Vous êtes sur la page 1sur 312
O Povo Portugués nos Seus Costumes, Crencas e Tradicées Volume I Te6filo Braga O POVO PORTUGUES NOS SEUS COSTUMES, CRENCAS E TRADICOES Depois de ter recuperado para 0 nosso patriménio vivo obras tao importantes como Histéria do Fado, de Pinto de Carvalho (Tinop), Através dos Campos, de José da Silva Pico, Da Prostituigao na Cidade de Lisboa, de Francisco Ignacio dos Santos Cruz, € Contos Populares Portugueses, de Adolfo Coelho, a colecgao «Portugal de Perto» orgulha-se de poder agora oferecer aos seus leitores aquela que tem sido considerada a primeira grande obra de conjunto da etnografia portuguesa: O Povo Portugués nos Seus Costumes, Crencas e Tradigées, de Te6filo Braga, publicada em dois volumes em 1885. Como refere Jorge Freitas Branco no esclarecedor prefacio que para esta edigdo escreveu, volvidos que séo cem anos sobre a sua publicagao, «nao perdeu qualquer interesse relembré-la pela reedi¢ao, rever nela as ideias aitocentistas com o distanciamento critico do tempo percorrido, repensar a seu propésito 0 quadro de desenvolvimento de ramos do conhecimento cientifico em Portugal [...] e, finalmente, facilitar a0 piiblico 0 acesso a um texto cheio de pormenores dum quotidiano para muitos de nés ainda no completamente votado ao esquecimento». Dada a extensio da obra, manteve-se na presente reedicao 2 divisio em dois volumes a que obedeceu a edigao original de 1885. ‘Na capa - José Malhoa, 0 CHECHE (¢leo. 1895) PORTUGAL DE PERTO Biblioteca de Etnografia e Antropologia dirigida por Joaquim Pais de Brito Assistente de Antropologia do ISCTE Dois critérios presidem a escolha dos titulos desta coleccdo, critérios esses j4 sugeridos no préprio nome que a encabeca ~- Portugal de Perto. Em primei- ro lugar, todos eles se reportam ao espaco portugués, estudando os mais diversos aspectos da sua cultura (poderiamos dizer: das suas culturas). Em segundo lugar, esse estudo é feito mais ou menos de perto, com base num trabalho de recolha directa, e propde-se, algumas das vezes, trazer para mais perto fatias do real descuradas ou desconhecidas. Tudo isso nos limites de uma 4rea disciplinar que, grosso modo, vai da Etnografia 4 Antropologia, € dirigindo-se nao s6 aos estudiosos e especialistas, como também a curiosida- de do grande pablico. O POVO PORTUGUES NOS SEUS COSTUMES, CRENGAS E TRADIGOES VOLUME I O AUTOR: ‘Teéfilo Braga, de seu nome completo Joaquim Tebfilo Fernandes Braga, nasceu em Ponta Delgada em 1843 e feleceu em Lisbou em 1924 ‘Como homem politico, profundamente empenhado na oposigio & monarquia, ¢ como ucadémico © intelectual, foi sem diivida uma das grandes figuras da segunde meade do século XIX e dos anos da Primeira Replica. Deputado durante 0 periogo monérquico, foi escolhido para Presidente do Governo Provis6rio logo apds 0 5 de Outubro, e mais tarde, em 1915, eleito Presidente da Reptblica, Da sua bibliogeafia, ha que destacar, além do presente livro, de 1885, a Hisidria da Poesia Popular Portuguesa (1867), a Histéria do Teatro Portugués (1870-1871), @ Histéria das Ideias Republicanas ein Pormugal (1880), € Contas Tradicionais do Povo Portugués, este tiltimo editado em dois volumes: nesta mesnta colecgao. REF BRA] Pou -T TEOFILO BRAGA O POVO PORTUGUES NOS SEUS COSTUMES, CRENCAS E TRADICOES VOLUME I 3.4 edigao Prefécio de Jorge Freitas Branco PUBLICAGOES DOM QUIXOTE UsBOA 1995 Biblioreca Nacional - Catalogago a Publiagso Brags, Teéfilo, 1843-1924 © povo portugués nos cus costumes efengas¢ tradigbes —3.*ed.—2¥. ‘Portugal de Pere; 10) Leva p. ISBN: 972-20-0562-6 COU 39 (1.469) Publicagses Dom Quixote, Lda, Rus Luciano Cordeiro, 116 ~ 2° 1098 Lisboa Codex ~ Pornugal Reservados todos os direitos de acordo coma legislagio em vigor A presence edigio, em que se procedeu a uma actuslizagio orcogréfica do texto do autor, foi bascada na edigio original de 1885, publicada pela Livraria Ferveira ~ Edirora, Lisboa. Capa: Fernando Felgueiras, sob reproducio do éleo (1895) "O Chéché” de José Malhoa 3. edligéo: Junho de 1995 Depésico legal n.° 90.429195 Forocomposicio: Texeype - Artes Grifieas, Lda Impressio e Acabamento: Grafica Manuel Barbosa & Filhos, Lda ISBN: 972-20-0562-6 {INDICE A PropOsito Da PRESENTE REEDICAO ..... BisuioGRaria PROEMIO . INTRODUGAO Bases da critica etnolégica As persisténcias consuetudinérias. — Transigo da antropologia para 3 etnografia: Usos sem relagdo com as costumes. —- Costumes sem relacao com as opinides. — As recorréncias ou regressées aos costumes atrasados por uma raga superior: Contacto com racas homogéneas. — Isolamento ¢ Tegresso das racas. — Causas psicol6gicas: O automatismo organico da Imitagdo ¢ da Tradicdo, nas criangas, nas mulheres e nos velhos. — As sobrevivencias: Adaptagdes das impressdes primitivas. — Transformagoes das mitos em lendas. — Decadéncias cultuais e superstigdes populares. — Fundagao de uma psicologia antropolégica, ou Demética, subordinando. em corpo de doutrina a Etnografia, a Demografia, a Demopsicologia, a Hierologia, a Etologia e a Nacionaliteratura. — Caracter de uma ciéncia social descritiva, segundo as trés sinteses, activa, afectiva e especulativa, dirigindo a coordenagao do presente livro. .. 15, a 31 35 LIVRO I COSTUMES E VIDA DOMESTICA CaPfTULo I Persisténcia dos tipos antropol6gicos, determinada pelos costumes populares Como as observagdes antropolégicas estabeleceram o facto da persis- téncia histérica dos tipos das ragas. — FeigGes variadas do portugués, coincidindo com costumes peculiares de racas primitivas. — Costumes ¢ tradigdes da época ante-histérica em Portugal. — As aversbes populares a0 tipo ruivo. — As hostilidades entre o habitante da montanha e 0 ri- beirinho. — Caracteres antropolégicos do pé pequeno e nariz. aquilino; 0 orgulho nacional ¢ o amor da novidade. — Separagio de duas ragas em Portugal, segundo os viajantes estrangeiros. — Preponderancias do génio imitativo e pequena capacidade especulativa. — Sucessio das ragas histé- Ticas no solo hispanico, persisténcia dos seus caracteres, segundo a lei fisiolégica de Miller. — Criagao completa de um tipo nacional ou Mogé- rabe. — Causas da diferenciagao entre Portugal e Espanha e da similari- dade dos seus costumes. ...........220c0.00e seer e CaPiTuLo IT Rudimentos da actividade espontanea Restos da vida némada nos costumes da Caca: O furdo. — Pedir com pele de lobo. — A altenaria nos romances populares. — Armadilhas aos passaros nos brinquedos infantis. — Caga das cabras montezas no Suajo, — Festas reiigiosas: Montaria do Porco Preto, ¢ a Mesnie furicuse. Correr 0 Montujo, na Vieira. — Costumes da Pesca: Bateis conduzidos por mulheres. — Redes de arrastar ou acéderes. — O lango da Cruz — Organizagio das companhas. — O pilado e 0 moligo. — As linhas de pescar. — Os bois empregados na pesca. Formas tradicionais das redes. — Os marroteiros ¢ a indistria do sal.— Perder a tramontana. — Uso da fava do mar nos Agores. — As formas naturais da Guerra defensiva: Os chugos, as guerrilhas ¢ almendras, — O malato ou cliente. — Costu- mes dos chefes militares na aristocracia. — O bafordo. — Os duelos. — Introdugio do arcabuz. — O sino da revolta na luta dos concelhos. — As persisténcias guerreiras nas Hostilidades nacionais, locais e individuais. 10 Sentido pejorativo de certos nomes de povos. — As injtirias das terras, umas contra as outras. — Os apodos de classe € os chascos 20s nomes individuais. 20m CAPITULO IIT As indastrias locais e tradicionais As formas primitivas da agregagao local expressas pelo Fogo e Logo. — A Casa: Persisténcia das casas de colmo: a Berga, Cardenha, a Palhoga . ou Cabana. — As Varandas. — O uso do Sino corrido. — As comidas: ‘Uso das glandes de carvalho. — As castanhas ou bilhds. Miho cozido, Michas ou Mondas. — Os moinhos de mao ou lambas. — O alho. — O vinho doce. — A vicera ou antiga cerveja. — Os Bodos. — As refeigdes do dia. — A actividade agricola e pastoral: Epocas do ano tiradas do trabalho dos campos — As formas da constituigéo da propriedade segun- do as diferenciagdes étnicas. — Os mogos da lavoura, — Costumes roma- nos ¢ drabes na agricultura portuguesa. — As queimadas no Alentejo. — As tulhas ou Matmorras. — As hortas ou Onias. — A debulha do trigo. — Os carros. — A Mesta drabe ¢ a deambulagao dos gados. — Tipos da raga dos carneiros portugueses. — A mangra. Introdugao do milho. — O costume de deitar as milhas, e de cavalgar © camb’o. — A cultura da vinha no século xiv: Costumes das cavas. — O vinho da Madeira. Rela- Ges da Agricultura com a Industria. — As Industrias locais e domésticas: A explorago das minas. — O trabalho da Ourivesaria e da Serralharia. — Leis sumptudrias. — Fstado actual das indtstrias locais. — Diferengas do trabalho no Norte e Sul de Portugal. — Os Azulejos ¢ a Ceramica, — Tecidos, bordados, rendas. — As las portuguesas. — As Feiras, sua ori- gem religiosa. — Ideia moral do trabalho entre 0 povo . CarituLo IV Estados sociais representados Nos costumes portugueses Relagdo entre os ritos funerdrios, as ceriménias do casamento ¢ as formas simbélicas do direito, derivada da constituigZo primitiva da Fami- lia. — Dos ritos funerdrios em Portugal: Actos pot ocasiio do falecimen- to. — Despenadeiras. —- Montes de pedras. — Pogos secos. — Formas de incineragao e da inumagao.—O banquete funerario. — Obradas, Bodi- vos; Pao, vinho € candeias; Ofertas aos meninos. — A encomendagio: Nenias e Danga funeral. — © pranto e as carpideiras. — Os Clamares Voceros. — O luto nas suas formas popular e oficial. — Tosquiar o cabe- lo. — Formas do culto ou comemoragdo dos mortos: — Almas santas. — 75 103 ui © gilde ou banquete sobre as sepulturas. —Mamoas ¢ Antelhas.—A Tripiidia hispana. — O toque dos sinos.—Consequéncias da falta do culto dos mortos: Almas penadas.—Baptismo de cinza.— Semear 0 morto. — Requer alma, e ter espirito.— A evocagao dos mortos. —O burburinho e a Pracisséo dos defuntos. — Das formas populares do Casa- mento: Epoca do Familismo, e formas hetairistas da Promis lade e da Ginecocracia. — Unido temporéria, Prostituiglo sagrada, e Virgindade igndbil. — Poliandria, escolha pela muiher e Celibato.—Epoca da Tribo patriarcal, ou casamentos endogimico € exogamico. — Sacrificio A comunidade; Compra de corpo, Dote paternal, Coabitagéo. — O Rapto da mulher, 0 Combate simulado ¢ a Confarreagao. — Na época Nacional: Ceriménias no lar do pai, na transigio e no lat do marido, —Com- paragdes com os costumes gregos ¢ romanos. — Costumes e simbolos juri- dicos: As duas formas sociais do estatuto territorial e pessoal. — Os Pe- fourinhos e a liberdade municipal. — As Inmandades. — A justiga local e a do Foro do rei. — Sistema tradicional da penalidade. — As penas infa- mantes. — Os estados das pessoas nos costumes populares. ~ Formas dos contratos CapiTULO V Automatismo orginico na imitagao e na tradigie Da etnogenia ow elaboragdo natural dos Costumes; Aco das crian- gas, das mutheres ¢ dos velhos: A linguagem emocional — Parlendas e Jogos Infantis, — Fenémenos de Filologia generativa. — Os gestos, como manifestagao de um periodo de mutismo. — As intonagdes: as interjei- g6es populares e palavras expletivas, — Imitagdes dos sons naturais € vozes dos animais, nas parlendas infantis. — O género do Traba-lenguas em Portugal. — As neumas das cantigas, e a criag4o da linguagem de giria. — Os Jogos infantis e populares: sua origem organica, sentidos mit cos e representagdo de estados sociais. — Bases da critica comparativa dos jogos populares comuns ao ocidente da Europa: — A Cabra-cega, 0 Dov-te-lo vivo. Contagem dos dedos. — Jogos numerativos, de adi¢ao e de climinagéo, — Danga e elemento dramatico dos jogos populares. — © jogo da Condesa ¢ da Viuvinha. — Jogos de adivinhagao como restos, cultuais. — EnumeragZo dos Jogas populares nos escritores portugueses, desde 0 século xiv ao xix. — Modas, trajos e formas cerimoniais. — Unida- de ocidental nos trajos primitivos: 0 mandil, o barrete, a cuia € a manti- Iha. — Persisténcias de certos trajas ibéricos no uso actual. — As vestes populares descritas por Villas-Boas ¢ Rodrigues Lobo. — Os trajos do século xm e xiv descritos no Cancioneiro Portugués da