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TRADUÇÃO DO ARTIGO
“ALEXIS DE TOCQUEVILLE CONCEPT OF CITIZENSHIP”, DE
DORIS S. GOLDSTEIN, AO PORTUGUÊS.
Grande parte da discussão recente sobre Tocqueville tem como foco ou uma de suas
obras principais ou um período de tempo claramente definido e extensivamente examinado1, ao
invés da análise do desenvolvimento de uma idéia particular, ou de um conjunto de idéias, ao
longo de seus escritos. Essa última abordagem pode ser útil, entretanto, na descoberta de um dos
temas secundários que se encontram a todo momento, mas que são sempre eliminados pelas
exigências do tema dominante de Tocqueville: o problema da manutenção de uma boa
sociedade em meio à crescente democratização. Alguns temas subsidiários, tais como a
democracia, “Providência” na história, “interesse próprio bem-compreendido”, são importantes
para o pensamento de Tocqueville e definitivamente devem ser levados em conta em sua
filosofia política.
O primeiro dos temas mencionados acima será aqui traçado, desde sua aparição inicial
nos escritos de Tocqueville durante a experiência americana, ao longo da Monarquia de Julho e
da Revolução de Fevereiro, até o Segundo Império. Será possível, pelo uso do método
cronológico, distinguir aqueles aspectos do conceito de cidadania que permaneceram constantes
daqueles que sofreram mudanças significativas como resultado da exposição ao fenômeno
social e político variado. Isso, por sua vez, servirá de base para responder o que é, afinal de
contas, a questão fundamental: se as referências dispersas feitas por Tocqueville ao “espírito
público”, “moral pública”, e “virtude pública” de fato formam uma proposição coesa sobre a
natureza e importância da cidadania. O propósito desse artigo é portanto delinear o conteúdo e
as influências históricas da idéia tocquevilliana de cidadania, bem como apontar relações com
outros aspectos de seu pensamento, sempre que possível.
Uma passagem de um dos Diários da América indica uma distinção implícita entre
“virtude” no sentido de uma aderência individual e privada às virtudes cristãs, e o que
Tocqueville chama de “a virtude pública”. As antigas repúblicas eram virtuosas, segundo ele,
pois estavam prontas a sacrificar interesses privados em prol do bem público2. Ao definir
“virtude” como o princípio das repúblicas, Tocqueville se coloca inequivocamente na tradição
de Montesquieu, Maquiavel e, por fim, da teoria política grega 3. Mas, ele se pergunta, a
formulação clássica continua valendo para as repúblicas modernas? Mais especificamente, seria
a América animada por esse espírito de virtude, no sentido de amor desinteressado pelo país?
Ele decidiu que a América não era virtuosa, mas sim iluminada uma vez que tentava reconciliar
interesses públicos e privados4. Isso significava então que a definição clássica não mais era
válida? Que a virtude não era mais necessariamente o fundamento de todas as repúblicas?
Com fina ironia, Tocqueville descreveu como o déspota, percebendo isso, realiza uma
inversão de valores, na qual “bons cidadãos são aqueles que se fecham sobre si mesmos” e “faz
uma espécie de virtude pública da indiferença.28”
Mesmo se essas especulações não forem válidas, não resta dúvida que a experiência
americana foi o catalisador que levou Tocqueville a enfatizar o papel do interesse próprio bem
compreendido na democracia moderna, e a aceitar essa situação como não necessariamente
ruim. Élie Halévy disse, no que diz respeito à discussão de Tocqueville acerca do interesse bem
compreendido na América: “Longe de ficar escandalizado, esse moralista cristão se conformou
com o estado de coisas33.” Aqui, Halévy tocou num dos aspectos mais interessantes, e ainda
assim menos investigados, da obra de Tocqueville: a relação entre sua ética baseada na religião,
com um colorido jansenista, e sua atitude positiva em relação à doutrina utilitarista do interesse
próprio racional. Como pode ser explicada a presença desses dois padrões de julgamento tão
incompatíveis? Estaria Tocqueville ciente de qualquer incompatibilidade? Apesar dessas
questões estarem além do escopo desse artigo, será possível sugerir algumas respostas uma vez
que traçarmos o desenvolvimento do conceito de cidadania em Tocqueville. Nessa área limitada,
elementos clássicos, cristãos e utilitaristas atuam, e a função de cada um pode ser delineada com
alguma precisão.
