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Das acepções mais remotas da palavra ironia, a que ainda se destaca no cotidiano
do conceito é aquela atribuída ao orador romano Quintiliano[1] e que remonta ao séc. I
d.C., segundo a qual a ironia seria "uma figura de linguagem cujasignificação entendida
é contrária àquela das palavras ditas" ("contrarium ei quod dicitur intelligendum est").
Muito embora a base sob a qual se sustenta cotidianamente o termo ainda seja aquela
definida por Quintiliano, suas primeiras aparições no léxico gramatical e filosófico do
ocidente apontavam para significados muito mais complexos.
No momento ático em que se utilizava a palavra eironeia e suas derivadas -
eiron, eironeia, eironeuomai, eironeuomenos- sua significação abrangia entendimentos
díspares, de sentidos infinitamente amplos, sendo que as mais relevantes referências ao
termo nos textos áticos disponíveis - tanto literários quanto filosóficos - nos remetem
com freqüência à idéia de mentira, trapaça, ilusão[2]. Envolto em sua aura de afetação e
lisonja, o termo eironeia apareceria pela primeira vez, textualmente, na República de
Platão[3].
A figura do eiron, conforme apresentada ali, era quase sempre identificada com a
do enganador, do trapaceiro.Contudo, no Livro I da República, percebe-se submersa no
gesto socrático a intenção de significar algo mais radical que mera encenação: uma
atitude mesmo de vida, cotidiana, habitual: uma eironeia costumeira, conforme
confirma a fala de Trasímaco, em sua apresentação de Sócrates :¡Oh,Heracles! Aquí
está Sócrates con su acostumbrada ironia; ya les había yo dichoa éstos que tú no
querrías contestar, sino que fingirías y acudirías a todo antes que responder,si alguno te
preguntaba. . [(337ª-338ª)]
O personagem Alcibíades destaca, n'O Banquete[4], a étrangeté (atonia), o
estranhamento causado por Sócrates: esta qualidade habitual, fundada num
comportamento caracterizador da própria estrutura, da armadura de seu espírito ironista
particular, seu jogo. Então, diz-nos o personagem platônico, acerca da estranha figura de
Sócrates: "... e é ironizando (eironeuomenos) e brincando com os homens que ele passa
toda a vida."[5] Mais adiante: "..e este homem, depois de ouvir-me, com a perfeita
ironia que é bem sua e do seu hábito, retrucou-me (...)"[6] Assim, de fato, o termo
eironeia, a despeito de toda a sua amplitude semântica , ganha vulto e status filosófico,
mesmo, quando vinculado a Sócrates nos diálogos de Platão.
Em O Sofista[7] está presente a sugestão de que a práxis dialética socrática
configuraria uma forma superior de sophistiké (eironikon), o que assim a distinguia da
mera falação sofística: "(...), esta arte da contradição que, pela parte irônica de uma arte
fundada sobre a opinião, faz parte da mimética e, pelo gênero que produz os simulacros,
se prende à arte de criar imagens; esta porção, não divina mas humana, da arte de
produção que, possuindo o discurso por domínio próprio, através dele produz suas
ilusões, eis aquilo de que podemos dizer 'que é a raça e o sangue' do autêntico sofista..."
De fato, desde os primeiros Diálogos, a ironia se estabelece mesmo numa dialética que
não teme reconhecer que possui um saber que se anula freqüentemente na ignorância.
Vale ressaltar que, na visão de Vlastos, a observação kierkegaardiana - esta da
qual iria nutrir-se o romantismo alemão[9] - coloca Sócrates na mesma condição em
que seus opositores, fazendo-se utilizar dos mesmos artifícios, quais sejam: a) combater
os argumentos sofísticos com sofisma; b) intencionar conduzir à verdade, por
intermédio do artifício de dizer o contrário daquilo que quer fazer entender. E esta
observação kierkegaardiana, que retoma a fórmula de Quintiliano, parece-nos ter
servido de fonte ao ironismo alemão. Este procedimento, portanto, caracterizaria a
ironia em sua modalidade simples. O que o ironista socrático introduz - daí seu
estranhamento, sua condição de xenos (estrangeiro) - é uma forma de ironia complexa.
