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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
W_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
' ,2 dissipem e a vivencia católica se fortalega
■'■*" no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.


Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
Ano xxxvii Novembro 1996 414
"Viver é Cristo, Morrer é lucro" (Fl 1,21)
A Historicidade da Biblia: Sim ou Nao?
"O Episcopo seja esposo de urna só muiher" (1Tm
3,2; Tt 1,6)
O Celibato Sacerdotal: Questóes e Respostas
A Aparicáo de La Salette
Outros Mundos Habitados?
A Abertura dos Cassinos
A Teosofía: Que é?
Antroposofia: Que é?
Nota Avulsa
- Somente Deus nos pode salvar
PERGUNTE E RESPONDEREMOS NOVEMBRO 1996
Publicado Mensal NM14

Di reto r Responsável SUMARIO


Estéváo Bettencourt OSB
"Viver é Cristo, Morrer é Lucro" (Fl 1,21). 481
Autor e Redator de toda a materia
publicada neste periódico Questáo Complexa:
A Historicidade da Biblia: Sim ou Nao? 482
Duas Questfies de Exegese Bíblica:
Diretor-Administrador:
"O Episcopo seja Esposo de
D. Hildebrando P. Martins OSB urna so Mulher'f (1Tm 3,2; Tt 1,6) 490
Fala o Cardeal Joseph Hoeffner:
AdminlstragSo e Distribuido: O Celibato Sacerdotal:
Edicóes "Lumen Chrísti" Questóes e Respostas 497
Rúa Dom Gerardo, 40 - 5° andar - sala 501 O Sesqüicentenário de
Tel.: (021) 291-7122 A Aparigao de La Salette 501
Fax (021) 263-5679 Pergunta-se cada vez mais:
Outros Mundos Habitados? 506
Endereco para Correspondencia: Discute-se:
Ed. "Lumen Christi" A Abertura dos Cassinos 513
Caixa Postal 2666 Vem do Oriente:
CEP 20001-970 - Rio de Janeiro - RJ A Teosofia: Que é? 518
Impre5s3o e EncademapJo O Pensamento Oriental entre nos.
Antroposofia: Que é? 525

Notas Avulsas: 528


- Somente Deus nos pode salvar

"MARQUES SAfíAIVA"
GRÁFICOS E EDITORES Ltda.
Tels.: (02t) 273-9498 / 273-9447

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA


NO PRÓXIMO NÚMERO:

Gomo Evangelizar Hoje? - Lei do Taliáo no Antígo Testamento. - Ainda a Data de


Redacáo dos Evangelhos. - Expectativas de Fim do Mundo. - Os Muculmanos e
María SS. - Urna jovem Budista descobre o Evangelho. - Notas Avulsas.

(PARA RENOVACAO OU NOVA ASSINATURA: R$ 25,00).


(NÚMERO AVULSO R$ 2,50).

O pagamento poderá ser á sua escolha:

1. Enviar em Carta, cheque nominal ao MOSTEIRO DE SAO BENTO/RJ.

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CHRISTI" Caixa Postal 2666 / 20001-970 Rio de Janeiro-RJ

Obs.: Correspondencia para: Edicóes "Lumen Christi"


Caixa Postal 2666
20001-970 Rio de Janeiro - RJ y
"VIVER É CRISTO, MORRER É LUCRO..."(Fl 1,21)
É com estas palavras que o Apostólo Paulo, feito prisioneiro e ame-
acado de martirio, encara vida e morte.
"Viver é Cristo"... Isto quer dizer que, tudo o que a palavra "vida"
significa, o Apostólo o encontra em Jesús Cristo. Se viver implica estar na
verdade! Paulo encontra em Cristo a VERDADE; se viver implica estar no
amor, Paulo encontra em Cristo o AMOR; se viver é alegría, Paulo encon
tra em Cristo a fonte de sua alegría, pois é ramo da videira Cristo (cf. Jo
15,5). Por conseguinte, também o que se chama "morte", já nao é morte;
é vida mais plena, mais rica, a verdadeira vida, pois é a entrada na alegría
do Senhor (cf. Mt 25,21); é a uniáo perfeita com Cristo nao apenas pela fé,
mas, sim, na visáo face-a-face. "O que o olho nao viu, o que o ouvido nao
ouviu, o que o coragáo jamáis percebeu" (1Cor 2,9) o Apostólo o antecipa
na vida presente, a fim de o usufruir plenamente na vida futura.

"Morrer é lucro"... Sao Paulo dizia numa passagem em que, após


exprimir a natural aversáo á morte, ele superava tal sentimento, numa
visáo de fé: "Enquanto habitamos neste corpo, estamos fora da nossa
morada, longe do Senhor, pois caminhamos pela fé e nao pela visáo...
Sim, estamos cheios de confianca, e preferimos deixar a mansáo deste
corpo para ir morar junto do Senhor" (2Cor 5,7s).

A consciéncia de que a morte é um lucro, levava Paulo aínda a confes-


sar: "Sinto ardente desejo ou mesmo avidez (epithymía) de partir ou, melhor,
analysai, romper minhas amarras (como urna nave que se solta), desmontar
minha tenda (como um pelotáo que desmonta seu acampamento), para es
tar com Cristo (Fl 1,23)... "Com Cristo"... eis duas palavras que insinuam
tímidamente o inefável da outra vida e que Sao Paulo repete freqüente-
mente, sabedor de que nada pode traduzir adequadamente o que é o encon
tró face-a-face com a Beleza Infinita; ver 1Ts 4,17; 5,10; 2Ts 2,1; Rm 14,8.

A idéia de que a morte é vida plena já fora aventada pelo poeta


trágico e teatrólogo grego Euripedes (480-406 a.C), que interrogava:
"Quem sabe se viver nao é morrer, e morrer nao é viver?". - O pressenti-
mento de Euripedes foi ridicularizado pelos seus contemporáneos, mas
tornou-se plena verdade em Cristo. Já o pensador pagáo sabia que a vida
presente nao preenche cabalmente o que todo homem entende por "vida";
deve haver algo mais, em que a sede de Verdade e Vida seja saciada.
Pois bem. A atitude de Sao Paulo perante vida e morte foi a dos
justos cristáos de todos os tempos. S. Inácio de Antioquia (t 107), referin-
do-se ao Espirito Santo, escrevia: "Urna agua viva clama dentro de mim:
'Vem para o Pai1". O cristáo hoje pode repetir as palavras de Sao Paulo.
Tenha consciéncia de que viver é Cristo e morrer é lucro, é passar da fé
para a visáo, das sombras para a plena luzl do eMÍlictpara.a patria!
!:BIBUIOTfcC*| E.B.
481 CErTfv.cJ
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS"

Ano XXXVII-N° 414-Novembro de 1996

Questao complexa:

A HISTORICIDADE DA BÍBLIA: SIM OU NAO?

Em síntese: Embora a historiografía n§o fosse cultivada em grande


escala entre os povos antigos fora da Grecia, os israelitas sempre a esti
maran), pois tinham consciéncia de que, pelos acontecimentos da historia,
Deus fala ao seu povo. Este trago característico de Israel é reconhecido
por críticos contemporáneos. É de notar, porém, que a historiografía bíblica
tem suas notas peculiares: assim, por exemplo, é pragmático-religiosa,
procurando descubrirnos acontecimentos narrados ligóes de vida; o histo
riador nao conhecia direitos autorais, de modo que transcrevia sem indicar
as respectivas fontes; nao hesitava em retocar, atualizar, "modernizar" os
eventos narrados quando isto ¡he parecía conveniente ao proveito do lei-
tor, nao se impoñava muito com precisóes de ordem cronológica ou topo
gráfica... O conhecimento destes dados ajudará o leitor a conceber um
entendimento mais exato dos livros históricos da S. Escritura.

Pergunta-se: que valor tem a historiografía bíblica? Até que ponto os


livros históricos da Biblia sao fiéis á realidade dos fatos? - A questao é
complexa, pois leva o estudioso a reconstituir a mentalidade ou as catego
rías de pensamentos dos antigos israelitas. É preciso que o leitor moderno
esquega certas regras de estilo contemporáneo para poder penetrar no
sentido exato das páginas de historiografía bíblica.

É a esta tarefa que as páginas subseqüentes desejam atender.

1. O Valor da Historiografía Bíblica

Os antigos povos do Oriente, por muito elevado que fosse o seu grau
de cultura, pouco prezavam a historia... Era assaz generalizada a tese de
que os séculos constituem ciclos fechados, os quais se repetem regular
mente; acontecímentos já verificados no pretérito se reproduzirao em épo
ca futura; a sucessáo dos tempos jamáis conhecerá remate ou consuma-

482
A HISTORICIDADE DA BÍBLIA: SIM OU NAO?

gao final. Representavam esta concepgáo recorrendo á figura de urna ser-


pente enrolada cuja cabeca vem a morder a própria cauda (principio e fim
coincidem no mesmo ponto; todo o movimento que se registra entre os
dois termos nada de novo acarreta!). Este circular continuo e monótono da
historia era dito "o ritmo do yin e do yang", "a aspiracáo e a expiragáo de
Brama", "a danga de Siva que produz e destrói sucessivamente os mun
dos", "a incessante alternancia da Discordia e da Amizade"."1

Em conseqüéncia, a tendencia de muitos individuos era emancipar


se dos ciclos do mundo presente mediante a ascese, o esquecimentó e o
repudio do corpo e do corpóreo, a fim de passarem a viver num mundo
transcendente.

Isto explica que os antigos orientáis pouco se tenham preocupado


com historiografía, ou seja, com o relato continuo e fiel das fases sucessi-
vas da evolucáo humana. Quando o faziam, visavam apenas a episodios
restritos ou envolviam as narrativas dentro de concepcdes lendárias, mito
lógicas, de sorte que os relatos já nao transmitiam a noticia de fatos ocor-
ridos, mas eram, em grau maior ou menor, a expressSo da fantasía popu
lar ou de urna religiosidade politeísta, exuberante (nos diversos acervos de
ruinas excavados no Oriente até hoje, nao se encontrou urna síntese históri
ca dos tempos antigos; apenas se descobriram elementos - inscricóes, do
cumentos parciais - para se reconstituir a historia da Assíria, do Egito, etc.).

Ora nesse ambiente o povo de Israel se distingue por ter cultivado a


historia, e o ter feito com esmero tal que só foi superado pelos gregos,
mestres da historiografía ocidental. É o que reconhecem, nao sem admira-
cáo, os críticos modernos racionalistas:

"Dentre todos os povos asiático-europeus, somente Israel e a Grecia


possuem auténtica historiografía. Em Israel, que ocupa lugar privilegiado
entre todos os povos civilizados do Oriente, a historiografía se originou em
época tao remota que causa surpresa, e produziu logo de inicio obras de
importancia... Na Grecia surgiu mais tarde."m

(1) Testemunhos ou vestigios desta concepgáo antiga encontram-se em: Empédocles,


Fragmentos 30 e 115; Aristóteles, Meteorología I. 1, 1, c.3; Da geragao e da corrup-
gáo 1, 2, cap. 11; Séneca, Quaestiones naturales 1, 3, caps. 28s; Gensoríno. De die
natali 18; Stobeu, Edogae Physicae, 1, 1, c. 8; Cicero, Sonho de CipiSo 7; Servio,
Comentario da Quarta Écloga de Virgilio, v. 4.
(2> E. Meyer, Geschichte des Altertums 14 1. 1921, 227.
Pió XII chamava a atengSo para tal fenómeno em sua Encíclica Divino Afilante
Spiritu:
"As pesquisas comprovaram claramente que o povo israelita, entre as demais na-
goes antigás do Oriente, se distinguía singularmente na arte de escrevera historia, e
isto tanto pela ñdelidade como pela antiguidade das narrativas." (Ibid., 315.)

483
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

Com efeito, na literatura dos hebreus, que coincide com os escritos


biblicos, é delineada a historia do povo em traeos continuos e de modo
que pressupóe a pesquisa de fontes, a transcrigao de documentos dos
arquivos orientáis... Quando é possivel controlar as afirmacóes dos cro
nistas de Israel á luz de textos profanos, aquelas se comprovam fiéis á
verdade, condizentes com o que referem outras fontes. A historia de Israel
assim descrita se desdobra uniformemente, sob a influencia de urna con-
cepeáo monoteísta assaz forte para superar crises, aberragóes, suscita
das entre os hebreus pela idolatría dos povos vizinhos.

E como se explica que os rudes judeus, ultrapassando as categorías


culturáis do seu ambiente, tenham com tanto esmero cultivado a historio-
g rafia?

A razáo do fenómeno está na religiosidade de Israel, incpnfundivel


com a das outras nacoes do Oriente. Longe de professar que a sucessáo
dos tempos carece de sentido, os hebreus julgavam-na toda perpassada
por um plano divino, que nela se vai atuando e tende á consumacáo no fim
dos séculos; viam, pois, nos grandes acontecimentos da historia comuni-
cacoes, ora mais claras ora mais veladas, de Deus; o passado Ihes apare
cía qual mensagem divina a prenunciar realizacóes futuras ou a admoes-
tar a melhor conduta de vida.'11 Entende-se, pois, que movidos por tal
concepcao, os escritores de Israel se tenham preocupado com a redacáo
de suas crónicas, dando-lhes digno desenvolvimento e realce.

2. Como o Israelita escrevia a Historia

Nao seria suficiente, porém, afirmar apenas a fidelidade da historio


grafía em Israel. Outras observacoes se devem acrescentar ás preceden
tes, a fim de se poderem interpretar com exatidáo as crónicas existentes
na Sagrada Escritura. Tenham-se em vista, portanto, ainda os seguintes
itens:

2.1. Historia Pragmático-religiosa

A historiografía israelita é toda pragmático-religiosa, ou seja, procura


realcar o sentido religioso dos acontecimentos; sempre que possivel, o
historiador deduz a licáo contida nos fatos. Alias, entre os próprios

0) Muito claramente se afirma esta concepgáo nos escritos dos Profetas. Estes, que-
rendo predizer a futura RedengSo messiénica e a instauragao visivel do Reino de
Deus, descreviam-nas com os tragos característicos de duas "redengóes" anteriores
de Israel, ou seja, evocando os acontecimentos do éxodo do Egito e os do regresso
após o cativeiro babilónico (cf. Is 35.1-10; 40,1-5; 44.26-45,4; Jr 31,15-17.31-36; Os
2.16-19; 11,8s).

484
A HISTORICIDADE DA BÍBLIA: SIM OU NAO?

pagaos, a historia era geralmente considerada qual "mestra da vida",(1)


devendo as narrativas de feitos pretéritos servir de escola as geracóes
pósteras. Os israelitas tiveram consciéncia particularmente viva deste prin
cipio, pois, por revelacáo divina, sabiam que, de fato, Deus fala e age
pelos acontecimentos. Em conseqüéncia, ninguém estranhará, em algu-
mas passagens historiográficas da Sagrada Escritura, a escassez de por
menores que se diriam de ordem meramente profana, valiosos, sim, para
o erudito, mas destituidos de importancia para a salvacáo dos fiéis.

Muito interessante a este propósito é confrontar os livros de Samuel e


Reis com os das Crónicas. Sao, em grande parte, paralelos entre si; nota
se, porém, justamente ñas secóes paralelas que o autor de Cr, posterior
aos de Sm e Rs, selecionou os dados da historia, omitindo uns, acrescen-
tando outros na trama anteriormente redigida, a fim de melhor por em
evidencia o significado religioso dos episodios. Por exemplo, a historia do
reino cismático do Norte (Samaría), referida em Rs, é silenciada em Cr,
pois nao interessa á linhagem messiánica, que passa pela Casa de Davi
no reino meridional; quanto a Davi, é exaltado em Cr com títulos que até
entao só eram atribuidos a Moisés ("homem de Deus"; cf. 2Cr8,14; "servo
de Deus", cf. 1Cr 17,4); o reino de Judá é dito "o reino de Javé" (cf. 1Cr
29,23; 2Cr 9,8). Em 2Cr 35,21 s, o cronista, ao referir urna admoestacao do
Faraó Necao ao rei Josias, de Judá, faz questao de notar que pelo monar
ca pagáo era o Senhor quem exortava á prudencia; o relato paralelo falta
em 2Rs 23,28-30 (onde se poderia esperar).

Algo de semelhante se verifica ao se compararem entre si as secóes


paralelas do primeiro e do segundo livro dos Macabeus. No segundo, as
intervencóes de Deus em favor dos seus fiéis sao muito mais freqüentes e
vivamente inculcadas: notem-se 1Mc 6,1-16 (narrativa sobria da morte do
rei Antioco Epifanes, perseguidor do povo de Deus) e 2Mc 9,1-28 (descri
bo muito mais longa e calorosa, cheia de entusiasmo religioso); 1 Me 5,31-
43 e 2Mc 10,29.0 autor de 2Mc nao hesita mesmo em interromper o fio da
historia para tecer reflexoes teológicas em torno deste ou daquele episo
dio (cf. 2Mc 2,1; 4,15-17; 5,17-20; 6,12-17; 9,5; 12,43; 17,7; 15,7-10).

Em conseqüéncia do seu pragmatismo, a cronografía bíblica é por


exegetas modernos chamada "historia profética". Esta designacáo talvez
pareca paradoxal, pois a historia se refere ao passado, enquanto a profe
cía ao futuro. Note-se, porém, que a historia bíblica foi escrita por homens
que tudo viam á luz de Deus; ora o Aitíssimo nao permitiu que fizessem a
descricáo do pretérito como se fosse algo de fechado em si; ao contrario,

01 Cicero tem a historia na conta de "lux veritatis..., magistra vitae - luz da verdade...,
mestra da vida" (De Oratore 2,9).

