tomadas "de-
pols de um grande numero... de consultas..."; ademáis, na carta da
Congregacáo de 17 de setembro de 1985, o senhor era convidado a
servir-se desses próprios meios, a fim de chegar a urna resolucao acei-
tavel das divergencias entre as suas posicoes e a doutrina da Igreja. En-
fim, apos o seu pedido, quando o senhor velo ao encontró de 8 de mar
co de 1986, Vossa Reverenda estava acompanhado de um teólogo de
sua confianca, escolhido pelo senhor mesmo.

Em condusáo, esta Congregacáo chama a atencao para o fato de


que Vossa Reverencia tomou as suas posicoes de desacordó na sua
qualldade de Professor de Teología na Faculdade Eclesiástica de urna
Universldade Pontiflda. Na carta enviada no dia 17 de setembro de
1985, notava-se que "... as autoridades da Igreja nio podem permitir
que continué a shuacSo atual, na qual se prolonga a contradicáo intrín
seca pela qual urna pessoa que tem a missio de enslnar em nome da
Igreja, de fato naga a sua doutrina". Portento, esta Congregacfio, por
causa da sua reiterada recusa de aceitar o que a Igreja enslna e em vir-
tude do próprio mandato de promover e salvaguardar a doutrina da
Igreja em materia de fé e de moral em todo o mundo católico, em en-

500
O CASO "CHARLES CURRAN"

tendimento com a Congregacáo para a Educacáo Católica, nio vé outra


alternativa senio a de notificar ao Excelenttssimo Chanceler que Vossa
Reverencia nao pode mais ser considerado nem iddneo nem eleglvel pa
ra exercer a funcáo de professor de teología católica.

Esta decisáo foi apresentada ao Santo Padre numa Audiencia


concedida ao subscrito Card. Proferto, a 10 de julho do córrante ano, e
por Ele aprovada quanto ao contéudo e quanto ao modo de proceder
seguido.

Este Dicastérfo deseja, além disto, informar-lhe que tal decisáo se


rá tornada de conhecimento público, logo que Vossa Reverencia tfver
recebido a comunicacáo.

Desejaria, enfim, exprimir a sincera esperanca de que esta desagra-


dável, mas necessária conclusSo do exame da Congregacáo, possa indu-
zi-lo a rever as suas posicóes de divergencia e a aceitar o ensinamento
da Igrefa Católica na sua integralidade.

Dev.mo em Cristo,
Card. Joseph RATZINGER

O texto do documento é assaz claro. Parece, porém, digna de espe


cial atencáo a observacao seguinte: merecem respeitosa acolhida nao
somente as definicóes do magisterio extraordinario da Igreja, mas tam-
bém o ensinamento que o Sumo Pontífice ou o colegio dos bispos pro-
poem em materia de fé e de Moral, aínda que nao cheguem a proferir
defin¡c6es solenes. O magisterio ordinario, que se faz ouvir pela voz
constante do S. Padre ou dos bispos da Igreja, tem valor normativo, de
tal modo que os fiéis católicos háo de pautar sua fé e sua vida moral por
tais ensinamentos. A Igreja nao é urna sociedade meramente humana,
mas é o sacramento ou o Corpo Místico de Cristo; por isto as suas afir-
macSes oficiáis gozam de peculiar assisténcia da parte do Senhor Jesús e
do seu Espirito para que nao induzam os cristios em erro. O próprio
Cristo dizia aos Apostólos: "Ide... ensinai... Eis que estarei convosco até a
consumado dos sáculos" (Mt 28,18-20).

ERRATA

Em PR 293/1986, p. 458, linha 3 de cima, troque-se "Bispo Auxi


liar" por "Bispo Residencial". Queira O. Boaventura Kloppenburg des
culpar o erro gráfico!

501
Como dizem:

0 demonio anda soltó por ai ?

Em sfntese: A existencia dos aojos bons e maus é artigo de fé, que a


Igreja professa com base na S. Escritura e na Tradicáo. Aos anjos maus (de
monios) Deus concede agir neste mundo tentando os homens; o que interes-
sa ao Maligno, ó o pecado. A agáo do demonio neste mundo se manifesta es
pecialmente na perseguicáo movida contra a Igreja e os deis de Deus, na in-
versao da escala dos valores (quando o bem é tido como mal moral e o peca-
do tido como virtude), ñas múltiplas tentativas de perverter os inocentes, na
cruetdade requintada dos campos de concentracáo e das lavagens de' eré-
nio... Quanto aos males físicos (doengas, (racassos, desastres...), sao geral-
mente derivados das próprias limitacóes da natureza humana. Acontece, po-
rém, em nossos dias que imitas pessoas, angustiadas por molestias e des-
gracas de ordem psíquica ou física, se julgam possessas do demonio e v$o
peer o exorcismo aos sacerdotes. Diante de tal atitude, a Igreja recomenda
prudencia e discernimento, pois a grande maioria de tais casos é de ordem
psicológica e deve ser tratada em ámbito de psicoterapia ou medicina e nio
com exorcismo (é claro que também se deve rezar pelos doentes a fím de que
sejam curados). Nem mesmo o pecado grave é necessariamente síntoma de
possessSo diabólica. Os despachos e trabalhos de Umbanda nao seo eñea-
zes senSo pela sugestSo que podem gerar ñas pessoas que falsamente Ihes
dáo crédito.

"O demonio anda soltó por al!" Esta frase, freqüentemente repeti
da entre nos, supoe urna problemática que vamos expor, trabando, a se
guir, algumas linhas de pensamento que a elucidem.

1. O problema

Os fiéis cristáos sempre acreditaran!, e com plena razio, na existen


cia e na acüo dos anjos maus ou demonios. O próprio Evangelho repeti-

502
O DEMONIO HOJE 23

damente alude a tais criaturas: assim por ocasiáo da tentacáo de Jesús


(cf. Le 4,1 -13), por ocasiao dos numerosos exorcismos praticados pelo
Senhor (cf. Me 1,23-28.34; 3,10-12; 5,1 •20...) como também no momento
da Paixao de Cristo (cf. Jo 13,2.27; Le 22,3; Jo 8,44). A obra da Redencáo
é concebida pelo autores do Novo Testamento como o grande embate
entre Cristo e o "principe deste mundo", que finalmente foi vencido pelo
Senhor Jesús (cf. Jo 16,11; 12,31; 1Cor 2,8; Ap 12,4.17; 13,2).

Todavía nos últimos tempos os cristáos se mostram propensos a


admitir uma acia cada vez mais acirrada do demonio contra os homens,
atribuindo ao Maligno todo e qualquer mal que aconteca tanto no plano
moral como no físico; especialmente as doencas nervosas, com o que
elas tém de dramático, sao tidas como efeito direto dos espíritus maus.
Fala-se entáo freqüentemente de "possessao diabólica" e multiplicam-se
os pedidos de exorcismo a sacerdotes e leigos que o queiram aplicar.

A grande preocupado com o demonio parece, em parte, estimula


da pela presenca dos cultos afro-brasileiros (Umbanda, Macumba, Can-
domblé...), que costumam atribuir as desgracas á intervencio de espfritos
superiores e propóem ritos, chas e banhos como solucao para tais male
ficios. As "Casas da Béncüo", que se multiplicam ñas periferias das cida-
des, sao, por vezes, dirigidas por "pastores" que oassaram pelos cultos
afro-brasileiros e de lá se converteram ao Evangelho..., Evangelho, po-
rém, entendido segundo categorías da Umbanda: oferecem suas "bén-
cáos" em tres sessóes diarias (de manhá, de tarde e a noitinha) ou em
grandes concentraedes dominicais, com a "garantía" de curas e milagres
para pessoas doentes, lares divididos, profissionais mal sucedidos, gente
perseguida, assaltada, etc. De vez em quando nota-se que até mesmo.
fiéis católicos explícita ou implicitamente acreditam na eficacia de "des
pachos" e "trabalhos" da Umbanda, atribuindo os efeitos destes ao de
monio. Assim a demonologia toma vulto crescente em certos setores do
Cristianismo, mas nem sempre de maneira auténtica: crencas espurias
e fantasía imaginosa se combinam entre si para agravar o problema.

Diante desse quadro de táo forte colorido, há também católicos - e


há muitos nao católicos - que negam a existencia do demñnio, julgando
que é uma figura mitológica ou a personificacao dos instintos maus que
movem o homem e agitam o mundo.

Uma vez exposto o problema, procuremos refletir sobre o mesmo,


fixando alguns pontos cardeais derivados da germina fé.

503
24 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

2. Que dizer?

2.1. Demonio: existencia e acao

Antes do mais, a fé afirma a existencia dos anjos: sao espfritos sem


corpo, dotados de grande perspicacia intelectual (pois sao independentes
da corporeidade para conhecer intelectualmente). Submetidos a urna
prova (pois "Deus, que te críou sem ti, nao te salva sem ti", como diz S.
Agostinho), alguns se mantiveram fiéis a Deus, e foram, conseqüente-
mente, confirmados na graca; sao os anjos bons, servidores de Deus e
cooperadores na salvacao dos homens. Outros anjos, inflamados por so-
berba, se rebelaram contra Deus e se fecharam no mal; sao os anjos
maus, também chamados "demonios" e "diabos" (dos quais Sata, o Ad
versario, é um representante qualificado). A estes Deus concede exercer
um papel na historia dos homens; permite, sim, que tentem as criaturas
humanas a fim de Ihes acrisolar e corroborar a fidelidade a Deus.

A existencia dos demonios, assim entendida, é de fé. A S. Escritura


e a Tradicáo a atestam, como pudemos notar pouco atrás. Foi definida
pelo Concilio IV do Latrao ern 1215 e reafirmada por Concilios subse-
qüentes até o do Vaticano II (1962-19651.1 gste nos diz:

"Murtas vezes os homens, engañados pelo Maligno, se desvanece-


ram em seus pensamentos e mudaram a verdade de Deus em mentira,
servindo á criatura mais que ao Criador (cf. Rm 1,21.25)" (Const. Lu
men Gentíum n-16).

"Cristo derraba o imperio do diabo e afasta a multiforme malicia


do pecado" (Decreto Ad Gentes n- 9).

"Cristo arrancou-nos da servidáo do diabo e do pecado" (Const.


Gaudium et Spes n* 22).