A deficiência de espírito público na França era causada por uma deficiência de interesse
próprio bem-compreendido. Não havia dúvida na mente de Tocqueville de quem era a culpa
dessa situação. Em suas cartas, discursos parlamentares, e particularmente nos Souvenirs, ele
condenava severamente os governantes da Monarquia de Julho por seu papel na desmoralização
da França36. A vida política havia sido restringida aos estreitos limites do “pays légal”, que
consideravam as questões do governo com o espírito “d’une compagnie industrielle 37.” Algumas
das páginas mais incisivas dos Souvenirs descrevem como essa classe, completamente animada
por interesses materiais, perdeu de vista o bem-estar público 38. Uma vez que todos estavam
excluídos da política a não ser a classe-média, ele explicava, não havia conflitos de interesse ou
de princípios, de forma que uma monotonia completa reinava entre os governantes, enquanto o
resto da nação só sentia desprezo pelo governo39. Assim, a moral pública havia sido degradada
pelo egoísmo e indiferença daqueles que deveriam ter dado exemplo, e o resultado final,
Tocqueville advertiu em seu famoso discurso em Janeiro de 1848, poderia muito bem ser
revolução40.
A crença resoluta de Tocqueville de que todo o tecido da vida política era corrupto ajuda
a explicar a veemência de sua oposição a todos os governos da Monarquia de Julho. Molé,
Thiers, Guizot: ele se opôs à liderança de cada um, mas quando se tenta explicar essa oposição
em termos de questões políticas específicas, as divergências não parecem muito grandes. A
extensão dessa oposição pode , no entanto, ser entendida em termos intangíveis como “o
espírito” ou “o tom” desses governos, pois ele insistia que não eram as leis ou mesmo os
homens que deveriam ser substituídos, mas sim “o próprio espírito do governo41.”
Apesar de Tocqueville se referir especificamente ao ministério de Guizot durante a
década de 1840, não há dúvida que ele considerava os ministérios anteriores tão culpados de
degradar a moral pública quanto esse. Ele considerava isso mais importante do que questões
políticas efêmeras, já que ele havia concluído que a anarquia ou o despotismo poderiam ser
causados pela destruição da virtude pública numa era democrática. Certamente é possível
discordar da avaliação que Tocqueville faz da situação, afirmando-se que a oposição
intransigente traz consigo o perigo do enfraquecimento e a possível destruição da Monarquia, o
que poderia provocar os próprios males que ele temia. Sem importarmo-nos com a validade
desse argumento, que inclui uma grande dose de capacidade de análise, deve-se enfatizar que,
segundo o julgamento de Tocqueville, esteja ele certo ou errado, o pecado imperdoável da
Monarquia de Julho foi não dar um exemplo de cidadania.
Seria injusto sugerir, entretanto, que a partir do momento em que Tocqueville entrou na
vida política ele ficou contente em permanecer isolado, agarrado à sua própria virtude. Ele
manteve contato com o segmento da oposição à dinastia, liderado por Odilon-Barrot, um grupo
que Tocqueville considerava relativamente livre do materialismo egoísta que caracterizava tanto
a maioria do parlamento liderado por Guizot quanto os seguidores de Thiers. Esse grupo
defendia uma reforma parlamentar - em outras palavras, a remoção dos cargos indicados e a
extensão do sufrágio42. A primeira dessas medidas removeria a mácula de corrupção que
envenenava a vida política, ao passo que a segunda poderia restabelecer um senso de
envolvimento nos negócios públicos ao povo francês. Ambas as reformas foram frustradas pelo
“immobilisme” dos últimos anos da Monarquia de Julho.
O que poderia ser feito então para elevar a moral pública, quando tanto o interesse bem-
compreendido quanto a participação política estavam ausentes? Sem dúvida, a tentativa de
responder essa questão explica parcialmente o desejo que Tocqueville tinha de recorrer ao
recurso clássico para elevar o espírito público: a aventura militar. Ele acreditava que “a única
maneira certa de estimular o espírito público na França era através de um apelo ao orgulho
nacional, que, se necessário, deveria ser mantido vivo pela guerra43.” A correspondência de
Tocqueville com Mill acerca da Questão Oriental constitui uma franca admissão da crença que o
orgulho nacional era o único remanescente do espírito público francês, e que, caso ele fosse
diminuído, a nação sucumbiria perante “ce goût amoulissant qui l’entraîne chaque jour
davantage vers les jouissances matérielles et les petits plaisirs 44”. Sua opinião acerca de outra
questão que piorava ainda mais as relações entre a França e a Inglaterra, a questão do direito de
busca, revela também um alto grau de sensibilidade a questões que envolvam o prestígio e
orgulho nacional francês45. Em partes, é simplesmente o nacionalismo apaixonado de
Tocqueville que está em operação, mas ele sem dúvida apoiava apelos ao sentimento nacional
com o propósito explícito de animar sua nação entorpecida46.