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

fez que redigissem as suas narrativas de modo a conterem alusdes ao


futuro, constituindo o esquema ou prenuncio de realidades maiores vin-
douras - o que justamente é profecía. O que interessava aos autores bíbli
cos nao era nem simplesmente contar o passado, nem perscrutar o porvir,
mas mostrar os trapos de um grande designio divino que, imutável em si,
se vai desdobrando em fases simétricas, adaptadas ao desenvolví mentó
moral e intelectual do género humano.

2.2. Direitos Autorais

O senso de propriedade literaria, de "direitos autorais", era muito exi


guo no Oriente antigo; ao ensinamento por escrito ou á atividade literaria
se atribuía pouco valor, quando comparados com o magisterio de viva
voz. Em conseqüéncia, os historiadores semitas, os nossos hagiógrafos
inclusive, podiam transcrever documentos alheios sem indicar as respec
tivas fontes; praticavam assim o que se chama "citagóes implícitas". É
bem possível que nao tivessem a intencáo de garantir a veracidade das
passagens assim transcritas, embora nada fizessem para se distinguir do
autor de tais ditos.

Tal proceder redacional tem repercussáo nos métodos de exegese:


em presenca de urna noticia de historia aparentemente errónea na Sagra
da Escritura pode-se supor seja devida a citacao implícita ou a um autor
anónimo, a cujos dizeres o hagiógrafo nao intencionava subscrever; em
tal caso o erro nao teria sido endossado pelo historiador sagrado e nao
afetaria a inerrancia da Escritura. Contudo, para que se admita urna cita-
cao implícita em determinada passagem da Biblia, é preciso que conste
com certeza que (1) o hagiógrafo, de fato, transcreveu um documento
alheio, (2) sem ter a intencáo de o aprovar ou de garantir a sua veracida-
de.(t) Dado que o cumprimento destas duas condicóes difícilmente se pode
averiguar, toma-se raro o recurso á hipótese de citacao implícita para a
solucáo de algum problema exegético.

2.3. Retocar Textos Citados

Visto que o senso de propriedade literaria nao suscitava escrúpulos,


autores posteriores ousavam retocar, ampliar, "modernizar" obras dos an-
tigos, sem denunciar explícitamente o seu trabalho de remodelagáo. Tal
caso é freqüente na Tora (Lei), onde se encontram colecóes de leis que,
embora justapostas, supóem circunstancias e fases diversas da historia
de Israel, assim como o trabalho de máos sucessivas.

(1) Cf. a Declaragao da Pontificia Comissao Bíblica de 13 de fevereiro de 1905 em


Denzinger- Schó'nmetzer, Enchiridion Symbolorum 3372 (1979).

486
A HISTORICIDADE DA BÍBLIA. SIM OU NAO?

2.4. Acabamento Literario

Nao se dava grande importancia a pormenores tais como os do aca


bamento literario de urna obra. Podia, pois, um autor transcrever dois ou
mais relatos do mesmo fato, provenientes de fontes diversas, sem se pre
ocupar com a fusáo harmoniosa dos mesmos numa só peca literaria bem
trabalhada. Ao leitor ficava a tarefa de fazer a síntese de dados ás vezes
aparentemente contraditórios entre si, tendo, para isto, que reconstituir o
ponto de vista próprio do autor de cada um dos documentos.

É o caso, por exemplo, de Gn 1,1-3,24, onde se encontram duas nar


rativas da criacáo do mundo (Gn 1,1-2,4a e Gn 2,4b-3,24) redigidas inde-
pendentemente urna da outra. Em Gn 6-9 tém-se dois relatos do diluvio
justapostos com seus pormenores próprios, um tanto desconexos entre si
e destituidos de explícacáo que guie o leitor. Em 1Mc 6,1-16; 2Mc 1,11-17;
9,1-29 ocorrem tres versoes da morte do rei Antioco IV Epifanes, as quais,
á primeira vista, divergem entre si, embora possam bem ser concilladas
pelo exegeta atento.

2.5. Discurso Direto e Discurso Indireto

Muitas vezes, ao referir ditos alheios, o historiador usava do discurso


direto de preferencia ao indireto. Esta tendéndia se explica pela dificulda-
de de abstrair, que caracterizava os hebreus. Em tais casos podia aconte
cer que o hagiógrafo nao julgasse necessário reproduzir verbaimente o
discurso; redigia entao com suas palavras próprias o teor da oracáo, que
ele colocava nos labios de outrem, como se fora proferida tal qual figurava
no texto.1"

2.6. Cronología e Topografía

O historiógrafo semita também nao se preocupava muito com a exa-


ta cronología e topografía dos acontecimentos. Freqüentemente indicava
as localidades e contava os tempos de maneira vaga. Podia servir-se tam
bém de cronología esquemática; assim no livro dos Juizes o período de
quarenta anos (duracáo media de urna geracáo) costuma designar acon
tecimentos rematados, acarretando lógicamente os períodos de vinte e
oitenta anos (cf.Jz 3,11.30; 4,3; 5.32; 8,28; 13,1; 15,10; 16,31).

Ás vezes os números de días, meses ou anos nao indicam, em abso


luto, duracáo, mas, sim, qualidades dos individuos a quem sao atribuidos;

<1> Os comentadores apontam como exemplos - naturalmente sujetos a dúvidas - os


textos de Gn 49,2-27 (béngáo de Jaco moribundo sobre os seus filhos), Dt 33,2-29
(béncáo de Moisés sobre as tribos de Israel).

487
8 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

tenham-se na memoria, por exemplo, as listas genealógicas dos setitas e


dos semitas, em Gn 5,1-32 e 11,10-26.

Também o auténtico grau de cultura e civilizacáo dos ppvos e perso-


nagens bíblicos parecía negligenciável aos historiadores sagrados. Para
tornar mais significativos os episodios antigos, o hagiógrafo nao raro os
descreve anacrónicamente, projetando no passado os dados da cultura do
seu tempo, mais aptos a transmitir determinada mensagem aos destinata
rios do livro. é o que se dá na "pré-história bíblica" (Gn 1-11).

2.7. Génesis 1-11

Em particular, os onze primeiros capítulos do Génesis pertencem a


género literario próprio; nao seria licito, de um lado, interpretá-los tao se
gura e rígidamente como as demais secoes de historiografía da Biblia,
nem, por outro lado, entram na categoría de mitología ou fábula. Referem,
sem dúvida, acontecimentos ocorridos no pretérito, transmitidos, porém,
mediante vocabulario e estilo muito dependentes de textos profanos; alu-
dem provavelmente a certos tópicos das cosmogonías e da historia das
origens de outros povos. É esta a mente da Pontificia Comissáo Bíblica,
expressa em famosa carta datada de 16 de Janeiro de 1948:

"O problema das fomtas ¡iterarías dos onze primeiros capítulos do


Génesis é muito mais obscuro e intrincado que o da origem do Pentateuco.
Estas formas literarias nao correspondem a nenhuma das categorías clás-
sicas e nao podem serjulgadas segundo os géneros literarios greco-lati
nos ou modernos. Nao se Ihes pode, poríanto, negar ou afirmara historici-
dade em bloco sem Ihes aplicar indevidamente as normas de um género
literario sob o qual nao podem ser clasificadas. Podemos concordar em
que estes capítulos nao formam urna historia no sentido clássico e moder
no; mas é preciso confessar também que os atuais dados científicos nao
permitem dar urna solugéo positiva a todos os problemas que eles susci-
tam. O primeiro dever da exegese científica neste particular consiste em
estudar atentamente todas as questóes literarias, científicas, históricas,
culturáis e religiosas relacionadas com estes capítulos; em seguida, seria
preciso investigar os sistemas literarios dos antigos povos orientáis, sua
psicologia, sua maneira de exprimir o pensamento e sua nogao mesma de
verdade histórica; sería necessárío, numa palavra, reunir sem preconcei-
tos todo o material das ciencias paleontológica e histórica, epigráfica e
literaria. Somente assim se pode esperar entender mais claramente a ver-
dadeira natureza de algumas narrativas dos primeiros capítulos do Génesis.
Proclamar de antemao que tais nanrativas nao sao históricas no sentido
moderno da palavra induziria fácilmente a se acreditar que elas nao o sao
em nenhum sentido, quando na realidade relatam as verdades fundamen-
488
A HISTORICIDADE DA BIBLIA: SIM OU NAO?

tais pressupostas á dispensagao da salvagáo, em linguagem simples e


figurada, adaptada ás inteligencias de urna humanidade pouco desenvolvi
da, juntamente com a descrigáo popular da orígem do género humano e do
povo escolhido. Enquanto se espera, é preciso praticar a paciencia, que é
prudencia e sabedoría da vida." (Acta Apostolicae Sedis 40(1948) pp.46s.)

O leitor contemporáneo, portante, nao tomará as alusóes da Escritura


como insinuagáo de teses físicas, cosmológicas, biológicas... Já que o
Livro de Deus nada quer ensinar neste setor, nao há choque entre o mesmo
e a ciencia humana quando se referem ás criaturas materiais. Procedem,
sim, de pontos de vista diversos: o dentista considera os elementos em si
mesmos, refere-os ás suas causas próximas e dá-se por satisfeito depois
de ter tomado conhecimento da estrutura de cada ser corpóreo; nao Ihe
interessa ir além disto (a menos que passe para os dominios da Filosofía
e da Teologia). A Biblia, ao contrario, tudo contempla a partir de um plano
superior; só Ihe interessa, por assim dizer, a tangente que passa por cada
ser visfvel e o liga com Deus. Por isto é que a linguagem do dentista é
precisa, enquanto a da Biblia, versando sobre os mesmos temas, pode
ser assaz livre, impregnada únicamente de veracidade popular.

Aplicacáo muito clara desta distincáo tem-se na narrativa da criacáo


em Gn 1,1-2,4a. A cosmología pressuposta pelo autor sagrado é, aos olhos
da ciencia moderna, insustentávei (a luz seria anterior ás estrelas; haveria
urna abobada cristalina, o firmamento, sobre a térra); todavía corresponde
ao que se ensinava entre os judeus antigos. Ora bastava ao hagiógrafo
esta veracidade relativa, pois ele nao queria descrever as fases pelas quais
o mundo se originou, mas, sim, inculcar que todos os seres designados
mediante "tais" e "tais" nocoes se relacionam com Deus como criaturas
dependentes do Criador, destinadas a refletir, com o homem, a perfeicao
do Altissimo (no caso, como se vé, pouco importavam as fórmulas cos
mológicas ou biológicas, desde que indicassem as diversas criaturas que
cercam o homem).

Estas observagoes sao aptas a elucidar o texto sagrado, que nao


incorre em erro, se entendido dentro dos parámetros estritamente religio
sos que foram a sua matriz.

489
Duas questóes de exegese bíblica:

"O EPÍSCOPO SEJA ESPOSO DE UMA SÓ MULHER"


(1Tm3,2;Tt1,6)

Em síntese: A palavra epíscopo, nao usual no vocabulario portu


gués moderno, designa um membro do colegiado de epískopoi (vigilan
tes, guardiáes, superintendentes) também ditos presbyteroi (andaos), que
govemavam as comunidades cristas enquanto os Apostólos viviam. Estes
era/77 sempre os pastores, que tinhamjurisdigáo em qualquercomunidade,
mas dada a sua condigno itinerante, faziam-se substituir em qualquerco
munidade pelo referido colegiado, que tinha abaixo de si os diákonoi (diá
conos); ver Fl 1,1.

No fim da vida dos Apostólos, um desses epíscopos foi escolhido em


cada comunidade para ser o sucessor dos Apostólos, fícando-lhe reserva
do exclusivamente o titulo de episkopos (o que já se traduz por Bispo,
detentar do chamado "episcopado monárquico"); os demais ministros, a
ele subordinados, eram, e sao, os presbíteros e os diáconos.

Quanto á norma de que o epíscopo se/a esposo de urna só mulher,


deve-se compreender a partir das circunstancias da Igreja nascente (Sao
Paulo escreveu a Timoteo e Tito entre 64 e 67): nao havia entáo familias
nascidas no Cristianismo, mas só havia adultos convertidos em idade ma
dura, sendo variosjá casados. Ora o Apostólo quería que desses homens
casados só se escolhessem para o episcopado os que tivessem um só
casamento e nao dois (nem simultáneos nem sucessivos).

O celibato ou a vida una e indivisa é altamente elogiado pelo Apostólo


em 1Cor 7,25-35- o que inspirou a respectiva prática desde cedo na Igreja.
Ademáis o celibato dos clérigos é muito estimado também pelos crístáos
ortodoxos orientáis separados de Roma, embona tenham clero casado.

Em suas cartas pastorais a Timoteo e a Tito, o Apostólo recomenda


que o epíscopo seja "esposo de urna só mulher". Ora esta sentenga pare
ce difícil a dois títulos: 1) a palavra epíscopo (que equivale ao grego
episkopos) é obscura, pois caiu em desuso; 2) o "ser esposo de urna só

490
-O EPlSCOPO SEJA ESPOSO DE UMA SÓ MULHER" 11

mulher" parece confutar com a prática do celibato dos clérigos, que de


resto se fundamenta em 1Cor 7,25-35.

Vejamos, pois, cada qual dos dois problemas de per si.

1. Quem é o Epíscopo?

Para responder, notemos que as primeiras comunidades cristas (da


Galácia, de Éfeso, de Corinto, Filipos, Tessalónica...) eram governadas
pelos Apostólos, que geralmente eram seus fundadores. Os Apostólos
tinham jurisdicáo universal, ou seja, eram os pastores legitimos de qual-
quer comunidade, podendo dar ordens e ¡nstrucóes a qualquer délas. Toda
vía eram pastores itinerantes; nao residiam em determinada comunidade,
pois tinham a missáo de pregar o Evangelho no mundo inteiro (cf. Mt 28,18-
20). Em conseqüéncia, ao partir de urna comunidade recém-fundada, deixa-
vam o governo da mesma entregue a um colegiado de ministros, que eram
chamados presbyteroi (anciáos) ouepískopoi (guardiáes, vigilantes, supe
rintendentes)01; estes dirigiam os fiéis na ausencia do Apostólo, tendo abaixo
de si os diákonoi (diáconos). Encontra-se o testemunho desta organizado
em algumas passagens do Novo Testamento; ver, porexemplo, Fl 1,1:

"Paulo e Timoteo, servos de Cristo Jesús, a todos os santos em Cristo


Jesús que estáo em Filipos, com os seus episcopos e diáconos..."

Note-se também o texto de At 20,17.28: Sao Paulo, em Mileto, man


da convocar os presbyteroi (presbíteros ou anciáos) de Éfeso, que ele
interpela como sendo episcopos:

"De Mileto Paulo mandou emissários a Éfeso para chamarem os


presbyteroi daquela igreja. Quando chegaram, assim Ihes falou:"... Estai
atentos a vos mesmos e a todo o rebanho; nele o Espirito Santo vos cons-
tituiu episkopoi para apascentardes a Igreja de Deus".

Tal tipo de governo só podía ser provisorio; só duraría enquanto vi-


vessem os Apostólos. Ao aproximar-se o fim de vida destes, tiveram que
promover a escolha de um membro do colegiado de presbyteroi-epískopoi
para tornar-se o responsável supremo de cada comunidade. A este foi
reservado o título de epískopos, que se traduz por bispo, ao passo que
os demais membros do colegiado ficaram sendo presbyteroi. Um exemplo
desta transigao é bem perceptível na 3a epístola de S. Joao: a comunidade

<" Presbíteros, no singular, é palavra grega que significa anciáo; este vocábulo era
usual na terminología dos crístáos convertidos a partir do judaismo. Epískopos, no
singular, significa em grego superintendente, responsável; é vocábulo preferido pelo
linguajardos crístáos convertidos a partir do helenismo.

491
12 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

á qual o Apostólo escreve, é dirigida por um certo Diotrefes, que nao se


quer subordinar ao autor da carta (cf. v. 9). A carta data de fim do século I.
Pouco depois em Antioquia, na Siria, aparece nítidamente o episcopado
monárquico, exercido por S. Inácio (t 107 aproximadamente):

"Sigam todos ao Bispo como Jesús Cristo ao Pai; sigam ao presbiterio


como aos Apostólos. Respeitem os diáconos como á fe/de Deus. Ninguém
faga sem o Bispo coisa alguma que diga respeito á Igreja. Porlegitima seja
tida táo somente a Eucaristía celebrada sob a presidencia do Bispo ou por
delegado seu. Onde quer que se aprésente o Bispo. ali também esteja a
comunidade, assim como a presenga de Cristo Jesús também nos assegu-
ra a presenga da Igreja Católica. Sem o Bispo nao é permitido nem batizar
nem celebrar o ágape" (Aos Esmirnenses 8,1s).

"Sem eles (o Bispo, os presbíteros e os diáconos) já nao se pode falar


de Igreja" (Aos Trafianos 3,1).

A autoridade do Bispo é tao recomendada, porque Inácio vé nele o


representante do Bispo invisível ou do próprio Senhor:

"Por respeitoÁquele que nos amou, convém obedecermos sem hipo-


crisia, pois ninguém engaña tal ou tal Bispo visível sem abusar do Bispo
universal" (Aos Magnesios 3,2).