Vaticana. — Como 08 antigos escritores portugueses contribuem para a descrigdo dos trajos nacionais, — As leis sumptuérias. — Modas francesas em Portugal, — Titulos ¢ cumprimentos. — As dancas e instrumentos musicais: — As dangas so documentos de diferenciagdo étnica, como se observa na Es- 12 147 panha e Franga. — Tipos das dancas portuguesas, — Evolucao historica das dangas, determinada pelas alusdes dos escritores portugueses. — Uma cena do Fidalgo aprendiz, de D, Francisco Manuel de Melo. — Influencia francesa e espanhola nas dangas portuguesas: os Tordides ¢ as Saraban- das. — Os instrumentos musicais: suas relagdes com o elemento cultual. — Instrumentos musicais populares. — Transigao da vida doméstica para a vida pliblica cee 207 13 vie ALTE A PROPOSITO DA PRESENTE REEDICAO 1. Sobre 0 autor Teofilo Braga, de seu nome completo Joaquim Tedfilo Fernandes Braga, nasceu em 1843 na cidade de Ponta Delgada, vindo a falecer em Lisboa, no ano de 1924. Foi, sem diivida, uma das grandes figuras durante a segunda metade do século e os anos da Primeira Republica. Nele se conjugam facetas de homem politico, profundamente empenhado na actividade oposicionista a monarquia constitucional, como de igual forma e intensidade 0 académico com longo curriculo de publicagées cientificas. E a este tiltimo aspecto que seré dada maior atengao, sobretudo para enquadrar «O Povo Portugués» nas preocupagées do autor e nas correntes do pensamento antropolégico da época. De entre as suas principais obras publicadas em livro, hd que mencionar, por ordem cronolégica, a «Historia da Poesia Popular Portuguesa» (1867), os «Cantos Populares do Arquipélago Agoreano» (1869), a «Histéria do Teatro Portugués» (1870-71), em quatro volumes, a «Historia das Ideias Re- publicanas em Portugal» (1880), finalmente os dois volumes de «O Povo Portugués» (1885). Este relance pelos titulos de algumas das obras de Tedfilo Braga permite avaliar 0 grau de interpenetracao entre as preocupacées politicas contemporé- neas do autor e a necessidade por ele sentida de fundamenté-las pela actividade intelectual. O seu percurso profissional também o demonstra: em 1872 foi nomeado professor de Literaturas Modernas no Curso Superior de Letras, em Lisboa. No meio de febril ocupagdo foi escolhido para Presidente do Governo Provisério loga apés o 5 de Outubro de 1910; posteriormente, em 1915, é eleito Presidente da Reptiblica, cargo que exerceu durante alguns meses. No periodo mondrquico tinha também sido deputado. 15 TEOFILO BRAGA Sobre Tedfilo Braga pode-se desde jé adiantar que a sua extensa producdo constitui uma tentativa de sistematizacao baseada numa erudita compilagao. Ele tem sido considerado pelos especialistas como 0 grande impulsionador da critica literéria em Portugal. A sua personalidade associa-se igualmente 0 em- penho militante para a introducao e difusdo dos métodes positivistas no nosso pais, Seguramente que esta base filosdfica lhe serviu de estimulo e apoio como politico e como intelectual. Permitiu-the guiar-se, sistematizando na vasta obra a realidade que 0 envolvia, tanto no quotidiano, como na luta pela concretiza- (do dos seus ideais de cidadao. Nestas paginas de introdugdo ao seu mais longo trabalho directamente ligado @ Etnologia, proceder-se-d prioritariamente a andlise de contextos mais globais em que se insere «O Povo Portugués», nao tanto na dptica de posi- cionar 0 livro na obra de Tedfilo Braga, mas sim no ambito e no confronio com as correntes em que ele se inspira, ao elaborar 0 que jd foi considerado, a primeira grande obra de conjunto da etnografia portuguesa (Leal 1981: 131). Pretende-se, no final de contas, mostrar ao leitor quais as grandes idei- as e hipsteses do pensamento emografico oitocentista europeu, a sua recepcao por Te6filo e avaliar o seu contributo eventual para os estudos etnolégicos em Portugal 2. A obra no contexto das correntes antropoldgicas do século xIx «O Povo Portugués» & a fase mais acabada, de componente expressa~ mente etnografica, na obra de Tedfilo Braga. Editada em dois volumes relati- vamente densos, importa analisar alguns aspectos que a fundamentam, no- meadamente 0 seu aparelho critico. Nele se distinguem componentes varias, que remetem para grandes linhas de desenvolvimento do pensamento oitocen- tista ocidental. Em primeiro lugar ha que focar a esfera dos estudos tomanticos. Trata-se de uma Grea grata ao autor, dado 0 sew manifesto interesse pela literatura nacional, pela respectiva prespectivacao critico-historica. Este ramo de conhe- cimento baseou-se nao s6 nos aspectos literdrios, como igualmente na ténica historico-filoldgica, e dai necessariamente comparativista. Grande parte dos mais fecundos impulsos chegam da Alemanha, onde correntes roménticas procuravam o caminho para uma via liberal de unificacdo politica nacional. Teéfilo manteve uma relacao de trabalho com os investigadores alemaes ¢ austriacos que, na época, se interessaram pela temdtica portuguesa (Bellerman 1840, 1864; Hardung 1875; Wolf 1856). Ha uma troca de materiais, mas também um acompanhamento das recolhas que em Itélia (Nigra 1858-62; Pitre 1871) se levavam a cabo, A articulacdo de fontes diferentes pela disper- sdo geogréfica, contudo convergentes na drea linguistica ndo escapa a Tedfilo Braga, na medida em que cita insistentemente casos da Andalusia ou da Sici- lia (Puymaigre 1865, 1871). Desta colaboragéo nasce mesmo uma coleceao 16 A PROPOSITO DA PRESENTE REEDICAO de materiais portugueses editados em Franca (Puymaigre 1881), Neste contexto é importante referir o papel de relevo na comunicagao cientifica de- sempenhado pela revista dirigida por Paul Meyer (1840-1917), intitulada «Romania, Recueil trimestriel consacré i I'étude des langues et des littératures romanes», publicada a partir de 1872 em Paris. A utilizacao dos resultados destes autores estrangeiros, a par dos nacionais mais destacados na época, é 0 prosseguimento coerente de uma linha de pesquisa teofiliana. Outra Grea de inspiragdo é a sociologia, talvez a grande conquista na organizagao das cién- cias herdadas do século x1X. Aqui 0 alinhamento de Tedfilo Braga é, nitida- mente, Auguste Comte (1798-1857), 0 sistematizador de conhecimento, Deste pensador francés retira todo o século XIX europeu o estimulo para observar € enquadrar os factos sdcio-histéricos em pardmetros evoluciondrios, positivos, de progressao. E uma atitude que permite encadear sistematicamente socieda- des, instituigdes e a accao humana em conjuntos interpretativos. Trata-se de uma forma de encarar diferenciadamente 0 caminho da Humanidade a partir de wna forma de pensar pés-iluminista, Emile Littré (1801-1881), seu conti- nuador (Littré 1845), caminha lentamente e perante a acumulacdo crescente de informagdo, para uma linha de elaboracao de ciéncia como teoria, ou seja a epistemologia (Littré 1873). A interpretacéo da diversidade social e cultural respondia no periodo oito- centista também a outros impulsos, fruto da propria heterogeneidade do mate- rial de pesquisa. A nogdo de evolucdo, a constatacdo de que os dados que se iam desvendando se perfilhavam em periodos sucessivos, aparece paralela- mente nos investigadores ligados a observacdo dos fendmenos fisicos do glo- bo terrestre. O contacto cada vez mais intenso com paisagens extra-europeias acciona a reflexdo sobre 0 aproveitamento das recursos naturais através da geologia, da explicagao da importéncia do clima sobre a vegetacéo, como ainda sobre a pré-histsria (leia-se antropologia fisica). Autores como Sir Charles Lyell (1797-1875) defendem a ideia das transformacoes graduais, do evoluir, da passagem de um estédio a outro, baseando-se em observacdes naturalistas, sem excluir dessa natureza 0 Homem, a Cultura e a diversidade social (Lyell 1830, 1863). Quando, em meados do século, surge a disputa em torno das ideias expressas por Darwin, jé tais formas de encarar 0 mundo que a Europa ia dominando, eram aceites pela maior parte dos investigadores (Edwards 1829), Era quando muito a integracdo definitiva ¢ inequivoca do paralelismo da evolucdo da sociedade humana e do restante mundo vivo, que havia que expressar claramente (Huxley 1863). Uma terceira forma, consolidada sobretudo ao longo da segunda metade do século, para sistematizar a diversidade do Homem na sua organizacao social e na orientacao cultural, foi o propésito de através da compilacéo am- pla dos materiais fornecidos pelos exploradores e cientistas mais recentes, ac- tualizar a sintese de cariz socioldgico. Encontramos como chefes de fila o britanico Herbert Spencer (1820-1903), cuja obra, por tao vasta, foi em boa parte publicada postumamente (Spencer 1873-1919). Em Franca Charles 17 TEOFILO BRAGA Jean Marie Letourneau (1831-1902) nao fica atrés do seu contemporineo, embora o futuro 0 tenha votado ao esquecimento (Letourneau 1880). A este socidlogo francés se deve provaveimente 0 contributo mais decisivo na difu- sao das ideias do bidlogo Ernst Haeckel (1834-1919), nao sé em Franca como nos restantes paises latinos (Letourneau 1877). Bem diferentes dos seus antecedentes, estas figuras de final do século preocuparam-se em reunir elementos, elaborando métodas de trabalho cienti- fico mais aperfeicoados. A imagem que a biologia, a botanica ou a zoologia tinham adquirido gracas a observagdo sistemdtica, a0 avango na capacidade de reproduzir situacdes fora do contexto da Natureza, dando grande valor ao controlo global das condigées reais, peta repeticdo controlada e artificial no laboratorio, definindo a partir destes resultados leis gerais, leva a tentativa de decalcar esta metodologia para a filosofia e as ciéncias humanas. Tal determinismo nao foi aceite por todas as correntes de cariz socioldgi- co. Grandes nomes estdo ligados a abordagens mais especificas da Sociedade e da Historia, defendendo por vezes quase que um determinismo especifico aos aspectos sociais e culturais, contraposto ao determinismo organicista da biologia emergente. Nesta linha encontra-se grande diversidade de posicées, quase todas profundamente empenhadas em sublinhar 0 peso do passado historico, nomeadamente da relevancia progressiva das instituigdes sociais. Jo- hann Jakob Bachofen (1815-1887), um suico especialista da antiguidade relé a heranga cultural ocidental (leia-se documental) num contexto mais «niver- sal, na medida em que vé transformagées historicamente palpdveis no apr. veitamento social do direita: o direito da mae teria sido anterior ao predomi- nio estabelecido pela descendéncia masculina (Bachofen 1861). Muitos outros pensadores seus contempordneos preocuparam-se em fundamentar institui- ¢6es, justificar tradi¢des, procurar origens remotas para solucdes sociais em conflito no presente que viviam, afundado que estava o Antigo Regime. O watamento de materiais clissicos europeus, misturados frequentemente com dados sobre povos exéticos, teve como fungéo comprovar o papel xni- versal da tradigao, da historia e do mito, fazendo sobressair desta forma a universalidade da esséncia humana, escalonada em fases diferentes da evolu- ¢a0 para a civilizacéo. A grandeza da Franca oitocentista, gerindo um vasto império colonial, mas ameagada militarmente pelo surto de industrializagao da vizinha Alemanha, tem de ter um paralelo remoto com caracteristicas defi- niveis (Belloguet 1858-73). Esta sociologia (oculta) do direito da moderna nacdo europeia em justificar-se perante as suas rivais, através do surto de nacionalismos e da construgéo de culturas populares préprias, da edificagéo de ascendentes étnicos préprios, no fundo, manipular a histdria para explicar © presente em termos de agrupamento nacional territorial, atravessa toda a Europa. Como Tedfilo Braga se inspira mais na bibliografia francesa, cita além de Jules Michelet (1798-1874), ou Amédée Simon Dominique Thierry (1797-1873), de igual forma Louis Jean Koenigswarter (1814-1878), estu- dioso francés da organizacao da familia, em termos histrico-nacionais (Koe- 18 A PROPOSITO DA PRESENTE REEDICAO. nigswarter 1851). Nao deve contudo ser menosprezada esta linha de investi- gacao do século passado, pois € frequentemente através