Como se vé, as afirmacóes da Escritura e da Igreja estáo longe de


representar o diabo como um monstro chifrudo, de tridente na máo, a

'Para reanimar a existencia e a acio dos anjos maus, a Congregagáo pa


ra a Doutrina da Fé pediu a um de seus peritos estudasse o assunlo. Donde
resuttou üm longo artigo publicado em "L'Osservatore Romano" (ed. francesa)
de 4/7/1975; este artigo, que transmite fielmente a doutrina da Igreja, mostra
minuciosamente os fundamentos da evenga na existencia do demonio como
criatura espiritual e inteligente, a quem Deus permite acrisolar a virtude dos
homens. - Urna sfntese de tal artigo encontrase em PR 191/1975, pp.
490490

504
O DEMONIO HOJE 25

atormentar física ou moralmente os homens, como o apresentam a fan-


tasia e toda urna literatura popular.

A realidade do demonio é espiritual e a sua acáo se desenvolve no


plano espiritual. Isto quer dizer: a influencia do Maligno se exerce espe
cialmente sobre a inteligencia e a vontade do homem, tendo como obje
tivo dirigir a inteligencia para o erro e a mentira (cf. Jo 8,44) e orientar a
vontade para o mal, a rebeldía contra Deus e as leis da Moral. Sen/indo-
se da inclinacáo do homem para o mal desencadeada pelo pecado origi
nal, o demonio constrói o reino da mentira e da iniqüidade, em que ele
procura envolver o género humano. Esse reino é algo de sorrateiro e dis
simulado, que transparece em certos acontecimentos da historia de um
individuo ou do género humano. Eis algumas de suas manifestacóes
mais senslveis: o odio contra Deus e a Igreja, a apresentacáo de Deus,
como inimigo do homem e da felicidade deste,1 a perseguido aos bons,
o triunfo da mentira e do erro sobre a verdade e o bem (a virtude é apre-
sentada como prejufzo ¡ndesejáve!, ao passo que o pecado é tido como
beneficio e lucro), o desejo de perverter os inocentes (cuja inocencia in
comoda), certas formas de crueldade táo inteligente e requintada que
freqüentemente sao ditas "diabólicas"... Sao estes alguns sinais da acáo
do Maligno neste mundo, mesmo quando em tais fatos há urna parte de
responsabilidade e culpa dos homens. Em suma, o que o demonio quer é
impedir a expansáo do Reino de Deüs, utilizando para tanto as paixóes e
as fraquezas dos homens, até mesmo dos homens da Igreja.

O demonio nao está interessado diretamente em doencas corpó


reas ou psíquicas, nem em acidentes ou fracassos na vida dos homens. É
o mal moral (a recusa de Deus), e nao o mal físico, que I he importa.2 Os
cultos afro-brasileiros, ao contrario, dizem que os "Espfritos Superiores"
trabalham para causar desgracas físicas e psíquicas aos homens (neste e
em varios outros pontos tais entidades se distinguem dos anjos maus de
que fala a S. Escritura). Por isto nao se devem atribuir as molestias cor-
porais e psíquicas á a?3o do Maligno a nao ser que venham acompanha-
das de outros síntomas de ordem moral (graves blasfemias, revolta con-

1O S. Padre Joño Pauto II, na sua encíclica "Senhor e Ponte de Vida", as-
socia a acáo do demonio é mentira..., especialmente á mentira que aprésenla
Deus como rival do homem nos sistemas ateus totalitarios; cf. n's 37-38. Já o
filósofo alemáo Friederich Nietzsche ft 1900) prvclamava a morte de Deus
para que pudesse haver o Super-homem. Tais teses sao o eco da mentira
com que o Tentador conseguiu levar os primeiros homens é "morte do ho
mem"; cf. Gn 3,4s.

zMesmo em casos de doenca acompanhada de pecados 6 difícil discernir


as responsabilidades do pecador e o infíuxo do demonio.

505
26 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

tra Deus, odio a prática da virtude...). As doencas devem ser tratadas pela
medicina, a psiquiatría e a psicologia, acompanhadas das preces dos fiéis,
sem dúvida.

A Igreja admite a possessáo diabólica, ou seja, estados em que o


demonio age sobre o corpo e a alma de alguém para desfigurar física e
psíquicamente essa pessoa. Os indicios de possessio diabólica eram ou-
trora: falar ou compreender llnguas estranhas, manifestar coisas ocultas
ou distantes, aplicar torcas que ultrapassem as possibilidades ou a natu-
reza do homem... Hoje em dia, verifica-se que tais síntomas podem ter
causas meramente naturais (psicológicas ou parapsicológicas), de modo
que os indicios de possessáo diabólica sao considerados principalmente
no plano religioso (aversao violenta e requintada a Deus e aos valores
sagrados...).1 Nao sabemos dizer quais as causas da possessáo diabólica:
Deus a permite em seus insondáveis designios; os doutores ensinam que
ela nSo supóe necessariamente que a pessoa possessa tenha cometido
graves pecados.- Detenhamo-nos um pouco sobre tal fenómeno.

2.2. A possessáo diabólica

Nos casos - bem examinados e peneirados - de provável posses


sáo, a Igreja aplica o exorcismo, seguindo nisto o exemplo do Senhor Je
sús. - Distinguem-se dois tipos de exorcismo: o público e solene, e o
exorcismo simples particular.

a) O exorcismo público e solene consiste em preces, acompanha


das de jejum e penitencia, que pedem a Deus o afastamento de Satanás;
compreende também fórmulas de conjuramento ao Maligno para que
deixe a criatura possessa (ver Ritual Romano, titulo XII). Tal rito só pode
ser aplicado por um sacerdote que para tanto tenha recebido especial
autorizacáo do seu Bispo. Eis o que a propósito reza o canon 1172 do Có
digo de Direito Canónico promulgado em 1983:

"S 1. Ninguóm pode legítimamente fazer exorcismos em posses-


sos a nao ser que tenha obtido licenca especial e expressa do Ordinario
Local.

§ 2. Essa licenca seja concedida pelo Ordinario local somonte a sa


cerdote que se distinga pela piedade, ciencia, prudencia e integrídade
de vida".

1Notemos, alias, que nem toda revotta contra Deus deve necessariamente
ser Sda como prova de possessáo diabólica.

506
O DEMONIO HOJE 27

Como se vé, a Igreja admite a possibilidade da possessáo diabólica;


apenas regulamenta a prática do exorcismo, insistindo em que se obser-
vem fielmente as normas deste canon. Ver a Instrucáo da Congregado
para a Doutrina da Fé publicada em PR 285/1986, pp. 91 -93.

O exorcismo público é um sacramental, isto é, um rito instituido


pela Igreja para significar e produzir efeitos espirituais..., rito cuja eficária
depende das disposicóes do exorcista e principalmente da oracüo da
Igreja, que junto a Deus tem sempre grande valor de intercessao.

b) Além do exorcismo solene e público, existe o simples, que con


siste em oracóes ao Senhor para que afugente o espirito maligno. Este
pode ser praticado pelos fiéis sem especial autorizacao, mas nao é lícito
dramatizar tal prece, invocando diretamente o demonio para que saia e
procurando conhecer a identidade do mesmo ("qual o teu nome?"). N3o
raro essa dramatizado degenera em fenómenos psicológicos e psicopa-
tológicos que as pessoas erróneamente interpretam como expressóes da
acáo do demonio. Numa época como a nossa, em que há urna predispo-
sicáo ao medo e á angustia, a Igreja quer evitar que essa tendencia seja
catalisada por ritos que fácilmente podem ser levados é teatralidade.

No rito do Batismo, há urna oracio que antigamente se chamava


"exorcismo". Tal prece nao supóe que a crianca ou o adulto seja posses-
so do demonio no sentido atrás indicado, mas apenas significa que a pes-
soa portadora do pecado está sob o influxo do mal e ainda deve ser feita
participante da Redencáo realizada por Cristo.

3. E o caso de Turim?

Em 5 de fevereiro de 1986, o Sr. Cardeal-arcebispo de Turim, O.


Anastasio Ballestrero, nomeou seis sacerdotes para exercerem na sua dk>~
cese a funcáo de Exordstas, conforme o canon 1172; substituiram os dois
exorcistas anteriores que, por motivos de saúde e idade, tiveram que dei-
xar as suas funcdes. O Cardeal justificou a medida dizendo que "sdo cada
vez mais numerosas as pessoas que se voltam para a Igreja a fim de pedir
exorcismos... Quisemos, antes do mais, ir ao encontró das pessoas que,
em número sempre crescente, pedem ajuda porque se julgam possessas
do demonio. Isto nao significa que estejam realmente tais; na maioria
dos casos nao estáo possessas. Ademáis os novos exorcistas desenvol-
vem também outras exigentes tarefas pastorais; nao sao exorcistas de
tempo integral".

A imprensa explorou o fato publicando manchetes alarmistas: "Que


acontece em Turim, cidade satánica do coracáo preto?" (II Gk>r-

507
28 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

no, 18/086); "O demonio desfechou novo ataque; mas, para combaté-lo,
vém os exorcistas" (II Giomale, 16/02/86); "Turim: sete contra o diabo"
(Corriere della Sera, 16/02/86). Essa onda da imprensa era apta a ali
mentar urna lamentável psicose da opiniSo pública. Na verdade, o papel
dos exorcistas nomeados devia ser, na grande maioria dos casos, o de
ouvir as pessoas inquietas e, depois, tranqOilizá-las, afirmando-lhes que
nao sofrem de influxos diabólicos, mas, sim, da depressáo, da angustia e
da solidio que a vida ñas grandes cidades modernas costuma suscitar;
em tal caso, um médico ou um psicólogo é o melhor profissional a ser
consultado. Somente quando, em colaborado com psiquiatras, os sacer
dotes chegam á conclusSo de que se trata muito provavelmente de pos-
sessSo diabólica, podem proceder ao rito do exorcismo.

O engaño do público de Turim (e por que nao dizer?... do público


em geral, especialmente do Brasil) está em identificar com possessáo
diabólica as doencas psíquicas ou nervosas que afetam muita gente.