Era a partir desse ponto de vista que ele criticou a política internacional da Monarquia
de Julho, acusando-a de fraca e vacilante. Sobre a questão da Argélia, entretanto, Tocqueville
apoiava o governo, já que era um entusiasta da conquista e colonização argelinas. Na verdade,
Tocqueville parecia se importar mais com a Argélia do que Louis-Philippe ou Guizot, pois
enquanto estes hesitavam em empreender a conquista francesa de territórios no norte da África,
Tocqueville declarava que colônias eram essenciais para a força e glória da França47. Ele
acreditava que o imperialismo, com relações internacionais agressivas, poderiam despertar os
franceses de seu individualismo egoísta e materialista, resultando no nascimento de um novo
espírito público48.
Na última análise, entretanto, não é na verdade possível dizer que Tocqueville se limitou
a criticar o sistema político. Ele certamente culpava o governo por causar um declínio geral nos
padrões de vida francesa, mas a questão é que os males do materialismo e individualismo
haviam se espalhado além do círculo do governo. Repetidamente ele menciona a falta de
idealismo e de espírito público de seus contemporâneos, ao passo que não há a menor menção
ao fato de que esses eram anos de extraordinária riqueza e vitalidade no campo das artes e da
teoria política e social. Certamente tal visão astigmática por parte de quem é normalmente tão
perceptivo e observador clama por investigação.
Fatos da biografia de Tocqueville podem explicar algo. Ele era tímido, dava a impressão
de ser frio e não se sentia confortável com aqueles que não pertenciam ao seu círculo. Ele
portanto andava principalmente entre aristocratas, amigos da infância e de família, a maioria dos
quais partilhava um desprezo profundo pela sociedade em que viviam, especialmente por suas
manifestações burguesas. Ser membro da Câmara o pôs em contato com os próprios burgueses
que ele instintivamente desprezava, e a conduta deles certamente reforçava esse sentimento.
Aqueles com os quais ele enfim se uniu em oposição estavam igualmente preocupados com o
que lhes parecia a total corrupção da nação por seu governo. Em outras palavras, Tocqueville
parece jamais ter tido outro olhar senão sob a ótica do legislador, e em conseqüência nunca
percebeu o fermento intelectual e o profundo sentimento nacional que existiam na França.
Num sentido, seus contatos com a vida intelectual da Monarquia de Julho não eram de
forma alguma limitados: membro da “Académie Française” e da “Académie des sciences
morales et politiques”, introduzido no salão de Mme Récamier por Chateaubriand 49, amigo de
J.-J. Ampère e trocava mais que cumprimentos com Rémusat, Mérimée, Montalembert, Broglie
e Lamartine. Especula-se, entretanto, quão significativos para Tocqueville eram esses contatos,
se ele teria permitido-se provar das ricas possibilidades intelectuais que se ofereciam. Pois num
nível mais profundo do que o do mero conhecimento, ou até mesmo da amizade, é difícil não
perceber uma espécie de isolamento, imposta mais pela personalidade do que pelas
circunstâncias. Tampouco se pode negar sua forte e instintiva aderência a valores aristocráticos.
Assim como seu parente Chateaubriand, ele tinha mais do mero desdém pelo “homme de
lettres” profissional, dizendo, por exemplo, que George Sand vivia “num mundo de aventureiros
literários50.” A descrição que Tocqueville fez de seu encontro com George Sand em 1848 provê
um rico exemplo de sua atitude em relação àqueles que tinham opiniões “avançadas”. Depois de
dizer que ele tinha “grandes preconceitos” contra ela, ele por fim admite que acabara por gostar
dela: “elle me plut51.” O leitor achará o episódio divertido, particularmente a surpresa de
Tocqueville ao perceber que Mme Sand não era o dragão que ele havia imaginado.