dela que as camadas sociais subalternas no pasado da nacao, adquirem direito de existéncia, como objecto de investigacao. Na visdo proposta, elas surgem quase sempre como 0 garante de perpetuacao de usos € costumes antigos. O enquadramento sociolégico aparece noutro grupo de autores mais voca- cionados para a andlise selectiva de povos ndo-europeus, ou mesmo perten- centes ao patriménio hist6rico. Neste caso os primitivos contempordneos servem de comprovagdo para a antiguidade euro-asidtica, ou mesmo biblica. Sobressaem orientalistas france- ses como Emile Louis Burnouf (1821-1907), especialista de sdnscrito (Burnouf 1863). Devem ainda ser citado James Anson Farrer (1849-1925), um britanico ligado a A. Lang (Farrer 1879), sem esquecer agueles que vi- riam a tornar-se os classicos representativos desta época na histéria da antro- pologia. Sir Edward Burnett Tylor (1832-1917), com experiéncia no México, opera uma abordagem jd bastante cultural, introduzindo conceitos, como 0 de animismo ou os survivals (Tylor 1871). John Ferguson McLennan (1827- 1881), jurista escocés, questiona-se sobre 0 casamento e 0 matriarcado, em termos de direito comparado, uma variante do tema grato a Bachofen (McLennan 1865). Finalmente mencione-se Sir John Lubbock, mais tarde Lord Avebury (1834-1913), autor com vasta qudiéncia no seu tempo, popu- larizando a dptica evolucionista darwiniana aplicada ao progresso da civiliza- a0 (Lubbock 1870). Notabilizou-se ndo sé pela interpretacdéo de materiais fornecidos por outros, como viu ainda as suas publicacées serem rapidamente traduzidas para outras linguas, como o francés e 0 alemao. Foi seu grande mérito dedicar especial atengéo @ cultura material, interpretando dados pré- -histéricos com informacées contempordneas. Ele foi um dos autores desta segunda metade do século lido atentamente por Marx. A componente sociolé- gica deu ao evolucionismo das mais diferentes sensibilidades grande projec- (a0; resta porém a antropologia fisica, nesta altura bastante ligada 4 arqueo- logia e @ propria etnografia. Durante todo o século dominam as figuras de Paul Broca (1824-1880) de Armaud Quatrefages (1810-1892). Fundada wma escola em Paris, 0 estu- do fisico da diversidade humana existente no globo, rapidamente adquire um grau de tecnicismo especifico para a tarefa e, poucos decénios passados, a antropometria grangeia facilmente um lugar como ramo antropolégico auté- nomo. O respectivo campo de trabalho n&o escapou todavia as grandes correntes de pensamento da época. Por um lado a vertente evolucionista li- near, na senda do jd citado Edwards (1829), elabora compilacdes exaustivas com tabelas de medigées referentes a descobertas fosseis ou a populacdes exd- ticas (Broca 1869; Quatrefages | Hamy 1882). A concretizagdo de programas 140 definidos levou a que, gracas as teorias de evolugéo bioldgica dos seres vivos entao em franca ascensao, a antropologia fisica, agora jé antropologia bioldgica, cedo tentasse passar para uma fase de pesquisa aplicada; trata-se 19 TEOFILO BRAGA da antropologia criminal, a principio decididamente empenhada em justifi- car padrées de comportamento e de desvio através de determinismos biold gicos. Nao € de admirar que bom niimero destes antropélogos tenham sido médicos. Mas 0 século X1X distinguiu-se néo s6 pela produtividade de ideias e hipé teses para explicar e enquadrar a realidade social ou cultural, mas de igual modo pela diversidade das abordagens presentes, pela pluralidade dos méto- dos defendidos. No dmbito das investigagées de base declaradamente etnogra- fica é também um médico que impulsiona a corrente psicologista, precursora da divisdo neokantiana das ciéncias, como esta se veio a verificar no limiar do século XX. Adolf Bastian (1826-1905) foi um homem que incansavel- mente percorreu os cinco continentes, fundando mais tarde 0 Museu de Etno- logia de Berlim. Para ele era fundamental que a etnografia contribuisse para um melhor conhecimento do comportamento sécio-psicolégico da Humanida- de. Na sua conviceao, era na esfera da psicologia e da mitologia dos povos, OU seja nas suas representagdes simbélicas, que se comprovaria a unidade da esséncia humana (Bastian 1860). Quase toda a sua vasta obra é uma busca de padroes elementares (Elementargedanke). ‘A predisposi¢ao oitocentista para abordagens psicologistas estd bastante ligada aos movimentos de ideias proprios aos paises protestantes, nos quais durante 9 século Xvi, tinham aparecido eminentes tedricos de pedagogia Continuador do suico, J.H. Pestalozzi (1746-1827), Johann Friedrich Herbart (1776-1841) é uma das primeiras figuras a encarar a psicologia co- mo uma ciéncia empirica (Herbart 1824-25). A partir destes esforgos iniciais, intimamente ligados @ propagacdo da escolaridade nos meios rurais, @ educa~ ¢do religiosa e civica de vastas camadas trabathadoras da Europa Central, ao despertar do interesse pela «cultura popular», a fim de melhor se inserirem no seu espirito e alcancarem resultados praticos satisfatérios ao ministrarem a instrucéo, leia-se, a disciplinacéo das populagées segundo os interesses dos Estados nacionais que se iriam afirmar, todo este aglomerado de factores conjuga-se numa corrente de abordagem do social. A sua finalidade foi compilar tipos de temperamento e de cardcter (nacional), servindo as tipolo- gias elaboradas para deducées em ‘termos colectivos e nunca individuais Gustav Friedrich Klemm (1802-1867), conservador do museu de Dresden, depois de se interessar pelas antiguidades germénicas, publica uma impressio- nante histéria cultural da Humanidade (Klemm 1843-52), em dez volumes de pure e incansdvel compilagao de fontes secundarias, hoje praticamente ilegi- veis mas enquadrando disciplinadamente todos os factos mencionados numa tipologia de psicologia colectiva. Trata-se da consolidacdo de uma das linhas de pesquisa mais idealistas da sua época. Seguem-se por quase toda a Europa recolhas mais ou menos sistemdticas, frequentemente enciclopédicas, sobre folclore — uma forma de encontrar categorias de definigéo do colectivo. Ted- filo Braga refere-se varias vezes a Oskar Kolberg (1814-1890), investigador que a partir de 1865 compila e edita folclore da Poléria. 20 A PROPOSITO DA PRESENTE REEDICAO Embora com resultados um pouco divergentes, Theodor Waitz (1821- 1864), procede a prematura tentativa de esbocar a antropologia dos povos primitivos (Waitz 1859-1872). Trabalho que nao conseguiu deixar terminado, esta tentativa de sintese foi publicada em seis volumes — empreendimento algo mais econdmico, se comparado com a obra de Klemm. Waitz, ao contré- rio do primeiro foi menos idealista na sua forma de arrumar as etografias. Continuando q selecciond-las segundo critérios globais de cardcter, deu bastante relevo aos factores naturais e as condigdes materiais em que se pro- duz sociedade e cultura O apogeu e simultaneamente declinio desta onda de sistematizagbes é 0 conjunto dos dez volumes da extensissima obra de Wilhelm Wundt (1832- 1920) sobre a psicologia dos povos (Wundt 1904-23), na qual 0 autor apesar dos seus intimeros escritos anteriores e paralelos, procede a andlise universal das leis de evolucdo da lingua, do mito e dos costumes. E interessante ter em conta que Emile Durkheim (1858-1917) inicia a sua explicagdo do fendmeno religioso pla sua importancia no contexto social, polemizando com Wundt. A corrente psicologista teve seguidores com outras ténicas. Pense-se em Heymann Steinthal (1823-1899), interessado nas linguas africanas, tentando estabelecer leis entre a fonética e a psicologia (Steinthal 1867), ou ainda o papel da lingua e da cultura como fundamentos do preconceito nacional e/ou religioso (Steinthal 1870). Conjuntamente com Moritz Lazarus (1824-1903) funda uma revista de psicologia colectiva e de linguistica. As aproximacées oitocentistas raramente apresentam um corpo conceptual desenvolvido e clarificado. Constituem geralmente mais uma proposta de sensibilidade na pesquisa, a partir de uma hipdtese ideal. Torna-se por isso bastante dificil enquadrar muitos autores, atribuindo-thes uma ou outra esco- la, Viu-se que J.J, Bachofen wilizou materiais sobre a religiao e mitologia da antiguidade, embora enveredasse para a andlise de instituicdes sociais. A. Bastian reuniu diversificado patrimdnio mitoldgico, preferindo procurar estabelecer critérios psicoldgicos, paralelos a toda a Humanidade; foi um mi- litante anti-evolucionista. Convém, porém, distinguir um grupo de investiga- dores associados & chamada corrente mitol6gica. Entre os seus mais destacados representantes, figuram Andrew Lang (1844-1912) e sobretudo Friedrich Max Miiller (1820-1900), ambos utilizan- do informagées etnogrdficas recentes ¢ materiais histdricos (Miller 1873; Lang 1884). Max Miiller, de origem alema, mas radicado em Inglaterra, foi que mais projeccao internacional obteve. Para ele o estudo, necessariamente comparado, da mitologia, remete em primeiro plano para a constituigéo de uma ciéncia da(s) religido(ées), mas de igual forma para o estudo do fendme- no humano como produto de cultura, esvaziando desta forma o papel da dindmica social, E 0 preliidio da separacdo entre ciéncias do espirito e cién- cias naturais: Max Miller traduziu paa inglés a Critica da Razéo Pura (1881). O enfoque mitolégico na abordagem de esséncia humana teve notdvel im- Pacte nos paises onde a questdo da identidade nacional, em termos politicos, 21 TEOFILO BRAGA foi a questdo de fundo no século XIX. Antes de M. Miiller, jé W. Mannhards, na Alemanha, submeter recolhas sisteméticas de tradigées orais a tratamento mitolégico comparado. Ainda neste mesmo pais, Georg Karl Cornelius Gerland (1833-1919) trata recolhas etogrdficas exdticas, @ medida que se encarrega da publicacao péstuma da obra deixada por Waltz. O seu nome ficou, no entanto, ligado @ transigao da abordagem mitoldgica, desprendida do contexto histérico-cultural, para a abordagem difusionista, Em Franca en- contramos Burnouf (1872) e Francois Lenormant (1837-1883), interessados em interpretar formas culturais e a historia a partir das tradigées (Lenormant 1880). Hé que recordar finalmente o trabalho feito pelos fildlogos, na medida em que se trata da drea do conhecimento oitocentista, onde mais rapidamente se caminha para resultados empiricos, no sentido actual do termo, mais vistveis e palpdveis. Coincidindo com o incremento das viagens de exploracao cientifi- ca, tanto terrestres como maritimas, e desde os finais do século XVIII, assiste- -se a um progressivo interesse pela linguistica tradicional, mas também da exdtica. Na senda do exemplo dado pelos irmaos Grimm e por Wilhelm von Humboldt (1767-1835), a investigacao filoldgica mune-se rapidamente de um corpo de conceitos, que embora altamente especificos (elaboracéo de graméti- cas), iréo permitir abordar e encarar cultura como filosofia de formas simbé- licas, especialmente pelo estudo de lendas ou de contos populares. Entre os Primeiros investigadores de campo figura lakob Ianovich Shmidt (1779- 1847) que, em 1824 e 1829 viajou pela Mongolia e pelo Tibete, elaborando as respectivas gramdticas (Shmidt 1831, 1839). Theodor Benfey (1809- 1881), igualmente especiatista de filologias orientais, foi sobretudo investiga- dor de gabinete (Benfey 1869). 