"Assim como o Senhor nada fez sem o Pai, com o qual estava unido...
assim também vos nada haveis de empreendersem o Bispo e os presbíteros,
nem queirais fazer passar por razoável o que fazeis á parte. Cuidai de
haverem comum urna só oragáo, urna só súplica, urna só mente, na canda-
de, na alegría imperturbável... Acorrei todos ao único templo de Deus, ao
único altar do sacrificio, a um só Jesús Cristo, que saiu de um só Pai,
permaneceu num sóea Ele voltou" (Aos Magnesios 7,1s).

Retornando á época dos Apostólos (século I), verificamos o despon-


tar do chamado "episcopado monárquico" (embora aínda pálido) nos se-
guintes casos:

Sao Paulo constituiu Timoteo como responsável pela comunidade de


Éfeso, e Tito pela de Creta. O Apóstelo impós as máos a Timoteo com
todo o colegio de presbíteros (cf. 1Tm4,14;2Tm 1,6); Timoteo e Tito deveráo
instituir presbíteros (cf. Tt 1,5) para as diversas comunidades; exerceráo
autoridade superior á dos presbíteros (1Tm 5,17-22); háo de escolher esses
presbíteros criteriosamente (Tt 1,9; 2,1-15); escreve Paulo a Timoteo:

"O que aprendeste de mim na presenga de numerosas testemunhas,


confía-o a homens fiéis, que, por sua vez, serao capazes de ensiná-lo a
outros mais" (2Tm 2,2).
492
"O EPiSCOPO SEJA ESPOSO DE UMA SÓ MULHER" 13

Em alguns textos do Novo Testamento, nota-se o surto de alguns


ministros intermediarios entre o Apostólo itinerante e o colegiado fixo de
presbiteros-episcopos. Sao ainda figuras itinerantes, mas fazem as vezes
do Apostólo em casos designados por Paulo: assim Epafras em Colossas
(cf. Cl 1,7) e também em Laodicéia e Hierápolis (cf. Cl 4,12s); o autor da
epístola aos Hebreus (Apolo ou Barnabé?) revela gozar de grande autori-
dade e recomenda obediencia aos dirigentes da comunidade ou das co
munidades ás quais se dirige a carta (cf. Hb 13,17-19). Vém ao caso ainda
Ártemas e Tiquico, enviados por Paulo para substituir Tito em Creta (cf. Tt
3,12). Tíquico também foi mandado a Éfeso por Paulo (cf. 2Tm 4,9.12).
Sao estes alguns exemplos de como, aos poucos, se foi processando a
transicáo da funcáo de Apostólo para a de Bispo; esses delegados do
Apostólo tornar-se-iam Bispos monárquicos ou instítuiriam Bispos monár
quicos.

Temos alguns testemunhos desta instituicáo datando de época pós-


apostólica, mas recuada, entre os quais o de S. Clemente de Roma, redi-
gido em 96:

"Os Apostólos nos anunciaram a Boa-Nova da parte de Jesús Cristo.


Jesús Cristo foi enviado por Deus. Portanto o Cristo vem de Deus e os
Apostólos vém de Cristo. Esta dupla missáo... vem, pois, da vontade de
Deus...

Os Apostólos, munidos da certeza que o Espirito Santo comunica,


foram anunciar em toda parte a Boa-Nova da vinda do Reino dos céus.
Pelos campos e as cidades, proclamavam a palavra; assim conheceram as
primicias dessas novas comunidades; após ter provado qual era o seu
espirito, estabeleceram-nos Bispos e diáconos dos futuros crentes.

Nossos Apostólos também previram que haveria contestagóes a res-


peito da dignidade do episcopado. Eis porque... instituiram os ministros
que mencionamos e, a seguir, defíniram a norma segundo a qual, quando
morressem, outros homens comprovados Ihes sucederiam. Os que assim
receberam seu encargo dos Apostólos ou, mais tarde, de personagens
eminentes, com o consentimento de toda a Igreja, serviram ao rebanho de
Cristo de maneira irrepreensivel, com toda a humanidade,... Cremos que
seria contrario a justiga rejeitá-los do seu ministerio". (Carta de S. Cle
mente, cap. 42 e 44).

Para os escritores dos séculos II e III, a autorídade que os Bispos.


exercem é aqueia que foi dada aos Apostólos, como o Espirito Santo, que
Ihes é comunicado no rito de ordenacSo, é o mesmo Espirito comunicado
aos Apostólos em Pentecostés. Eis o mais antigo texto de consagragao
de um Bispo que conhecemos:

493
14 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

"Derramai agora o poder que vem de Vos, o Espirito soberano (SI


50,14), que destes ao vosso Filho bem-amado Jesús Cristo e que Ele deu
aos santos Apostólos, que construiram vossa Igreja... Concedei, Pal, Vos
que conheceis os coragóes, ao vosso servo que escolhestes para o epis
copado,... que absolva todo vinculo em virtude do poder que destes aos
Apostólos" (Tradicáo Apostólica de Hipólito Romano, c.3).

Sao estas ponderacdes que explicam a organizacáo da Igreja,


confiada aos sucessores dos Apostólos, cada qual com jurisdicáo em sua
diocese.

Eis também como se explica a palavra "epíscopo" de 1Tm e Tt, pala-


vra que nao deve ser traduzida para o portugués por Bispo, porque na
época dos Apostólos nao se dera aínda o desdobramento do colegiado de
epískopoi-presbyteroi subordinados aos Apostólos.

2. "Esposo de urna só Mulher..."

Os dizeres do Apostólo em 1Tm 3,2 e Tt 1,6 sugerem a alguns


comentadores a concepcáo de que os Bispos e os padres devem ser ca
sados, tendo urna única mulher. - Esta impressáo se desfaz desde que se
levem em consideracáo as circunstancias em que Sao Paulo escrevia. Na
década de 60, dirígindo-se á comunidade de Éfeso (que era a de Timoteo}
e á de Creta (que era a de Tito), Paulo só podia contar com cristáos adultos
convertidos ao Evangelho; nao havia ainda familias cristas da segunda
geracáo; eram todos da primeira geracáo, recém-convertidos. Consideran
do esse quadro, o Apostólo quería que o ministro de Deus tivesse um só
casamento ou fosse esposo de urna única mulher; rejeitava assim as segun
das nupcias do epíscopo, mesmo que fossem contraidas na viuvez; um
viúvo novamente casado nao poderia ser ordenado, conforme o Apostólo.

Vé-se assim queja nos primeiros decenios da Igreja Sao Paulo fazia
restricdes ao casamento dos clérigos; já insinuava aquilo que posterior
mente foi sendo mais e mais praticado na Igreja, isto é, a abstencao matri
monial para os clérigos. A razáo desta tendencia á vida una ou indivisa é
explicada por Sao Paulo em outra passagem, que geralmente nao é citada
quando se trata do celibato dos ministros de Deus. Ei-la:

"Eis o que vos digo, irmaos: o tempo se fez curto. Resta, pois, que
aqueles que tém esposa, estejam como se nao a tivessem; aqueles que
choram, como se nao chorassem; aqueles que se regozijam, como se nao
se regozijassem; aqueles que compram, como se nao possuissem; aque
les que usam deste mundo, como se nao usassem plenamente. Pois pas-
sa a figura deste mundo.

494
"O EPlSCOPO SEJA ESPOSO DE UMA SÓ MULHER" 15

Eu quisera que estivésseis isentos de preocupagóes. Quem nao tem


esposa, cuida das coisas do Senhor e do modo de agradar ao Senhor.
Quem tem esposa, cuida das coisas do mundo e do modo de agradar á
esposa, e fíca dividido. Da mesma forma, a mulhernao casada e a virgem
cuidam das coisas do Senhor, a fim de serem santas de corpo e de espirito.
Mas a mulher casada cuida das coisas do mundo; procura como agradar
ao marido.

Digo-vos isto em vosso próprío interesse, nao para vos armar diada,
mas para que fagáis o que é mais nobre e possais permanecerjunto ao
Senhor sem distragáo" (1 Cor 7,29-35).

Como se vé, Sao Paulo faz o elogio da vida una ou indivisa, mostran
do que ela permite maior concentrado ñas coisas de Deus ou maior liber-
dade para atender aos interesses do Senhor. Quem está casado, está
comprometido e tem deveres de justiga para com a esposa e os filhos,
deveres que dividem a pessoa, obrigando-a a se dedicar, antes do mais, á
familia. Verdade é que aqueles a quem Deus dá vocacáo matrimonial se
santificam nela e por ela; é lá que eles encontram a Deus. Deve-se reco-
nhecer, porém, o valor da vocacáo ao celibato e á virgindade; sao belas
vocacóes, que Deus concede gratuitamente.

Além do motivo pragmático ou funcional, haveria alguma razao teoló


gica que justifique a vida una?

A resposta é dada pelo próprio Senhor Jesús, ao dizer: "Na ressurrei-


cáo (ou na vida de ressuscitados) nem eles se casam nem elas se dáo em
casamento, mas serio todos como os anjos no céu" (Mt 22,30).

Por conseguinte, levar a vida una ou indivisa neste mundo é, de certo


modo, antecipar a vida do céu ou a vida definitiva. É levar urna vida angélica,
como diziam os antigos cristáos. Naturalmente, so deve empreender tal
tipo de vida quem tenha recebido a vocacáo e a graca da parte de Deus.
- A vida una nao significa mutilacao ou castracao; de modo nenhum.
Ela supde um grande amor, um grande ideal, um entusiasmo ardente vol-
tados para Deus e os irmáos. Ninguém pode viver sem amor (tanto que
um grande escritor católico, Georges Bernanos, dizia: "O inferno consiste
em nao amar"). Ninguém pode viver sem amor, de modo que quem se
consagra a Deus no celibato ou na virgindade, tem intenso amor ao pró
prio Deus e a todas as criaturas de Deus.

Em conclusáo, verifica-se que o celibato sacerdotal está bem na li-


nha dos conceitos bíblicos. Nao se deve explanar um texto escriturístico
sem levar em conta o que a Escritura diz alhures sobre o mesmo assunto.

495
16 -PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

De modo especial faz-se mister valorizar os dizeres do Apostólo em 1Cor


7,29-35, que propóem o parto de fundo do pensamento paulino.

De resto, é preciso lembrar que o celibato sacerdotal foi primera


mente praticado ou vivido; somente no comego do século IV, em 306 apro
ximadamente, tornou-se objeto de urna lei do Concilio regional de Elvira
(Espanha). Outros Concilios regionais foram repetindo essa lei em ámbi
to regional, até que finalmente em 1123, no Concilio do Latrao I, o celibato
se tornou lei da Igreja inteira no Ocidente.

A importancia do celibato sacerdotal é realcada por um Bispo ortodo


xo oriental, Mons. Nikodim, outrora prelado da circunscricáo de Leningra-
do (Rússia), que, entrevistado por um jornalista francés, P. Wenger, pres-
tou o seguinte depoimento - depoimento especialmente significativo pelo
fato de que entre os ortodoxos (separados de Roma) é licito o casamento
dos clérigos antes da sua ordenacáo sacerdotal:

"...Monsenhor Nikodim mostrou-se bastante preocupado, com a críse


da fé e do sacerdocio na Igreja latina. Visto que os arautos do casamento
dos padres invocam freqüentemente a tradigáo da Igreja ortodoxa, pergun-
tei ao metropolita qual a sua opiniao sobre assunto táo delicado. Respon-
deu-me que, se isto dependesse dele, pediría a todos os sacerdotes orto
doxos que observassem o celibato. A experiencia mostrou-lhe quanto os
sacerdotes que nao tém encargo de familia sao mais dedicados ao Senhor
e aos seus fiéis.

Isto, alias, corresponde ao ensinamento de S. Paulo e á ligáo da histo


ria. Apesardas defecgóes, o celibato dos sacerdotes é a grande torga da
Igreja latina. E preciso nao o abandonar.

...Haverá sempre vocagdes. Devemos terconfianga no Espirito Santo.


Vem a propósito um episodio da vida de Joao XXIII:

Nos primeiros tempos do seu pontificado, Joao XXIII nao conseguía


conciliar o sonó. Certo dia, urna voz pareceu dizer-lhe em sonho: 'Angelo
Roncalli, és tu que diriges a Igreja ou o Espirito Santo?' Daquele dia em
diante, ele permaneceu em paz. Assim, também, concluiu Mons. Nikodim,
devemos na crise presente ter confianga no Espirito Santo. É Ele quem
dirige a Igreja..."

(Transcrito de "La Documentation Catholique", 19/10/1969, p.931).

O artigo seguinte do presente fascículo completará estas conside-


ragóes.

496
Fala o Cardeal Joseph Hoeffner:

O CELIBATO SACERDOTAL:
RESPOSTAS

Em síntese: O Cardeal J. Hoeffner, de Colonia (Alemanha), apre-


senta numa entrevista as razóes que fundamentan} o celibato sacerdo
tal, respondendo ás objegóes que se possam levantar contra esta prá-
tica da Igreja no Ocidente. As palavras do entrevistado, embora nao
sejam recentes, recobrem com exatidao a problemática tal como e/a é
colocada em nossos dias.

Está, de vez em quando, na pauta do dia o celibato sacerdotal. A


nossa revista já o tem abordado repetidamente. Todavía, como geralmen-
te voltam as mesmas questoes a tal respeito, parece oportuno publicar
novamente, ñas páginas seguintes, urna entrevista concedida pelo Carde
al Joseph Hoeffner, outrora Arcebispo de Colonia (Alemanha), ao jornal de
sua arquidiocese1" e transcrita em La Documentation Catholíque de 19/
10/1969, pp. 918-920.

Embora o texto nao seja recente, ele cobre com exatidao o


questionamento levantado em nossos dias.

1. Perda para a Igreja

Repórter: "Há grupos de sacerdotes que pedem a abolicao do que


chamam 'o celibato obligatorio1. Que pensa a respeito V. Eminencia na
qualidade de sociólogo?"

Cardeal Hoeffner: "O celibato sacerdotal abracado em vista do reino


de Deus apresenta, sem dúvida, problemas sociológicos e psicológicos.
Todavía é somente na fé que ele pode ser compreendido em toda a sua
profundidade. A vocacáo ao celibato, da mesma forma que a vocacáo ao
sacerdocio, é urna escolha, urna graca que vem de Jesús Cristo. O Se-
nhor louva aqueles que, em vista do Reino de Deus, estáo prontos-a dei-
xar 'casa, esposa, irmáos, parentes ou filhos' (Le 18,29; Mt 19,29). Em
nossa sociedade secularizada, em nossa civilizacáo do conforto, o celiba-

"> Kirchlicher Anzeiger für die Erzdioezese Kóln, 1° de agosto de 1969.

497
18 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

to em vista do Reino de Deus é precisamente uma excelente maneira de


seguir o Senhor até as últimas conseqüéncias.

Um leigo, Alberto Goerres, professor da Universidade de Munique e


médico psiquiatra, escreveu recentemente que a abolicao do celibato 'se
ria para a Igreja uma perda enorme'. Talvez a lamentável pressao contra
o celibato levasse o povo de Deus a ter que se contentar em breve com
um tipo de padres mais achatado, mais tibio, mais grosseiro. Tudo isso só
estimularía o desencadeamento do erotismo... e a dissolucáo do casa
mento entre os leigos'".

2. Amadurecimento da Personalidade

Repórter: "Nao é raro ouvir dizerque o celibato entrava a maturidade


da personalidade... Certos grupos de sacerdotes declararam recentemen
te que, para eles, se trata de revalorizar a sexualidade entre o homem e a
mulher".

Cardeal Hoeffner: "Antes de exprimir meu modo de pensar, desejo


citar de novo o professor Alberto Goerres. Crer que, 'sem a experiencia
das relacóes sexuais, o homem nao pode chegar á maturidade de sua
personalidade, escreve ele, é pura ideología, e o tipo da afirmacao nao
científica. Temos todo motivo para crer que entre os sacerdotes católicos
existem ao menos tantos homens maduros quantos entre os advogados,
os professores, os médicos e os pastores protestantes'.

O celibato abracado em vista do Reino de Deus nao é um maniqueismo


hostil á sexualidade; é a aventura de um amor que se dá ao Cristo. O
sacerdote deve assemelhar-se a Cristo, que se entregou definitivamente e
sem reserva em favor dos seus. O verdadeiro problema que se coloca
para o sacerdote hoje. é o seguinte: consagrar toda a nossa existencia a
ser pai e irmáo de uma comunidade e nesta exercer o ministerio da recon-
ciliagáo, será isto, hoje aínda, algo de necessário e que valha a pena?
Quem quer que tenha alguma nogao dos problemas e das indagagoes dos
homens de hoje, nao ousará responder pela negativa".

3. A Igreja nao obriga ao Celibato

Repórter: "Muitos sacerdotes nao se opóem ao celibato em si, mas


ao celibato obligatorio, o qual contraría o espirito do Evangelho. Sacerdo
cio e celibato deveriam ser dissociados".

Cardeal Hoeffner: "Afirmar que, pelo celibato anexo á funcáo ou o


celibato obrigatório, a Igreja constrange ao celibato os candidatos ao sa
cerdocio, é uma calúnia. Eu, que sou bispo, só me disponho a ordenar

498
O CELIBATO SACERDOTAL: QUESTOES E RESPOSTAS 19

sacerdote um jovem quando, depois de madura reflexáo, tenha chegado á


convicgáo de que Cristo Ihe deu o duplo dom da vocacáo ao sacerdocio e
da vocacáo ao celibato em vista do Reino de Deus. Quem aspirasse ao
sacerdocio aceitando o celibato como uma condícáo lamentávei que é pre
ciso aceitar, sem ter certeza de que o Senhor Ihe deu o dom de o poder
compreender, esse candidato procedería de modo temerario e culpável.

