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A Terra
O Homem
A Religião
O Profeta
A Cidade
Neste contexto, Canudos nada mais poderia ser do que o lugar onde se
reuniram um bando de bárbaros, valentões fugidos da justiça, místicos a espera
da chegada do salvador para a redenção final, dirigidos por um profeta paranóico
com força para hipnotizar as massas. Euclides utilizava então uma série de
expressões negativas para designar Belo Monte: urbs monstruosa de barro,
civitas sinistras de erro, imunda ante-sala do paraíso, pobre peristilo dos céus:
“Canudos era o homizio de famigerados facínoras. Ali chegavam, de permeio com
os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha. E
estes foram os mais quistos daquele homem singular, os seus ajudantes-de-
ordens prediletos, garantindo-lhe a autoridade inviolável. Eram por um contraste
natural, os seus melhores discípulos. A seita esdrúxula – caso de simbiose moral
em que o belo ideal cristão surgia monstruoso dentre aberrações fetichistas –
tinha os seus naturais representantes nos batistas truculentos, capazes de
carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários...”
À medida que a obra vai sendo escrita, Euclides realizava sua crítica, e o
julgamento preconceituoso vai sendo abandonado. Canudos, progressivamente,
torna-se símbolo de uma raça forte, de lutadores incansáveis que mereciam ser
tratados de formas diferente: “Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra
luta. Entretanto enviamo-lhes o legislador Comblaim; e esse argumento único,
incisivo, supremo e moralizador – a bala.”
Por isso: “Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos
tivesse um objetivo superior á função estúpida e bem pouca gloriosa de destruir
um povoado dos sertões. Havia um inimigo mais serio a combater, em guerra
mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro,
se não se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda
tenaz, contínua a persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar a
nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários.”
Canudos deixa de ser, portanto, o lugar de reunião de místicos e bandidos
para se tornar um ponto de encontro dos rudes compatriotas, cujo o único pecado
era o de viverem socialmente marginalizados.
É necessário, como foi afirmado em outros momentos, ler “Os Sertões”
como obra dinâmica, em que conceitos são rapidamente superados e a escrita se
faz maior do que o estreito projeto determinista que marca o livro.
Caso a obra se esgotasse em acusações preconceituosas, teria,
seguramente, desaparecido, como tantos os livros escritos no período sobre o
assunto e marcados pelo mesmo arsenal teórico positivista e evolucionista.
Ficasse apenas na visão segundo a qual a luta das raças é força motora da
história, o Conselheiro, um louco e Canudos um homizio de bandidos, o livro
estaria condenado ao esquecimento.
Ao chegar às últimas paginas de “Os Sertões” afirmando que o sertanejo é
“rocha viva da nacionalidade” e que a dinâmica do genocídio promovida contra
Canudos fora expressão do movimento anticivilizatório revelador dos crimes que
as nações são capazes de praticar contra si mesmas, Euclides tinha atravessado
o longo caminho que vai da superficialidade do esquema para a grandeza nascida
de uma sensibilidade que honestamente procurou aprender a extensão e a
profundidade dos acontecimentos passados às margens do rio Vaza-Barris.
A Luta