3. «O Povo Portugués» a um século de distancia A partir do aparelho critica fornecido por Teéfilo Braga, tentou-se nas linhas anteriores, dar um apanhado répido sobre os grandes pardmetros em que se movimentou o discurso antropolégico oitocentista europeu. Pode-se desde ja verificar nao ser legitimo pensar que Te6filo estaria mal informado sobre a sua época, Ele préprio reconhece ter-se dedicado durante 17 anos ao estudo da etmogenia do povo portugués. Esta obra reflecte, por conseguéncia, 0 resultado e simultaneamente a me- ta dessa longa actividade, Certos capitulos néo sao inéditos, mas um reajustamento de publicacdes anteriores até ai dispersas. E: notével neste livro néo tanto a dimenséo do material reunido — isto seria, quando muito, uma tendéncia literdria pds- -roméntica (Pereira 1983) na sua época—, mas sim 0 cariz tedrico-pro- gramdtico que Teofilo quer e consegue imprimir ao conjunto des dois tomos: a sintese positivista. Vale a pena determo-nos ainda um pouco nas suas refe- 22 A PROPOSITO DA PRESENTE REEDICAO réncias tedricas de tvabatho. Primeiro que tudo, deve chamar a atencao a aparente diversidade de abordagens mencionadas e citadas, ou seja, a compi- lacao erudita demonstrada, Nos nossos dias, esta virtude de entao, deixou de ter cabimento na producéo cientifica, pois revela heterogeneidade epistemolé- gica (ecleticismo). Reside aqui precisamente uma das preocupacées do século XIX: agrupar todos os dados colegiveis e sintetizd-los num sistema previa- mente estabelecido; criar a partida uma ordem, por consenso arbitraria, onde 08 tais factos sociais possam ser inseridos. Nesta perspectiva compreende-se 0 papel historico desempenhado pela ati- tude positivista na ciéncia oitocentista, Ela permite ao intelectual, politica- mente oposto ao regime mondrquico, produzir um discurso reformador. Competiu a esta camada de pensadores elaborar um sistema de pensamento € de accéo que, embora critico ao regime politico-institucional vigente, sobretu- do no seu campo ideoldgico e na pratica politica, se revelasse por outro lado suficientemente «estabelecido» para se propér como alternativa credenciada nas institui¢des do Estado. Compreender-se-d, assim, o sistema que norteia a construgao do livro sobre 0 povo portugués. Pelo recurso constante ao passa~ do, a tradig&o, aos usos e costumes, as formas mais arcaicas de organizagdo econdmica, as expressées simbélicas @ apresentacao dos ecos populares pe- ranie situacoes criticas na vida politica nacional, Tedfilo mostra que 0 regime instituido nao é a origem e causa da nacéo,mas sim 0 contrério. Precisamente esta deducdo implicita em toda a obra — mais claramente nas curtas passagens em que critica 0 catolicismo como pilar do sistema —, 0 autor com o seu quadro da emogénese do «povo portugués» inverte os termos ideolégicos dominantes sobre 0 papel do poder monarquico, mostrando que o «Povo Portugués» tem todo um passado recuado a desbravar (a tradicao), todo um caminho percorrido como nacao (a histéria) e um conjunto de atitu- des (0 carécter nacional), cujo estudo cientifico (ciéncia como fonte de conhe- cimento) permite elaborar a trajectoria propria de evolugéo em todos os campos da actividade humana (a ideia de progresso). Ao escolher a antropo- logia oitocentista para centro de interesse e de pesquisa, Tedfilo integra-se no espirito da Europa do seu tempo, mas também deixa entrever com clareza as suas fontes mais remotas de inspiragao filoséfica: Vico e Turgot, além de Auguste Comte. Se Comte the deu a disciplina de pensamento e a corrente positivista 0 ajudou a forjar um método, rigoroso pelo sistema, para sintetizar a ordem passada e presente («leis gerais que subordinam os factos sociais»), a sua filiacao pragmdtica inspira-se em Giovanni Battista Vico (1668-1744), 0 fild- sofo que defende uma ordem social concordante com a natureza do Homem, pois «a Humanidade é obra de si mesma». Ha quem interprete este pensador napolitano, elogiado por Tedfilo Braga insistentemente, como o inspirador da necessidade de uma antropologia cultural Em Teofilo reconhece-se, contudo, uma posic¢do de mudanca, mas simul- taneamente conservadora na atitude. Dai a sua referéncia ao século da Luzes, 23 TEOFILO BRAGA através da figura de Anne-Robert-Jacques Turgot (1727-1781), 0 fisiocrata conservador que paradoxalmente falha na sua carreira de reformador politico perante a resisténcia € a oposi¢do da aristocracia ‘as elementos até aqui expostos permitem levar a efeito umprimeiro balan- co do interesse etnografico de Tedjiio Braga, tendo em conta o contexto portugués da sua época. Sem diivida que com «O Povo Portugués», publica- do em 1885, ele se coloca num lugar de destaque pela dimensdo e objectivo do propésito que se propée alcangar. Nem Francisco Adolfo Coelho (1847- 1919) ou Zofimo Consiglieri Pedroso (1851-1910), invetigadores seus contempordneos bastante empenkados nas pesquisas etnogréficas, deixaram obra tao vasta no quantitativo compilado e tratado. Sé 0 entdo jovem José Leite de Vasconcelos (1858-1941) haveria de ultrapassar toda a geragao oito- centista, deixando enorme obra verdadeiramente emogréfica na sua globalida- de. Verifica-se, no entanto, que Teofilo nao singra como impulsionador da Etnologia em Portugal. Tal deve-se ao seu proprio programa de trabalho cientifico, assim como ao papel que nele desempenha a abordagem etnogra- fica. ‘A definicdo da abordagem etnogrifica de Tedfilo Braga traduz 0 contexto hist6rico-cientifico tipicamente oitocentista. E 0 ponto mais alto de um discur- $0 e preocupacao antropoldgicos globais, baseados nos elementos entao fundamentais de Raga, Historia ¢ Tradicao. E este 0 periodo em que o fluxo de informagao obriga a que no plano internacional 9 objecto antropologico se defina, pela delimitacéo de dreas mais compartimentadas na investigacdo, a fim de permitir uma mais eficaz organizacao da disciplina, subdividindo-a em campos mais ou menos distin- tos. Surge @ necessidade prética de submeter a tratamento uma quantidade considerdvel de dados. Tudo se conjuga nesse sentido: a maior densidade da rede comercial internacional, 0 aprofundamento da divisao internacional do trabalho, a introdugdo paralela do salério nas culturas néo-ocidentais (7ovos colonizados), 0 acesso individual e compulsivo aos mecanismas da economia de mercado (campesinato europeu). Desta forma nasce a necessidade de ree- quacionar a temdtica emogréfica nos termos mais préprios de um pragmatis- mo crescente e de cariz sincrénico-funcional. Este salto qualitativo ndo se verifica em Tedfilo. Nao seré, por consequéncia, exagero ver em «O Povo Portugués» 0 apo- geu ¢ 0 declinio de uma época, com a seu estilo de trabalho de sintese cienti- fica. Face ao aparecimento de novos tipos de conflitos sociais dentro das na- ¢6es europeias, como ainda perante 0 novo papel atribuido as areas coloniza- das, a interpretacao deixa de poder ser feita na referéncia exclusiva ao passa- do, mas mais pelo equacionamento prioritario dos elementos da sincronia A sintese erudita, simples encadeamento de dados e factos inseridos numa grelha preconcebida, passa a estar lentamente ultrapassada. Por isso, Tedfilo. Braga reflecte 0 seu tempo e a mutacdo que se fazia pressentir. Perante tal 24 A PROPOSITO DA PRESENTE REEDICAO contradicao 0 autor opta pela via conservadora, elaborando um primeiro tentame de sistematizacdo, por ele entendido como Historia da Civilicacao Portuguesa, a apensar @ marcha geral da civilizacdo europeia. Talvez indeciso em relacao a aspectos determinados do futuro que entre- via, talvez mesmo até céptico perante indicios que antevia, Tedfilo joga na consolidacao do adquirido, néo fechando ao futuro as referéncias do passa- do: a continuidade do povo portugués, a sua identidade comprovada retrata- da na sintese momentinea Volvidos que sao cem anos sobre a publicacdo da sua grande obra etno- gréfica nao perdeu qualquer interesse relembré-la pela reedicao, rever nela as ideias oitocentistas com o distanciamento critico do tempo percorrido, repen- sar a seu propdsito 0 quadro de desenvolvimento de ramos de conhecimento cientifico em Portugal, reflectir sobre 0s condicionalismos ideoldgicos do pensamento ¢ trabalho enograficos e, finalmente, facilitar ao pitblica 0 acesso a um texto cheio de pormenores dum quotidiano para muitos de nos ainda nao completamente votado ao esquecimento. Julho de 1985 Jorge Freitas Branco BIBLIOGRAFIA A bibliografia que se segue deverd ser entendida como um auxilio para o leitor mais interessado aprofundar alguns aspectos parcelares da obra de Tes- filo Braga. A sua técnica de citagdo pode, em certos casos, causar certa deso- rientagéo. No texto sao também frequentes as referéncias a aucores estrangei- ros, simplesmente pelo nome, sem virem relacionados com uma ou varias das suas obras. No reportério elaborado, teve-se em conta 0 ano em que Teéfilo publica Povo Portugués», sendo deste 0 motivo pelo qual néo foram compiladas publicagées que 0 autor, ora reeditado, s6 posteriormente possa ter tido conhecimento. A esta listagem acrescentou-se um reduzido ntimero de referéncias a tra- balhos sobre Tedfilo Braga ou a sua época, ou ainda outros que permitam uma melhor compreensdo da introdugao. Fica assim o leitor munido de um pequeno instrumentario de trabalho. BACHOFEN, Johann Jakob, 1861 — Das Mutterrecht. Eine Untersuchung dber die Gynaiko- krate der alten Welt nach ihrer religidsen und rechtlichen Natur, Estugarta: Krais & Hoffmann 1903 Le droit de la mére dans Vantiquité, Préface de 'ouvrage Das Mutterrecht de JJ. Bachofen; traduite et publiée ainsi que la table analytique des matiéres par les soins du Groupe franeais d'études féministes. Pasis. BASTIAN, Adolf, 1860 — Der Mensch in der Geschichte. Zur Begrlindung einer psychologis- chen Weltanschavung, Lipsia: O. Wiegand. BELLBRMAN, Christian Friedrich, 1840 — Die alten Liederbiicher der Portugiesen. Berlim F. Dimmler; 1864 Portugiesische Volkslieder und Romanzen. Lipsia: Engelmann BELLOGUEY, Dominique Francois Louis Roget de 1858-73 Ethnogénie gauloise, Paris: B. Duprat BENFEY, Theodor, 1869 — Geschichte der Sprachissenschaft und orientalischen Philologie in Deutschland. Munique: Cotta BROCA, Paul, 1869 — Mémoites sur les caractéres physiques de l'homme pré-historique, Pa~ ris: 27 TEOFILO BRAGA BURNOUF, Emile Louis, 1863 — Essai sur le Véda; ou Etudes sur les religions, la littérature et la constitution sociale de l"Inde. depuis les temps primitifs jusqu’aux temps Brahmani- ques. Paris: Dezobry, F. Tandon; 1872 — La Science des religions, Paris: Maisonneave. COELHO, A. do Prado, 1922 — Tedfilo Braga, Lisbos imoes. COMTE, Auguste, 1851-54 — Systeme de Politique positive. Paris: E. Thunot. EDWARDS, William Frédéric Les caractéres physiologiques des Races humaines, considérées dans les rapports avec 'Hlistoire. Lettre a M. Amédée Thierry. Paris: Compere jeune. EICHTHAL, Gustave, 1841 — Histoire et origine des Foulahs ou Fellans, Paris: Doudey- -Dupré. FARRER, James Anson, 1879 — Primitive Manners and Costums Londres: Chatto & Windus GERLAND, Georg Karl Cornelius, 1868 — Uber das Aussierben der Narurvalker. Lipsia: Fleischer. HARDUNG, Victor Eugénio, 1875 — Romanceiro Portuguez. Lipsia: Brockhaus. HERBART, Johann Friedrich, 1824-25 — Psychologie als Wissenschaft, neu gegriindet auf Erfahrung, Metaphysik und Mathematik. Kénigsberg: A.W. Unzer. HUXLEY, Thomas Henry, 1863 — Evidence as to man’s place in Nature. Londres/t go: Williams & Norgate: IN MEMORIAM, 1934 — In Memoriam do Doutor Teéfilo Braga, 1843-1924, Lisboa: Im- prensa Nacional de Lisboa. KLEMM, Gustav Friedrich, 1836 — Handbuch der germanischem Altertumskunde. Dresden: Walther; 1843-52 — Allgemeine Cultur-Geschichte der Menschheit. Lipsia: Teubner. KOENIGSWARTER, Louis Jean, 1850 — Etudes historiques sur le développement de la société humaine. Paris: Durand 1851 Histoire de organisation de la famille en France. Paris: Durand. LANG, Andrew, 1884 — Costum and Myth. Londres: Longman & Green. LEAL, Jodo, 1981 — As Fontes da obra etnografica de Consiglieri Pedroso. Revista Lusizana, ns.. 2: 129-163, LENORMANT, Frangois, 1874 — Les premieres civilisations, études d'histoire et d’archéolo~ gic. Paris: Maisonneuve, LETOURNEAU, Charles Jean Marie, 1880 — La sociologie d'aprés 'ethnographie. Paris: Reinwald. LITTRE, Emile, 1845 — Analyse raisonnée du cours de philosophic positive de M. Auguste Comite, Utreque: Kemink & Zorn, 1873 — La Science au point de vue philosophique. Paris: Didier LUBBOCK. Sir John, 1870 ~ The Ori Londres: Longman & Green. LYELL, Sir Charles. 