Tocqueville não era, todavia, o único a ter essa imagem da França, de forma que a
questão não pode ser resolvida pela simples referência a fatos de sua biografia pessoal e
intelectual. A velha aristocracia, assim como os Românticos, tinha o mais alto desprezo pelo que
lhes parecia uma sociedade materialista e inculta. Esse grupo via a classe burguesa e não o
processo da Revolução Industrial como responsável pela degradação de valores52. Há
claramente uma dimensão econômica e social do problema do desconforto generalizado na
França durante esse período, e um estudo análogo ao de Karl Mannheim sobre o pensamento
conservador alemão53 provavelmente seria capaz de descobrir as relações entre mudança
econômica, classe social e filiação ideológica.
Fatores puramente históricos também desempenharam seu papel. A França havia afinal
de contas sido derrotada em 1815, e isso ainda era irritante, mesmo entre a oposição a
Bonaparte. Tocqueville certamente não estava sozinho ao insistir que a França deveria recuperar
seu lugar entre as potências européias, por razões que hoje em dia seriam chamadas de
“morais”, bem como relações de política externa. A situação piorava ainda mais com a crescente
visão que a França se humilhava e era insultada em sua dignidade nacional pela Monarquia de
Julho, e que lhe faltava espírito para se impor. Mas era especialmente em contraste com o
heroísmo e sacrifício próprio de 1789 que a França do século XIX parecia tão apática. O
simples fato de que Tocqueville, longe de simpatizar-se com a violência ou ideologia dos
revolucionários, elogiava-lhes o idealismo54, indica a profundidade desse sentimento.
Aparentemente a Revolução criou um arquétipo do que pode ser mais bem chamado de “vertù”,
contra o qual o século XIX se sentia obrigado a medir-se, geralmente para seu próprio
detrimento55.
Se Tocqueville então julgava que, por todos esses motivos, sua nação carecia de espírito
público e idealismo, conseguiu ele pensar em algum modo de melhorar a situação? Há alguma
sugestão, por exemplo, de que a religião possa solucionar o problema? Nas anotações de viagem
aos Estados Unidos ele havia, afinal, sugerido alguma conexão entre religião e cidadania.
Durante a Monarquia de Julho ele enfatizou a necessidade da religião nas sociedades modernas
e democráticas, mas somente na correspondência com Gobineau em 1843 é que os dois temas
aparecem explicitamente relacionados.
A Revolução de 1848 havia, por um breve momento, prometido acabar com a corrupção
e a apatia com uma onda de idealismo político. Tocqueville observou que os membros da
Assembléia Constituinte estavam mais preocupados com o bem-estar público e menos com seus
próprios interesses do que seus predecessores da Monarquia de Julho62. Essas esperanças se
extinguiram na fumaça dos Dias de Junho, e, com o advento de uma nova ditadura Napoleônica,
acabaram completamente. Na opinião de Tocqueville, os males do regime de Louis-Philippe não
apenas haviam retornado como haviam sido piorados pela violência e ilegalidade do novo
governo. A ordem do dia era novamente o materialismo e o interesse próprio, e qualquer
entusiasmo que houvesse por Louis Napoleon era causado antes por medo do socialismo e pelo
desejo de “pode ganhar dinheiro sem medo63.”
A maior parte da discussão sobre cidadania no “Antigo Regime e a Revolução”, que é a
melhor fonte de material para a década de 1850, contém variações de temas anteriormente
tratados. São, entretanto, de menor importância, pois Tocqueville estava cada vez mais adepto
de idéias que pareciam ter pouca ou nenhuma possibilidade de sucesso na França64.
Mme Swetchine alude então ao papel desempenhado pelas condições políticas que
influenciaram Tocqueville a enfatizar a conexão entre cristianismo e cidadania. Ela entendia o
desejo de Tocqueville de corrigir o “affaissement”, a “absence de tout intérêt pour ce qui n’est
pas plaisirs ou spéculations sordides, et pour donner um mobile plus noble aux caracteres
comme aux intelligences.80 ” Ela conclui tentando amenizar a irritação do amigo, pedindo que
ele julgasse seus contemporâneos com mais indulgência, pois no passado os deveres da
cidadania eram mais claros e mais simples do que no presente, quando a tradição, prestígio e
todos os “pontos de apoio” haviam desaparecido81.
“Je désirerais qu'ils fissent pénétrer plus avant dans les âmes que chacun se doit à cet
être collectif avant de s’appartenir à soi-même: qu’a l’égard de cet être-lá , Il n’est pas permis
de tomber dans l’indifférence, bien moins encore de faire de cette indifférence une sorte de
molle vertu qui énerve plusieurs de plus nobles instincts qui nous ont été donnés; que tous sont
responsables de ce qui lui arrive, et que constamment à as prospérité et de veiller à ce qu’il ne
soit soumis qu’a des autorités bienfaisantes, respectables, et legitimes83.”