Ainda comentava o Cardeal Ballestrero: "Infelizmente é verdade


que o declfnio da fe, provocado por urna sociedade que tende sempre
mais a afastar-se de Deus, abre um vazio que inevitavelmente é preen-
chido por tantos substitutivos diversos". Com efeito; na falta de Deus e
do conhecimento lúcido da mensagem evangélica, falsas atitudes religio
sas surgem dentro do ser humano (que é naturalmente religioso), impe-
lindo-o a procurar no mundo dos demonios ou na astrologia, na quiro
mancia, na cartomancia, nos cultos mágicos e ñas bruxarías urna explica-
cao ou urna solucáo para os seus males físicos e psíquicos. O retorno a
Deus como nos foi revelado por Jesús Cristo na sua única Igreja contri
buirá para por fim a táo exuberantes e imoróorias manifestares do sen-
so místico de nossos contemporáneos.

Á guisa de complemento, notamos: os trabalhos e despachos de


Umbanda nSo "pegam", isto é, n3o t6m, por si mesmos, nenhuma efica
cia, pois nSo existem os espíritus superiores aos quais sao oferecidos.
Nem o demdnio (que nSo deve ser identificado com exus ou orixás) tem
interesse em atender a tais "despachos". Somente a sugestSo de quem
eré que eles sio eficazes, pode provocar acidentes no individuo sugestio
nado; sim, se urna pessoa sabe que estáo fazendo "trabalhos" contra ela
e acredita na "eficiencia" dessas artes, tal pessoa fácilmente se deixa
amedrantar e abater, predispondo-se assim a sofrer algum desastre no
decorrer do seu dia-a-d¡a; O mal dal resultante nao se deverá ao poder
dos ritos mágicos, mas únicamente as d¡sposic6es de ánimo da respecti
va vftima.

Possa a consciénda destas verdades esclarecer os fiéis cristSos e


aliviar a tensSo que sofrem no turbilhio de propostas religiosas que Ihes

508
O DEMONIO HOJE 29

ocorrem! 0 cristáo nao ignora que Ihe compete sustentar a luta contra o
mal ou o poder das trevas (cf. Ef 6,12), mas sabe que Cristo venceu o
príncipe deste mundo (cf. Jo 12,31) e deu sos seus discípulos o poder de
participar desta vitória. Quem vive fielmente a sua vocacáo crista, procu
rando decididamente afastar-se do pecado, guarde plena paz frente as
incursóes do "misterio da iniqüidade" (cf. 2Ts 2,7).
A propósito:
DE ROSA, GIUSBPPE, II diavolo: fantasfe e reaitá, em La Civiltá
Cattolica.nP 3258, 15/03/86, pp. 573-577.

Ministerios e Teología, por diversos autores. Serie "Teología em


Diálogo" n* 11. - Ed. Paulinas, Sao Paulo 1985,160 x 230mm, 92pp.
Este livro é urna coletánea de cinco teses elaboradas e defendidas
na Faculdade de Teología de Nossa Senhora da Assuncáo da Arquídioce-
se de S3o Paulo. Versam todas sobre o ministerio ou as funcóes dentro
da Igreja.
A primeira - "Os Ministerios ñas Epístolas Pastarais" (pp. 7-26) -
devida ao Pe. Jordino Marques, apregoa a reformulacao dos ministerios
na América Latina de nossos dias. A nova forma de Igreja neste conti
nente, segundo o autor, dará preferencia aos ministerios nao ordenados;
a organizado da Igreja será mais carismática e menos institucional, de
vendo as suas funcóes voltar-se principalmente para "a luta, a organiza
do do povo em prol dos seus direitos a melhores condicóes de vida" (p.
25); as comunidades eclesiais de base, cujo aparato institucional é míni
mo e cuja dinámica socio-política é acentuada, seriam o modelo do novo
tipo de Igreja.
A segunda tese é a da Ir. Zilda Fernandos Ribeiro, com o título "O
Papel da Mulher como Pessoa nos Ministerios" (pp. 27-57). Preconiza a
ordenacao sacerdotal de mulheres, apesar das sucessivas declarares da
Igreja a respeíto emanadas nos últimos anos. Julga que "todos estes atos
oficiáis dao a entender que as idéias tradidonais sSo muito resistentes, e
as contribuicóes críticas da teología sao aparentemente pouco eficazes"
(p.35).
Muito interessante é o trabalho da Ir. Judite Paulina Mayer intitula
do "O Conhecimento do Judaismo na Atual Catequese do Brasil" (pd.
58-71). Abre novos horizontes para o diálogo judaico-cristáo em termos
construtivos visando a desfazer preconceitos existentes entre os cristáos
a respeito dos judeus.
O quinto estudo ó o do Pe. John Brendan Callanan: "A Teología da
Libertacao: Enfoque Ético" (pp. 79-91). Defende "a opcao pelo Socialis
mo com o repudio da Ética tradicional católica em razáo da sua funcao
conservadora" (pp. 84 e 89).
Como se vé, a obra, em tres de seus artigos, segué orientacáo des
toante dos ensinamentos oficiáis da Igreja. A quarta tese é de autor pro
testante, cuja posicao se aproxima do catolicismo no tocante á interpreta-
cao da S. Escritura.
E.B.

509
Um fivra que revela

" Fatos e mitos sobre a


Virgen) María"?

Em símese: O Prot. Lulgi Lunaridefende a tese segundo a qualas con-


cepgfes do Catolicismo referentes a María estáo impregnadas de mitas deriva
dos dos povos gregos e orientáis do inicio da era crista. Em réplica pode-se
dizer que os cristSos eram muño tíosos da singularidade da mensagem evan
gélica a ponto de morrer martirizados para nao a mesclar com crencas do pa
ganismo; até 313 os discípulos de Cristo foram perseguidos porque nao que-
riam pactuar com as concepcóes do politeísmo e da mitología. Donde se vé
quBo pouco verossM é que tenham absorvido mitos pagaos ao elaboraren) a
figura de Maña. Ademáis o confronto dos textos do paganismo com os do
Cristianismo revela profundas diferencas ao conceberem a imagem da mulher
santa: nos mitos tratase da deusa-mSe, cuja primeira concretizacáo é a tena
sempre fecunda; no Cristianismo n§o há deusa-mSe, mas urna criatura que
Deus escolhe para dar a natureza humana ao Filho no misterio da Encama-
gSo; essa MSe é virgem porque seu Filho nao é mero homem, mas Deus feto
homem; ó, por conseguinte, de Deus que Mana recebe a sementé de suas
entranhas.

A tárela de comparar os arttgos do Credo com as concepcóes do paga


nismo já foi eruditamente realizada por Kart Prümm, que pos em relevo a radi
cal dlerenga existente entre poBtefsmo e monoteísmo.

0 Prof. Luigi Lunar!, da Universidade de Milao, publicou recente-


mente o livro "María de Nazaré", 258 páginas, sobre a Santa Máe de Je
sús, procurando reconstituir a autentica figura de María, que ele julga te-
nha sido aureolada com crencas míticas no decorrer dos séculos. Assim
aprésente María como pessoa simples e ignorante, iniciada apenas nos
afazeres domésticos decorrentes da vida conjugal. A mentalidade mitoló
gica dos amigos cristáos terá criado concepcóes fantasiosas em torno de
María: a sua virgindade antes do parto, no parto e após o parto; a sua As-
sunc§o aos céus após a morte... O autor acentúa fortemente o papel da
fantasía na formacao da imagem oficial de María SS. - Tais noticias se

S10
A VIRGEM MARÍA 31

encontrar» no jornal 0 GLOBO de 24/08/86, p. 36, em reportagem intitu


lada "Livro revela fatos e mitos sobre a Virgem María", da autoría de
Monica Falcone. - Ñas páginas seguintes serSo tecidos alguns comenta
rios á tese do Prof. Lunari.

1. O povo de Israel e a muiher

1. Visto por qualquer cronista, o povo de Israel antigo apresentava


muitos dos tratos típicos da civilizacSo de sua época. Entre outros, póde
se destacar, como observa o Prof. Lunari, a prepotencia do homem sobre
a muiher; esta era relegada aos trabalhos caselros, tida como incapaz de
estudar seriamente; cf. Flávio José, Contra Apio II24; b. Schabb. 33b. No
Templo havia um adro reservado para as mulheres; nSo.lhes era lícito
oferecer sacrificios no culto litúrgico. As mulheres estavam obrlgadas a
observar todos os preceitos negativos (proibicfies) da Lei de Moisés, nSo,
porérn, os preceitos positivos (deveres a cumprir), pojs se dizia que nao
tinham a necessária liberdade para fazé-lo, visto estarem sob a autorída-
de dos respectivos maridos. As mulheres nSo podiam servir de testemu-
nhas em tribunal... Ora María era filha desse povo; por conseguinte,
conforme Lunari, era pessoa de pouco relevo na historia.

A propósito, porém, deve-se levar em conta algo que o Prof. Lunari


nao considera em seu livro: Jesús dignificou a muiher de maneira sem
precedentes. Falou tongamente, por exemplo, com a Samaritana, que
nSo somente era muiher, mas partencia a um povo odiado pelos judeus
(Jo 4,1-26). Cristo assim contra ría va urna'norma dos rabinos do seu tem-
po: "NSo fales muito com urna muiher", nem mesmo com a esposa (Pir-
qeAb.1,5).

Jesús quis aprove'rtar todas as ocasides para incutir a igualdade do


homem e da muiher. Assim, por exemplo, aboliu os privilegios de que
gozava o marido no casamento judaico e afirmou a mesma obrigacáo de
fidelidade para ambos os conjugas:

'Todo aquele que se divorciar da própria muiher e se casar com


outra, cometeré adulterio em relapso á primeira. E, se a muiher se di
vorciar do marido e se casar com outro, cometeré adulterio" (Me
10.11s),

Mais: Jesús quis eximir a muiher das impurezas legáis, como mos-
tra o caso da muiher hemorrolssa (cf. Me 5,25-34). Defendeu a muiher
adúltera contra os seus acusadores, que abusavam do seu titulo de mas-
culinidade (cf. Jo 8,3-11). Infringlu os costumes que tendiam a afastar a
muiher do convivio social (cf. Jo 4,27): Jesús, falando com a Samaritana
á margem do poco ou em lugar público, podía mesmo estar escandali-

511
32 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

zando os seus discípulos. Os rabinos censuravam severamente os ho-


mens que se detinham em conversas com mulheres, e os ameacavam
com punicóes (cf. Pirqe Abboth 1.5).