1830 — Principles of Geology. Londres: J. Murray 1863, The geological evidences of the antiquity of man. Filadéitia: G.W. Childs. MARTIN, Henri, 1836-37 — ffistoire de France depuis les temps les plus reculés jusqu’’ histoire de Ja révolution de M. Augustin Thiers, Paris: L. Mame; 1872 — [tudes d’ar- chéalogie celtique: notes de voyages dans les pays ccltiques et scandinaves, Paris: Didi Co. MELENNAN, John Ferguson, 1865 — Primitive Marriage, Edimburgo: Adam & Charles Blac! MICHELET, Jules, 1893-99 — Oeuvres complétes, Paris: Flammarion bur n of Civilization and the primitive candition of man & MORILLOT, Louis, 1874 — Mythologie er iégendes des Esquimaux du Groentand, Paris: Mai- sonneuve. MULLER, Friedrich Max, 1873 —~ Introduction to the Science of Religion. Londres: Longman & Green. NIGRA, Constantino, 1858-62 — Canzoni popolari det Piemonte. Turim: SON, Sven, 1868 — The Primitive Inhabitants of Scandinavia, An essay on the develop- ment of mankind. Londres: Longman & Green BIBLIOGRAFIA PEREIRA, José Carlos Seabra, 1983 — Tempo neo-romantico (contribute para a estudo das relagdes entre literatura e sociedade no primeiro quartel do século xx). Andlise Social, 71-18-79: 845-873, PITRE, Guiseppe, 1871 — Canti popolari siciliani. Palermo: Pedone-Lauriel PUYMAIGRE., Théodore Joseph Bondet, 1871 — Della letteratura popolare dell’Andalusia; lettere del conte T. de Puymaigre al dottore G. Pitré. Palermo: Lauriel; 1881 — Roman- ceiro. Choix de vieux chants portugais, traduits et annotés par le conte de Puymaigre. Paris: E. Leroux. QUATREFAGES, Armaud/E. T. HAMY, 1882 — Crania ethnica, RIBOT, Théodore Armaud, 1881 — Les maladies de la mémoire, Paris: Baillitre SHMIDT, Iakob Ianovich, 1831 ~ Grammatik der mongolischen Sprache, So Petersburgo: Akademie: 1839 — Grammatik der tibetanischen Sprache. Sa0 Petersburgo: W. Graft SPENCER, Herbert, 1873-1919 — Descriptive Sociology. Londres: STEINTHAL, Heymann, 1867 — Die Mande-Neger-Spracten, psychologisct und phonetisch betrachtet. Berlim: F. Dimmer; 1870 — Mythos und Religion. Berlim: C.G. Liideritz SUPICO, Francisco Maria, 1920 — Mocidade de Testfile, Lisboa: Lucas. THIERRY, Amédée Simon Dominique, 1828 — Histoire des Gaulois, depuis les temps les plus reculés jusqu’a Ventitre soumission de la Gaule & la domination romaine. Paris: A. Saute- let TYLOR, Sir Edward Buenett, 1871 — Primitive Culture, Londres: J. Murray, VARIGNY, Charles, 1874 — Quatorze ans aux tiles Sandwich. Paris: Hachette, WAITZ, Theodor, 1859-72 — Anthropologie der Naturvélker. Lipsia: F. Fleischer. WOLF, Ferdinand Joseph, 1856 — Proben portugiesischer und catalanischer Volksromanzen. Viena: Braumiiller. WUNDT, Wilhelm, 1904-23 — Volkerpsychologie. Eine Untersuchung der Entwicktungsgese- tze von Sprache, Mythos und Sitte. Lipsia: Engelmann. 29 PROEMIO Escrevia Henri Martin, por ocasido do Congreso Antropolégico cele- brado em Lisboa em 1880: «Portugal é exactamente a regio da Europa onde o erudito, por muito que se encerre na sua ciéneia, hé-de por forga abrir os olhos, e bem abertos sobre tudo quanto o rodeia; porque © pre- sente & aqui tao curioso, e quase 80 diferente dos nossos costumes, como © podiam ser as idades antigas.» Desde 1867 a 1884 temos empreendido uma larga investigacao sobre a etnogenia do povo portugués, compreen- dendo os costumes, as indiistrias locais, crengas e superstigdes, festas reli- giosas, ceriménias funerarias e nupciais, simbolos do direito consuetudina- rio, jogos infantis, adivinhas, addgios, coléquios e dangas dramdticas, mi- sicas € cangSes, novelas, profecias nacionais, cantos herdicos do Roman- ceiro, literatura de cordel, dialectologia e lendas historias. O presente trabalho vem rematar esta empresa, que tem sido o pensamento constante 2 que dedicdmos quase que exclusivamente a nossa actividade intelectual. Sobre este campo etnoldgico existem trabalhos importantes na Europa, como os Primitive Manners and Costums, de James Farrer, ¢ es~ pecialmente a obra de Kolberg, em catorze volumes: O Povo, Seus Costumes, Modo de Viver, Linguagem, Tradicoes, Provérbios, Cerimdnias, Esconjuros, Passatempos, Cantos, Miisica e Danca (Vatsévia, 1857-1880). Nao viemos a estes estudos por uma simples imitagdo, nem por curiosida- des de momento e sem destino; por uma evolugdo natural do nosso espi- rito achamo-nos atraidos para a observacao de todas as manifestagdes do viver portugués, e 0 nosso método de investigacio e 0 critério comparati- vo, bem como © intuito de reconstrugde sociolégica como sistema de coordenagao dos factos, desenvolveram-se constantemente a medida que avangamos da actividade estética para a actividade cientifica, e por fim para a especulagao filosdfica aL TEOFILO BRAGA Atraidos ainda na adolescéncia para esse lirismo pessoal pervertido pelo romantismo, viemos a conhecer que existia uma poesia mais profunda do que as emogdes do momento, revelada nos conflitos da humanidade que acentuam a sua elevagdo na Hist6ria. Entrando nesta via, em que tracdémos © esbogo de uma epopeia humana na Visdo dos Tempos, a idealizacao do passado fez-nos compreender os documentos persistentes da sua poesia, as tradigGes transmitidas na voz do povo. Imediatamente comegdmos a acumu- lar os materiais do Cancionetro e Romanceiro Geral Portugués, aproveitando © contacto com toda a mocidade portuguesa na frequéncia da Universidade de Coimbra. Obedecendo a esta sedugao, escolhemos para a nossa tese de doutoramento em Direito os Forais, documentos tradicionais do Direito lo- cal e consuetudindrio; 0 estudo da jurisprudéncia foraleira fez-nos encontrar numerosos vestigios de costumes, na vida actual do povo, e abundantes simbolos juridicos nas cantigas e romances orais. Por esta forma achémos 0 lado vivo das instituigdes locais, e ao mesmo tempo a importancia hist6rica contida nos factos aparentemente insignificantes aludidos nos cantos do po- vo portugués, Estava achado 0 nosso critério, e portanto o interesse artistica convertido em seriedade cientifica. A relagao entre os Forais do século Xt 0s romances populares actuais estabeleceu-se no nosso espirito pelo en- contro frequente de numerosissimas referéncias dos principais romances nas obras dos escritores quinhentistas Gil Vicente, Prestes, S4 de Miranda, Jorge Ferreira e Camées. Avancando constantemente, ¢ sentindo, compreendendo, a expresso do nosso génio nacional, organizdmos entio a Historia da Lite- ratura Portuguesa, onde cada escritor seria julgado segundo a intuigao que teve das fontes tradicionais de que mais ou menos conscientemente se apro- ximou, Assim, pelo estudo dos cantos do povo & que compreendemos 0 que havia de caracteristicamente nosso nos Cancioneiros provengais portugueses, considerados por Wolf como imitagdes sem cardcter nacional; pelo estudo das superstigdes é que conhecemos as origens de alguns autos de Gil Vicen- te, onde este homem de génio dramatizou costumes populares, como no Triunfo do Inverno. Pertence também a esta ordem de estudos a observagio da persisténcia étnica das racas peninsulares, base do nosso esbogo sobre os Elementos da Nacionalidade portuguesa e da Histéria de Portugal em que trabalhamos. De todos estes factos infere-se que obedecemos sempre a um ponto de vista superior, fugindo intencionalmente da compilagdo material sem subor- dinagao a um plano. A compilagao é util e necessdria, mas tem, além do defeito da incongruéncia irracional, 0 perigo de dar a estes estudos etnolégi- cos uma aparéncia de frivolidade que os prejudica, O espirito humano pre- cisa sempre de uma sintese, e 6 0 que Bacon afirma na maxima: A verdade pode sair do erro, mas nunca da confusdo. Este saudavel principio levou-nos constantemente a procurar um ponto de vista geral que nos guiasse nesta ordem de estudos. Do exame comparativa dos cantos populares, chegamos ao conhecimento da unidade poética do Ocidente da Europa, ja pressentida eZ PROEMIO. por Nigra, Liebrecht e Wolf; 9 estudo da etnologia pés-nos em maior evi- déncia este fundo tradicional comum, e partindo desta concepgao pudemos sistematizar 0s costumes populares inconscientes, incompletos e sem sentido real, coordenando-os segundo os estados sociais primitivos de que eles eram a sobrevivéncia. Neste estudo de reconstrugiio é que viemos a compreender as diferencas fundamentais que existem no método € processo descritivo de uma sociologia concreta, e 0 destino filosdfico ou abstracto de uma ciéncia dedutiva de previsao dos fenémenos sociais, ou propriamente a sociologia, confundida por Spencer e outros com a etnologia. A publicagao do Sistema de Sociologia representa na nossa actividade mental 0 periodo de abstracco filos6fica; por este trabalho chegdmos & concepgao das leis gerais que subor- dinam os factos sociais. A sua aplicagéo ao exame da vida do povo portu- gués nos seus costumes, crencas:e supetstigdes, torna este trabalho uma co- mo sociologia descritiva, exemplificada num pequeno grupo humano. Da concepcao geral sociolégica tiramos a diviso fundamental dos fenémeno: os que se referem @ actividade popular, ou Costumes, 05 que resultam da afectividade, ow as Crencas, € 0s que so as formas especulativas da intelec- tualidade da multiddo, ou as Tradigées. Eis 0s diversos aspectos por onde este trabalho se prende logicamente aos diversos graus do nosso desenvolvi- mento estético, cientifico e filoséfico, acentuados com clareza em trabalhos cuja unidade de plano e intengéo comecam a ser compreendidas. INTRODUCAO Bases da critica etnologica As. persisténcias consuetudinérias. — Transicao da antropologia Para a etnografia: usos sem relagdo com os costumes, — Costumes sem relagéo com as opinides. — As recorréncias ou regressdes aos costumes atrasados por uma raga superior: Contacto com ragas homo- géneas. — Isolamento e regressio das racas. — Causas psicolégicas: automatismo orgénico da Imitago da Tradigao, nas criancas, nas mulheres ¢ nos velhos. — As sobrevivéncias: Adaptagdes das impres- des primitivas. — Transformagoes dos mitos em lendas. — Decadén- cias culturais e superstigdes populares. — Fundacao de uma psicologia antropolégica, ou Demdtica, subordinando em corpo de doutrina a et- nografia, a demografia, a demopsicologia, a hierologia, a etologia e a nacionaliteratura. — Cardcter de uma ciéneia social descritiva, segun- do as trés sinteses, activa, afectiva e especulativa, dirigindo a coorde- nagio do presente livro. O interesse crescente pelos estudos etnolégicos, j4 como desenvolvimen- to indispensdvel das observacdes da Psicologia (Herbart ¢ Waitz) j4 como conduzindo a preparagao dos factos indutivos da Sociologia (Herbert Spen- cer, Wundt e Letourneau), revela-nos que uma modificacao fundamental se operou no critério humano, procurando a razao de ser dos actos individuais € das instituigdes sociais, ndo na vontade preponderante dos grandes ho- mens, mas nos antecedentes histéricos que temontam até ao automatismo organico das colectividades. A Histéria esgotou-se na celebrizagdo dos che- fes militares e dindsticos, explicando as transformagdes sociais pela interven- cdo arbitréria dessas altas individualidades; assim, reduzia-se a narrativa da sua existéncia biogréfica, que substitufa completamente a da nagio. As fra- ses — século de Péricles, séeulo de Augusto, século de Ledo X, século de 35 TEOFILO BRAGA Luis XIV, sdo uma sintese banal de uma concepgao errada; porque o es- plendor de cada um desses séculos proveio de antecedentes remotos como 0 estado da raga, da sua situagao geografica, dos seus conflitos sociais, do grau de intelectualidade em relacao com as nogGes objectivas, ¢ enfim da solida- riedade com um passado mais ou menos culto, que facilitava os novos pro- gressos vindouros. A alteragao do critério fez-se de um modo insensivel, ainda que muito tarde, como se observa na prépria especializagao da Hist6- ria, As investigagdes que se dirigiam aos actos dos individuos socialmente preponderantes, como os da histria politica, alargaram-se aos fenémenos sociais, como 0 Direito, a Arte, a Propriedade, as Literaturas, as Linguas, ¢ assim se chegou a tocar o problema social sob um aspecto cientifico, fixando © verdadeiro campo de exploragao critica no conjunto das sociedades huma- nas. Quando Comte compreendeu © principio que: «Os mortos governam sempre, ¢ de cada vez mais os vivos», achou a forma do encadeamento da complexidade dos factos sociais para poder submeté-los a invariabilidade das leis naturais, tornando possivel a constituigao de uma ciéncia social. Os pro- gressos dos estudos biolégicos ajudaram ao desenvolvimento da