Enquanto bispo, da mesma forma como a ninguém obligo a tornar


se sacerdote, nao obrigo quem quer que seja a nao se casar. A liberdade
de decidir compete aqueles que Deus chama. Quem, mais tarde, reco-
nhece que se enganou, recebe da Igreja uma dispensa. Assim também a
Igreja concede dispensa a quem perdeu o dom do celibato por própria
culpa - o que também é possível".

4. Aboligáo do Celibato, Remedio á Falta de Vocacoes?

Repórter: "Diz-se muitas vezes que no mundo de hoje a Igreja teria a


obrigacáo de renunciar ao celibato sacerdotal, pois esta seria a única for
ma de remediar á falta de padres; muitos sentem-se chamados ao sacer
docio, nao, porém, ao celibato".

Cardeal Hoeffner: "O segundo Concilio do Vaticano respondeu cla


ramente a esta questáo, e sua resposta fomece-nos a chave do problema.
Colocou o celibato sacerdotal sob o signo da virtude teologal da esperan-
ca. 'A Igreja, diz o Concilio, nutre a confianca de que o Pai concederá a
suficiente número de homens a vocagao ao celibato ao mesmo tempo que
a vocagao ao sacerdocio, contanto que isto seja humilde e instantemente
impetrado' pelos sacerdotes e pela Igreja inteira (Decreto sobre os
Presbíteros n° 16).

O sim ao celibato é uma questáo de fé, nao somente da parte dos


homens que se tornam presbíteros, mas também da parte das familias
católicas e de todo o povo de Deus. O celibato, em última análise, é a
alegría da cruz. No decorrer da sua historia, a Igreja se renovou sempre e
exclusivamente mediante um dom maior de si a Cristo, e nunca mediante
um dom menor.

De resto, a experiencia mostra que a aboligáo do celibato nao traria


número maior de vocacóes sacerdotais. Um grupo de trabalho que dirigí
no Encontró de Coira (Suíca) estendeu-se demoradamente sobre este
assunto no dia 9 de julho. A Igreja ortodoxa da lugoslávia, que conta cerca
de 9 milhoes de membros, só tem 800 seminaristas, embora o clero ai
seja casado. Ao contrario, a igreja Católica da lugoslávia, que conta 7
milhoes de membros, tem 4.500 seminaristas, apesar do celibato sacer
dotal. Em Oldenburg, as vocacóes sacerdotais na populagáo católica sao

499
20 TERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

500% mais numerosas do que as vocacoes para pastor na populacáo pro


testante. A Igreja protestante de Berlim-Oeste comunicou que, das suas
373 paróquias, 50 n§o tém pastor. E na sua conferencia de encerramento
do Encontró de Coira o Cardeal Suenens disse: 'As Igrejas protestantes da
Inglaterra, porexemplo, contam 3.000 postos vagos; nao obstante, o clero
respectivo é casado'".

5. Sacerdotes Casados e Sacerdotes Celibatários?

Repórter: "Alguns propóem sejam ordenados sacerdotes tanto ho-


mens casados como nao casados. Oeste modo, o celibato seria mantido,
e ao mesmo tempo o acesso ao sacerdocio seria franqueado também aos
homens casados".

Cardeal Hoeffner: "A experiencia das Igrejas luteranas, calvinistas,


reformadas e ortodoxas mostra que, dentro de aigumas dezenas de anos,
também na Igreja Católica nao haveria mais sacerdotes diocesanos celi
batários. Aplicar-se-ia a lei sociológica da 'via larga' que se abre e pela
qual finalmente todos se encaminham. Caso se pusesse em prática a
hipótese ácima, ou o celibato desaparecería por completo, como no pro
testantismo, ou se refugiaría nos claustros, como ñas Igrejas ortodoxas.
J. -C. Hampe escreveu a respeito das Igrejas protestantes: "Na verdade, o
celibato dos pastores é absolutamente impensável'.

Apesar do seu valor intimo, o celibato sacerdotal depende de urna


decisáo coletiva. Num decanato"» em que a maioria dos padres for casa
da, tomar-se-á, com o tempo, impossivel que dois ou tres padres continu-
em a viver celibatariamente em meio aos colegas. Esse sinal escatológico
e 'revolucionario' que é o celibato em vista do Reino de Deus desaparece
rá por completo. Resta saber se isto será urna béncáo para nossos lares
e nossas familias católicas".

Os dizeres das páginas anteriores, concretos e vivos como sao, tra-


zem sua contribuido interessante e valiosa para o debate sobre o celibato
sacerdotal: amadurecimento de personalidade, perspectivas de aumento
de vocacSes... ai sao considerados á luz de dados concretos e muito sig
nificativos. O casamento do clero nao parece resolver os problemas, diz a
experiencia dos cristaos orientáis. É no encontró com o Invisível, na ora-
cao e na vida interior, que o sacerdote achia e achara primordialmente a
explicacáo e justificativa de sua missáo; na uniáo íntima com o Criador ele
encontrará os deleites que criatura alguma Ihe pode proporcionar.

(<) Decanato = drcunscrigáo eclesiástica que compreende aigumas paróquias.

500
O Sesqüicentenário de

A APARigÁO DE LA SALETTE

Em sintese: A aparígáo de Nossa Senhora de La Salette (Franga)


ocorreu aos 19/9/1846. ou se/a, há 150 anos. Este aniversario despertou o
interesse dos historiadores, dos mestres de espiritualidade e do Santo
Padre, que procuraran} deduzirda mensagem de La Salette um incitamen
to á conversao e uma palavra de esperanga, visto que a Virgem SS. é a
Máe que intercede porseus filhos também em nossos dias.

O artigo que se segué, aprésenla a ocorréncia da aparigao (única) de


La Salette; descreve as medidas tomadas pelo Bispo local na época, Mons.
de Bruitlard, para averiguar a possivel autenticidade dos fatos, e propoe a
sentenga final do Sr. Bispo, favorável a genuinidade da aparigSo. Este
laudo nao implica um novo artigo de fé, nem a palavra do Papa transcrita
no fim do artigo é defínigáo dogmática, mas, sim, uma exortagao muito
válida, que tem por base um fato sólidamente cmdendado.

Aos 19 de setembro pp, celebrou-se o sesqüicentenário da aparigao


de Nossa Senhora de La Salette (Franga). O Santo Padre Joáo Paulo II
escreveu a propósito uma mensagem em que enaltece o significado des-
sa data, como sendo um renovado apeio a conversao e estímulo á espe
ranga. A intervengáo de Joáo Paulo II nao equivale a um pronunciamento
sobre a autenticidade da aparigao, mas, supondo o fato de que Nossa
Senhora é cultuada em La Salette, encarece a devogáo á Virgem de La
Salette e depreende o seu significado para o povo católico. É o que nos
sugere expor sumariamente a historia das ocorréncias em La Salette nos
anos de 1846 a 1851. Veremos sucessivamente os fatos ocorridos em La
Salette e a atitude do Bispo de Grenoble, diocese a que pertence o povo-
ado mencionado.

1. Os Fatos

A aparígáo de La Salette difere das outras em geral, porque se deu


em um só dia (sábado 19/9/1846) e durou meia-hora.

O povoado de La Salette fica nos Alpes franceses; constituía um con


junto de 734 habitantes em 1846. Desde 1845 a regiáo sofría de penuria
de alimentos, pois a colheita de batatas e cereais fora prejudicada por
uma primavera muito seca e um veráo muito chuvoso. Também no plano
religioso registrava-se uma crise, devida ao indiferentismo e á apatía da
populacao; a freqüéncia á igreja era exigua, os domingos e dias de festa
religiosa eram profanados; propagara-se o costume de blasfemar. Toda
vía a piedade aínda se conservava em certos redutos como a Confraria
dos Penitentes e uma Congregagáo Mariana.

501
22 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

Nesse ambiente viviam Mélanie Calvat (14 anos) e Maximin Giraud


(11 anos) como pequeños pastores. Os dois adolescentes só comecaram
a se conhecer mutuamente na véspera da aparigáo - o que parece excluir
toda suposicáo de embuste preconcebido da parte deles. Eram filhos de
familias niuito pobres; nao sabiam ler nem escrever. Falavam o dialeto
local e revelaram tracas aptidoes intelectuais quando, depois da aparigáo,
foram levados a educandários - o que também contribuiu para afasta r a
hipótese de alguma mistificacáo.

Aos 19/9/1846, após a refeicao do meio-dia, quando procuravam reu


nir o seu gado, perceberam, de repente, um grande claráo no fundo de
urna rocha. Esse claráo pareceu abrir-se, deixando entrever urna mulher
sentada, com a cabega entre as maos e os cotovelos sobre os joelhos. A
senhora se levantou e chamou as changas: "Aproximem-se, meus filhos,
nao tenham medo; estou aqui para contar-lhes urna grande novidade". As
criancas chegaram mais perto da mulher. Parecía toda luz e disse:

"Se o meu povo nao se quersubmeter. serei forgada a soltara meo de


meu Filho. é táo forte e tao pesada que nao a posso reter, é longo o tempo
em que sofro por vos. Se eu quero que meu Filho nao vos abandone, estou
encarregada de o rogar incessantemente em favor de vos, que neo fazeis
caso. Por mais que fagáis, nunca podereis recompensar o sofrimento que
padegoporvós".

A Senhora se queixou também de que o repouso dominical nao era


observado e as blasfemias eram freqüentes:

"Eu vos dei seis días para trabalhar, reserve! para mim o sétimo, e nao
mo queréis dedicar. E isto que toma táo pesada a meo do meu Filho.
Também os carreteiros nao sabem jurar sem abusar do nome do meu Fi
lho. Seo estas duas coisas que tomam tao pesada a máo do meu Filho".

A seguir, a Senhora fez admoestacóes terríveis:

"Se a colheita se estraga, é sinal para vos. Eu vo-lo fiz ver no ano
passado, por ocasiao da colheita de batatas. Mas nao fizestes caso. Ao
contrarío, quando encontráveis batatas estragadas, juráveis abusando do
nome do meu Filho".

Visto que as criancas nao compreendiam o sentido da mensagem, a


Senhora deixou de lado o francés que ela falava, e continuou no dialeto local:

"Voces neo compreendem, meus filhos. Eu Ihes falarei de outro modo.

Se voces tém trigo, nao o devem semear. Tudo o que semearem, os


animáis o comerao e o que os animáis nao comerem, o ano vindouro o
reduzirá a pó.

Vira urna grande fome. Antes que a fome chegue, as changas abaixo
de sete anos por-se-áo a tremer, e morrerao entre as maos das pessoas
que as segurarem.

502
A APARIQÁO DE LA SALETTE 23

Outras pessoas farao penitencia durante o periodo de fome. As no-


zes fícarao podres; e as uvas também. Se e/as se converterem, aspedras
e as rochas se tomarao montes de trigo, e as batatas seráo semeadas
para o próximo ano".
A seguir, a Senhora revelou a cada um dos dois adolescentes um
segredo, com a proibicáo de o divulgarem. Depois aínda se queixou da
profanacáo do domingo:

"Durante o veráo só vao á Missa algumas mulheres idosas, e as ou


tras trabalham. No invernó, os rapazes que nao sabem o que fazer, vao á
Missa somente para cagoarda religiao. O mundo nao respeita a Quares-
ma; eles vao ao agougue como caes".

Por fim, a Senhora parecía ter acabado o essencial da sua mensa-


gem. Pós-se entáo a fazer perguntas as changas, como se quisesse cer-
tificar-se de que haviam compreendido.

"Voces fazem realmente a sua oragao?"

- "Nao muito, Senhora", respondeu Melania.

- "É preciso fazé-la de manhá e de noite. Digam ao menos um Pai-


Nosso e urna Ave-María, qüando nao puderem fazer mais".

Perguntou ainda aos adolescentes se tinham visto, algumas vezes,


trigo apodrecido. Responderam negativamente. Entao a Senhora lem-
brou a Maximino que ele já o vira urna vez com seu pai.

Terminando, a Senhora falou mais urna vez em francés:

"Vamos, meus filhos! Transmitam-no a todo o meu povo".

Depois passou para a outra margem de um pequeño riacho, renovou o


seu último pedido e subiu na encosta. Chegada ao topo, elevou-se um metro
e meio ácima do solo, ficou um instante como que suspensa no ar, depois foi
desaparecerlo aos poucos até só ficar um claráo, que, por sua vez, se apagou.

Eis o teor das palavras da Virgem tais como Melania as ditou, no dia
seguinte ao da aparicao, aos moradores do povoado pouco letrados. Estes
escreveram em francés de má qualidade as palavras que Melania Ihes trans
mitía em dialeto mesclado de francés. Tal é a primeira redacao bruta, original.

O segundo relato é o do Pe. Mélin. Vigário de Corps, que interrogou


os videntes e moradores do povoado: "Procedí devagar ao colher informa-
cóes, escreveu, e nada pude depreender que demonstre o mínimo embuste
ou a mentira". No dia 4 de outubro, ou seja, duas semanas após a aparicao,
o Pe. Mélin escreveu ao Bispo de Grenoble, Mons. de Bruillard, fazendo urna
narrativa sucinta dos fatos e referindo brevemente os dizeres da Virgem.

Existe um terceiro relato, devido ao novo Vigário de La Salette, o Pe.


Louis Perrin, e datado do mesmo mes de outubro. Escreveu após ter
interrogado os dois videntes.

503
24 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

Pois bem. Nao se verificou nenhuma contradicáo de Melania ao rela


tar os acontecimentos aos seus diversos interlocutores. Maximino confir-
mou-os todos. Por conseguinte, tem-se urna documentacio sólida refe
rente a La Salette. Os escritos posteriores só fizeram confirmar os tres
relatos origináis.

2. A Posigao da Autoridade Diocesana

O Sr. Bispo diocesano, Mons. de Bruillard, informado pelo Pe. Mélin


aos 4/10/1846, examinou atentamente o caso. Em novembro submeteu-o
á apreciacáo dos Professores do Seminario de Grenoble e, em dezembro,
aos cónegos do cabido da catedral. Todos foram da opiniao de que qual-
quer pronunciamento seria prematuro.

A seguir, espalhou-se a noticia de curas obtidas em La Salette. Deu-


se urna polémica pelos jomáis de París, provocada pela publicacao de
urna brochura atinente ao assunto; o número de peregrinos ao local da
aparicao ia crescendo. Isto tudo levou o Sr. Bispo a abrir um inquérito
canónico aos 19/7/1847; estefoi confiado ao Cónego Rousselot, Professor
de Teología Moral no Seminario Diocesano, e ao Cónego Orcel, Reitor do
mesmo Seminario, que interrogaran^ os videntes, a populacáo e os sacer
dotes dos arredores, e também se informaram cuidadosamente a respeito
das apregoadas curas. O relatório daí decorrente, muito favorável, foi
submetido a urna comissáo de dezesseis membros, presidida pelo Bispo
diocesano. A comissáo se reuniu oito vezes em novembro e dezembro de
1847. Finalmente doze membros se manifestaran! em favor da realidade
da aparicao, e quatro contra, julgando as provas insuficientes.

Em Janeiro seguinte, o Sr. Bispo redigiu um parecer doutrinário favo


rável á aparicao, mas renunciou a publicá-lo, porque o Cardeal De Bonald,
Arcebispo de Liáo, do qual Mons. de Bruillard era sufragáneo, era avesso
ao caso. Todavía alguns meses maís tarde, o Cónego Rousselot publicou
o livro La Vérité sur l'événement de La Salette (A Verdade sobre o Aconte-
cimento de La Salette), livro que nada mais era do que o relatório previamen
te redigido com o Cónego Orcel. Tal obra se abría com urna "autorizacao"
de Mons. de Bruillard, datada de 1848; neste texto o prelado, pela primeira
vez, manifestava-se publicamente em favor da aparicao, sem porém, fa-
zer algum pronunciamento solene. Mons. De Bruillard concluía dizendo:
"A verdade, ás vezes, pode nao ser verossímil"; além do que apontava o
número de 100.000 peregrinos queja haviam visitado La Salette. Na mes-
ma época, o Sr. Bispo fundou a Confraría de Nossa Senhora Reconciliadora
dos Pecadores, titulo este que passou a caracterizar Nossa Senhora de La
Salette na Liturgia. Em 1849 Mons. de Bruillard comecou as negociacóes
para comprar o terreno da aparicao afim de lá construir um santuario. Desta
maneira o prelado preparava o seu laudo doutrinário, que foi publicado
aos 19/9/1851, cinco anos depois da manifestacáo da Virgem SS.: o Sr.
Bispo mandava que em todas as igrejas da diocese fosse lido um texto

504
A APARIQÁO DE LA SALETTE 25

que proclamava solenemente a autenticidade da aparicáo; "ela traz em si


mesma todas as características da verdade, de modo que os fiéis tém
fundamento para Ihe dar crédito isento de dúvidas e certeiro".