Ñas parábolas, Jesús nao pds em primeiro plano homens apenas,


mas fez da muiher o símbolo freqüente de realidades transcendentais (de
acordó, alias, com toda a tradicáo bíblica, que fazia da muiher a esposa
de Javé): observe-se, por exemplo, que a vigilancia é incutida pela pará
bola dos servidores fiéis e também pela das virgens que aguardam o Es
poso {cf. Le 12,35-37; Mt 25,1-13). A perseveran?a na oracSo é recomen
dada de maneira muito mais eloqüente pela figura da viúVa que clama
corajosamente diante do julz cínico, do que pela imagem do amigo im
portuno (cf. Le 18,1-8; 11,5-8). Na parábola da dracma perdida, a muiher
representa o próprio Deus, que desoja a conversSo do pecador, ao lado
da parábola do pastor que encontra a sua ovelha (cf. Le 15,3-10). Donde
se vé que a muiher nao é menos capaz do que o homem de representar
Deus e seu plano de salvacSo.

Varías vezes Jesús reagiu contra o desprezo de que eram vltimas as


mulheres na sociedade judaica; demonstrou para com elas urna estima
sincera. Assim, por exemplo, fez o elogio da viúva que levava o seu óbulo
ao templo (Me 12/43), e chamou a atencSo dos discípulos para ela; tomou
a defesa de Maria de Betdnia, censurada pelos discípulos por haver ungi
do a cabeca de Jesús; o gesto dessa muiher sería divulgado no mundo
inteíro (cf. Me 14,9).

Nao se poderia citar em contrario nenhum episodio do Evangelho.


Jesús sempre rejeitou os preconceitos dos seus contemporáneos; nSo
hesitou em opor-se aqueles que queriam manter a muiher em situacáo
inferior, tencionando assim mudar a mentalidade e o comportamiento da
sociedade em que vivia.

Vé-se, pois, que nao se pode evocar o menosprezo da muiher em


Israel para afirmar que a figura feminina tinha de ser vilipendiada tam
bém no Cristianismo.

2. 0 Prof. Lunari tende a depreciar o povo de Israel antigo, atri-


buindo-lhe "¡mobilidade cultural"; assim é depreciada também a figura
da Maria. - Ora os estudiosos julgam que a historia de Israel aprésente
um fenómeno singular, digno de especial atenejto. Com efeito, embora
fosse inferior as demais nacfies em cultura profana (ciencia, técnica, po
der militar...), o povo judeu as ultrapassou no plano da religiSo; sim, a fé
de Israel era monoteísta (professava um só Deus Criador do mundo e do
homem, portento distinto destes), ao passo que os vizinhos de Israel -
mais poderosos e evoluídos em cultura humana - seguiam o politeísmo
A VIRGEM MARÍA 33

com sua mitología e seus (dolos (o que revela um estágio de pensamento


filosófico-religioso muito mais atrasado do que o de Israel). O fenómeno
do monoteísmo em Israel (grande apanágio deste povo inserido entre
populares pagas) nao se explica por fatores meramente naturais; com
efeito, Israel por si tendía a adotar os deuses dos povos estrangeíros,
como notam freqüentemente os Profetas ícf. Jr 7,17-19; 44, 17-19; Ez
8,2-18...); por conseguirle, nao concebeu tal crenca por si mesmo nem a
aprendeu das nacóes que o cercavam. O monoteísmo hebreu nao tem
explicacáo sociológica, psicológica ou meramente natural; só pode re
sultar de uma ¡ntervencáo de Deus na historia, ¡ntervencáo que suscitou a
existencia de Israel e se tornou a forca propulsora do mesmo através das
vicissitudes da sua caminhada. Israel tinha consciéncia de que havia sido
chamado por Oeus para cumprir uma missao religiosa, que Ihe custava
muito caro, mas que era o grande tftulo de dignidade de Israel. É o que
lembravam os autores sagrados: "Tu és um povo consagrado a Javéteu
Deus..." (Dt 7,6); "por isto eu vos castigarei por todas as vossas faltas"
<Am3,2}.

O monoteísmo de Israel foi suscitado por Deus de maneira porten


tosa a fim de preparar a vínda do Messias; tal fenómeno, portante é um
aceno á Messianidade do Senhor Jesús. É de notar ainda que, mesmo
depois da vinda de Cristo, Israel, que cumpriu assim a sua missáo, nao se
dissolveu como os demais povos amigos (assfrios, babilonios, fenicios...),
embora tenha sofrido ¡nvasóes e desterro como eles; ao contrarío, Israel
se conserva através dos sáculos até hoje, mantendo sua plena vitalidade,
apesar das duras fases de sua existencia; ora ¡sto também é um desafio
as categorías da historiografía, segundo as quais Israel devia ter desapa
recido, pois, em 70 d.C. (tendo o Messias encerrado a sua vida pública), o
povo judeu foi expulso da sua patria e obrigado a viver disperso em meio
a outras nacóes. A subsistencia tenaz de Israel é outro portento histórico,
que supóe especial intervencSo de Deus na vida desse povo; a Providen
cia conserva Israel incólume para que possa um dia assumir seu lugar no
Reino do Messias, como diz o Apostólo Sao Paulo (cf. Rm 9-11).

Vé-se, pois, que o povo de Israel - mesmo que o consideremos


táo-somente com os olhos da razio e das ciencias humanas - nao é um
povo obscuro e ignorante; nem outrora foi tal; nem hoje o é. - Este fator
deveria ter sido levado em consideracáo pelo Prof. Lunari ao analisar o
contexto histórico da vida de María SS.; tem importancia decisiva para o
estudo do mestre mílanés.

2. A virgindade de María

Segundo o Prof. Lunari, a maternídade virginal de María tem sabor


mitológico. - Tal afirmacáo é gratuita; alias, nao é a primeira vez que um

513
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

escritor moderno a faz; já J.J. Bachofen, F. Heiler, A. Dieterich, Ch. Pi


ca rd, E. Meyer e outros, no século passado e no presente, quiseram deri
var a crenca católica na virgindade maternal de María a partir de dados
da mitologia da Grecia, do Egito ou do Próximo Oriente. Parece que os
inspirava o racionalismo com seus preconceitos,1 muito mais do que a e-
vidéncia dos documentos. Com efeito; eis o que se pode depreender de
urna análise dos textos da cultura nao crista antiga com relacio ao tema
da maternidade virginal.

2.1. A mitologia e a deusa-mSe

Era freqüente na antigúidade, desde a idade da pedra, cultuar-se a


Terra-Máe como deusa; este culto tinha sua origem ñas zonas rurais, on
de os homens reconheciam a fecundidade da térra, que, mediante os
produtos vegetáis, Ihes garantía a vida. No contexto das populacóes agrí
colas primitivas a mulher tinha fungáo importante, chegando a exercero
matriarcado.^
O conceito de "deusa-máe" foi-se transmitindo a povos posterio
res. Assumiu.modalidades diversas: assim na Asia Menor, desde o se
gundo milenio antes de Cristo. Assim também ñas ilhas do Mar Egeu,
especialmente na de Creta (Grecia) e na Grecia continental, onde a deusa
tomou o nome de Demeter (meter = máe em grego; de seria a deforma-
cao de ge = térra, em grego); julgava-se que Demeter emergía do solo e
estava presente em mitos que também envolviam a vegetacáo. Na mito-
logia grega a deusa-máe tomou também o nome de Rhea e veio a ser a
máe do deus supremo Júpiter. Os gregos conheciam outrossim a deusa
Aitemts ou Diana, que presidia é fecundidade dos homens e dos animáis,
mas á qual atribuiam a característica da virgindade (as duas notas da fe
cundidade e virgindade tornavam misteriosa a figura de Artemis); Arte-
mis ou Diana tinha um grande santuario em Éfeso (Asia Menor), santua
rio considerado outrora como urna das sete marávil has do mundo. Havia
também no Panteón grego a deusa-mie Afrodita (chamada Venus pelos
romanos), deusa desnuda, sensual, capaz de despertar ciúme entre as
outras deusas.

Em Roma, Cartago, na Gália e na Germánia (regióos do Imperio


Romano), havia também modalidades de deusa-máe. Eram figuras fan-

1O preconceito básico do racionalismo consiste em afirmar que toda


proposigño que ultrapasse os limites de compreensáo da razáo, é fíctfcia ou
mitológica. Tal preconceito é sustentado como se fosse um auténtico dogma.
2O matriarcado oconia ñas populacóes sedentarias agrícolas, ao passo
que o patriarcado era exercido ñas populacóes de capadores; a vida de caga,
itinerante, era a aníñese da vida agrícola sedentaria e mais convinha aos ho
mens do que ás mulheres.

514
A V1RGEM MARÍA 35

tasiosas, que podiam simbolizar tanto a ternura das relances entre máe e
filho quanto a paixáo (ás vezes, agressiva) das relacóes entre homem e
mulher. O respectivo culto chegava aos ritos da magia, que sao urna
tentativa presuncosa de forcar a divindade a fazer o que o homem quer.

Passemos agora ao exame do conceito cristáo de Virqem-Máe.

2.2. A Virgem-MSe no Cristianismo

1. Os cristáos tiveram sua origem própria dentro do contexto do


mundo politeísta do Imperio Romano; traziam urna mensagem essen-
cialmente diversa da das regióes pagas, pois eram estritamente mono
teístas, dando continuidade á tradicáo judaica. A consciéncia da singula-
ridade e da novidade do Evangelho era tal entre os cristáos que morriam,
de preferencia a renegá-la. Desde 64 (Ñero) até 313 (Constantino) os dis
cípulos de Cristo foram perseguidos por causa de sua fé, que nao se con-
ciliava com a religiáo do Imperio Romano. - Este fato evidencia que nao
estavam dispostos a assumir teses do paganismo; nao Ihes passaria pela
mente adotar interpretares pagas da sua fé ou aceitar urna das figuras
mitológicas de Virgem-máe orofessadas pela religiáo politeísta; davam a
vida precisamente porque nao queriam pactuar com a mentalidade paga.

2. A crenca crista na virgindade de María, longe de ter sua inspira-


cao nos mitos do paganismo, foi preparada pela própria tradicáo bíblica.
Com efeito; é de notar que o texto dé Is 7,14 reza em hebraico: "Eis que a
jovem (= almah) conceberá e dará á luz um filho e Ihe dará b nome de
Emanuel". A palavra hebraica almah significa "mulher jovem", sem ex-
plicitar se casada ou nao. Todavía, quando os judeus entre 250 e 100 a.C.
traduziram este texto para o grego, na chamada versao "dos LXX", ver-
teram almah por parírtenos, virgem, dando assim mais precisáo ao vocá-
bulo hebraico: "Eis que urna virgem conceberá...". A explicitacáo de al
mah por virgem correspondía ao modo de pensar da tradicáo judaica; era
também sugerida pelo próprio texto hebraico, pois este afirma que a
mulher, e nao o homem (o pai), daria o nome á enanca (o que contrariava
as normas da vida familiar semita, segundo as quais o pai designava o
nome do filho; ver o caso de Zacarías, pai de Joáo Batista, em Le
1,59-63).