Não é surpreendente então que o autor dessas idéias não pudesse aceitar a defesa da
preocupação cristã com a “cidade eterna” feita por Mme Swetchine, argumentando que, apesar
do cristianismo poder existir sob o pior dos governos, o dever do bom cristão e do cidadão é
combater os males do mau governo com quaisquer meios que sua consciência sugira 84. Homens,
e especialmente mulheres, devem ser ensinados que simplesmente obedecer à autoridade
existente não é uma virtude cristã.85
O diálogo entre Tocqueville e Mme. Swetchine é concluído com um tom quase que
militante. A resposta dela à carta mencionada acima infelizmente se perdeu, e não há mais
discussão sobre cidadania em sua correspondência. Em outra carta escrita na mesma época,
Tocqueville expressa algumas das mesmas idéias numa maneira ainda mais inflexível. O
cristianismo, escreveu ele para Albert de Broglie, tem enfatizado desde o princípio de sua
história a virtude pública, de forma que, ao mesmo tempo em que os indivíduos se aperfeiçoam,
pouca influência tem exercido no progresso da sociedade 86. O resultado foi uma diminuição da
virtude pública. Por que isso deve ser assim, já que o Evangelho é a base de toda a moral,
pública e privada?87 Se essa carta for comparada com a correspondência de 1843 com Gobineau
, diferenças significativas são notadas. Enquanto nas cartas a Gobineau Tocqueville menciona a
fraqueza do cristianismo em relação à moral pública, ele não vê a situação como irreparável. De
fato, ele dá os créditos ao cristianismo por introduzir a idéia de bem-estar social na moral
pública. Por outro lado, na carta a Broglie, há amargura e desesperança no tom de Tocqueville
ao descrever como o cristianismo falhou em incentivar o desenvolvimento da cidadania: uma
evidência modesta, mas vívida, do efeito do regime Napoleônico sobre suas idéias e
sentimentos.
Ele afirma categoricamente nessa carta que não poderia aceitar a visão segundo a qual
submissão total ao poder soberano era necessária à moral pública cristã. Dar a César o que é de
César não é uma regra suficiente “sans examiner quel est César et quel est le droit et La limite
de sa créance sur nous.” 88 O bom cidadão, portanto, deve manter uma atitude crítica em relação
à autoridade governamental, e, utilizando-se das normas derivadas da religião, ele pode recusar
obedecer uma autoridade que, ela mesma, não segue tais normas.
Mas e o requisito que Tocqueville faz de que o clero católico participe dos assuntos
políticos da França e ensine a moral pública? Para Mme Swetchine, isso lembrava a aliança
entre política e religião do antigo regime, e, ciente das conseqüências desastrosas que se
seguiram, ela era contra essa idéia. Mas Tocqueville era também contra transformar a religião
num instrumento de qualquer governo ou doutrina política. Ele via o clero francês como um
corpo forte, independente, preso à nação por laços de sentimento e interesse, totalmente
separado do Estado89. As várias seitas inglesas e a religião nos Estados Unidos provavam que
isso era viável. Seria isso possível, entretanto, mesmo que remotamente, na França do século
XIX? A Igreja, ainda não preparada para abandonar definitivamente suas idéias tradicionais, era
olhada com suspeita por uma sociedade que tendia a exagerar a ameaça de uma dominação
católica. Forçados a uma posição defensiva, não é surpreendente que alguns católicos liberais,
como Mme Swetchine, concluíssem que a completa remoção dos clérigos dos assuntos públicos
era indispensável para a sobrevivência da fé na França.
Somente no século XX é que foi possível ao clero exercer liderança moral e política em
assuntos sociais sem que levantasse suspeitas. A crença de Tocqueville de que era tarefa do bom
católico aplicar sua ética à vida pública antecipou os movimentos sociais católicos, a
participação de católicos na Resistência, e, mais recentemente, a oposição de vários segmentos
da opinião católica francesa à guerra na Argélia. Ao discutir esse assunto, D. W. Brogan
menciona a “aceitação da idéia de que um cidadão cristão tem mais e diferentes deveres do que
aqueles que o Estado estipula90.” Essas palavras poderiam ter sido escritas por Tocqueville, tão
corretamente ecoam sua convicção que obediência ao poder secular não faz parte da moral
pública cristã.