Antes de se publicar esta sentenga, os dois videntes redigiram por


escrito o segredo que a Virgem revelara a cada um. O texto respectivo foi
entregue ao Papa Pió IX em 18/7/1857. Algumas obras foram posterior
mente publicadas, alegando apresentar aos leitores o teor dos dois segre-
dos. Essas obras suscitaram ardente controversia, pois houve quem negas-
se a genuinidade de tais revelacdes; pode ser que o teor dos segredos tenha
sido depreendido de um rascunho feito por Melania e Maximino antes de
redigirem o texto definitivo para o Papa Pió IX. Os debates nao chegaram
a conclusáo alguma, pois o texto enviado pelos videntes ao Papa Pió IX nao
foi encontrado nem nos arquivos do pontificado deste Papa nem nos do San
to Oficio. Em conseqüéncia, nao há como dirimir as dúvidas pendentes.

3. Conclusóes

A Igreja nao pode definir, como artigo de fé, a autenticidade de alguma


revelacáo particular, pois a revelacáo das verdades de fé está encerrada
com a geracao dos Apostólos. Contudo vé-se que a autoridade diocesana de
Grenoble, em seu tempo, após meticuloso exame dos fatos, reconheceu a
genuinidade da aparicáo, atríbuindo-lhe credenciais que a tomam digna de
aceitacao "certeira e isenta de dúvidas". Fica entáo ao arbitrio de cada fiel
católico dar ou nao o seu assentimento aos acontecimentos de La Salette.

O Santo Padre Joao Paulo II, por ocasiáo do sesqüicentenário da


aparicáo, ou seja, aos 6/5/1996, publicou urna mensagem referente ao
assunto, em que nada define em materia de fé, mas procura deduzir das
palavras atribuidas a Nossa Senhora urna licáo para os nossos tempos.
Eis o que escreve o Papa:

"La Salette é urna mensagem de esperanga, pois nossa esperanga é


sustentada pela intercessao daquela que é a Máe dos homens. As ruptu
ras nao sao irremediáveis. A noite do pecado cede diante da luz da mise
ricordia divina. O sofrimento humano assumido pode contribuir para a pu-
rificagao e a salvagáo. Para quem caminha humildemente ñas estradas do
Senhor, o braco do Filho de María n§o pesará para condenar, mas segura
rá a mao que se estende, para fazer entrar na vida nova os pecadores
reconciliados pela graga da Cruz.

As palavras de Mana em La Salette, porsua simplicidade e seu rígor,


guardam verdadeira atualidade num mundo que sofre sempre os flagelos
da guerra e da fome e tantos males que sao sinais e, muitas vezes, conse
qüéncia do pecado dos homens. E hoje ainda Aqueta que todas as gera-
góes chamam bem-aventurada (Le 1,48), quer levar todo o seu povo que
atravessa as provagóes deste tempo, á alegría que nasce do cumprímento
tranquilo das tarefas dadas aos homens porDeus".

505
Pergunta-se cada vez mais:

OUTROS MUNDOS HABITADOS?

Etn síntese: A fé nao rejeita a possibilidade de haveroutros mundos


habitados por seres inteligentes. Até Galileu (sáculo XVII), esta hipótese
nao era admitida, pois sejulgava que a Térra fosse o centro do universo,
planeta privilegiado por ser também o único portador da vida. Após Galileu
os horizontes se abriram, de tal modo que há teólogos que apontam a con
veniencia de existirem seres inteligentes fora da Térra; na verdade, tantos
corpos celestes parecem postular a presenga de seres que, contemplan-
do-os de perto, déem gloria ao Criador.

Se na realidade existem ou nao tais criaturas inteligentes, cabe á ci


encia dizé-lo. Até hoje os mais sabios dos estudiosos se mostram reticen
tes sobre o assunto. A Teología tem a afimnarque, se de fato existem, s§o
criaturas do mesmo Deus que fez o mundo terrestre e o homem; a Ele
prestam culto e aos seus ditames obedecem.

A partir do século passado, e principalmente em nossos dias (por


causa dos discos voadores), pergunta-se com insistencia crescente: "Ha-
verá outros mundos habitados por seres inteligentes? Seria esta teoria
compatível com os dados da fé crista?"111 Nestas páginas ¡nteressar-nos-
emos principalmente pelos aspectos religiosos e teológicos da temática.

1. A Discussáo até o Século XX

Há quem afirme que as indagacoes comegaram antes de Cristo.

Já no século VI a.C. o filósofo grego Xenófanes teria afirmado que a


Lúa pode ter habitantes. Muitos anos mais tarde Anaxágoras, Leucipo,
Demócrito, Parménides e os pitagóricos teráo assegurado haver em ou
tros planetas seres inteligentes. No século IV a.C. Platáo e, depois, Epicuro
teráo defendido semelhante tese, mas Aristóteles e os estoicos se Ihe te-
rao oposto.

<» Eis, porexemplo. urna noticia do JORNAL DO BRASIL, 14/6/96. p.14:


"IMAGENS DIVULGADAS PELA NASA FAZEM CRER NA POSSIBILIDADE DE VIDA
Pasadena, EUA - Novas informagóes enviadas pela sonda Galileu indicam que pode
haver agua no Europa, urna das lúas de Júpiter. A descoberta aumenta a possibilida
de de que existam condigóes para formas primitivas de vida, dizem os dentistas da
Nasa, a agencia espacial americana. Eles acreditam que agua em estado líquido
possa ter existido, ou mesmo que aínda exista, sob a superficie".

506
OUTROS MUNDOS HABITADOS? 27

Saltando sáculos, podemos dizer que o primeiro pensador que, com


mais exato conhecimento de causa, tenha movido a questáo da pluralidade
dos mundos habitados, foi o Cardeal Nicolau de Cusa (t 1464). Respon-
dia-lhe imprecisa, mas arrojadamente, na obra De docta ignorantia (1440),
afirmando nao haver urna estrela da qual estejamos autorizados a excluir
a existencia de seres humanos, por muito diferentes que sejam de nos (De
docta ignorantia. I. II, op. 12).

Todavía, enquanto as diversas correntes do pensamento humano eram


norteadas por urna visáo geocéntrica do mundo (sistema ptolemaico), os
teólogos difícilmente podiam conceber que o homem, obra-prima da cria-
cáo, pudesse existir fora do centro do universo e fora do ambiente em que
o Filho de Deus se encarnara.

Com Copérnico (t 1543) e Galileu (t 1642), a mentalidade ocidental


evoluiu, e evoluiu nao somente no setor da ciencia, mas também quanto
ao modo de considerar certas questoes teológicas.'1' Desembarazándo
se do geocentrismo, para admitir que a Térra é um planeta devedor do Sol,
os teólogos viram abrir-se-lhes novos horizontes: nao tardou a Ihes surgir
de novo á mente, e em termos mais serios, a questáo da pluralidade dos
mundos habitados, suscitando logo debate de vivacidade extraordinaria.

O próprio Galileu observara na Lúa, e em outros corpos celestes,


condigoes análogas as da térra. Pouco faltaría para que dissesse serem
também habitados.'2' Esta possivel conseqüéncia apavorou os teólogos
contemporáneos de Galileu. que nela viam urna ameaca ao dogma cris-
táo. "Como poderiam os homens de outros planetas ser descendentes de
Adáo, ter saído da arca de Noé, etc.?", eram questoes que Ihes pareciam
surgir das novas idéias (embora sem cabimento).(3)

01 Táo grande foi a novidade introduzida por Copémico na mentalidade ocidental que,
aínda no secuto passado. o Pe. Angelo Secchi S.J. (f 1878), famoso astrónomo de
Roma, julgava que aquele estudioso recolhera um eco da ciencia que Deus comuni-
cou a Adáo quando o criou... Cf. Lezioni elementan di Física terrestre. Torino e
Roma 1879. 187.
(8 Scheiner fazia notar que as teorías de Galileu levariam ao "absurdo" de admitir
habitantes em Júpiter, Venus e na Lúa. Cf. carta a Frederico Cesi, de 25 de Janeiro de
1613, em Le opere di Galileo Galilei XI 467.
(í> Eis, a propósito, o trecho de urna carta do Abade Giovanni Ciampoli a Galileu,
escrita aos 28 de fevereiro de 1615: "Quando si porta novitá, ben che per ingegno
ammiranda, non ogn'uno ha il cuore sema passione, che voglia prenderle cose como
son dette: chi amplifíca, chi tramuta; tal cosa di bocea dal primo autore, che tanta saré
transfórmala nel divolgarsi, che piú non la riconsecerá per sua. E io so quello che dico:
perché la sua opinione quanto a quei fenomeni della luce e dell'ombre della parte pura
e delle macchie. pone qualche similitudine tra il globo terrestre, e il tunare; un altro
cresce, e dice che pone gl'uomini habitaton della luna; e quell'altm cominda a disputare
come possano essere discesi da Adamo, e usciti dall'arca di Noé con molte altre
stravaganze ch'ella non sognó mal" (Le opere di Galileo GalileiXI1146.)

507
28 TERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

Eis. por exemplo, como o Pe. Le Cazre expunha a Gassendi (t 1655),


sacerdote, físico e filósofo adepto do sistema de Copérnico, seus receios
a propósito da nova teoría, que ensinava nao ser a térra senáo um planeta
"como os outros"; neste caso, dizia, nao se perceberia por que só ela teria
o monopolio de ser habitada; outros planetas, também as estrelas fixas,
poderiam ter seus povos; e, assim sendo, como sustentar a doutrina de
Gn 1,14. que ensina terem sido as estrelas criadas a fim de iluminar a térra
e determinar as estacóes para proveito dos homens?"'

A hesítacáo é compreensivel; mentalidade e teses multisseculares


n3o podiam ceder repentinamente, de mais a mais que os exegetas, por
falta dos devidos instrumentos de estudo, aínda entendiam certas passa-
gens da Sagrada Escritura (principalmente dos livros do Génesis e de
Josué) em sentido inadequado.

Aos poucos os temores se foram dissipando. Os espíritos, ganhando


mais familiaridade com o heliocentrismo, consideravam mais objetivamente
a hipótese de muitos mundos habitados.

Em 1868, Fontenelle defendía a tese no livro "Pluralité des mondes",


que ficou famoso.

Na época subseqüente, nao recearam julgar favoravelmente a ques-


tao perante o público dois grandes conferencistas de Notre-Dame de Pa
rís: os padres Félix S.J. (t 1891) e Monsabré O.P. (t 1907). O prímeiro
afirmava que a existencia de outros mundos habitados constituía um bom
argumento de Apologética, pois permitía responder á objecáo derivada do
"pequeño número de eleítos":'21 com efeito, mesmo que muítos homens se

«" Assim escrevia Le Cazre: 'Cogita igitur non quid tu forte ipse sentías, sed quid
aestimaturisintpleriquealii, quitua vel auctorítate, vel rationibus inducti sibi persuaserint
Telluris globum Ínter planetas moveri. Concludent prímum unum e planetis sine dubio
esse terram. quae cum Íncolas habeat. proclive, erit deinde etiam credere, in ceteris
quoque planetis, atque adeo in ipsis item inerrantibus stellis íncolas non deesse, et
tanto quidem praestantiores, quanto reliqua sidera terram magnitudine ac períectione
excedunt. Hinc Génesis in suspicionem vocabitur, dum ait terram ante reliqua sidera
factam, ¡llaque quarto tantum post die condita, ut illumínarent terram, temporaque et
annosmetírentur. Indetota Verbilncamatioeconomia, atque evangélica veritas suspecta
reddetur, immo ettota fídes christiana. quae et supponit et docet sidera omnia, non ad
hominum autaliarumcriaturarum habitationem, sedsolum ut terram sua luce cotlustrent,
foecundentque, esse a Deo Conditore producía. Vides igitur quam ista periculose in
publicum divulgentur. et a viris praesertim qui sua auctoritate fidem faceré videntur..."
(Obras de Pedro Gassendi. Uáo 1658, vol. VI 451.)
121 Félix assim falava aos adversarios da fé: "Quanto ao dogma católico, nao somente
ele nao vé dificuldade nessa grande hipótese, mas nao temo dizer que nela encontra
um recurso para responder a vos e urna arma para defenderse dos ataques." (La
Genése et les sciences modernes. París 1863).

508
OUTROS MUNDOS HABITADOS? 29

percam no inferno, o seu número é talvez infinitesimal em comparagáo


com a multidao de criaturas racionáis, que povoam as estrelas e perma-
neceráo fiéis a Deus. Monsabré nao hesitava em dizer que a Encarnagáo
realizada em nossa térra nao foi talvez senáo o gesto do Bom Pastor que
veio buscar urna ovelha perdida neste mundo, enquanto noventa e nove
outras Ihe ficam fiéis, habitando os outros astros."1

2. No século XX

Nenhum teólogo dos tempos recentes se esforgou por fundamentar a


hipótese como o Pe. Joseph Pohle S.J. (t 1922). Propugnou-a profusa
mente em sua obra Die Sternenwelt und ihre Bewohner, Colonia, 1884.
a qual, fazendo grande sucesso, suscitando também acalorados debates,
conheceu a sua sétima edigáo em 1922. O autor julgava que nao só as
ciencias experimentáis, mas também os principios de urna sá filosofía e
da Teología testemunham em favor da existencia de seres inteligentes nos
astros habitáveis. E quais os argumentos em que se baseava?

1o e principal) Deus tudo criou para a Sua gloria. Ora, gloria nenhu-
ma é dada a Deus sem a existencia de seres inteligentes capazes de co-
nhecer as obras do Criador e tributar-Lhe o conseqüente louvor. O ho-
mem na térra, porém, nao basta a isto. Com efeito, existe avultado núme
ro de estrelas, planetas e astros, que escapam totalmente á ciencia huma-
na.(2> Quem entáo prestará, em nome dessas criaturas, homenagem ao
Criador? Também os anjos nao estao habilitados a isto, pois as criaturas
materíais nao constituem senáo o objeto secundario da inteligencia angélica;
os puros espirites versam no mundo espiritual, nao no corpóreo. Donde
concluí Pohle:

"Parece absolutamente conforme ao fim último do Universo que os


corpos celestes habitáveis sejam povoados de críaturas que referen) á glo
ria do Criadora beleza corporal dos seus respectivos mundos, exatamente
como o homem o faz na Tena".13'

(l) Eis as palavras de Monsabré: "Por que os astros neo seríam povoados de seres
menos nobres do que os anjos, mais nobres, porém, do que nos? Entre a vida intuitiva
dos puros espiritos e a nossa vida, composta, racional, sensitiva e vegetativa, há
lugar para outros tipos de vida. Tivemos, é verdade, a Encamagéo... Nao será talvez
porque o Divino Pastor, querendo levar todo o seu rebanho ao pasto da etema felici-
dade, deixou nos espagos as noventa e nove ovelhas para vir buscar aqui na térra a
centésima, que se perderá?" (Exposition du dogme catholique, conf. CU).
(2> De acordó com os resultados da ciencia moderna, dir-se-ia: existem 400 milhóes de
galaxias, ou nebulosas espiráis, constituida cada qual de centenas de milhóes de
sois, dos quais neo poucos tém em tomo de si planetas a gravitar.
m Ob. cit. 4a ed. 1904, 457.

509
30 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

Este primeiro argumento era explorado também pelo Pe. Secchi, que,
em 1877, escrevia:

"A nos parece absurdo considerar essas vastas regióes como de-
sertos despovoados; devem ser habitadas por seres inteligentes e racio
náis, capazes de conhecer. homenageare amaro seu Criador".w

2°) Segundo S. Tomás (cf. S. Teol, I 50,3c; Contra Gentes, 2,92), a


ordem do Universo exige que os seres mais nobres ultrapassem numérica
ou quantitativamente os menos nobres, urna vez que estes foram feitos
em vista daqueles. É preciso, pois, admitamos o maior número possível
das criaturas mais nobres. Em conseqüéncia, considerar-se-á ao menos
como provável a existencia de seres racionáis ñas esferas celestes habi-
táveis, visto serem mais dignos e perfeitos do que as criaturas meramente
corpóreas.*21

38) A Sabedoria e a Onipoténcia de Deus se manifestam de modo


estupendo no número e na variedade de seres existentes no nosso mun
do. Estes, porém, estáo longe de esgotar os atributos do Criador; muitos

"• Le So/e//. París 1877, vol. II 480.


O qualifícativo de parecer absurdo voltava aínda recentemente sob a pena de Bavink,
Risultati e problemi delle scienze naturali. Firenze 1947, 272: "Se todo esse univer
so deve ter um sentido, parece-me de todo absurdo procurar esse sentido únicamen
te na nossa historiazinha terrestre".
oí Os dados tradicionais da ciencia tevam a afirmar que os seres vivos constituem no
universo urna parcela numéricamente insignificante, quando comparados aos seres
inanimados. A vida é extremamente rara no conjunto do cosmo; e a regiao que e/a
ocupa constituí urna ínfima porgáo do conjunto. Com efeito, a massa dos homens
poderia estar contida aproximadamente 60 trilhóes de vezes na massa da térra; esta,
por seu tumo, caberia mais de 300.000 vezes na massa do Sol! E entre os diversos
planetas intercedem distancias de dezenas, centenas e ou milhares de anos de luz
(dados colhidos em P. Laberenne, (.'origine des mondes. París3, 149). Sob varios
aspectos, porém, a Térra aparece como algo de único no universo. Por exemplo, os
cornos sólidos de que e/a se compóe. sao raros no cosmo: 99% de materia do univer
so constam dos dois elementos mais leves - o hidrogénio e o helio; todos os outros
corpos reunidos nao perfazem senao 1%da massa total do Universo. - Mais aínda: a
temperatura do Universo varia de 35.000.000' F. (no interior das estrelas) ao 0° abso
luto (-459. 69° F.) ñas extremidades do espago, donde se concluí que a materia do
Universo deve constar quase totalmente de gases luminosos num equilibrio instávele
altamente ionizado: nessa massa gasosa giram aquí e ali alguns poucos átomos de
poeira fria e de rochas. Somente numa zona temperada muito estreita, como é a
órbita da térra, ó que a massa gasosa pode assumlra forma liquida, tal como se acha
na agua, nos animáis, nos planetas. Táo singular como é, a térra está longe de ser o
centro do Universo; é apenas um pequeño satélite de urna estrela de segunda gran
deza colocada na periferia da Via-Láctea. Por sua vez, esta nossa Vía-Láctea se
acha na periferia de um conjunto de outras constelagóes do espago.