3. Os evangelistas, escrevendo decenios a pos a Ascensáo do Se-


nhor, nao fizeram senáo consignar nos seus escritos o teor da pregacáo
oral dos Apostólos: Mateus, em 1,23, cita o texto de Is 7,14 segundo os
LXX para ilustrar urna cena que propoe a conceicáo virginal de María (Mt
1,18-22); e Lucas nos capítulos 1 -2 do seu Evangelho leva a entender que
Maña concebeu virginalmente (cf. principalmente 1,26-38; 2,7).
4. Os escritores cristáos deram continuidade ao teor dos Evange-
Ihos. Assim, por exemplo, S. Inácio de Antioquia (f 110) escrevia noco-

515
36 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

meco do século II aos Efésios, lembrando-lhes que Cristo esteve no seio


virginal de María e afirmando que tres fatos "escaparam ao conheci-
mento do principe deste mundo: a virgindade de María, o seu parto e a
morte do Senhor - tres misterios clamorosos, cumpridos no silencio de
Oeus" (Aos Efésios 19,1). S. Inácio quería afirmar a realidade da Encarna
do do Filho de Deus; por isto pos em relevo a pessoa de María, mié da
natureza humana assumida pelo Filho de Deus: Jesús nasceu "de María e
de Oeus" (Aos Efésios 7,2; aos Tralianos 9; aos Esmirnenses 1,1).

S. Justino (t 165), cerca de cinqüenta anos mais tarde, desenvolveu


homogéneamente o patrimonio da fé. Chama María a Virgem (he par-
thénos; Diálogo com TrifSo 87,2; 100,5). Estabelece o paralelismo Eva-
María (já insinuado em Jo 2,4; 19,26); esta resgata aquela, reparando a
desobediencia da primeira mulher; com efeito, diz Justino, Eva, ainda
virgem, concebeu a palavra da serpente e gerou desobediencia e morte;
María, ao contrario, concebeu a palavra de Deus, e gerou a vida (Diálogo
100,4-6).

S. lreneu(t cerca de 202), bispo de Liáo (Gália), retomou tais


idéias. Segundo este mestre, o plano da salvacáo percorre as mesmas
etapas que a queda do homem; por conseguinte, afirma os paralelismos
Adáo-Jesus Cristo e Eva-María: o primeiro Adáo foi formado de térra
virgem (ainda nSo sulcada ou lavrada pelo homem); assim também Jesús
devia nascer de urna virgem (III 21,10). Eva, quando ainda virgem, deso-
bedeceu a Deus e deu origem a rufna do género humano; María, já noiva,
mas ainda virgem, foi pela sua obediencia causa de salvacáo para si
mesma e para todo o género humano. A desobediencia de Eva foi um nó
dado no curso das retacees entre Deus e os homens; a obediencia de
María desatou esse nó, contribuindo para restabelecer o fluxo da graca
de Deus aos homens (Contra as Heresias III 22,4). Por isto S. Ireneu cha
ma María "a advogada de Eva" (ib. V 19,1).

Neste contexto háo é nossa intencáo enfatizar os pormenores das


aflrmacóes de S. Justino e S. Ireneu, mas o que importa é verificar que,
em continuidade ¡ninterrupta com a pregacáo dos Apostólos (e com a
tradicao judaica documentada em Is 7,14 [LXX]), os escritores cristáos
foram afirmando, a seu modo, a maternidade virginal de María. Esta,
portante nao é um elemento importado de fora ou da mitología paga,
mas procede da genuína fonte da Biblia e da tradícáo ¡udeo-crista".

5. A razáo teológica para que a fé crista professe a maternidade vir


ginal de María, vem a ser o fato de que Jesús nao é apenas homem, mas
é Deus e homem. Como Deus, é Filho do Pai desde toda a eternídade
("Deus de Deus, luz de luz, gerado, nao feito, consubstancial ao Pai");
como homem, é Filho de María, que recebeu do Pai Eterno o Filho ao

516
AVIRGEMMARIA 37

qual ela haveria de dar a natureza humana; se Jesús fosse mero homem,
María teria sido fecundada por um varáo; mas, sendo Deus e homem, foi
do próprio Deus que María concebeu. Tal é a razio própria em virtude da
qual o Cristianismo professa a matemidade virginal de Maria.

6. É de notar ainda que os mitos pagaos professavam a figura da


deusa-mSe, que também podía ser virgem; a mié ou a virgem-mSe do
culto pagSo era sempre urna deusa. - Ora no Cristianismo nunca María
SS. foi tida como deusa; esta concepcao sería blasfema. A fé crista se ca
racteriza por rigoroso monoteísmo. A diferenca entre monoteísmo e po
liteísmo nSo é meramente acidental, mas essertcial ou fundamental. Caso
o monoteísmo e o politeísmo venham a apresentar alguma semelhanca
entre si, esta será secundaria; será inspirada pelo fato de que em todos os
homens existe um senso religioso natural, que se exprime mediante sím
bolos, gestos ou afirmacñes espontaneas; estas nao sSo nem cristas nem
pagas, mas anteriores a qualquer Credo, porque derivadas do fundo do
psiquismo humano. Por conseguinte, quando algum observador mostra
pontos de contato entre o Cristianismo e o paganismo, nao os atríbua fá
cilmente a empréstímos mutuos, mas pense antes nesta fonte comum
a todas as correntes religiosas, que é a rellgiosidade natural com seus ar
quetipos espontáneos.

Analisemos ainda um aspecto especial da temática:

2.3. Vlrgindade antes do parto, no parto, após o parto

A fé católica professa desde época antiga a vírgindade perpetua de


Maria: é a aeiparthenos, a sempre Virgem, como diziam os escritores
gregos. Tal verdade de fé foi sendo aos poucos meditada e formulada
pelos escritores da Igreja, que assim prépárarariyo caminho para a defi-
nicao do Concilio (regional) do LatrSo realizado em 649, sob a presidencia
do Papa S. Martinho t; tal assémbléía contoii com a participacScrde 105
bispos e teve repercussSo em toda a Igréja. Els.o seii canon 3?:

"Quem nao confessar com os Santos Padres que a Santa e sem


pre Virgem Imaeulada María 6, em sentido próprio e vértfadeiro, fiflSe
de Deus ITheotókos), pois, nos últimos tempos, sem participacSo de va
ráo isine semina) e por obra do Espirito Santo concebeu realmente o
Verbo Divino gerado pelo Pal desde toda a etemldade, e O deu á luz
sem comipcio, permanecendo inviolada a sua virglndsde mesmo depois
do parto, seja excomungado" (Denzinger-Sch6nmetzer, Enchiridion n*
503 [256]).

O Papa Paulo IV em 1555 formulou de maneira explícita e categóri


ca "a virgindade de María antes do parto, no parto e após o parto" (¡bd.
ns 1880 (993)).

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38 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

A virgindade de María antes do parto é aceita com certa unanimi-


dade pelos cristSos mesmo protestantes: María concebeu sem o concurso
de varáo.

A virgindade após o parto é geralmente negada pelos protestantes,


que se apoiam, para tanto, na expressáo "irmüos de Jesús" ocorrente
nos Evangelhos. Tal assunto já foi amplamente abordado em PR
180/1974, pp. 481-492, onde se demonstra que a palavra adelphós do
texto grego dos Evangelhos corresponde ao vocábulo hebraico 'ah, que
significa "párente ou familiar" em sentido ampio. Tal vocábulo do Evan-
gelho, portanto, há de ser interpretado á luz da linguagem semita e no
sentido da Tradicio oral, que afirma que María nao teve outros filhos
além de Jesús. A propósito ver: Estéváo Bettencourt O.S.B., "Diálogo
Ecuménico" Ed. Lumen Christi, Rio de Janeiro (RJ) e "Conversando so
bre quinze questoes de fé", Ed. Santuario, Aparecida (SP).

Quanto d virgindade no parto, era ponto pacifico na Tradifáo crista


até 1SS2. A partir desta data comecou a ser contestada: María teria dado á
luz seu Divino Filho num parto comum e doloroso, como as demais mu-
Iheres de seu tempo, e com perda de sua virgindade corporal. O Concilio
do Vaticano II n§o aceitou tal sentenca, mas repetiu a clássíca doutrina,
segundo a qual Jesús Cristo "nao violou, mas sagrou a integridade virgi
nal de María" (cf. Constituido Lumen Gentiiim, n9 57); assim foi mantida
com fidelidade a TradícSo da Igreja expressa em textos de Concilios e
Papas como também na literatura antiga e na Liturgia de Natal.

O parto virginal de María é, sem dúvida, um acontecimento por


tentoso. Alguns biólogos e médicos católicos tentaram, há decenios,
dar-lhe minuciosa explicacáo científica; as suas teorías, porém, foram
tidas como inconvenientes por parte da Santa Sé. Seja o fato respeitado
como urna das muitas obras maravilhosas que o Senhor faz, sem que as
procuremos racionalmente explicar. Ao nascer virginalmente, Jesús de
certo modo anteclpava o que fazia depois de ressuscitado, quando atra-
vessava as portas do Cenáculo fechadas. O nascimento virginal de Jesús
prenuncia a sua ressurreicáo, que é o seu segundo nascimento; é notorio,
sim, que Deus costuma antecipar os grandes acontecimentos da historia
da salvacjo mediante ecos previos que estao em plena harmonia com os
futuros eventos (cf. Is 46,10: "desde o principio anunciei o futuro; desde a
antigúidade, aquilo que ainda n§o acontecerá").

De resto, o prólogo do Evangelho segundo S. JoSo apresenta urna


passagem muito significativa. Segundo bons exegetas. Jo 1,12s deveser
lido assim: "A todos os que O receberam, deu o poder de se tornarem
filhos de Deus, aos que créem em seu nome. Ele, que nao foi gerado nem
do sangue nem de urna vontade da carne, nem de urna vontade do ho-
mem, mas de Deus". Manuscritos antigos e fidedignos justificam tal lei-

318
A VIRGEM MARÍA 39

tura, na qual há urna alusao á geracáo eterna do Filho no seio do Pai e


também urna referencia ao nascimento virginal de Jesús. Cf. "Biblia de
Jerusalém" em nova edicáo revista, 1985.