Na Apologia de Sócrates, diálogo que representa seu enfrentamento da morte, a ironia
revela toda sua aura filosófica e moral, demonstrando fundar-se não na aparência, mas
na essência mesma da experiência vivida. Ali, a autodefesa moral do ironista é uma
representação exemplar de sua culpa filosófica, ao ironizar o estilo sofístico com o qual
se organizara o pensamento de seu tempo; perde o processo mas, num sentido mais
profundo, acerta com a verdade. Isto é: a ironia complexa, em sua natureza ética rumo a
busca de uma verdade própria, vivenciada, não se exime de assumir o hic et nunc vital
do ser em seu preparo para a morte.
BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio, Editora do Autor., 1965.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 3ªed. (Vol.I/II). Rio de Janeiro, José Olímpio,
CANDIDO, Antonio "Drummond prosador: crônica entre aspas". In: --- Andrade, Carlos Drummond de.
Poesia e prosa: volume único. 8ª.ed, 1964, p.1136-1138.
CANDIDO, Antonio.Inquietudes na poesia de Drummond. In: ___. Vários escritos. 2ªed. São Paulo: Duas
Cidades, 1977. p.93-122.
HELENA, L. . A tragédia grega. Rev. Tempo Brasileiro"TEATRO SEMPRE", Rio de Janeiro, v. 72, n. 1, p.
20-35, 1983.
JANKÉLEVITCH,Wladimir..L´ironie.Paris.Flamarion/editeur,1964.
LIMA. Luis Costa. "O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade". In:--- Lira e antilira .
Rio de Janeiro, civilização brasileira, 1968. P. 133-236.
[1] Marcos Fabio Quintiliano (35dC-95dC). Institutiones Oratore, IX, 2, 44. Orador e tradutor romano,
responsável por introduzir no léxico latino o vocábulo. (Cf. VLASTOS, Gregory, pp. 37).
[2] Por ser contemporâneo a um momento ático em que a retórica sofista andava em voga, o termo
eironeia/ironia confundia-se com a intenção farsesca, burlesca; freqüentemente vinculado a sentidos
pejorativos.
[3] Neste episódio da República o personagem Trasímaco desperta a atenção sobre a costumeira ironia
de Sócrates. Aqui, por exemplo, o artifício da mentira poderia perfeitamente esta confundido com uma
forma de eironeia.
[4] Platão. O Banquete. (216e4 - 218d6).Neste diálogo, Alcibíades chama a atenção, mais de uma vez,
para a habitual ironia (eironeuomenos) de Sócrates
[5] Idem. O Sofista. (268 a-b). Aqui, Platão já admite ser a ironia a arte do paradoxo.
[7] Em O Sofista (268 a-b), Platão classifica de eiron os adversários do mestre, a quem ele tem como
impostores.
[9] O Romantismo alemão legou à poética contemporânea sua aspiração à negatividade e ao infinito.
[11] Aristóteles. Poética , XI, 22 - 30: " O reconhecimento, como indica o próprio significado da palavra, é
a passagem do ignorar ao conhecer (...)". A conclusão aristotélica em referência ao herói trágico
aproxima-se do eixo-motor do eiron: a possibilidade "mágica" de passar da ignorância ao saber.
[16] Idem, p. 47
[17] Ibidem, p. 55
[21] ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. O próprio Drummond adverte na parte intitulada
Informação que não teve em mira,propriamente, selecionar poemas pela qualidade, nem pelas supostas
fases de sua carreira.
[22] CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem,1ª ed., Petrópolis: Ed. Vozes, 1967. pp. 43-44.
[25] CANDIDO,Antonio "Drummond prosador: crônica entre aspas". In: --- Andrade, Carlos Drummond de.
Poesia e prosa: volume único. 8.ed, 1964, p.1136-1138.
[26] CANDIDO, Antonio.Inquietudes na poesia de Drummond. In: ___. Vários escritos. 2.ed. São Paulo:
Duas Cidades, 1977. p.93-122.
[27] Em referência aos títulos Claro enigma, Sentimento do mundo, Alguma poesia, Brejo das almas,
Esquecer para lembrar, Fazendeiro do ar, As impurezas do branco, Menino antigo, A Paixão medida.