ideia de evolugdo; as descobertas sobre a correlagao das forcas, explicando os fend- menos fisicos e quimicos, vieram dar o valor de uma sintese filosdfica & concepgao evolucionista, 2 qual, ampliando-se aos fenémenos sociais, provo- cou os vastos trabalhos da etnologia, que em vez de serem uma acumuiagao de factos sem intuito — como a maior parte das relagdes dos viajantes — se subordinaram a determinagdo da influéncia dos meios, as capacidades das ragas € seus cruzamentos, as hereditariedades e atavismos, nas suas formas de persisténcias, recorréncias ¢ sobrevivéncias. Fixado 0 ponto de vista da relagao dos antecedentes, como a base de uma explicagdo racionai, 0 méto- do comparativo veio fortalecer a Hist6ria, conduzindo a dedugdes tanto mais seguras quando estabelecidas nos grandes conjuntos de factos. Neste estado da etnografia, a que a elevaram Lubbock, Tylor, Bastian, Wundt, Waitz, Lazarus, e tantos outros, a ciéncia descritiva tendeu a converter-se numa ciéncia geral do homem moral ou em psicologia, e numa ciéneia concreta dos agregados sociais confundida com a sociologia. E esta indeterminacao que a prejudica; conhecido 0 critério evolutivo e 0 método comparativo, hé toda a seguranga para que as investigagdes especiais restritas a uma raga ou a uma nag¢ao se nao esterilizem numa futil curiosidade. Se nos seus resulta- dos gerais a etnologia deriva da investigacio dos fenémenos passados nos agregados humanos, o conhecimento do homem médio, ¢ das formas de Progresso das necessidades, dos instintos, dos sentimentos, dos interesses e das ideias que agitaram essas colectividades na sucessio histérica das suas instituigdes politicas, econémicas e morais, também sob 0 ponto de vista restrito a um dado povo esse estudo dos seus antecedentes sociais serve para determinar os caracteres nacionais, por isso que os costumes domésticos, as tradigdes, as formas da actividade, tudo isso é um elemento indistinto de onde se vao destacando a poesia, a literatura, a arte, a indiistria © a 2ogdo 36 INTRODUCAO histérica de um povo na civilizacdo. Tal 6 0 ponto de vista em que nos colocamos ao coordenar os materiais deste livro em que descrevemos 0 povo portugués nos seus Costumes, Crencas e Tradigdes Nao basta compilar os factos espontaneos que sé conservam nos costu- mes ou modos de existéncia do povo; pelo exame comparativo aplicado a esses elementos étnicos é que se compreende a sua fundamental importan- cia, impondo-nos respeito por uma ordem de documentos que encerram ex- traordindrias inferéncias acerca do estado moral e social do povo de hoje nas suas relagdes de dependéncia com um passado de que é o representante inconsciente. Diz Gustavo Le Bon, aludindo a esta dependéncia étnica: «Es- te passado imenso que trazemos em nés mesmos, nés nao o sentimos, da mesma forma que nao sentimos a pressdo enorme da atmosfera que nos cerca; a sua existéncia ndo é menos real»! Turgot ja havia possuido a intui-~ 40 desta lei de evolugdo na Histéria, quando no seu Segundo Discurso na Sorbona escrevia: «Todas as idades estéo encadeadas por uma série de cau- sas e de efeitos que ligam o estado do mundo a todas aquelas que 0 prece- deram.» A verificagao deste principio leva a descobertas estupendas, como a reconstrugao das formas das sociedades primitivas através do exame das ins- tituigdes e habitos do presente. Tal é a primeira consequéncia do método comparativo, e mesmo © seu principal intuito. Toda a investigago étnica que nao visar a esta reconstrugao sociolégica ndo passara de um inventério estéril, € as comparagoes ficarao ininteligiveis. Porque, como observa Koe- nigswarter: «Todas as vezes que um facto se encontra a imensa distancia de tempo e de lugar, entre povos diferentes pelo clima, pela sua religido, sua origem ¢ linguagem, este facto liga-se necessariamente ao desenvolvimento social da Humanidade.»? E por esta vista de conjunto que nos aparece a concordancia humana através das suas fases sociais, das suas variagdes an- tropolégicas, das suas concepgdes mentais, concordancia que nao € outra coisa sendo um esforeo de convergéncia para a elevacdo da espécie, e que encerra a sintese ou 0 consensus que caracteriza uma civilizagao. Por mais elevada que seja a cultura de um povo, sempre nos seus costumes, crengas € tradigdes se irao encontrar os vestigios de épocas rudimentares sobre as quais se foram organizando as formas superiores da sua existéncia; ¢ assim como Nos organismos mais perfeitos os biologistas vao encontrar certos 6r- gaos sem destino, que nao correspondem a nenhuma funcdo actual, mas que Subsistem como ultima dependéncia de uma fase morfoldgica que passou, também nas sociedades se conservam manifestagdes automaticas em antino- mia com a situacdo actual das consciéncias. Charrire notou esta duplicida- de, cujo conhecimento é de uma importéncia prética para aqueles que exer- cem qualquer intervengao politica: «Em qualquer ponto que se tomem as sociedades, elas apresentam sempre duas idades distintas, a idade natural, ' L'Homme et les Sociétés, t.11, p. 177. * Etudes historiques sur le développement de la Société, introd. 37 TEOFILO BRAGA chamada barbara em todas as hist6rias por contraposigdo a idade civilizada, e da qual o cardcter tem sido reciprocamente desconhecido. Ainda que o homem seja tudo por si s6, a idade civilizada tem por fim negar 0 que tomou a este primeiro desenvolvimento do seu instinto. Contudo ele decide do espirito e da direcgdo de uma sociedade que recebe da idade natural a sua lingua, costumes, instituipGes tradicionais, numa palavra, a matéria- -prima elaborada numa segunda idade.» 4 E 0 estudo desta matéria-prima que constitui o verdadeiro preliminar da histéria da civilizagdo, quer no sentido geral ou sociclégico, quer sob 0 ponto de vista restrito de uma nacionalidade na criagao das suas instituigdes politicas, religiosas, estéticas ou econémicas. A critica funda-se no conhecimento desta relagao entre os elementos da idade natural que receberam forma reflectida ¢ serviram de expressdo consciente as individualidades preponderantes. Carey aplicou este principio a ciéncia econémica, escrevendo: «O relance o mais superficial sobre diversas partes do universo leva-nos a perceber que todos os periodos da civilizacdo dos tempos passados podem encontrar-se no presente, etc.»* Pela aplicacdo de uma tal ideia, os estudos histéricos receberam uma luz extraordindria, procurando-se 0 sentido de certas instituigées incompreensi- veis do passado na relacdo persistente com estados sociais de outras épocas, Fustel de Coulanges, explicando as formas da organizacao civil ¢ politica de Roma pela recomposigéo da tribo primitiva que se desenvolveu em patri- ciado, exclama: «Felizmente, 0 passado nunca morre completamente para 0 homem. O homem pode esquecer-se dele, mas guardd-lo-4 sempre em si. Porque, tal qual é em cada época, ele é 0 resumo e 0 produto de todas as épocas anteriores. »® Esta dependéncia fisica e moral, parecendo destruir- -Nos © nosso livre arbitrio, desde que seja conhecida considera-se como uma forga efectiva e iniludivel que tera de ser aproveitada, dirigindo-a no sentido da elevagdo da prépria consciéncia. As [utas para a vulgarizacéo das novas ideias, a dificuldade de generalizar as descobertas tecnol6gicas, s4o a conse- quéncia de uma tenacidade do passado, que muitas vezes os poderes politi- cos € religiosos, temporais ¢ espirituais, exploram mantendo a sociedade na estabilidade desoladora de um conservantismo estipido. Gustavo Le Bon ‘observa © conflito que se da entre estas duas forgas, a do suposto livre arbitrio, ou da iniciativa das determinagées individuais, vencida pela accio de um meio ignorado: «O homem julga proceder como ele quer, mas neste meio inconsciente, de que nem suspeita, e onde se elaboram as causas das suas acgdes, todas as geragdes que o precederam depositaram os seus vesti- gios. Debalde procurard subtrair-se-lhe, os limites dentro dos quais se pode afastar sao dos mais restritos.»® Se o conhecimento desta subordinagao fatal Politique de Histoire, t.1, p. 22. *Principes de la Science sociale, t.1, p.X1 ® La Cité antique, p. 5 * L’Homme et les Sociéiés, t.1t, p. 121 38 INTRODUGAO do homem € a Gnica condig&o possivel para atingir a liberdade, quer em si, quer nas instituigdes que 0 envolvem, o desenvolvimento do critério nesta ordem de investigagées tem o poder de destruir todas as ilusdes prestigiosas acerca da origem divina dos principais recursos de que o homem se servin para atingir 0 progresso de que desfruta. As relagdes do presente para com © passado, uma vez estabelecidas, mostram-nos com as formas superiores da sociedade so a consequéncia da transformagao de organizagdes imperfeitas, assim como as nossas concepgdes morais € abstractas, de direito, dever, justiga e responsabilidade so 0 desdobramento de manifestagdes concretas materiais muitas vezes ainda reflectidas em simbolos consagrados pela anti guidade. Vico, que na sua Ciéncia Nova teve a compreensao sintética do valor dos elementos consuetudinarios € tradicionais para a reconstrucio do conhecimento da natureza das nagdes, concluiu dos seus estudos o grande principio — que a Humanidade é obra de si mesmo. E esta a concepgao final que resultaré sempre de todas as descobertas acerca das relagdes do presente com o passado conservadas inconscientemente nos costumes; dela derivaré a nova lei moral e a base para a reorganizagéo das sociedades sob 0 ponto de vista da sociocracia, O filésofo Hume ja havia pressentide 0 alcance desta solidariedade com 0 passado, quando, invertendo o problema da compreensao do presente, partia da sociedade de hoje para se descobrir © cardcter das idades antigas; dizia ele: «Quereis conhecer os Gregos ¢ 05 Romanos, estudai os Ingleses e os Franceses; os homens deseritos por Técito e Polibio parecem-nos os habitantes que nos cercam.» Os estudos da antro- pologia e da linguistica ou filologia comparada levaram a descoberta de que estas analogias entre povos ¢ civilizagdes to remotas assentavam nao sobre uma similaridade psicolégica, mas sobre uma realidade histérica, porque es- tas nacionalidades provieram do mesmo tronco antropolégico — a raga rica nas suas diversas emigragdes para o Ocidente. E esta contiguidade e cone- xo histérica que vem coordenar uma grande soma de manifestagdes sociais, como mitos, formas linguisticas, constituigao patriarcal governativa, tipos li- terdrios, que se conservaram com caracteres comuns na civilizagéo ocidental representada pela Grécia, Roma, e nacionalidades constituidas na Idade Mé- dia, como a Franga, a Inglaterra e a Alemanha. As mesmas diferencas in- concilidveis mais facilmente se explicarao pelas circunstincias do encontro € fusdio de outros elementos antropolégicos anteriores que os drias emigrantes assimilaram mais ou menos determinadamente. Os processos comparativos no estudo dos mais complicados elementos étnicos conduzem a uma unifica~ a0 de resultados; Juvenal compreendera a possibilidade desta sintese, quan- do pelo conhecimento do que se passa numa casa deduzia o conhecimento do género humano: «Humani generis mores tibi scire volenti, sufficit una domus.»7 De facto a vida doméstica, tendo-se ampliado ou sido parodiada ratyra XIV, 159. 39 TEOFILO BRAGA na vida publica, encerra rudimentos de costumes ¢ instituig6es nacionais, que s6 se compreendem aproximando-os do tipo de que derivam; e das analogias dos diversos costumes nacionais deduzem-se as relagdes organicas da grande raga a que pertencemos, recompondo as suas concepgdes e modo de existéncia primitivos. As persisténcias. — O estudo fisiolégico da nossa natureza explica por que motivo um certo mimero de actos sao realizados sem estimulo funcio- nal, ou especificamente; ¢ porque € que a0 mesmo tempo uma grande varie- dade de actos voluntérios se tornam inconscientes ou automdticos, como condigao indispensdvel da maior perfectibilidade do seu desempenho. E, desta origem organica que deriva a tenacidade de conservagao dos modos de actividade ou costumes que j4 néo condizem com 0 estado moral ou mesmo com as ideias dominantes de uma época. Os modernos etndlogos observam com interesse esta categoria de actos, que, além de provirem de uma especi- ficidade orgdnica, também tiram a sua forga de estabilidade de uma unifor- me sugestio do meio. Spencer faz sentir esta relagdo da persisténcia dos costumes com a ac¢ao constante do meio césmico, como se observa nos povos que vivem no deserto; diz Spencer: «Desde os tempos mais remotos que as regides dridas do Oriente s4o povoadas por tribos semiticas cujo tipo social rudimentar é adaptado a essas solidées! Da mesma forma as descri- des que Herédoto faz da maneira de viver dos Citas ¢ de sua organizacio social assemelha-se quanto ao fundo a que Pallas apresenta dos Calmucos.