A guisa de complemento, vai abaixo transcrito o texto do apócrifo


"Proto-evangelho de Hago", que data do sáculo II e que atesta a anti-
güidade da crenca dos cristáos no nascimento virginal de Jesús; eviden
cia-se assim, mais urna vez, que tal crenca é genufna na Tradicáo crista,
pois se liga diretamente á pregacáo dos Apostólos:

Para cumprir a ordem de recenseamento baixada pelo Imperador


Cesar Augusto, José p6s*se a caminho de Belém, levando consigo* Ma
ría sendada sobre o tombo de um jumento. "Quando estavam á distancia
de tres milhas de Belém, José se virou para María e a viu triste; disse
entao consigo mesmo: 'Eis que a gravidez me deve estar causando do
res'. Todavía, virando-se de novo para ela pouco depois, viu-a sorriden-
te e Ihe disse: 'María, que 4 que te está acontecendo, pois ora te vejo
sorridente, ora triste?' Respondeu-lhe ela: 'É que tenho dois povos ante
os olhos: um que chora e se aflige, e outro que se alegra e regozija'.

E, ao chegar á metade do caminho, disse María a José: Taze-me


descer, porque o fruto de minhas entranhas está lutando para vir á luz'.
Ele ajudou-a a descer do jumento, dizendo-lhe: 'Aonde poderia eu le
var-te para resguardar o teu pudor? Pois estamos na estrada aberta'.

Encontrando urna gruta, intraduziu nela María e, tendo deixado


com ela seus filhos,1 foi procurar urna parteira hebréía na regiao de
Belém.

E eu, José, pus-me a andar, mas nio conseguía avancan e, ao ele


var os olhos para o alto, pareceu-me que a atmosfera estremecía de
surpresa; e, quando fixei a vista no firmamento, vi que estava parado e
os pássaros do céu imóvels; ao volver os olhos para a térra, vi urna va-
silha no chao e uns trabajadores parados na atftude de quem está co-
mendo, com as míos na vasilha. Todavía os que parecíam estar masti-
gando, na ventada nfio estavam mastigando; e os que pareciam em ati-
tude de tomar alimento, na verdade nio estavam tomando comida do
prato; e aqueles que pareciam introduzlr comida na boca, nio o faziam,
pois todos tinham as faces voKadas para o alto. Também havia urnas
ovelhas que iam sendo conduzidas, mas nio davam um passo; o pastor
levantou a direfta para percutí-las com o cajado, mas ficou com o braco
estendido para cima no ar. E. ao dirigir os olhos para o rio, vi como uns
cabritinhos punham nele os focinhos, mas nio bebiam. Numa palavra,
todas as coisas estavam simultáneamente fora do seu curso normal.

1O Protoevangelho de Vago atribuí a José filhos de um anterior matrimonio.


(N. d. T.)

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40 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

Entáo disse-me uma muiher que désela da montanha: 'Aonde


vais?' RespondMhe: 'Estou procurando uma partelra hebréia'. Ela re-
plicou: 'És filho de Israel?' Respondí: 'Siml' Acrescentou ela: 'E quem é
que esta dando á luz na gruta?' Disse eu: 'É minha noiva'. Ao que ela
respondeu: 'Entáo nao é a tua muiher?' Respondí: 'É María, a que foi
educada no Templo do Senhor e que a sorte me deu por muiher, mas
nao é minha consorte; ela concebeu por virtude do Espirito Santo'. In-
terrogou a partelra: 'É isto verdade?' José respondeu: 'Vem e verás'.
Entáo a parteira pfts-se a caminho com ela.

Ao chegarem ao lugar da gruta, pararam; esta se achava envolta


etn nuvem luminosa. Exdamou a parteira: 'Minha alma foi hoja engran
decida, pois meus olhos viram coisas incriveis, |á que nasceu a salvacio
para Israel*. De repente, a nuvem comecou a retirar-se da gruta e den
tro desta brllhou uma luz tao forte que nossos olhos nao Ihe podiam
resistir. Comecou finalmente a atenuar-se de modo que apareceu o me
nino a sugar o seio de sua mié María. A parteira entáo deu um grito
dizendo: 'Grande 6 para mim o dia de hoje, já que pude ver com meus
próprios olhos um novo milagro'.

E, quando a parteira saiu da gruta, encontrou Salomé e exclamou:


'Salomé, Salomé, tenho que contar-te uma maravilha nunca vista: uma
virgem deu ¿ luz, o que nao acontece naturalmente, como sabes'. Sa
lomé, porém, respondeu: 'Pela vida do Senhor meu Deus, nao acredita
re! nlsso se nSo me for dado introduzir o dedo e examinar a natureza'.

Tendo entrado a parteira, disse a María: 'Prepara-te porque há


entre nos duas uma grande ahercacao a teu respeito'. Entáo Salomé in-
troduziu o dedo na natureza, mas de repente soltou um grito dizendo:
'Ai de mim! Minha maldade e minha incredulidade sfio culpadas! Por
que tentei o Deus vivo, desprende-se do meu corpo a minha máo car
bonizada'. .

E dobrou os joelhos diante do Senhor dizendo: 'O Deus de nossos


pats, |embra-te do mim, pois squ descendente de Abraáo, da Isaque e
de Jaco; nSo facas de mim um motivo de escarnio para os filhos de Is
rael; antes restltuí-me aos pobres, pois sabes, Senhor, que em teu no
mo é que eu fazia as minhas curas, recebando de TI o meu salario'.

Apareceu um anjo do céu dlzendo-lhe: 'Salomé, Salomé, o Senhor


te ouviu. Aproxima tuas mios do menino, toma-o, e haverá para ti ale
gría e gozo*.

Aproximou-se Salomé e o tomou nos bracos, dizendo: 'Hei de


adora-lo, porque nasceu para ser o grande Rei de Israel'. De repente
sentiu-se curada e saiu da gruta em paz. EntSo ouviu uma voz que di-

520
A VIRGEM MARÍA 41

zia: 'Salomé, Salomé, nao contes as maravilhas que viste enquanto o


Menino nao estiver em Jerusalém'" (cap. XVI-XX).

Tal texto, de estilo popular e fantasioso, é valorizado pelos historia


dores nao como crónica jornalfstica, mas como testemunho antiqüfssimo
da crenca no parto virginal de María SS. Teve grande repercussáo na
historia do Cristianismo subseqüente; o pesquisador Tischendorf contou
cerca de cinqüenta copias do seu original grego; além do qué se sabe que
foi traduzido para o sirio, o armenio, o etfope, o copta, o árabe, o eslavo.

3. Conclusáo

Sao estas as ponderales que nos ocorre tecer a propósito do livro


do Prof. Luigi Lunari noticiado pela imprensa do Brasil com certo alarde.
Infelizmente é obra de alguém que se especializou em outra área do sa
ber (historia do teatro) e trabalhou apenas como amador na exegese da
S. Escritura: os preconceitos do autor impediram-no de ver com objetivi-
dade os fatos e perceber a singularidade da mensagem crista referente a
María SS., Virgem e M§e. - Alias, a tarefa de comparar as proposicóes de
fé do Cristianismo com os conceitos e os mitos do mundo pagáo antigo
já foi realizada com muita erudicáo pelo Pe. Karl Prümm S.J. na obra Der
christfiche Glaube und ole althetdntsche Welt. 2 vols., Leipzig 1935: o
autor mostra que, sob aparentes semelnaneas (milito exploradas pelos
historiadores das religióes), há mentalidades radicalmente diferentes,
como sao o politeísmo e o monoteísmo, e que as semelhancas se devem
muitas vezes b religiosidade natural, congénita em todos os homens.

Á guisa de bibliografía:

AUTRAN, ALEIXO MARÍA, A humilde Virgem Mana, Sao Paulo


1982.

BORJORGE SJ., HORACIO, A figura de María através dos Evan


gelistas. Sao Paulo 1977.

CEGALLA, JOSÉ MARÍA, A Mulher da Libertacáo. Ed. Santuario,


Aparecida 1984.

FOERSTER, WERNER, Neutestamentliche Zeitgeschichte. Ham-


burg1968.

SCHILLEBEECKX, EDWARD S., Maña, Mié da Redencao, PeMpo-


lis 1966.

PRÜMM, KARL, Der christliche Glaube und die aftheidnische Welt,


2 vols.

521
E o caso de Mié Menininha?

Religíoes Afro-Brasileíras e
Catolicismo

Em símese: O caso de Máe Menininha lalecida aos 13/08/86 suscitou


mais urna vez o problema das religiOes afro-brasiteiras e das suas relagóes
com o Catolicismo. Urna refíexáo serena a propósito tembra que

1) é preciso evitar toda expressSo que signifique sincretismo religioso


ou indevida iusSo de crencas. Especialmente no Brasil, onde é forte a propen-
sSo ao ecleScismo, as autoridades eclesiásticas háo de cuidar de preservar a
idenüdade do Evangelno e da té que se exprime na S. Luturgia;

2) é mister anunciar a Boa-Nova de Jesús Cristo em sua integridade


mesmo as pessoas que de boa fé professem mitología ou idolatría; nSo basta
promové-las no plano meramente humano (propiciando-Inés escolas, hospi-
tais, creches...);

3) a evangeüzacáo há de aproveitar todos os valores culturáis dos po-


vos nño europeus a Sm de que sirvam é gtoriticacáo de Deus na Liturgia. To
davía nem todos os ensaios de "acutturagáo" até hoje realizados toram bem
sucedidos. Da! a necessidade de submeté-los á autoridade da Santa Sé, que
avaSa a Sdelidade ou nao de tais expressóes ao conteúdo essencialda fé ca
tólica.

A morte da Máe-de-Santo "Máe Menininha" do Gantois ou Maria


Escolástica da Conceicáo Nazaré, falecida a 13/08/86, levantou mais urna
vez o problema das relacóes entre o Catolicismo e a Umbanda ou, mais
amplamente, as religióes afro-brasileirss. Com efeito, houve por essa
pessoa falecida Missa de 7« dia, celebrada na igreja de Nossa Senhora do
Rosario dos Pretos, no Pelourinho de Salvador, igreja construida no sé-
culo XVII por negros escravos. O Pe. Helio Rocha, celebrante, lembrou
que Máe Menininha era descendente de escravos e católica batizada na
velha catedral da Sé. Nessa Missa comungaram numerosos "máes e fi-
Ihos de santos", todos vestidos de branco.