Qualquer avaliação da religião como um componente da concepção de Tocqueville
sobre a cidadania deve levar em conta suas próprias atitudes religiosas. Apesar do fato de que
sua relação com o catolicismo romano permaneceu ambíguo durante sua vida adulta, não restam
dúvidas que ele ainda cria nos dogmas éticos e filosóficos fundamentais do cristianismo 91. Essa
crença é refletida, por exemplo, quando Tocqueville afirma categoricamente que o cristianismo
é a base de toda a ética, privada ou pública. Certamente o que ele quer dizer é que a ética cristã
deve ser a base de toda moral, já que ele afinal de contas não desconhecia a existência de outros
sistemas de valor, tanto passados quanto presentes92. Seu próprio comprometimento religioso o
levou a pensar especificamente em termos de cristianismo, e não apenas em termos de valores
emotivos que a religião em geral oferece e que poderiam ser úteis em estimular o espírito
público.
Como resultado, suas idéias que concernem religião e cidadania devem ser claramente
distinguidas daquela tradição, talvez mais bem representada por Rousseau, que estabeleceria
uma nova religião civil como base da cidadania. Assim como Rousseau, Tocqueville cria que a
religião deve produzir bons cidadãos, assim como bons homens, mas ele não concordava com a
afirmação de Rousseau de que o cristianismo era essencialmente incapaz de cumprir essa
missão, uma vez que desviava os homens das tarefas da cidadania. Ao contrário, Tocqueville
estava convencido de que a ética secular não poderia ser satisfatória, muito embora ela sugira
um idealismo bastante apaixonado e abnegado, pois essa ética careceria das restrições impostas
pelo cristianismo. Ele sabia que a ética secular do Iluminismo havia sido capaz de inspirar o
espírito público dos revolucionários de 1789, e ele era generoso em seus elogios e admiração a
eles93. Mesmo assim, sua conclusão é que “a falta de religião produziu um mal público imenso”
94
: todas as regras aceitáveis de comportamento haviam desaparecido, e essas condições
favoreceram a ascensão de um grupo de homens audaciosos e inescrupulosos, que não temiam
nem excessos nem inovações95. Em outras palavras, porque ele acreditava que 1789 havia sido a
causa de 1793, Tocqueville não podia aceitar o ideal de cidadania proclamado pela Declaração
dos direitos do Homem e do Cidadão. Tampouco indicava a menor simpatia por aquelas teorias
que reconheciam a utilidade do código de moral cristã e desejavam incorporá-lo a uma ética ou
filosofia da cidadania. Ele não defendia, por exemplo, a “filosofia oficial” de Victor Cousin, que
selecionou trechos úteis do cristianismo e de várias outras religiões e filósofos.
Da mesma forma, sua ênfase na participação se devia ao fato de que ele a considerava
uma ferramenta para preservar a moral pública, uma ferramenta que era especialmente
importante devido às estruturas e “mœurs” da sociedade moderna. Conseqüentemente, a
observação de David Reisman de que “a visão de Tocqueville da atividade cívica como talvez o
principal negócio do homem educado e civilizado tem um estilo ateniense”97 deve ser vista com
ressalvas. Tocqueville de fato acreditava que a vida política era essencialmente dignificante, e
que a participação política por si eleva os homens de suas preocupações materiais do cotidiano.
Dessa forma, ele via a participação como uma maneira de se controlar a tenência ao
materialismo presente nas democracias. O envolvimento nos negócios públicos e a lealdade à
nação poderiam contrabalancear os efeitos corrosivos do individualismo egoísta. A participação
é portanto mais um mecanismo do que um objetivo, e Tocqueville considera a “atividade cívica”
como sendo fundamental para as sociedades modernas e democráticas por que, sem essa
atividade, o individualismo egoísta iria corroer os valores que ele mais estimava: liberdade
humana e dignidade. Em outras palavras, a participação se torna crucial sob certas
circunstâncias para que se possa manter uma ordem dentro da qual os homens possam tornar-se
“o anjo que se esconde na besta”, para usar a imagem de Tocqueville para a condição humana.