510
OUTROS MUNDOS HABITADOS? 31

outros tipos de criaturas se poderiam ainda conceber como reflexos da


Perfeicáo Divina. Sendo assim, parece muito harmonioso que a Sabedo-
ria de Deus se tenha manifestado em formas ainda mais variadas ñas
esferas celestes capazes de organizacáo e vida.

4o) A depravacáo mesma da especie humana que conhecemos, con


vida-nos a admitir que existe um mundo de homens melhores. Se o ho-
mem desta térra fosse a única sintese de materia e espirito, deveríamos
confessar que o género humano cumpre muito mal a sua tarefa de servir e
glorificar a Deus. Quantas infidelidades nao se cometem! Que doloroso
espetáculo nao é o da historia dos homens! Ora, nenhum pai, podendo
escolher entre bons e maus filhos, se cercaría apenas de maus filhos.

Tais sao os argumentos de Pohle. Representam realmente tudo


que em Teología se possa dizer em favor da pluralídade dos mundos
habitados.

Que valor se Ihes há de atribuir?

3. Que dizer?

A 1o de novembro de 1952, o Pe. D. Grasso S.J. publicava um artigo


na revista "Civiltá Cattolica",1" em que, após analisar esses raciocinios,
concluía que nao se Ihes pode negar um certo peso ("attendibilitá"); toda
vía, nao deve ser exagerado o seu alcance: o primeiro argumento, tomado
a rigor, levaría a admitir a existencia de seres racionáis também ñas
profundezas dos océanos inacessiveis á exploracáo humana... Grasso jul-
ga que a argumentacáo de Pohle se ressente de um antropomorfismo
vago e inconsciente.

A pluralidade dos mundos habitados, porconseguinte, fica sendo urna


hipótese, á qual cada um pode dar o valor que Ihe julgue convir. Os deba
tes entre os teólogos serviram ao menos a evidenciar que, por parte da fé
católica, nada há que se oponha á recente conjetura: nem a Escritura nem
a Tradicáo abordam o problema; quanto ao Magisterio da Igreja, a Sagra
da Congregacáo do índice, em meados do século passado, encarregou o
Pe. Moigno, famoso teólogo e astrónomo do seu tempo, de inculcar que
os dogmas da Encarnacáo e da Redencáo "nao constituem obstáculo á
hipótese de outros mundos habitados"; desde entáo, a Igreja nao se pro-
nunciou mais oficialmente sobre o assunto e deixa liberdade de pesquisa
aos estudiosos. A última palavra no debate cabe, pois, aos dentistas (caso
a possam dar), mais do que aos teólogos.

<" La Teología e la pluralitá del mondi abitatí, em "La Civiltá Cattolica", 1/X/1952.

511
32 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

A titulo de curiosidade, notamos: um autor americano, Francis Connell,


no periódico Catholic Standard, de 8 de agosto de 1952, procurava de
senvolver um pouco mais a hipótese, conjeturando as possíveis formas
de relacóes dos homens "extra-telurianos" com o Criador. Connell supóe
que nao seriam descendentes de Adáo e que, por conseguinte, Deus con-
cebeu um plano de salvacáo para essas criaturas diverso do que tracou
para nos. Eis o que entáo se pode imaginar:

1) os homens "extra-terrestres" teráo sido, como Adáo e Eva, prenda


dos originariamente de dons naturais, preternaturais e sobrenaturais. Su-
jeitos a urna provacáo inicial (análoga á dos anjos e á da nossa especie)
té-la-iam superado fielmente a Deus, conservando, em conseqüéncia, as
prerrogativas origináis (coisa que os terrestres perderam). Sendo assim,
vivem num bem-estar, espiritual e material, a nos desconhecido; nao ex-
perimentam nem o sofrimento nem a morte, nem os nossos problemas
políticos e sociais; além disto, devem achar-se em nivel científico muito
superior ao nosso. Quanto á religiáo, tais homens teriam em comum co-
nosco dogmas muito sublimes: Unidade e Trindade de Deus, existencia
dos anjos, a graca, etc., mas de modo nenhum viveriam da Redencáo e
dos sacramentos, que nos salvam;

2) os homens "extra-telurianos", submetidos á provagáo, pecaram...


Neste caso, pode-se pensar ou que Deus os tenha deixado para sempre
entregues á sua triste sorte ou que os haja resgatado por outra via que a
nos ou que os queira remir pelos méritos de Cristo; neste última hipótese,
dar-lhes-ia a conhecer a Redencáo realizada na térra e deles exigiria a fé
como meio indispensável para a salvacáo. Dado o pecado inicial, a vida
dos homens "extra-telurianos" se desenvolvería em meio ás mesmas difi-
culdades moráis e espirituais que experimentamos. Os seus conhecimen-
tos científicos poderiam ser superiores ou inferiores aos nossos, conforme
as condicóes somáticas e climatéricas favorecessem ou entravassem o
desenvolvimento natural da inteligencia. - É interessanté notar que Connell
nao pondera a conjetura de urna Encarnacáo de Deus em outro planeta,
embora a uniáo de Deus e homem numa só pessoa, por muito maravilho-
sa que seja, possa ser repetida pela Onipoténcia divina;

3) pode-se admitir também que Deus nunca tenha elevado os ho


mens "extra-telurianos" á ordem sobrenatural. O seu último fim, portanto,
consistiría em conhecer e amar a Deus proporcional mente ao exercicio
de suas faculdades espirituais; depois da morte gozariam de felicidade
natural.

Inútil é prosseguirmos tal encastelamento de hipóteses, que servem


para estimular a fantasía mais do que para alimentar a fé.

512
Discute-se:

ABERTURA DOS CASSINOS

Em síntese: Um Manifestó dos Bispos do México, apresentado nes-


tas páginas, desfaz a ilusoria alegagáo de que a abertura dos cassinos
pode beneficiara economía, o turismo, o trabalho.... em suma, o desenvol-
vimento do país. Muitos interesses ocultos, nem sempre honestos, concor-
rem para dissipar qualquer falso otimismo. Ademáis a corrupgao dos
govemantes e empresarios, que tem causado graves danos aopais (Méxi
co e também... Brasil), faz enarque os mais beneficiados pela legalizagáo
dojogo seriam os magnatas do pais, e os grandes perdedores seriam os
pobres ou o povo.

Além disto, fortes razóes de ordem moral opoem-se a abertura dos


cassinos. As drogas, os crimes, os suicidios, a dissolugao dos lares... es-
táo fácilmente associados a praxe do jogo, que é capaz de acender as
paixóes e obcecar as mentes. Procurar ganhar dinheiro sem trabalhar é
contrario á dignidade do ser humano e ao preceito divino; vale muito mais
a alegría proporcionada ao trabalhadorporhaverganho o seu pao median
te um trabalho honesto.

Discute-se no Brasil a conveniencia de reabrir os cassinos de ma-


neira oficial; há mesmo um projeto de lei que neste sentido tramita no
Congresso. - Eis que o México passa por fase idéntica á nossa, pois lá
também está em foco o mesmo problema. Os Bispos daquele país resol-
veram manifestar-se a respeito numa Declaracio incisiva e muito sensa
ta, que vale a pena reproduzirem tradugáo brasileira, visto que o seu conteú-
do corresponde exatamente áquilo que se deve dizer a propósito no Brasil.

Em data de 19 de abril de 1996 o Conselho Permanente da Confe


rencia Episcopal do México, em nome dos Bispos do pais, publicou o se-
güinte texto:

"Aos nossos Irmáos Sacerdotes e aos Membros dos Institutos de


Vida Consagrada,

Aos Pais e Mies de Familia,

A Todos os Fiéis Católicos,

513
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 41V1996

1. Nos vos saudamos fraternalmente. Em virtude de nossa missáo


pastoral, desejamos exprimir-vos o nosso modo de pensar a respeito do
projeto, de que falaram os meios de comunicagáo, de instalar no territorio
da República do México, cassinos ou casas de jogo. Instancias governa-
mentais e empresas nacionais e estrangeiras estáo ¡mediatamente inte-
ressadas em promover esse projeto.

2. As vantagens atribuidas a tal proposicáo seriam, entre outras, a


entrada de divisas, maior afluencia de turistas, a criacáo de empregos e a
aceleracáo do crescimento de um país em desenvolvimento, posto a bra
cos com grandes problemas financeiros.

3. Está claro que estas vantagens nao tém todas o mesmo valor e
nao gozam da mesma credibilidade. A avaliacáo das mesmas depende,
ao menos em parte, dos interesses ¡mediatos, das expectativas que o pro
jeto suscita e das experiencias peculiares das empresas contactadas para
as estudar e analisar. A vigilancia e o rígido controle do manejamento de
dinheiro prometidos estio necessariamente condicionados pela honesti-
dade e a eficacia das instancias do Governo e das empresas, cujo descré
dito moral infelizmente nao tem deixado de se tornar sempre mais grave.
As aliancas entre chefes políticos e empresarios causaram ao país danos
muito graves e nos dáo a crer que estes nao deveráo acabar como por en
canto, mediante a promulgacáo de urna nova lei e a criacáo de um Conselho
de Vigilancia, tanto mais que se trata ai de urna área altamente cobicada.

4. De outro lado, alguns póem em dúvida o incremento do turismo,


ao menos em nivel que mereca atencáo, dado que sao relativamente pou-
co numerosas as pessoas que planejam suas viagens em funcáo de urna
casa de jogo. Em geral, o jogo é apenas um motivo suplementar e, de
modo nenhum, determinante no planejamento do itinerario de urna via-
gem. A afluencia de turistas seria maior se os visitantes pudessem contar
com melhores servicos e mais seguranca ñas rúas e ñas estradas.

5. A presenca do tráfico de drogas nos cassinos e suas relagóes


com a lavagem de dinheiro sujo preocupam também muitos cidadáos as-
sim como as autoridades. Chegam mesmo a questionar a rentabilidade
económica dessas empresas, dado que elas pagam geralmente a maioria
de seus impostes ao estrangeiro em virtude da origem dos capitais aplica
dos, dos investimentos importantes, do pagamento dosroyalties, dos cus-
tos da administracáo, cujos salarios e cujo pessoal sao internacionais. Nos,
Mexicanos, temos urna longa e dolorosa experiencia da evasao de capi
tais e de divisas; nao vemos como as coisas poderiam ocorrer diversa
mente ñas casas de jogo.

6. A criacáo de empregos também é sujeita a questionamento, pois


os empregos criados ñas instituicoes balnearias contribuem para agravar

514
ABERTURA DOS CASSINOS 35

a dependencia e o desarraigamento em relacáo aos ambientes de origem


do pessoal. Mais: o contato superficial com os estrangeiros é um convite á
emigragáo. Esse tipo de centros turísticos se transforma freqüentemente
em trampolim para ultrapassarem as fronteiras do pais.

CERTEIROS RISCOS DE CORRUPQÁO

7. Numa paiavra, aquilo que apresentam, sem mais, como vanta-


gens, exige urna análise mais objetiva e mais aprofundada, difícil de ser
efetuada por causa da índole arriscada de um tal setor e, principalmente,
por causa das condicóes desfavoráveis que impedem o controte e a trans
parencia. Por conseguinte, mesmo do ponto de vista económico e social,
essas casas de jogo sao discutiveis em nosso país.

8. Todavía estas observacóes nao constituem a nossa objecáo prin


cipal ao projeto de instalacáo de cassinos em nosso pais. Nosso mais
flagrante desacordó é de ordem cultural e moral. Fundamenta-se na esca
la de valores. O Catecismo da Igreja Católica nos ensina que 'os jogos de
azar (jogos de cartas e outros) ou apostas em si nao sao contrarios á
justica. Mas tornam-se moralmente inaceitáveis quando privam a pessoa
daquilo que Ihe é precioso para suprir suas necessidades e as dos outros.
A paixáo pelo jogo corre o risco de se transformar em dependencia grave.
Apostar injustamente ou trapacear no jogo constituí materia grave, a me
nos que o daño infligido seja táo pequeño que aquele que o sofre nao
possa razoavelmente considerá-lo significativo' (n° 2413).

9. Por conseguinte. sao os excessos e as circunstancias que tomam


imoral essa prática: circunstancias contrarias que difícilmente podem ser
removidas por causa da corrupcáo reinante e em virtude de excessos ine-
vitáveis, dada a pseudo-cultura do consumismo e do dinheiro fácil, que
domina o país e que essas casas de jogo nao podem deixar de tornar mais
vultosa. Com pesar, temos que reconhecer a ineficacia da administracáo
de empresas em si altamente rentáveis, como também o desinteresse
culposo em relacáo aos nossos recursos naturais, inclusive aos do turis
mo. Presumir que háo de administrar de maneira limpa e proficua para o
pais urna área táo cobicada quanto arriscada, é, infelizmente, algo de
¡mpensável entre nos. Por conseguinte, é de prever que os cassinos con-
tribuiráo para aumentar a corrupcáo em níveis diversos e para favorecer a
pseudocultura das apostas, que sao a pesada cruz do nosso país.

GANHAR O PAO AO SUOR DA SUA FRONTE

10. Em nosso pais, é preciso promover urna auténtica cultura da


administracáo e do uso correto dos bens da criacáo e do trabalho humano.

515
36 TERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

'Ganhar o pao ao suor da sua fronte' é tanto um direito humano quanto um


preceito divino. A esse preceito opóe-se o dinheiro fácil, injustamente acu
mulado e possuído, assim como a indolencia e o recurso temerario á Pro
videncia Divina. Devemos sempre colocar em primeiro lugar a dignidade
e a alegría que decorrem, para o homem, da consciéncia de ter ganho o
pao em conseqüéncia de um trabalho honesto. Isto deve prevalecer sobre
o prazer pouco digno de quem se contenta com despojar o próximo do
fruto do seu trabalho.

11. A Igreja nos ensina que 'o respeito á dignidade humana exige a
prática da virtude da temperanca para moderar o apego aos bens deste
mundo; da virtude da justica, para preservar os direitos do próximo e Ihe
dar o que Ihe é devido; e da solidariedade, segundo a regra áurea e segun
do a liberalidade do Senhor, que 'se fez pobre, embora fosse rico, para
nos enriquecer com a sua pobreza" (2Cor 8,9)' (Catecismo da Igreja Ca
tólica n° 2407).

A falta dessas virtudes cristas na gestáo dos bens temporais acarre


to u sobre nos graves males a ponto de dar a impressáo de ter transforma
do o nosso pais, em certas áreas da economía, em um grande cassino, no
qual sao as figuras marcantes que ganham, aquelas que jogam com car
tas falsas, aquelas que encontram abertura e protecáo da parte das auto
ridades, e no qual o pobre, isto é, o povo, perde ¡rremediavelmente.

12. Aplicando estas ponderacóes á nossa situacáo concreta, julga-


mos que a instalacáo de cassinos corre o risco de agravar a corrupcáo e a
injustiga em nosso país. O cassino privilegia a especulacáo com detrimen
to do investimento; é o trabalhador quem assim perde. Seria mais sadio e,
a longo prazo, mais rendoso oferecer ao visitante um turismo mais huma
no, ligado nao só as praias e aos centros turísticos de super-luxo, mas
principalmente á nossa cultura rica e variada e á bela natureza que Deus
nos deu. O que se chama o ecoturismo, atualmente em moda em muitos
países em que está enraizada a trad¡9§o de viajar, poderia ser urna alter
nativa válida, mais consentánea com a nossa tradicáo de hospitalidade e a
nossa tradicáo crista, humanamente enriquecedoras, as quais contribuiri-
am para o desenvolvimento social, cultural e económico das regióes, e
nao somente das casas de jogo e dos seus poderosos proprietários.

13. Em conclusáo. lembramos a todos os fiéis católicos o dever de


rezar por nossa patria e nossos governantes, a fim de que 'o Senhor. que
tem ñas máos o coracáo dos homens e garante os direitos dos povos", nos
conceda 'urna paz duradoura, um auténtico progresso social e urna verda-
deira liberdade religiosa' (Liturgia da Sexta-feira Santa). Nos o pedimos
pela intercessáo de Nossa Senhora de Guadalupe.

516
ABERTURA DOS CASSINOS 37

Na sexagésima assembléia plenária da Conferencia Episcopal do


México.

México, 19 de abril de 1996.

Pelos Bispos do México

Os Membros do Conselho Permanente"

Este texto, corajoso como é, aplica-se bem ao Brasil.