> E assim que se explica como os mesmos costumes aparecem em ragas diver- sas provocadas pela accio do mesmo meio; necessidades iguais provocam instintos iguais, habitos idénticos, influindo por uma mesma sugestao na si- milaridade das concepgdes. Se a nossa organizagao fisiolégica explica o auto- matismo ou persisténcia de um grande ntimero de actos, principalmente os costumes, a acgdo mesolégica é que se torna a base positiva da teoria da degradacao de certas ragas € das formas mais caprichosas das regressdes aos estados ou concepgées mentais e sociais inferiores. Dentro de um mesmo pais existem classes com um nivel desigual de cultura, como numa dada regido existem extensas variedades de temperatura quebrando o sincronismo dos trabalhos agricolas; é também nestas classes que se irdo repetir com maior intensidade os fenémenos de persisténcia étnica, Portanto, o estudo dos costumes s6 se pode fazer cientificamente sobre os agregados sociais, ¢ nao sobre © individuo; daqui dimanam espontaneamente consideragdes sobre 0 estado social de que esses costumes sao a resultante mais ou menos vigorosa, a express40 mais ou menos clara de uma constituigao primitiva. Pela persisténcia dos costumes das sociedades actuais, os modernos etnélo- gos recompéem as sociedades humanas ante-histéricas. A tatuagem, conser- vada entre marinheiros € soldados, bem como as ovethas furadas, sdo formas persistentes da existéncia selvagem. Lubbock indica a continuidade das habi- tagdes lacustres desde uma época ante-histérica até ao tempo de Herédoto, 40 INTRODUGAO € sucessivamente até hoje; os sacrificios primitives dos que habitavam, esas cidades aos seus lagos protectores ainda hoje persistem na forma de supers- tices na Irlanda e na Esc6cia’. Nas racas inferiores esta persisténcia quase que se confunde com a estabilidade improgressiva do instinto animal; assim, os habitantes da bacia do Nilo, como nota Baker, constroem as suaS casas com a mesma imobilidade de tipo como as aves constroem os seus ninhos®, Nas ragas superiores conserva-se 0 objecto ou a pritica, modificando-se a forma ou 0 espfrito. Diz Lubbock: «O uso dos punhais de pedra em certas ceriménias egipcias transporta-nos a um tempo em que este povo se servia habitualmente de instrumentos de pedra.»'® Mais tarde o uso do bronze e do ferro vem a eliminar os punhais de pedra, mas a persisténcia do costume hd-de impor-se quer por uma alus&o emblematica, quer por uma nova inter- pretacao racional. Acompanhando o mesmo punhal de pedra, vé-lo-emos na China conservado como representagao de instrumentos mais adiantado: «Ainda hoje o nome de hacha escreve-se em chinés como simbolo da pedra, que era o instrumento dominante da época em que fundaram a sua escrita.»* Por outro lado, Swen Nilson mostra como entre os povos escandi- navos a forma dos ornatos e dos amuletos em coragao é um resto do antigo uso do silex em forma de langa conservado inconscientemente das épocas ante-histéricas’. Diante destes exemplos, os costumes, a linguagem, enfim toda e qualquer manifestacao do homem em sociedade, tornam-se documen- tos importantes que 0 etndlogo lé com clareza, recompondo os estados pri- mordiais que nos trouxeram a civilizacdo presente. Na sua Introdugéo a Ciéncia Social, Spencer cita numerosos casos de persisténcia em que os usos nao esto em relag4o com os costumes: «Os sacrificios dos prisianeiros ou de outros homens, outrora universalmente praticado pelos canibais nossos antepassados, persistem nas usangas eclesidsticas longo tempo depois de te- rem desaparecido da vida social ordinaria. A este primeiro facto ligam-se estreitamente dois outros, que conduzam também a indugdes de um alcance geral. Os instrumentos cortantes de pedra continuam a ser empregados nos sacrificios numa época em que para todos os outros usos se serviam de ins- trumentos de bronze e mesmo de ferro: 0 Deuterondémio ordena acs Hebreus que construam altares de pedra sem se servirem de utensilios de ferro; 0 grande sacerdote de Jupiter em Roma barbeava-se com um cutelo de bronze.» Nao levando mais longe a transcricio importante, compendia- remos os factos; quando na vida doméstica jé tinha sido abandonada a pro- dugdo do fogo pelo atrito de dois paus, ainda persistia 0 proceso arcaico * L'Homme avant |’ Histoire, p. 163. Ed. 1867. » Spencer, Sociologie, t.1. p. 132. 4 Origines de la Civilisation, p. 2 * Lenormant, Premidres Civilisations, 1.1, p..94 * Les habitants primitifs de la Scandinavie, p. 243, nota 1. » Op. cit, p. 114: AL TEOFILO BRAGA nos ritos cultuais dos Hindus, como ainda hoje na Igreja Catélica se renova (© fogo por meio do sflex e da isca, Quando no Egipto se falava uma lingua- gem vulgar, acomodada as relagées civis, conservava-se a dificil escrita hie~ roglifica para a literatura sagrada, da mesma forma que a par das nossas linguas vivas persiste o latim litirgico da Igreja Catdlica. Spencer mostra 3 evidéncia como depois da classe conservadora da teocracia,.a classe que exerce 0 poder politico, aristocracias e governos, mantém os usos anacréni- cos em aritinomia com os costumes sociais. As praxes de direito feudal conservaram-se por muito tempo na Europa, quando era geral 0 direito civil escrito; hoje ainda muitos tomam a sério os titulos nobilidrquicos de duques, marqueses, condes € bardes, quando ja ndo existe a organizacao social mili- tar, nem a organizacao da propriedade territorial beneficidria. Os costumes palacianos conservam ainda o cal¢éo e meia, completamente banidos e ridi- cularizados entre todas as classes sociais; 0 beija-mao é um resto da antiga servidao e subordinagao da homenagem; também em geral as insignias so caricatas, materializando ideias abstractas, como a coroa, simbolizando a au- toridade, a vara, significando 0 poder judicial’. As populagées isoladas das aldeias estio no mesmo caso que as classes confinadas no mundo oficial ou na corte, conservam nos seus usos coisas que estéo em desacordo com os costumes da época, tornando-se 0 retiigio prolongado das modas decaidas. © fenémeno da persisténcia étnica apresenta ainda uma outra face: quando os costumes da colectividade esto sem relaco com as opinides ou © modo de pensar. Muitas das pessoas que praticam actos cultuais ja nao créem e tém opinides fisicistas. Os governos conservam as solugdes dos con flitos internacionais submetidos a primitiva forma de guerra e da razio do mais forte; assim se viu as duas nagdes mais especulativas ¢ civilizadas da Europa, a Franga e a Alemanha, em 1870, atacarem-se como duas grandes hordas selvagens, para vergonha da civilizagio, sendo aplaudido e por vingar-se 0 que teve a razao da forca bruta, apropriando-se de territérios e do diaheiro do vencido. Na ordem individual persiste 0 antigo processo do combate judiciério no duelo a pretexto de pontos de honra, quando muitas vezes os combatentes s40 publicamente indignos, ou também homens de bom-senso que em sua consciéncia protestam contra a imposi¢ao do cos- tume. As recorréncias. — Uma vez estudado 0 fendmeno das persisténcias étni- cas, 0 determinismo organico que as explica € 0 mesmo que esclarece esse outro fendmeno peculiar das recorréncias ou regressdes de um povo adianta- do a costumes atrasados de que se esquecéra. Nao é preciso renovar a teoria © mesmo se repete nos tratamentos, quase sempre arcaicos: «Aqui quero lembrar como em Portugal temos huma cousa alhea © com grande disonanca onde menos se devia fazer: a qual € esta, que a este nome rey demos-the artigo castethano chamando-lhe ebrey; nao Ihe haviamos de chamar sendo o rey, etc.» Fern. d’Oliveita, Gram, cap. 44 42 INTRODUGAO de degradagao da espécie para compreender as regressées a costumes de cardcter inferior; basta notar a tenacidade dos caracteres étnicos de uma raga ou de um povo para deduzir que a sua revivescéncia seré uma conse- quéncia do contacto com qualquer ramo do mesmo tronco antropolégico. A persisténcia dos caracteres nas ragas acha-se provada por um grande ntimero de factos; César descreve 0 Gaulés tal como subsiste na feigdo do’ francés moderno: «Os Gauleses tem o amor das revolugées; um revés desanima-os; eles so tao prontos a empreender guerras, como moles ¢ sem energia na hora dos desastres.» Edwards, percorrendo os departamentos da Franca, no- tou os caracteres das racas primitivas subsistindo nos habitantes do mesmo territério indicado pela Histéria'; percorrendo a Itdlia e a Grécia, chegou as mesmas conclusdes fundamentais; J. J. Ampere percorreu a Grécia mo- derna procurando compreendé-la pelas tradigdes da cultura helénica, ¢ ainda encontrou ali 0 mesmo fundo popular sobre que se criaram os mitos, as lendas épicas ¢ os cantos liricos ¢ dramiticos’’. Ribot também nota como o bizantino da época do Baixo Império era romano nas férmulas, mas organi- camente grego: «O bizantino conservou do grego, além da lingua e das tra- digdes literdrias, uma subtileza, que sem forca para sustenté-la degenerou em argicia mesquinha. O gosto do grego pela linguagem culta e pelas discussdes brilhantes tornou-se o palavrério bizantino, a subtileza sofistica dos filésofos na escoldstica oca dos tedlogos; ¢ a doblez de Graculo na diplomacia pérfida dos imperadores.» Pelo seu lado, Taine também aproxi- ma © germano descrito por TAcito do alemao nosso contemporaneo. Escre- veu © grande historiador: «Corpulentos ¢ brancos, fleumaticos, com os olhos azuis espantados e os cabelos de um louro ruivo; estémagos vorazes, reple- tos de carne e de queijo, aquecidos por licores fortes; um temperamento frio e tardio para o amor, o gosto pelo lar doméstico, a tendéncia para a embria- guez brutal; etc.» Taine reconhece que «é assim 0 alemao de hoje em dia». Gustavo Le Bon, acumulando estes factos, conclui que as diferengas nas repiiblicas da América, saxénicas e espanholas, se explicam pela prove- niéncia das qualidades étnicas que tiram de instituigdes politicas idénticas ' «.. 08 principais caracteres fisicos de um povo podem conservar-se através de uma larga série de séculos numa grande parte da populagao, apesar da influéncia do clima, da mistura de ragas, das invasdes estrangeiras, € dos progressos da civilizagdo.» W. F. Edwards, Les Caractéres physiologiques des Races humaines considérés dans leurs rapports avec I Histoire, p. 37. «Devemo-nos dispor a achar nas nagdes modernas, quase por certos vestigios, ¢ numa Porgao mais ou menos grande, os tragos que as distinguiam na época em que a Historia ensina a conhecé-las. Temos visto que a acepgio de novos povos multiplica 0s tipos, nao 0s confunde; © seu ntimero aumenta com os que estes povos The trazem © com os que eles criam misturando- ~se: porém deixam subsistir 08 antigos, restringindo-se na razdo da extensio que tomam as ragas intermedidrias. Assim os tipos primitivos ¢ os de nova formagdo subsistem conjuntamente sem se excluirem nos povos mais ou menos civilizados todas as vezes que cada um constitu uma grande parte da nacio.» (Idem, p. 37). "© Grece, Rome et Dante, pp. 61 a 65. 