Para ele, o problema crucial era como imbuir o espírito público num grande número de
pessoas. Nas repúblicas antigas, a cidadania havia sido orgulhosamente possuída por um grupo
relativamente pequeno, numa área relativamente pequena. Na Idade Média, era novamente um
grupo pequeno, a aristocracia, que se caracterizava pelo amor ao país. Na sociedade
democrática moderna, entretanto, não há aristocracia com patriotismo instintivo e
desinteressado. A virtude cívica deve incorporar elementos que complementam aqueles da
nação na qual ela existirá. Que ela deve existir, que ela deve ser trazida à existência, através de
qualquer aparato ideológico ou institucional disponível, é tanto o âmago do conceito de
cidadania de Tocqueville quanto um dos temas mais importantes de sua filosofia política. Sem
virtude cívica, o futuro das democracias modernas seria negro, ao passo que sua presença abriria
caminho para uma sociedade boa.
Notas
1
Para um exemplo, veja George W. Pierson, Tocqueville and Beaumont in America (New
York, 1938); Edward T. Gargan, Alexis de Tocqueville: the Critical Years 1848-1851 (Washington,
1955); Richard Herr, Tocqueville and the Old Regime (Princeton, 1962).
2
Alexis de Tocqueville, Œuvres complètes, Ed. J.-P. Mayer, 5. Voyages em Sicile et aux États-
Unis (Paris, 1957), Pt. 1: pg. 234. A menos que seja especificado de outra forma, todas as
referências à Œuvres complètes são da edição de Mayer.
3
Franz Neumann, “Montesquieu” in The Democratic and the Autoritharian State (Glencoe,
1957), pg. 124.
4
Yale Tocqueville Mss., C. V. e (Paquet No. 17, pg. 67). Doravante essa coleção será referida
simplesmente como Y. T. Mss. Gostaria de expressar meu contentamento com Professor George W.
Pierson, pelo privilégio de usar a Yale Tocqueville Collection, que é guardada na Biblioteca da
Universidade de Yale.
7
Idem.
8
Idem, pgs. 86, 99, 101-102, 207, 231 : Tocqueville, Œuvres completes 1. De La Démocratie
en Amérique (Paris, 1951), Pt. 1: pgs. 41-43, 301-308 : PT. 2: 149 – 153, 345. Veja também Pierson,
op. cit. pgs. 722 e 753.
12
É válido observar que caso Tocqueville tivesse analisado as realizações das várias
religiões organizadas em promover a cidadania nos Estados Unidos, ele teria que admitir o que
tantos informantes americanos já haviam dito: que era o protestantismo a fonte e a garantia da
democracia americana. Sou grata ao Professor Pierson por me chamar a atenção para a questão
de quão bem sucedido foi Tocqueville em sua avaliação dos méritos sociais e políticos, dentro de
uma sociedade democrática, tanto católica quanto protestante. Esse é um dos problemas que
espero esclarecer, numa monografia prospectiva acerca do papel da religião no pensamento de
Tocqueville.
13
As fontes desse ponto de vista, assim como sua relação com a filosofia da história de
Tocqueville, permanecem sem um estudo sistemático. Qualquer análise adequada deveria medir a
importância da influência cristã, particularmente a de Bossuet em oposição à de Guizot e dos
Doctrinaires.
14
Tocqueville, Œuvres completes 1. De La Démocratie en Amérique, Pt. 1: pgs. 245 – 248.
15
Y. T. Mss., A. VI (De Tocqueville para Charles Stoffels, 21 de abril de 1830). A principal
importância dessa carta é a confissão de Tocqueville de que, após haver comparado as qualidades
boas e ruins das nações civilizadas e não-civilizadas, “prefiro o último estado ao primeiro.” Em
outras palavras, ele admitia que a civilização moderna era preferível, muito embora ele mencione
o “reino do egoísmo ” e a perda das “grandes ações” e do”entusiasmo” que ele tanto admirava.
16
Por exemplo, a defesa da separação entre Igreja e Estado, mesmo que certamente
intensificada pela experiência na América, é já evidente na carta a Stoffels mencionada acima. O
fato de ele ser membro da “Société de la morale chrétienne” durante a Restauração é uma
evidência extra de que ele havia se tornado partidário da separação muito antes de sua viagem à
América. Para as idéias mais ou menos liberais e a filiação à “Société”, veja Frederick B. Artz,
France under the Bourbon Restoration (Cambridge, 1931), pg. 99 e Charles Pouthas, Guizot
pendant la Restauration (Paris, 1923), pg. 342 -349. Para uma avaliação da relação entre Igreja e
Estado durante a Restauração, veja G. de Bertier de Sauvigny, La Restauration (Paris, 1955), pgs.
437 – 441.