522
RELIGIÓES AFRO-BRASILEIRAS 43

Os fatos chamaram a atencao do público, que indaga a respeito


desse tipo de "ecumenismo". É por isto que passamos a refletir sobre o
assunto ñas páginas seguintes.

REFLETINDO...

Proporemos a consideracáo de cinco pontos.

1) NSo apenas fbldore, mas religiáo—

A Umbanda e os cultos afro-brasileiros sao tidos por estudiosos


e turistas como arte popular ou folclórica, cujos rituais representam o
passado religioso no Brasil de nossos dias; nao se Ihes deve ría atribuir
significado religioso.

Todavia a Umbanda como tal e, em geral, os cultos afro-brasileiros


sao formas de religiáo e querem ser assim tratados pelos seus adeptos.
Professam crencas e praticam ritos dos africanos que vieram para o Bra
sil como escravos. A Umbanda formou-se a partir da Macumba após
1934, restaurando ou reestruturando atitudes religiosas de povos da Áfri
ca. Além dos elementos africanos, incorporaran! ao seu patrimonio reli
gioso tragos do esplritualismo kardecista e do Cristianismo.

2) Religiáo de índole especial

Os cultos afro-brasileiros tém suas características religiosas pecu


liares, pois se foram configurando e desenvolvendo em ambientes cris-
táos. Sofreram influencia do Catolicismo em seus ritos e crencas; assim,
por exemplo, os santos da Igreja sao identificados com entidades supe
riores das religióes africanas: lemanjá, com Nossa Senhora; lansa, com
Santa Bárbara; Xangó, com S. Jerónimo; Ibeji, com S. Cosme e S. Da-
miáo... NSo poucos dos mais fervorosos adeptos dos cultos afro-brasi
leiros foram batizados na Igreja Católica; outros foram também educados
no Catolicismo, de modo que, interrogados por ocasiáo dos recensea-
mentos, afirmatn ser católicos. Na verdade, muitos freqüentam os ter-
reiros apenas por razóes emotivas (para procurar a cura de urna doenca,
a solucáo de um caso difícil, um beneficio raro...); nao conhecem toda a
mitología desses cultos nem pretendem professá-la. - Isto significa que
há no Brasil muitas pessoas de religiáo eclética ou sincretista; professam
o Catolicismo, mas - talvez de boa fé - praticam a Umbanda ou o Can-
domblé ou o esplritualismo... Nao raro os dirigentes dessas correntes sao
católicos; longe de combater o Catolicismo, enviam os seus fiéis á Igreja
para acender velas, pedir celebracáo de Missas ou atos semelhantes. - O

523
44 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

caso da "escrava Anastácia" é bem significativo, pois nele principios um-


bandistas e cristáos parecem convergir.

3) Evitar o sincretismo

Em conseqüencia, devem-se evitar as atitudes que gerem confusáo


religiosa. 0 Concilio do Vaticano II pede aos Bispos procurem remover
toda especie de sincretismo ou de mésela indevida de principios religio
sos (cf. Ad Gentes n9 22). Os cristáos professam a Verdade revelada por
Deus através dos Patriarcas, dos Profetas e, por excelencia, de Jesús
Cristo; nao Ihes é licito retocar ou empalidecer o conteúdo da Revela?áo.
Sabe-se que no Brasil é forte a tendencia ao sincretismo religioso; há
quem pratique simultáneamente o Catolicismo e o Espiritismo ou os
cultos afro-brasileiros. Em vista deste contexto é particularmente neces-
sário que a Igreja Católica instrua os fiéis para que nao cedam a onda de
subjetivismo eclético; evite também a participacSo de umbandistas ou
candomblesistas na Comunháo Eucarlstica; caso se celebre um casa
mento em terreiro afro-brasileiro segundo o respectivo rito, nao se deve
celebrar tal casamento também na Igreja segundo o rito do matrimonio
sacramental.

4) Anunciar a íntegra da Boa-Nova de Jesús Cristo

Incumbe á Igreja Católica o dever de anunciar o Evangelho na sua


pureza também aos adeptos dos cultos afro-brasileiros. A afinidade que
estes possam ter com o Catolicismo, nao significa que professem o mes-
mo Credo ou que sejam católicos. O fato de viverem fervorosamente se
gundo as crencas e práticas afro-brasileiras nao dispensa os católicos de
Ihes anunciar o Evangelho em toda a sua integridade; a missio nao pode
consistir em promocáo humana apenas ou em oferecer tSo-somente es
colas, hospitais, creches, higiene, etc.; há de levar a todos os homens
(mesmo aos que mais candidamente professam crencas idolátricas ou
mitológicas) o imenso tesouro da fé católica, que Cristo anunciou durante
a sua vida e selou com o seu sangue derramado na Cruz.

Muito a propósito vém as considerares do Pe. Valdeli Carvalho da


Costa em sua obra "Umbanda. Os 'Seres Superiores' e os Orixás/San-
tos", vol. 2?, pp. 422s:

"No afá de valorizar os cultos afro-brasileiros e a fé dos adeptos


destas religiSes, há quem quastione mesmo a necessidade da evangeti-
zacao dos mesmos. É freqüente, hojo, se ouvir de pessoas engajadas na
pastoral perguntas como esta, a respeito dos cultos afro-brasileiros:

'Será que tenho que anunciar Jesús Cristo e o Evangelho a um


povo que tem urna fé viva, que exprime sua fé através de ritos próprios

524
RELIG1ÓES AFRO-BRASILEIRAS 45

a que se relaciona com Deus através desses ritos? Ou devo ter outra
forma de abordagem, de contato com eles?'1
Paulo VI, na Evangelii Nuntíandi ja dera resposta á questáo:

'Nos queremos acentuar, sobretudo hoje, que nem o respetto e a


estima para com essas religóos [nao-cristas], nem a complexidade dos
problemas levantados [pela evangelizacáo] sao para a Igreja um motivo pa
ra ela calar, diante dos nSo-crístáos, o anuncio de Jesús Cristo. Pelo contra
rio, ela pensa que essas muKiddes tém direito de conhecer as riquezas
do misterio de Cristo (Ef 3,8), ñas quais n6s acreditamos que toda a
humanidade pode encontrar, numa plenitude inimagfnável, tudo aquflo
que ela procura as apalpadelas a respeitó de Deus, do homem, do seu
destino, da vida e da morte e da verdade. Mesmo parante as expres-
sóes religiosas naturais mais merecedoras de estima, a Igreja apoia-se,
portento, sobre o fato de a religiSo de Jesús, que ela anuncia atravós
da evangelizacáo, por o homem objetivamente em relacSo com o plano
de Deus, com a sua presenca viva e com a sua acio; ela leva-o, assim, a
encontrar o misterio da Paternidade divina, que se debruca sobre a
humanidade; por outras palavras, a nossa religiio instaura efetivamente
urna relacSo auténtica e viva com Deus, que as outras religióes nio
conseguem estabelecer, se bem que elas tenham, por assim dizer, os
seus bracos estendidos para o céu (EN 53)'.

Os agentes de pastoral brasileiros esquecem, talvez por desconhe-


cerem, que' a fó que os praticantes dos cultos afro-brasileiros possuem,
é dirigida, fundamentalmente, a seres míticos. Mesmo o uso de termos
católicos está impregnado de significado mítico, como vimos. Nao ó a
auténtica f6 crista. Nesses curtos os elementos cristaos estao fortemen-
te amalgamados e transformados em conceitos heterodoxos á fó crista.
Nesta situacao, justifica-se, plenamente, o anuncio depurado e auténti
co da mensagem crista aos adeptos dos cultos afro-brasileiros, no mí
nimo, para depurar-Ihes a fé da ganga mítica. A análise de Olorum,
Obatalá, Oxalá, Ifá e todo o elenco de Orixas deixa bem patente que a
visáo afro-brasileira discorde frontalmente da crista, e, portante, nao
pode ser cambiável, como certos agentes de pastoral católica deseja-
riam. Estes devem-se precatar contra o simplismo afogadilhesco, decor-
rente de urna ansia assimilativa dos valores afro-brasileiros".

Alias, o mesmo S. Padre Paulo VI escrevia em sua Exortacfio


Apostólica Evangelii Nuntíandi (A Evangelizacáo no Mundo Contempo
ráneo), de 8/12/75:

1Questionamento apresentado no I Encontró do Grupo pan Estudosdo


Assuntos ligados á EvangelizacSo do Negro BrasUeiro. Brastta, UZfseL/1978.

525
46 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

"Evangelizar, para a Igreja, é levar a Boa Nova a todas as parce


las da humanidade em qualquer meto e latitude e, pelo seu influxo,
transformá-las a partir de dentro e tornar nova a própria humanidade:
'Eis que faco de novo todas as coisas' (Ap 21,5). No entanto nao have-
rá humanidade nova, se nao houver em primeiro lugar homens novos,
pela novidade do Batismo e da vida segundo o Batismo. A finalldade
da evangelizado, portento, é precisamente esta mudanca interior; e, se
fosse necessério traduzir teso em breves termos, o mais exato seria di-
zer que a Igreja evangeliza quando, únicamente firmada na potencia di
vina da Mensagem que proclama, ela procura converter ao mesmo tem-
po a consciéncia pessoal e coletíva dos homens, a atividade em que eles
se aplicam, e a vida e o meio concreto que Ihes sao próprios" (nS 18).

5) Aculturacao necessária

A evangelizado de pessoas de cultura nao ocidental (mas africana,


asiática, indígena...) deve levar em conta os valores próprios de tais tradi-
cóes e aproveitá-los para que a perene mensagem do Evangelho se ex
prima através dos seus respectivos moldes. A Igreja tem insistido nesse
procedimento, visando a que a Boa Nova destinada a todos os homens
nao seja identificada com as categorías de pensamento e vivencia dos
povos da Europa Ocidental. Entre outras, eis a declarado do Concilio do
Vaticano II no Decreto Ad Gentes, relativo ¿s Missóes:

"De modo semelhante á economía da Encarnacáo, as Igrejas no


vas radicadas em Cristo e superedificadas sobre o fundamento dos
Apostólos, assumem em admirável intercambio todas as riquezas das
nacoes, heranca de Cristo (cf. SI 2,8). Tomam emprestado dos costu-
mes e das tradlcóes, do saber e da doutrina, das artes e dos sistemas
dos seus povos tudo o que pode contribuir para glorificar o Criador,
para ilustrar a grapa do Salvador e para ordenar convenientemente a
vida crista" (nS 22).