Desfaz a ilusoria alegagáo de que a abertura dos cassinos pode


beneficiar a economía, o turismo, o trabalho..., em suma, o desenvolví-
mento do país. Muitos ¡nteresses ocultos, nem sempre honestos, concor-
rem para dissipar qualquer falso otimismo. Ademáis a corrupcao dos
governantes e empresarios, que tem causado graves danos ao país, faz
crer que os mais beneficiados pela legalizacáo do jogo seriam os magna
tas do país e os grandes perdedores seriam os pobres ou o povo.

Além disto, fortes razóes de ordem moral opoem-se á abertura das


casas de jogo. As drogas, os crimes, os suicidios, a dissolucáo dos lares...
estáo fácilmente associados á praxe do jogo, que é capaz de acender as
paixdes e obcecar as mentes. Procurar ganhar dinheiro sem trabalhar é
contrario á dignidade do ser humano e ao preceito divino; vale muito mais
a alegría proporcionada ao trabalhador por haver ganho o seu pao medi
ante um trabalho honesto.

O México, como também o Brasil, tem belos atrativos turísticos oca


sionados pela prodigiosa natureza desses países e aptos a promover um
turismo sadio e dignificante. - Possam os governantes e responsáveis
das duas nacóes compenetrar-se da insensatez do projeto de legalizar o
jogo, e voltar-se para outros fatores de desenvolvimento mais dignos e
auténticos!

APROXIMA-SE O NATAL...

Caro(a) Leitor(a), todo ser humano, além de anseios materiais,


traz em si perguntas básicas: "Donde venho? Para onde vou? Quem
sou eu?". - Nossa revista procura contribuir para a reflexao sobre
tais indagacóes fundamentáis. Daí a sugestáo: Nao quer dar a seus
familiares e amigos urna assintura de PERGUNTE E RESPONDERE
MOS 1997 como presente de Natal? Cada fascículo tornará vocé pre
sente mensalmente a esses seus companheiros de caminhada.

517
Vem do Oriente:

A TEOSOFÍA: QUE É?

Em síntese: A Teosofía é urna escola de pensamento de fundo


hinduista. A filosofía religiosa da india antiga foi reelaborada pela Sra. He
lena Blavatsky, que Ihe deu sua formulagáo pessoal, incluindo as teses do
panteísmo e da reencamagáo. A Teosofía assim concebida apresenta-se
como a quintesséncia ou a súmula de todas as religióes - o que aira/ muitos
adeptos. A correóte teosófíca tem exercido grande influencia na síntese
proposta pela Nova Era; esta associa o pensamento hinduista a concep-
goes espiritas, ufológicas, gnóstícas, holisticas..., que nem sempre se com-
binam harmoniosamente entre si.

Diz-se que a Teosofía é a sabedoria do homem espiritualmente


maduro ou emancipado de crencas infantis. - Vale a pena examinar esta
proposicao.

1. Teosofía: o Nome

"Teosofía" é vocábulo que geralmente se contrapee a "Teología". Este


termo (composto do grego Theós, Deus. e Logos, razáo) costuma desig
nar o trabalho da inteligencia que reflete sobre as proposicóes da fé, a fim
de Ihes penetrar o sentido profundo. Ao contrario, Teosofía (...sophía=sa-
bedoria) vem a ser, como dizem, o conhecimento concernente a Deus
recebido por revelagao direta da Divindade ou por iluminacáo reservada a
poucos; atinge verdades que o raciocinio já nao consegue alcancar...

O título "Teosofía" já era usado por escolas antigás, como a dos


Neoplatónicos (séc. III/VI d. C), a dos Cabalistas, a dos Alquimistas. De-
pois de haver caído em descrédito, dada a fantasmagoría dessas escolas,
foi reabilitado no fim do século passado por urna corrente de pensamento
que refundía idéias antigás, adaptando-as a circunstancias novas. Sendo
assim, comecaremos nosso estudo propondo breve histórico das origens
da Sociedade Teosófíca; a seguir, percorreremos as principáis doutrinas
teosóficas, para finalmente tomar posicáo diante dessa concepcio.

518
A TEOSOFÍA: QUE É? 39

1. Breve Histórico

Protagonistas do movimento teosófico moderno sao duas figuras


femininas: Helena Petrowna Blavatsky e sua continuadora, Annie Besant.
A Sra. Blavatsky (f 1891), de origem russa, abandonou seu marido ao 17
anos de idade, um ano após o casamento, e pós-se a percorrer o mundo
em demanda da sabedoria... Ouviu mestres ocultistas, magos e "médiuns"
da Asia Menor, da Inglaterra, do Egito e, por fim, nos Estados Unidos da
América (Nova lorque) resolveu fundar a Sociedade chamada "Teosófica"
(1875), a qual em 1877 transferiu sua sede principal para Adyar, perto de
Madras, na india. Ciencia e religiáo pareciam associar-se na nova escola;
fenómenos maravilhosos, semelhantes aos do espiritismo, ai se verifica-
vam: mensagens, luzes no ar, "precipitacóes" ou descidas de flores, car
tas, etc., tudo obtido, como diziam, pela intervencao de espíritos que al-
guns mestres tibetanos (ou Mahatmas) evocavam. Surgiram, porém, sus-
peitas sobre a autenticidade de tais prodigios; em conseqüéncia, a Socie
dade de Pesquisas Psíquicas de Londres instituiu inquérito, que terminou
em 1885, denunciando ao mundo Mme. Blavatsky como "urna das mais
completas, finórias e interessantes mistificadoras que a historia jamáis
tenha conhecido...".

Sem demora, a Sra. Blavatsky retirou-se para a Europa, deixando


bastante comprometido o futuro da Sociedade. Quando, porém, morreu
(1891), sucedeu-lhe na diregao da escola urna de suas discipulas, Annie
Besant, a qual havia de reerguer o prestigio da instituicáo.

Annie, filha de familia irlandesa protestante, também abandonou seu


marido, Frank Besant. tornando-se primeiramente pregadora de materia
lismo. Após dez anos de propaganda atéia, voltou-se para o espiritismo, o
hipnotismo e a maconaria, até que foi atraída por Mme. Blavatsky; muito
inteligente e ativa, conseguiu ser colocada á frente da Sociedade Teosófica
em1891.

A nova Presidente esperava um Messias, cujos caminhos ela quería


preparar juntamente com um antigo ministro anglicano a quem se associ-
ara: Charles Leadbeater. Annie Besant fez-se entáo tutora de um jovem
hindú, Jiddu Krishnamurtí, que ela apresentava ao mundo como o futuro
Mestre e Salvador da humanidade. Corriam, porém, graves rumores so
bre a moralidade de Leadbeater. Nessa situacao, o pai do jovem resolveu
mover um processo contra os tutores do menino, obtendo finalmente ga-
nho de causa, sem resultado prático. porém. Após a sentenca condenatoria
proferida contra Leadbeater, a secao alema da Sociedade Teosófica, che-
fiada por Rudolf Steiner, separou-se do bloco teosofista (1913), constituin-
do urna escola independente, hoje dita "Antroposofia"; ver artigo seguinte
deste fascículo.

519
40 -PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

A Sra. Besant ainda se envolveu em movimentos de política da in


dia, o que Ihe suscitou novos amigos e adversarios. Terminou seus dias
em 1933, na sede de Adyar, gozando de prestigio tanto entre os seus dis
cípulos como junto ás autoridades británicas.

Importa-nos agora analisar sumariamente

2. As principáis Teses da Teosofía

Quatro aspectos doutrinários háo de merecer a nossa atencáo:

1) A atitude fundamental do pensamento teosófico. A Teosofía


pretende anunciar ao mundo nao um sistema religioso á semelhanga dos
muitos credos propostos no decorrer dos séculos, mas, sim, o patrimonio
mesmo donde todas as religióes tiraram algo. Este patrimonio seria
antiqüissimo, remontando aos tempos da Atlántida (continente que dizem
haver sido submerso 9.000 anos antes de Cristo); os destrozos da famosa
cultura atlántida teriam sido guardados em arquivos secretos do Egito, do
Tibe e da China, e finalmente explorados pelas fundadoras da Sociedade
Teosófica. Esta assim apregoa a emancipado do homem frente ás tradi-
cionais concepcóes religiosas: quem possui a Teosofía, possui a luz bran
ca ou a Verdade plena, ao passo que cada sistema religioso só a presenta
urna das sete cores do espectro ou urna faceta depauperada da Verdade.

Munida de tais "credenciais", que ensina a Teosofía a respeito de


Deus e do homem?

2) O Deus dos teosofistas nao é um Deus pessoal, distinto do mun


do, mas é substancia neutra que se identifica com tudo: "A Teosofía, em
materia teológica, é panteista: Deus é tudo, e tudo é Deus" (Annie Besant,
Why I became a Theosophist. London 1891,18).

Esse Deus, no interior de cada criatura, vai aos poucos tomando


consciéncia de si ou vai-se desenvolvendo. Sao palavras de Mme. Blavatsky:

"Cremos em um Principio universal, do qual tudo procede e no qual


tudo será reabsorvido no fim do grande ciclo do Ser... Nossa Divindade é
[It is, no género neutro] o misterioso poder de evolugáo e involugao, a
onipresente, onipotente e mesmo oniciente Potencialidade criadora" (The
key to Theosophy 44).

3) Conseqüentemente, o mundo e o homem, para o teosofista,


nao sao senáo aspectos fugazes da Divindade posta em evolugáo.

Em particular sobre a alma humana, ensina a Teosofía que o Abso


luto produz, por emanacáo, as almas. Portanto, cada alma, chamada Mó
nada, é fundamentalmente divina. Acontece, porém, que, logo após a ema-

520
A TEOSOFÍA: QUE É? 41

nacáo, as almas se acham em estado de inconsciencia ou como que ador


mecidas, á semelhanca da planta na sementé, antes da germinacáo. Para
que despertem, tém que descer ao mundo visivel.

Encerradas na materia, as almas sofrem as vibracóes desta, que


aos poucos as fazem chegar ao estado de consciéncia ou vigilia. O
encarceramento se dá primeramente na materia mineral, para se repro-
duzir em ritmo ascensional através dos reinos vegetal e animal.

Chegando ao estado de consciéncia, a alma se individualiza, isto é,


toma-se um eu distinto do tu e do ele: distingue-se das outras almas,
embora conserve em comum com elas a mesma natureza divina. Incum
be entáo ao individuo a tarefa de aprofundar o seu eu, compenetrando-se
de que é Deus..., de que constituí urna só substancia com os demais seres
e apenas urna manifestagáo do Grande Ser. A fim de realizar este proces-
so de aprofundamento, a alma tem que sofrer encarnacoes sucessivas,
ñas quais ela há de se esforcar por purificar-se ou por viver cada vez mais
emancipada das ilusoes dos sentidos.

No termo final das reencarnacóes, "aquele que era um pobre e limi


tado ser humano, verá que sua natureza real é divina e... que ele é Deus"
(A. Lyra, O Homem e a Evolucáo, em "O Teosofista" jan.-fev. 1956, 35).
A centelha feita chama perde-se e deixa-se "absorver na esséncia univer
sal" ou Nirvana (cf. Blavatsky, The Key to Theosophy 78).

Nirvana é palavra que etimológicamente significa "extincáo". Nao


implica aniquilagao da alma, mas, antes, o estado em que "a alma deixa
de ser alguma coisa, visto que se tornou tudo" (Blavatsky, The Key to Theo
sophy 78). Em outros termos: tendo adquirido a consciéncia perfeita da
sua Divindade ou da sua identificacáo com o Grande Todo, a alma perde todo
o senso de separacáo individual; destrói-se para ela a ilusáo do eu e do tu.

Aínda se deve observar que as reencarnagóes sucessivas se verifi-


cam rigorosamente segundo a Leí do Karma. Conforme esta, a alma em
sua próxima existencia sobre a térra colherá exatamente as conseqüénci-
as das acóes praticadas na vida presente; há inexorável correspondencia
entre a conduta atual do homem e a sua sorte futura. Contra essa lei nada
podem o arrependimento e o pranto. Todo ato humano é elo numa corren-
te inquebrantável de causas e efeitos, ou ainda: todo ato é efeito que se
torna causa e infalívelmente produz outro efeito.

Em conseqüéncia, cada individuo humano vem a ser o autor exclu


sivo da sua sorte, o seu próprio Salvador. As idéias de redencáo gratuita,
perdáo e indulgencia sao totalmente alheias as concepcoes teosofistas.

4) Quanto á Moral que decorre destes principios, é assaz sobria.


Sintetiza-se num único preceito, que é o de praticar o bem ou o altruismo,

521
42 -PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

como o fizeram os grandes mestres da humanidade (Buda e Jesús de


Nazaré).

Na vida prática, o teosofista, nao admitindo um Deus pessoal distin


to do homem, vem a ser o seu próprio e absoluto legislador; é o individuo
quem formula as suas normas de procedimento concreto, sem ter que
ouvir autoridade alguma que Ihe fale em nome de Deus...

Este sumario da doutrina teosófica já nos permite

3. Urna Avaliacao

A razáo humana teria tres observacoes a fazer á mensagem


teosofista.

1) O panteísmo ou a doutrina de que "Deus é tudo e tudo é Deus"


(A. Besant) constituí auténtica aberracáo lógica. De tato, Deus, por defini-
cáo (formulada pelos teosofistas mesmos), é o Absoluto. Ora o Absoluto
de modo nenhum pode coincidir com o ser transitorio, quais sao o mundo
visível e a alma humana, pois tudo o que se move e evolui adquire perfei-
cao que nao tinha: nao é, pois, o Absoluto ou Aquele que esgota o conceito
de Ser Perfeito.

Observam alguns pensadores que o panteísmo é forma requintada


de ateísmo, que menos surpreende a natureza humana, porque ainda con
serva o rótulo de Deus, de acordó com as exigencias da sá razáo. A filoso
fía náo-cristá moderna nao tende tanto ao ateísmo como ao panteísmo e
monismo. Por que isto? - Porque, na verdade, estes equivalem aquele,
guardando, porém, aparéncias aptas a seduzir o inelutável senso religio
so do homem.

Annie Besant mesma oferece fundamento para esta afirmacao, ao


escrever:

"A prímeira coisa que ensinam os teosofistas, é que toda /dé/a de


sobrenatural deve ser rejeitada... A segunda... é a negagao de um Deus
pessoal; dai decone que os agnósticos e os ateus assimilam mais fácil
mente os ensinamentos da Teosofía do que os fiéis dos credos ortodoxos"
(Why I became a Theosophist 17s).

A fundadora da Sociedade Teosófica bem reconnecia a afinidade


prática, se nao filosófica, do panteísmo (negagao de um Deus pessoal)
com o ateísmo.

Torna-se oportuno observar que a "Ordem de Rosa-Cruz", hoje em


día tao notoria por sua propaganda, também professa o panteísmo, por
muito que se queira dissimular sob as aparéncias de corrente crista.

522
A TEOSOFÍA: QUE É? 43

2) A respeito da doutrina da reencarnagáo, faz-se mister notar que


é vá, pois nao pode apelar para um só argumento direto e positivo em seu
favor. Com efeito,

a) nao temos reminiscencia de reencarnagoes sucessivas, como con-


fessam os próprios reencarnacionistas, dos quais é aqui citado W.
Lutoslawski:

"O mais importante argumento contra a reencarnagáo é o esque


cimento quase geral das vidas passadas... Se é verdade que já vive
mos algumas vezes, como se explica nao só o esquecimento geral (das
vidas anteriores), mas o esquecimento dessas vidas por espiritos ele
vados e sobretudo pelos místicos, os quais penetraram até a esséncia
do ser?" (citado por P Siwek, A reencarnagáo dos espíritos. Sao Paulo
1946, 192).

Mme. Blavatsky julgava que a falta de reminiscencia é "a velha difi-


culdade" contra a reencarnagáo (The Key to Theosophy 122).

Os pretensos casos de reencarnacáo, após os estudos mais moder


nos, nao passam de reconhecidos fenómenos parapsicológicos, os quais
nada tém que ver com vidas anteriores á atual.

b) a reencarnagáo constituiría um castigo injusto. Pergunta-se com


razáo: de que serviría a urna alma voltar á carne, se ela nao sabe porque
culpas e taras é enviada a este mundo?... se ela ignora quais as etapas
queja percorreu na sua purificagáo espiritual?

c) a reencarnacáo prende-se geralmente a falso conceito de Deus,


ou seja, ao panteísmo, junto com o qual ela é professada na India. De fato,
se nao há um Deus pessoal, que o homem possa invocar, é este mesmo
quem tem que remir a si; ora os esforcos do homem em demanda da
perfeigáo sao sempre lentos. Donde se segué que urna serie de encarna-
cóes sucessivas se impoe como solugáo para o problema. Esta solugáo
errónea, por apregoar auto-redencáo, nao deixa de ser sedutora, pois bajula
o orgulho da criatura humana, dando-lhe a ilusáo de que ela de ninguém
depende.

Conceba, porém, o homem um Deus pessoal e distinto do mundo;


saiba humildemente que é amado por esse Deus, o qual toma a iniciativa
de salvara sua criatura..., e ver-se-á dispensado de recorrer aos imagina
rios ciclos das reencarnacóes!

3) A Teosofía pretende ser "a esséncia de todas as religióes e da


verdade absoluta, da qual urna gota apenas se encontra em cada cren-
ca" (Blavatsky, The Key of Theosophy, ed. franc. 1916, 85).

523
44 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

O título é sumamente lisonjeiro, mas... precisaría de ser compro-


vado.

