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PHILADELPHO MENEZES
RESUMO
Em meio às experimentações estéticas das vanguardas
históricas, a caligrafia foi um dos principais artifícios de que a
poesia se serviu. Ela representou uma tentativa dos movimentos
de vanguarda de anular a intermediação da indústria gráfica,
deixando à mostra o processo de criação no produto final. A
análise dessa poética e seus desdobramentos na poesia
contemporânea como forma de recuperação do gesto da
autoria é o tema dessa comunicação.
A indagação central que norteia esta comunicação diz respeito aos significados e
modos pelos quais a poesia visual do século XX, no seu percurso de incorporação de
diversos códigos, recuperou instâncias da arte caligráfica como forma plástica dos
poemas.' Enquanto uma face preponderante das poéticas experimentais buscou uma
penetração nas frentes tecnológicas e uma utilização cada vez maior das técnicas de
realização do produto, outra notável problematização da estética que se processa
desde as vanguardas históricas se dá na retomada da caligrafia como matéria pictórica.
De tal maneira se põe à mostra a visualidade de certa poética experimental como
decorrência do manuscrito do autor, que é possível dizer que as poéticas visuais
criaram uma estética do manuscrito, uma manuscritura.
A recolocação da caligrafia como elemento plástico do texto, pode-se dizer, faz parte
da utopia vanguardista de romper com as intermediações entre autor e receptor. De
certa maneira, esta procura já tinha despontado quando a poética romântica pregava
a simplificação da comunicação, a inflexão da linguagem falada assaltando o texto
escrito, a manifestação direta dos sentimentos e sensações como estratégias de
contato mais estreito entre o artista e seu público.
O vínculo entre aquelas técnicas de dicção do romantismo e o experimentalismo
caligráfico se evidencia na figura emblemática e pioneira de William Blake, cuja
manuscritura se associa com a gestualidade da ilustração visual — ou, ao inverso, o
desenho gestual é comentado, em formato didascálico, por uma sua extensão: o texto
caligráfico (figura l — William Blake).
É claro, contudo, que, se a base utópica de ambas é a mesma, as vanguardas se
distanciaram da postura romântica ao substituir as conformações estilísticas pela
intervenção gráfica no texto poético. Assim, ao lado da incorporação das inovações
tecno-tipográficas da imprensa, que já haviam sido observadas na visualidade da
escrita de Un Coup de Dés, de Mallarmé, o projeto utópico das vanguardas tomou
outros rumos através da experimentação caligráfica, exprimindo um anseio de
desartificializar o contato autor-receptor.
Tanto a criação da manuscritura quanto as apresentações públicas provocatórias das
vanguardas em suas poéticas sonoras e performáticas se dão nessa intenção de
desfazer a intermediação que a cultura do livro havia estabelecido entre o produtor e o
consumidor da arte e da poesia. Pode-se pensar numa ligação íntima entre caligrafia e
performance: gestualidade e corpo interagindo no espaço contíguo do texto e da
presença física do autor — como se na poesia sonora a voz funcionasse como uma
escritura do corpo e na poesia caligráfica a mão inscrevesse uma música do gesto.
Figura 1 — William Blake — "To the Accuser who is the God of this World"
1
Entre inúmeras definições e delimitações possíveis do polemico conceito de modernidade, atenho-me
aqui à idéia de identificar esse termo com o período da cultura ocidental que se estabelece com a
fixação da cultura letrada, fundada na expansão do livro, e que entra em crise no momento em que a
sociedade é assolada por signos de diversas extrações (visuais, auditivos, corporais) pelo advento dos
meios de comunicação de massa. Neste momento aparecem as vanguardas históricas, radicalizando
propostas da modernidade e que, ao esgotá-las, abrem caminho para muitas das fórmulas hoje
aglutinadas em torno do termo pós-moderno.
técnicas de produção privadas, suas manuscrituras, suas práticas não submetidas ao
crivo da publicidade.
Desfaz-se o hiato entre a hipotrofia do produto e o ato de fazer: hipotrofia do produto
entendido industrialmente como algo definitivamente finalizado (o que é
evidentemente duvidoso no campo da criação); ato de fazer entendido como instância
de reavivamento da concepção de poiesis, atividade dentro da qual o inundo se
conforma em signos no repertório particular do produtor e este transforma o seu
universo sígnico em parte do mundo a ser absorvido pelo leitor 2 F F
2
Contemporaneamente, a noção de poiesis foi redimensionada pela teoria da recepção de Hans Robert
Jauss, para quem poiesis contém o ato de construir que "pressupõe agora um saber que é mais que um
retorno ou uma reflexão sobre uma realizada pré-existente: um saber que depende do poder, do agir
experimental, de modo que compreender e produzir se tornem uma coisa só" (JAUSS 1985, 23).
bárbaras da violência institucional dos Estados totalitários). 3 É o mesmo Peignot que
F F
apresenta uma série de poetas calígrafos árabes em seu estudo sobre as formas
caligrâmicas onde se revelam aspectos de uma arte extraordinariamente plástica que
vai da figuratividade à geometria abstrata tendo sempre por base a escrita textual vista
enquanto matéria-prima do desenho.
Figura 3 — Caligrama xiita — Labirinto em escrita árabe kúfi, com o nome de Ala e os
companheiros do profeta Maomé
3
Uma interessante leitura desse período está presente em O Castelo de Barba Azul, de George STEINER
(1993).
Os futurismos italiano e russo, foram, dos movimentos de vanguarda, aqueles que
mais radicalmente lançaram mão dos procedimentos de valorização da caligrafia como
elemento formal da poesia. A colaboração dos poetas russos com os artistas visuais do
suprematismo e do construtivismo deu ensejo à produção de inúmeros livros-objeto
em que a caligrafia e o desenho se integram com as inovações textuais. No movimento
italiano, sob a utopia da fusão das linguagens e dos campos artísticos (mas
curiosamente contra a sua própria ideologia industrial), os poetas futuristas injetaram
no corpo do texto a manualidade do gesto escritural, tornando a caligrafia uma
complementação natural das atitudes provocatórias de suas performances (figura 4 —
Giaccomo Balla).
Digna de nota é também a presença da manuscritura nos caligramas, poemas
figurativos com os quais Guillaume Apollinaire buscou recuperar a tradição visual dos
carmina figurata medievais, já numa perspectiva de inserção da escritura ideogrâmica
do oriente na poesia ocidental. (Figura 5 —Apollinaire).
Bibliografia:
Caruso, Luciano e Martini, Stelio Maria (eds.): Scrittura visuale e poesia sonora
futurista, Florença: Palazzo Mediei Riccardi, 1977.
Klonsky, Milton (ed.): Speaking Pictures, Nova York: Harmony Books, 1975.
Melo e Castro, E. M. de: Poética dos meios e arte high tech, Lisboa: Vega, 1988.
Pignotti, Lamberto e Stefanelli, Stefania: La scrittura verbo-visiva, Roma: Espresso
Strurrienti, 1980.
Texto publicado originalmente em MENEZES, Philadelpho. A Marca do Criador: Poesia Caligráfica. In:
Gênese e Memória. Encontro de Crítica Genética, 1995. Gênese e Memória. São Paulo. p. 571-582.