17
Tocqueville, Œuvres completes 5. Voyages en Sicile et aux États-Unis, Pt. 1: pg. 286
18
Tocqueville, Œuvres completes, 1. De la Démocracie en Amérique, Pt. 1: pg. 247. No que
era evidentemente o rascunho dessa passagem, Tocqueville foi ainda mais adiante, dizendo que
onde o exercício dos direitos políticos pode ser estendido a todos, “les développements de l’esprit
public sont presque sans bornes.” (Y. T. Mss. C. V. h. Paquet No. 3, Cahier 1, pg. 4.)
19
Tocqueville, op. cit., pgs. 245 – 247.
20
Idem, pgs. 253 – 255.
21
Idem, pgs. 65 – 67, 286 – 288.
22
Tocqueville, op. cit. Pt. 2: pgs. 105-106. Um artigo recente apontou a predominância
desse sentido pejorativo de “individualismo” durante os últimos anos da Restauração e da
Monarquia de Julho. (Konraad W. Swart, “Individualism in the Mid-Ninetenth Century.” Journal of
the History of Ideas 23. 1 [1962]: 78 – 85.)
23
Idem.
24
Seymour Martin Lipset, Political Man (New York, 1960), pg. 27
25
Tocqueville, op. cit., pg. 348
26
Idem, pg. 109.
27
Idem, pgs. 110-112.
28
Idem.
60
Tocqueville, Œuvres complètes, edição de Beaumont, 9. pgs. 551-552 (“Discours sur la
droit du travail”, 12 de setembro de 1848).
61
Idem, pg. 551. Veja Gargan, op. cit., para detalhes de sua descrição da atitude de
Tocqueville frente às reformas sociais e políticas de 1848.
62
Tocqueville, Souvenirs, pg. 108.
63
Redier, op. cit.,pg. 223, citando uma carta não publicada de 24 de novembro de 1852
para Lamoricière.
64
As razões para o fatalismo e desesperança que são característicos do Antigo Regime
foram recentemente analisadas por Richard Herr. (Herr, op. cit., especialmente os capítulos 7 e 8.)
65
Tocqueville, Œuvres complètes 2. L’Ancien Régime et la Révolution, Pt. 1: pg. 75.
66
Herr, op. cit., especialmente capítulos 7-10.
67
Tocqueville, Œuvres complètes 2. L’Ancien Régime et la Révolution, Pt. 1: pgs. 170-173.
68
Tocqueville, op. cit., edição de Beaumont, 6: pg. 228. (De Tocqueville para Corcelle, 17 de
setembro de 1853); pg. 280, (De Tocqueville para Corcelle, 15 de novembro de 1854); 7:pg. 294
(De Tocqueville para Montalembert, 1 de dezembro de 1852); pg. 492 (De Tocqueville para
Monseigneur, 4 de março de 1858).
69
Tocqueville, op. cit. 2. L’Ancien Régime et la Révolution, Pt. 1: pg. 170.
70
Idem, pg. 171.
71
Idem. Lammenais acreditava também que a posse de terras acarretaria uma atitude mais
independente por parte do clero, e era por essa razão que a defendia.
72
Idem.
73
Idem, pg. 172.
74
Sophie Swetchine (1782 – 1857) era uma devota russa convertida ao catolicismo romano.
Ela se estabeleceu em Paris em 1825, e seu salão se tornou um centro de discussão e atividades
de católicos liberais. A correspondência de Tocqueville com Mme. Swetchine, apesar de limitada à
década de 1850, é rica em informações acerca das atitudes religiosas pessoais de Tocqueville. A
biografia padrão é a de Alfred de Falloux, Mme Swetchine, sa vie et ses oeuvres (Paris, 1860).
75
Sophie Swetchine, Lettres inédites , Ed. por Alfred de Falloux (Paris, 1866), pg. 455 (De
Mme. Swetchine para Tocqueville, 13 de agosto de 1856.)
76
Idem, pg. 461 (De Tocqueville para Mme Swetchine, 10 de setembro de 1856).
77
Idem
78
Idem, pg. 463 (De Mme Swetchine para Tocqueville, 26 de setembro de 1856).
79
Idem, pg. 464.
80
Idem.
81
Idem.
82
Idem, pgs. 466-467 (De Tocqueville para Mme Swetchine, 20 de outubro de 1856.)
83
Idem, pg. 467.
84
Idem, pg. 468.
85
Idem, pgs. 467-468.
86
Tocqueville, Œuvres complètes, edição de Beaumont, 6: pg. 323 (De Tocqueville para
Broglie, 20 de julho de 1856.)
87
Idem, pg. 324.
88