Mme. Blavatsky baseava essa sua afirmacáo no "testemunho dos


Videntes", ¡sto é, de Mahatmas iluminados do Tibe,... no ensinamento da
"Loja Branca", da "Hierarquia dos Adeptos".... na cultura do pretenso con
tinente "Atlántida", cultura que em verdade nao passa de mera ficcáo lite
raria de Platáo (como prova a crítica moderna). Ora aos olhos do bom
senso humano tais testemunhos exígem muita fé. e fé nao suficientemen
te justificada, pois as autoridades ácima mencionadas sao secretas e incon-
troláveis; já foram mesmo mais de urna vez comprovadas como nulas ou
falsas, desde que se tenha podido proceder a urna pesquisa objetiva.

O que no titulo de "quintesséncia de todas as religióes" muito atrai


os homens, parece ser o caráter relativo que ele comunica a todo sistema
religioso tradicional; a Teosofía serve para emancipar o homem de qual-
quer lei religiosa, conferindo-lhe autonomía em materia de consciéncia,
sem Ihe deixar ver que na realidade ele está renegando a Deus...

Na verdade, a Etnología e a Historia das Religides, em suas conclu-


sóes mais recentes, ensinam que o patrimonio primitivo do género huma
no nao é o panteísmo com o seu reencamacionismo, mas, antes, o
monoteísmo ou crenca num Deus que é Pai bondoso e tutor da moralidade.

Feítas estas observacóes, torna-se oportuno por fim notar que o


movimento teosófico, apesarde erros capitais, traz sua mensagem positi
va para o homem contemporáneo, pois constituí urna reagáo de caráter
místico (embora de mistica falsamente concebida) contra o materialismo
e o mecanicismo que invadiam a sociedade em fins do século passado. A
Teosofía significa em plena época de ateísmo que impossívei é ao homem
viver sem Deus, e que, quando ele abandona a face do auténtico Senhor,
tem que criar seus ídolos ou forjar um espectro de Deus.

QUER CONHECER MELHOR A SUA FÉ?

Parece ser um imperativo de nossos dias um mais sólido e pro


fundo conhecimento das verdades de fé que nos professamos com
os labios. Caro(a) amigo(a), procure entáo os Cursos de Correspon
dencia da Escola "Mater Ecclesiae"; sao 14 Cursos, dos quais o últi
mo versará sobre a Igreja, tema tao delicado, a partir de dezembro pf.
Dirija-se á Escola pelo Telefax (021) 242-4552 ou mediante a Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).

524
O Pensamento Oriental entre nos:

ANTROPOSOFIA: QUE É?

Em síntese: A Antroposofia se deriva da Teosofía, guardando os


mesmos principios básicos da sua matriz. Com efeito, julga deter a sabe-
doria primordial donde teráo procedido as demais correntes de sabedoria
racional ou religiosa; professa também o panteísmo e a reencamagao. Toda
vía, ao desligarse da Teosofía, Rudolt'Steiner, fundador da nova escola, hou-
ve porbem explorar o que na concepgáo teosófíca dizia respeito ao homem
(donde o nome Antroposofiaque caracteriza talcorrente de pensamento).

A Antroposofia constituí urna Escola filosófica fundada por Rudolf


Steiner (1861-1925). Este pensador até 1913 era o chefe da secáo alema
da Sociedade Teosófica, entáo recém-fundada. Desentendeu-se porém,
com a Presidente desta, a Sra. Annie Besant, por causa das. pretensóes
que Me. Besant nutria, de apresentar ao mundo o novo Messias na pessoa
de um jovem hindú, Krishnamurti, o qual já estaña na sua trigésima encar-
nacáo... Steiner, julgando que Mme. Besant abusava da credulidade de
seus discípulos, resolveu separar-se da Sociedade Teosófica para ensinar
urna Teosofía remodelada, á qual foi dado o nome de Antroposofia. A res
peito da Teosofía veja o artigo anterior deste fascículo.

1. As Linhas do Pensamento Antroposófico

O termo sofía (sabedoria, em grego) indica tratar-se de conheci-


mentos sapienciais, isto é, adquiridos nao propriamente pela experiencia
dos sentidos e pelo raciocinio da inteligencia (de que se serve, por exem-
plo, a Teología), mas, sim, por urna intuicáo superior mística devida a fa-
culdades especialmente apuradas de certos individuos. A fonte dessa sa
bedoria seriam tradicóes ocultas, oriundas da Atlántida (famoso continen
te que teria desaparecido) ou de arquivos e bibliotecas antiqüíssimas per-
tencentes ao Egito e ao Oriente. Essa sabedoria primordial haveria deíxa-
do de ser patrimonio comum dos povos, que em seu lugar foram criando
as diversas formas de religiáo hoje conhecidas. todas inferiores á explica-
gao do mundo dada pelas concepgóes antigás... Ora a Teosofía, recorren-
do no século passado aos Mestres (Mahatmas) da india, do Tibe, da Caldéia,
do Egíto, propunha-se cultivar de novo essa sabedoria primordial, fazendo
convergir a sua atencáo para Deus (Theós); Steiner, ao separar-se do
teosofismo, nao abandonou as grandes teses doutrinárias deste, mas pre
ferí u explorar o que na concepcáo primordial dizia respeito ao homem
(donde Antroposofía, de ánthropos, homem).

525
46 -PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 414/1996

Steiner julgava que a Teosofía fazia perder ao homem um pouco


de seu equilibrio e o desviava dos respectivos deveres sociais; a
Teosofía incutiria urna atitude passiva, prometendo a intervengáo de
misterioso poder do alto. Por isto, o fundador do antroposofismo quis
despertar nos seus discípulos o amor de um método, de urna discipli
na imposta as faculdades superiores do homem, a fim de ampliar o
raio de alcance do espirito. As teses, porém, que Steiner ensinava como
resultantes dessa disciplina, sao, em grande parte, as mesmas que as
da Teosofía, a saber:

1) O Panteísmo ou monismo. Deus seria a única realidade exis


tente, da qual o mundo, espiritual e material, se originou por emanacáo; a
substancia divina seria impessoal, neutra, sempre em via de evolugáo no
decorrerda historia; em cada individuo humano ela estaría paulatinamen
te tomando consciéncía de si mesma, até chegar á plenitude ou á perfeí-
cáo: o homem é assím urna manifestacáo de Deus, manifestagáo
identificada com a Divindade.

2) A alma humana é um agregado de muitas partes, unidas entre sí


por relagóes assaz frouxas. Está claro que nao Ihe é imposta urna lei mo
ral extrínseca, divina, pois alma e Divindade vém a coincidir entre si; toca
a cada individuo descobrir dentro de si as normas de sua conduta prática
(o que dá margem, sem dúvida, a muita liberdade e arbitrariedade no pla
no moral).

3) O curriculo de vida do homem nesta térra é condicionado pelas


obras que o individuo tenha realizado em urna vida ou encarnagáo anteri
or. É esta a inexorável lei do Karma; tudo que ocorre ao homem neste
mundo é efeito e, ao mesmo tempo, causa: efeito em relacáo á encarna-
gao passada, causa em relagáo á futura. Mediante sucessivas desoídas
ao corpo, ou seja, através de longo período de tempo, a alma humana se
purifica, passando aos poucos da sua animalidade inicial á plena consci-
éncia da sua identidade com a substancia única, divina, do universo. Ten-
do atingido esta consciéncía, o homem perde naturalmente a sua perso-
nalidade, que o singulariza, e mergulha-se no único grande Todo (estado
do nirvana, que os conceitos comuns da nossa experiencia nao poderiam
em absoluto descrever).

Em suma, o panteísmo ou monismo e a leí da reencarnagáo, eis


as duas pilastras sobre as quais repousam tanto a concepcáo teosofista
como a antroposofista. Esta verificagáo é suficiente para incutir as diferen-
gas radicáis que intercedem entre Cristianismo e Antroposofia. No tocan
te á Antroposofia em particular, as potencias ocultas de intuicáo mediante
as quais o homem poderia transcender o conhecimento racional, sao an
tes produto da fantasía de Steiner do que objeto de conclusoes científica
mente firmadas.

526
ANTROPOSOFIA: QUE É? 47

Verdade é que o pensador alemáo, visando ao público europeu, ao


qual se dirigía, quis apoiar suas concepcóes em fontes e tradicóes ociden-
tais, cristas, distanciando-se um pouco das fontes orientáis para as quais
apela a Teosofía. Nao foi feliz, porém, porque, para ficar dentro dos qua-
dros de pensamento do ocultismo, teve que negar a Divindade de Cristo;
desejando nao abater ídolo algum, apresentou Jesús como reencarnacáo
e síntese de Mitra (divindade persa) e Dionisio (divindade grega)!

2. Que dizer?

A Antroposofia logrou sucesso logo nos seus primeiros anos (como,


alias, também a Teosofía}. Esta boa aceitagáo se explica porfatores diversos:

a) o materialismo e o racionalismo que ¡mperaram no século passa-


do, parecem ter cansado as mentes e despertado de novo em muitos pen
sadores sinceros a sede do misterio, do conhecimento místico, ou seja, do
conhecimento adquirido nao por via meramente humana, mas por urna
pretensa iluminacáo divina;

b) as grandes ruinas, materiais e moráis, que o mundo ocidental


sofreu nos primeiros decenios do séc. XX concorreram para que nao pou-
cos filósofos voltassem sua atencáo para o Oriente; este sempre impres-
sionou os ocidentais por parecer muito mais voltado para o transcendente
e o eterno; pelo seu caráter conservador, tradicionalista, toma o aspecto
de urna arca de paz. É o que explica que Teosofistas e Antroposofistas
tenham ido pedir inspiracáo aos pensadores orientáis e hajam encontrado
eco satisfatório no Ocidente;

c) é imponente e sedutor o título de "manancial donde todas as reli-


gióes tíraram urna parcela de verdade", título que a Teosofía e a Antroposofia
reivindicam para sua concepgáo. Este titulo é gratuito; nenhum estudioso
o pode jamáis comprovar (alias, por definicáo, nem seria possível apre-
sentar pravas em favor do mesmo, pois se pressupóem tradicóes e arqui-
vos ocultos ao público - o que realmente constituí bela evasiva!). Nao
obstante, a fórmula com que a Antroposofia se apresenta ao mundo, é
muito apta a bajular o orgulho do homem; aderindo á Teosofía ou á
Antroposofia, este poderá dar-se por mais esclarecido e inteligente do que
seus semelhantes que fiquem presos as formas tradicionais de religiáo...
O teosofista e o antroposofista nao negam a existencia de Deus, mas con-
seguiram fazer do Soberano Senhor urna entidade impessoal e neutra que
na prátíca nao "incomoda" o homem. Embora Rudolf Steiner nao se qui-
sesse diretamente incompatibilizar com o Cristianismo nem com alguma
forma de religiáo, ele propóe um conceito de Deus e das relacóes do ho
mem com Deus que cedo ou tarde tende a remover nos seus adeptos
qualquer dos credos religiosos tradicionais.

527
Nota Avulsa

"SOMENTE DEUS NOS PODE SALVAR"

Martín Heidegger (1889-1976) era um filósofo alemáo, que passava


por existencialista ateu. Teve vinculagáo com o nacional-socialismo de Adolf
Hitler, que ele depois lamentou como tendo sido sua queda ou sua atitude
de fraqueza. Antes de falecer, concedeu urna entrevista á revista alema
DER SPIEGEL. em que explicou o porqué de sua posicáo favorável a
Hitler; suas declaragóes seriam "ein Beitrag zur Aufklárung meines
Falles, urna contribuigao para esclarecer minha queda". Mas Heidegger
quis que suas explanagóes só fossem publicadas após o seu falecimento.
O periódico DER SPIEGEL, n° 23/1976, pp. 193-219, publica-as em edi-
cáo postuma, notando que estava respeitando a vontade do entrevistado.
O que nos interessa nestes dizeres, é a declaragáo religiosa de Martin
Heidegger, que durante a sua carreira filosófica passou por ateu.

Assim em determinado momento da conversa, declarou Heidegger:

"Em poucas palavras e talvez de modo macigo, mas após lon-


ga refiexao, seja-me lícito dizer: a Filosofía nao será capaz de produ-
zir, de ¡mediato, alguma alteragáo da atual situacao do mundo. Alias,
isto vale nao apenas para a Filosofía, mas para toda e qualquer refle
xao e aspiracáo de cunho meramente humano. SOMENTE UM DEUS
PODE AÍNDA NOS SALVAR. A nos fica tao somente a possibilidade
de preparar, mediante o nosso pensar e o nosso agir, poesias ou dls-
posigóes para o aparecimento desse Deus ou para a ausencia de Deus,
caso tenhamos que perecer, perecer perante a face de Deus ausente".

SPIEGEL: "Cré o Sr. que nos é possível ter um conceito de


Deus?"

HEIDEGGER: "Nao podemos ter nogáo de Deus. Na melhor das


hipóteses, podemos excitar em nos a disposicáo que aguarda".

Este depoimento é de grande relevo, poís procede dos labios de


quem se professou ateu e procurou no ateísmo (na Filosofía e ñas cienci
as meramente humanas) a resposta para os seus anseios mais profun
dos. O nacional-socialismo, com a sua "mística" fracassada, fez que
Heidegger compreendesse que somente os valores transcendentais e, em
última análise, Deus trazem a salvagáo ao homem.

528
PUBLICAgÓES MONÁSTICAS

■ SALTERIO MEU MINHA ALEGRÍA,os 150 Salmos pelas Monjas beneditinas de Santa
María - SP. Salterio ilustrado para enancas e adultos com alma de crianca... 2a edicao.
1994. Formato: 21,5x16cm R$ 11,50.

■ JESÚS CRISTO NOS SEUS MISTERIOS, conferencias Espirituais. Dom Columba


Marmion, OSB. 3a edicáo pelos Monges de Singeverga, Portugal. 1958,
540págs R$ 25,00.

■ SANTO AGOSTINHO • ESCRITOS MONÁSTICOS. Principáis textos monásticos de


Santo Agostinho. Cimbra 1991. 187 págs R$9,00.

- A PROCURA DE DEUS, segundo a Regra de Sao Bento. Esther de Waal. Apresentado


pelo Dr. Robert Runde, arcebispo anglicano de Cantuária, pelo Cardeal Basil Hume,
OSB e do Abade Dom Paulo Rocha, OSB. 3a edigáo. 1996, pelo Mosteiro da Santa
Cruz. 115 págs R$ 16,50.

- A ESCOLHA DE DEUS, comentario sobre a Regra de Sao Bento, por dom Abade
Basilio Penido, OSB, publicacáo do Mosteiro da Santa Cruz. 1994.
220 págs R$ 24,00.

- EVANGELHO DE SAO JOÁO, comentario. H. Andrade. Conversa de urna leiga sobre o


Evangelho de Sao Joáo. 1978. Mosteiro da Santa Cruz. 127 págs R$ 11,00.

- ESCRITOS MONÁSTICOS, Sao Jerónimo. 1996, Mosteiro da Santa Cruz.


148 págs RS 11,00.

■ O DESIGNIO DE DEUS E VIDA DE SANTA MACRINA, Sao Gregorio de Nissa. 1992,


40 págs. Mosteiro da Santa Cruz R$9,00.

- A REGRA DO MESTRE, "Caminho necessário para estudo da Regra de Sao Bento".


1992. Encadernado em espiral. 350 págs. Mosteiro da Santa Cruz R$ 9,00.

- GREGO BÍBLICO, por urna monja da Abadía de N. Sa das Grapas. Para ler os Evange-
Ihos em Grego. Textos manuscritos. Encadernado em espiral. 1982.
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como foi concedida a grandes vultos do Antigo Testamento, a comecar pelo Patriarca
Abraáo... Jaco. Moisés, Davi, Jó e Jeremías. O autor expóe como a Escritura revela o
encontró de Deus com o homem. A resposta do homem bíblico á iniciativa totalmente
gratuita de Deus, que deseja estabelecer urna comúnháo de vida com a criatura, se
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O autor prolonga os estudos sobre o Evangelho de Sao Joáo, já publicados sob o


titulo "Teologia do Evangelho de Sao Joáo" (Ed. Santuario, Aparecida, 1994, 421 p.).
Desta vez, o autor aborda o tema peculiar "FÉ E SACRAMENTOS NO EVANGELHO DE
SAO JOÁO". O livro procura estabelecer a relacáo entre fé e sacramentos na existencia
crista: "Sao duas condicóes independentes de salvacáo ou se interpenetram? Como
harmonizar a invisibilidade do ato de fé qué adere á pessoa de Cristo e a visibiiidade da
fé nos sacramentos?" (p.71). 1995, 134p R$ 8,80.

- TEOLOGÍA DO EVANGELHO DE SAO JOÁO, Dom Bento Silva Santos.


O.S.B., Editora Santuario, 1994, 423 p R$20,20i

Palavras de Dom Estévéo Bettencourt O.S.B.:

"O presente livro se presta tanto ao estudo científico do quarto Evangelho quanto á
meditacao e á Lectio Divina dos fiéis crístáos. Quem o lé tem a impressáo de estar
entrando, aos poucos, no misterio de Deus - o que suscita urna atitude de reverencia e
adoracáo. "Realmente este lugar (este livro) é santo, é a porta do céu... e eu nao o
sabia!", poderá o cristáo dizer, parafraseando a exclamacáo de Jaco, consciente de qué
tomara contato com o Senhor Deus em Betel (Cf. Gn 28,17). ;

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