É o que explica tenham sido últimamente preparadas urna moldura


africana, urna moldura asiática, urna moldura indígena... para a celebra-
"cao da S. Eucaristía (a "Missa Luba", a "Missa Crióla"...). Tais procedí-
mentos visam a traduzir para o expressionismo nao europeu o intocável
conteúdo da fé católica. Podem ser bem sucedidos, caracterizando-se
pela fidelidade aos dados revelados; podem também ser menos felizes,
servindo ás vezes a finalidades heterogéneas ou de caráter político. Dat a
necessidade de que tais adaptacóes sejam submetídas ao julgamento da
Santa Sé, que avalia a oportunidade ou nao de se utilizarem tais ritos;
será preciso sempre evitar toda sombra de relativismo doutrinário ou de
fusáo indevida de crencas e expressóes.

526
RELIGIÓES AFRO-BRASILEIRAS 47

Vém ao caso as ponderales do Pe. Valdeli na obra citada atrás:

"A afro-brasileirizacáo da evangelizacáo é nececsária para qut st


faca evangelizado auténtica e conatural ao modo especifico de ser do
homem afro-brasileiro. Para a Igreja do Brasil saír do impasse diante do
Negro, é necessária urna destemida evangelizacáo. Nao se fufgue, con-
tudo, simplístícamente que aquilo que os afro-brasileiros atuals créem
seja o mesmo que a Igreja ensina. Nao é absolutamente a mesma coisa.
Assim sendo, faz-se mister urna adaptada e nova evangelizacáo, que,
como sabemos, consiste em 'dar testemunho, de maneira simples e di
reta, do Deus revelado por Jesús Cristo no Espirito Santo. Dar teste
munho de que no seu Filho Ele amou o mundo; de que no seu Verbo
Encarnado Ele deu o ser a todas as coisas e chamou os homens á vida
eterna. Esta atestacáo de Deus proporcionará a muitos, talvez, o co-
nhetfmento do Deus desconhecido (At 17,22s), que adoram sem Lhe
dar um nome, ou que procuram pela forca de um apelo secreto do co-
racáo, quando fazem a experiencia da vacuidade de todos os (dolos'
[ Evangeüi Nuntiandi n* 26)."

Eis alg urnas reflexóes que o caso recente de "Máe Menininha" nos
sugere, colocando-nos diante do ampio problema das religióes afro-
braileiras.

A propósito:

PE. VALDECI CARVALHO DA COSTA, Umbanda. Os 'Seres Supe


riores' e os Orixás/Santos. Ed. Loyola, Sao Paulo 1983 (2 vols.).

* * *

(continuagao da p. 528)

No entanto, varios e varios (quase todos) que berraram contra o


veto do Presidente Samey ao Je vous salue. Marie estao entre os que
mais carpiram e lastimam, agora, a morte de Mié Menininha. No meio
de tantas ligrimas, quanta hipocrisial O que vale para os cultos espiri
tas importados da África, nao vale para a piedade devocional da Igreja
Católica, Apostólica Romana. Excesso de hipocrisia. Chega até a sobrar
para a demagogia, para a adulacao populacheira ao pováo. Tanto que
no Conselho Estadual de Cultura, aquí do Rio, houve quem propusesse
o nome de Máe Menininha para um dos CIEPs. Je vous salue. More Me
nininha, teria dito no Conselho o autor da proposta. Como se comporta
ría esse Conselheiro, no caso de quererem fazer com a vida de Mié
Menininha de Gantots a indignidade que fizeram com a Virgem María?

Sem comentarios.

Estéváo Bettencourt. OSB

527
48 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 294/1986

AÍNDA "MÁE MENININHA"


O jornalista Helio Fernandos publícou no diario "Tribuna da Im-
prensa" de 25/08/86 oportuno artigo sobre o discutido filme "Je vous
salue, Marie" visto á luz dos recentes fatos relativos a "Máe Menininha".
Em vista do bom senso de que dá provas essa crónica, vai abaixo trans
crita:

"Quando o Presidente Sarney proibiu a exibicáo do filme de Go-


dard. Je vous salue, Marie, fui praticamente a voz que clama no deserto.
Sozinho, nesta ¡narredável trincheira da TRIBUNA, enquanto a chama
da 'Inteligencia" toda ela entrava em estertores contra o veto presi
dencial, ao qual atribulam obscurantismo, atentado á Liberdade, retor
no aos tempos bárbaros, mil coisas do género. O berreiro foi ensurde-
cedor. Houve um famoso cantor popular que rasgou as vestes, já que
nao mais via razáo de andar vestido num País onde o aparato da "cen
sura" o privava de ver urna obra-prima da cinematografía mundial.

Serena, mas de forma firme, mostré! que a "obra-prima" estava


proibida quase no mundo todo sem qualquer polémica, sem alvoroco,
sem estardalhaco. E aínda proveí que o Presidente Sarney, ao exercer o
direito de veto, o fez fundamentado inclusive no culto oficial que o Es
tado brasileiro devota a María, MSe de Oeus, pois no dia 12 de outubro
a NacSo intelra para, a fim de celebrar o feriado nacional em louvor de
Nossa Senhora Aparecida. Nao temos urna religlSo, oficialmente. NSo
temos. Mas estamos oficialmente comprometidos com a Igreja de Ro
ma. O Brasil é o maior país católico do mundo. E a Igreja Romana tem
na figura de María um de seus dogmas.

Lembro tsto agora, vendo as reacoes provocadas pela morte de


Mié Menininha de Gantois, a mais venerada figura dos cultos africanos
transplantados para o Brasil. Quanta comocSo, quanta tristeza, quanto
respefto devoto á falecida Mié de Santol Artistas plásticos, escritoras,
compositores de rock, políticos, um ministro, um prefeito, todos a cho-
raram e tornaram público o comovido pranto. Famoso cantor popular
usou veste branca pare mais assinalar sua dor.

Cabe entáo a pergunta: como se comportaría essa gente, caso


Jean-Luc Godard entendesse de escarnecer, atreves de um filme, a
memoria, os ritos, a imagem mesma da querida Míe Menininha, tudo,
enfim, que tanto se reverencia no mais reverenciado terreiro de can-
domble da Bahia? Nao procurarían! impedir o escarnio? Nao justifica-
riam a tesoura da censure? Logo nSo constatariam que filmes como es-
ses, ao serem censurados, em nada atingirían) a Libertado?———-—

(continua na p. 527)

528 r
'
O MOSTEIRO DE SAO BENTO

Grande Álbum, em estojo: formato 36,5 x 28 Obra de arte, com


texto em portugués e inglés por Oom Marcos Barbosa. O.S.B.
Dezoito fotografias artísticas (preto-branco) por Hugo Leal, o
mesmo que fotografou Ouro Preto e Salvador- Bahia.
Como nem todos podem vir ao Rio de Janeiro ou penetrar na
clausura, poderlo contudo admirar a beleza arquitetónica des-
se monumento colonial do inicio do século XVII.
Edicáo "Lumen Christi - CzS 400,00

EDI?6ES "LUMEN CHRISTI"


MOSTEIRO DE SAO BENTO
Rúa Dom Gerardo 40, — 5<? anclar — Sala 501
Caixa Postal 2666 — Tel.: (021) 291-7122
20001 -t- Rio de Janeiro — RJ
PRÓXIMO LANCAMENTO DAS EDiqÓES "LUMEN CHRISTI":

D. PEDRO MARÍA DE LACERDA


ÚLTIMO BISPO DO RIO DE JANEIRO NO IMPERIO
(1869-1890)

Para elaborar o presente livro, o autor, D. Jerónimo de Lemos


O.S.B., além de consultar ampia bibliografía, viu também o arquivo de D.
Lacerda, lendo sua correspondencia, escritos, e preciosa documentado
até hoje inédita, bem como ¡ornáis daquele tempo, grapas ao que pode
contribuir para urna perspectiva inteiramente nova sobre a pessoa e
acontecimentos da época em que viveu esse bispo, que, durante mais de
vinte anos dirigiu espiritualmente os destinos da extensa diocese de Sao
Sebastiáo do Rio de Janeiro, a qual, naquela época, nao e restringía ao
assim chamado Municipio Neutro, mas abrangia todo o Estado do Rio e
Espirito Santo, e territorios das provincias de Santa Catarina e Minas
Gerais.

2? Edicáo de:
DIÁLOGO ECUMÉNICO, Temas controvertidos.

Em 18 capítulos, sendo acrescentados nesta edicáo:


"Capítulo IV: A Santíssima Trindade: Fórmula paga?"
"Capítulo XVIII: Seita e espirito sectario".
Seu Autor, D. Esteváo Bettencourt, considera os principáis pontos
da clássica controversia entre Católicos e Protestantes, procurando mos
trar que a discussáo no plano teológico perdeu multo de sua razio, de ser,
pois nao raro, versa mais sobre palavras do que sobre conceitos ou pro-
posíqóes. - NO PRELO.

RIQUEZAS DA MENSAGEM CRISTA {2a- edigao), por D. Cirilo Folch


Gomes O.S.B. - Continua sendo muito procurado este "manual" de
Teologia que estuda de maneira completa e extensa todo o conteú-
do do "Credo do povo de Deus". O autor, falecirio a 2/12/1983, de-
dicou sua vida de estudos ao aprofundamento das mais variadas
questóes teológicas. 690 páginas Cz$ 73,80.

EM COMUNHÁO
Revista bimestral, editada pelo Mosteiro de Sao Bento, clestina-se
aos Oblatos e as pessoas interessadas em assuntos de espiritualidade
monástica. Além da conferencia espiritual mensal de D. Estéváo Betten
court para os Oblatos, contém tradupóes de comentarios sobre a Regra
beneditina e outros assuntos monásticos. - Assinatura anual em 1987:
Cz$ 50,00.

Para assinatura dirija-se ao Armando Rezende Filho


(Caixa Postal 3608 - 20001 Rio de Janeiro - RJ) ou as Edicóes "Lumen
Christi" (Caixa Postal 2666 - 20001 Rio de Janeiro - RJ).

ATENDE-SE PELO REEMBOLSO POSTAL

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