43 TEOFILO BRAGA resultados tao opostos'’. A histéria da Europa est implicita nesta lei de persisténcia étnica; as numerosas invasdes sofridas por este continente fize- ram que racas diferentes se sobrepusessem no mesmo territério, cruzando- -se, prevalecendo ora a accdo do mimero, ora a superioridade da cultura. Nestes cruzamentos, muitas e muitas vezes se fusionaram em diversas épocas ramos diversos da mesma raga levados ao encontro uns dos outros por aci- dentes hist6ricos. A distancia que separa os ramos dricos que vieram ocupar a Europa, quer cronolégica, quer topologicamente falando, diferenciava-os tanto como se observa do Grego para o Romano, do Romano para o Celta, deste para o Germano, ou ainda para 0 Eslavo; quando qualquer destes ramos se formava ou unificava, quer os Romanos submetendo-os a todos, quer os Germanos dominando por seu turno os Romanos, inevitayelmente se davam regressdes étnicas em que preponderavam os costumes do elemen- to mais atrasado; quando em Roma se estabeleciam as instituigdes pessoais € militares do Império, era quando a administragdo provincial regressava a0 tipo da liberdade local do Municipalismo e se restabelecia o culto fetichista do Genius loci, ou das divindades poliades. Sob 0 predominio dos povos germanicos, a Europa regressou ao regime das guerras privadas da vindicta pessoal, e as instituigdes politicas tornam-se outra vez patriarcais na forma do feudalismo. Quando a Europa se vé invadida por tribos tartaras, dé-se subsequentemente essa regressio aos cultos magicos das ragas amarelas, € reina 0 contdgio de alucinagao da demonomania ¢ da feitigaria. Outras vezes dé-se 0 fenémeno contrario, é a raga que decai a que conserva costumes superiores, como a hierarquia dos parentescos em povos errantes como os Australianos'*. O isolamento dos povos é uma causa da sua decadéncia étni- ca, ou de uma estabilidade que a equivale. O fenémeno da recorréncia ou da regress4o também se manifesta individualmente; os velhos, como diz o ditado, sao duas vezes criangas; os velhos condenam 9 presente ¢ idealizam © passado, que se thes aviva na meméria. A frase laudator temporis acti € uma designagdo vulgar dos que obedecem inconscientemente a esta tendén- cia organica; se a morte nao fosse uma eliminagao inevitavel, as sociedades humanas estacionariam pela preponderancia dos velhos com a regressio do seu conservantismo. A mulher € a crianga sao um outro factor de regressao étnica. Todas as exaltacdes pietistas vio encontrar na impressionabilidade das mulheres a base da sua expansao. Quando no mundo dominavam a civi- lizacgdo helénica e a clareza racional do direito romano, foi pelo fervor das mulheres, as agapetas, que 0 Ocidente regressou deploravelmente aos custos orgidsticos da morte do jovem deus alegorizados no cristianismo. Nas agita- Ges politicas ela tem servido por vezes de agente de regressdo a0 comunis- mo das primitivas associagdes cristas. Muitas das modas sao regressoes a *” L'Homme et les Socittés, ttl, p. 131 ™ Spencer, Principes de Sociologie, 1, p. 143. 44 INTRODUCAO costumes selvagens, como os ornatos dos anéis ¢ brincos, as ancas simulando a estatopigia dos hotentotes, ou os cosméticos da tatuagem. Os exemplos abundam, ¢ ainda no século XIx vemos os Jesuitas exercerem a aliciagao das mulheres na esperanca de por esse meio fazerem regressar a Europa civiliza- da ao obscurantismo da teoeracia. As criancas, pelo instinto da imitacao conservam as prdticas que observam, e pelo extraordindrio amor das tradi- Ges poéticas fazem reviver o passado, obrigando a repetir com instancia o conto, a lenda, o mito incompreendido, perguntando o porqué daqueles ac- tos que se praticam muitas vezes j4 sem se thes ligar um intuito ou um sentido, Quando nos costumes piblicos j4 um certo niimero de actos se ex- tinguiram, as criangas ainda regressam a eles, dando-lhes a forma de jogo, de parédia, como se observa nos seus combates ¢ tréguas simuladas, e em certos actos festivos que coincidem com as épocas religiosas do ano no ca- lendario eclesidstico. A crianga representa na sociedade as concepgdes es- pontaneas do fetichismo, e esse estado mental em que os produtos da imagi- nago s40 tomados como realidades. A crianga € depois 0 homem, absorvido pela vida pratica, vivendo pelo presente, e acomodando as coisas 8s suas circunstancias, mas os costumes domésticos sobrevivem na familia nas gera~ g0es novas que vém despontando. Tal € esse outro fendmeno étnico funda- mental, a que Tylor chama as Sobrevivéncias. A psicologia das criangas ex- plica um grande ntimero de factos etnolégicos; Spencer apresenta o seguinte principio: «Enquanto o desenvolvimento mental é atrasado, o espirito nao faz senao receber e repetir; nao pode criar, falta-the a originalidade.»'® Os povos, mesmo os mais atrasados, compreendem o valor da tenacidade da meméria infantil no seu aferro pelas tradigdes; Varigny, no seu estudo Vinte Anos nas Ilhas Sandwich, descreve 0 modo da transmissao tradicional; € insiste em outro seu escrito mostrando coma nas ilhas Havai «é uso escolher-se em cada familia uma crianga, de ordinério uma rapariga, a qual se ensinam desde a tenra idade os cantos dos antepassados. Estes cantos transmitem-se assim verbalmente, sem serem escritos»”°. Santa Rita Durao, no seu poema da Caramuri, também nota um facto andlogo nos indigenas do Brasil: A antiga tradigao nunca interrupta, Em cantigas, que 0 povo repetia Desde a idade infantil todos compreendem, E que dos pais maes cantando aprendem. Pela etnologia da crianga se recompée os caracteres do homem emocio- nal primitivo; a crianga, por assim dizer, representa na sua evolugdo os esta~ dos rudimentares das sociedades mais remotas. Ela conserva na sua lingua- ” Principes de Sociologie, t.1, p. 114. *® Apud Revue internationale, p. 79 (1883). 45 TEOFILO BRAGA gem as duas formas emocionais da intonagiio ¢ da gesticulacdo; tem um feti- chismo espontaneo no amor pelas coisas inanimadas, sobrevivendo nela mui- tos dos caracteres do selyagem. Spencer observa que o Tupi, quando tropega numa pedra, bate-Ihe*! como vemos fazer a crianga, que como o Tasmaniano passa do riso as lagrimas, ou € incapaz de perseveranga, como o Austra- liano, O medo que se apossa da crianga ao ver uma pessoa estranha a fami- lia, ou mesmo a hostilidade contra outras criangas, representa esse estado de guerra permanente das populacées atrasadas; para elas a casa é o mundo, como para as poyoages rudes que explicam 0 universo pelo limitado ambito que conhecem. E esta tenacidade na conservagao tradicional que originou esses provérbios, ou sinteses da sabedoria popular: «O que 0 berco di a tumba o leva»; e, como dizem os Espanhdis: «Mudar costumbre es a par de muerte,» Nestas condig6es, as sociedades progridem, transformam-se, € as proprias tradigdes de orais passam a escritas, ou fixam-se pela morfologia artistica; mas, embora se modifiquem, conservam a sua primeira forma emo- cional na sobrevivéncia de outras idades sociais. O que fora um culto reli- gioso nacional, uma vez extinta a nacionalidade, sobrevive como um rito magico, ou como uma supersticéo, ou ainda como um jogo infantil; o que fora um mito, uma explicagdo subjectiva de um fendmeno césmico, uma vez explicado pela ciéncia, passa a forma de uma metafora da linguagem, sobre- vive como um enigma popular ou como um conto maravilhoso. As sobrevivéncias. — Este fenémeno étnico, pelo qual se explicam as criagdes da arte e da literatura, deriva desse principio ou lei de evolugao, to eviderite em outros fendmenos de ordem cdsmica ¢ biolégica. Comte fez sentir o valor filos6fico deste principio: «A sa teoria da nossa natureza, indi- vidual ou colectiva, demonstra que o curso das nossas transformag6es nao pode nunca constituir sendo uma evolucdo sem comportar nenhuma criagao. Este principio geral é plenamente confirmado pelo conjunto da apreciagaa historica, que descobre sempre as raizes de cada mutagao efectuada até indi~ car © mais grosseiro estado primitivo como o esbogo rudimentar de todos os aperfeigoamentos ulteriores.»% Na sua obra A Civilizagdo Primitiva, Tylor deu a esta categoria de factos, pelos quais se reconstitui a marcha da civili- za¢éo, 0 nome de sobrevivéncias (survivals): «Um grande mimero de proces- sos, de costumes, de opinides, foram transportados pela forca do habito para um estado social diferente daquele onde tinham sido originados, e subsistem desde logo como testemunhas e exemplos de um antigo estado moral ¢ inte- lectual de onde um novo saiu. — A conservagao dos velhos usos, s6 por si, € © indicio da transigao dos tempos que se vao para os tempos que vém vindo. ~ O que as sociedades antigas consideravam como uma coisa séria 2 Principes de Sociologie, t. % Systeme de Politique positive, t.1, p. 106. 46 INTRODUCAO. pode acabar por no ser mais do que um divertimento nas geragGes subse- quentes, e 0 que fora objecto de crencas convictas pode acabar por transmitir-se apenas nas tradigdes das amas, enquanto os hdbitos do passado podem transmitir-se & sociedade nova, ou mesmo tomar outras formas susceptiveis ainda de eficacidade para o bem ou para o mal. — O estudo do principio de sobrevivéncia perde, importa reconhecé-lo, uma grande impor- tancia pratica, se se considera que as mais das vezes 0 que nés chamamos superstigéo nao é outra coisa mais do que a sobrevivéncia de ideias perten- centes a uma sociedade extinta; € é isto que permite a sua mortal inimiga, a explicagdo racional, o atacé-las. Efectivamente, ainda que sejam insignifican- tes em si uma multidao de factos de sobrevivéncia, tal é a utilidade do seu estudo para descrever 0 curso do desenvolvimento histérico, que s6 pode dar o sentido da sua significagdo, que um ponto vital das investigacdes etno- graficas consiste em reconhecer a sua natureza 0 mais claramente possivel.»% Destes principios Tylor deduz a seriedade que merece o estudo de certos jogos, anexins, costumes ¢ superstigdes populares, para pelas sobrevivéncias recompor a evolugdo social e 0 sentido originario desses fastos. A sobrevivéncia é 0 facto capital da etnogenia pela circunstancia de resultar da elaboragdo social no seu conjunto, ou como transformagao in- consciente da colectividade. Um jogo, uma danga popular, s4o quase sempre © Ultimo vestigio de um culto extinto j4 desconhecido; a maior parte das superstigdes sdo a sobrevivéncia de concepgdes de estados mentais atrasa- dos, ou de formas sociais inferiores, ou de religides decaidas da sua imobili- dade canénica, ou de sincretismo de diferentes épocas, crencas e fusdo de racas. O facto da substituicdo do cristianismo aos politefsmos greco-romano € germanico deu a sobrevivéncia de elementos politeistas j4 transformados no sistema da nova religiao, ja sendo elaborados nos costumes populares dos Pagi, tantas vezes condenados pela Igreja. Considera Emile Burnouf: «Nés mesmos observdmos na Grécia que muitos santos ou personagens cristdos s6 se sucederam aos deuses de outrora por terem nomes semelhantes aos seus ou poderem ser objecto de cultos andlogos. Santo Helias, sucedeu a Hélios, 9 Sol; Sao Demétrio, a Deméter, ou Ceres; a Santa Virgem Virgem Miner- va, que foi a Aurora, e assim de muitos outros. Vestigios iniimeros de anti- gos cultos existem ainda no seio do cristianismo, que nunca péde apagé-los completamente.»™ Do calendério romano vieram para o catélico as princi- pais festas, como a Flordlia, as estreias, e muitas das divindades politeistas, como Dioniso, Eleutério € Ruistico (epitetos de Baco), festejados em 9 de Outubro, ou Santo Apolindrio, coincidindo com as festas romanas a Apolo; ou mesmo a personificagao das Festas florae et lucae em Santa Flora e Santa Luzia. Com 0 politeismo germénico da-se a mesma sobrevivencia no cristia~ ™ Tylor, La Civilisation primitive, t.1, pp. 19 € 20. ™ Science des Religions, p. 75. 47 TEOFILO BRAGA nismo, com a Arvore Yggdrasil transformada na Arvore do Natal. Igual- mente na etimologia das palavras sobrevivem as concepgdes primitivas, co~ mo nos nomes de individuos sobrevivem as reminiscéncias das sobreposicdes de racas num mesmo territério. Todos empregamos a palavra auspicio, mas j4 ninguém consulta as aves (avis spicium) para conhecer 0 futuro; a qual- quer acidente desgracado chamamos desastre, (de dis e aster) mas ninguém no nosso estado de civilizacao consulta a boa disposicao dos astros; falamos (do latim fabulare), mas nao recorremos as fabulas para nos entendermos. No vocabulério portugués conservam-se palavras de origem germénica Arabe, como nos nomes individuais se observa a coabitagao destes dois ele- mentos étnicos, como, por exemplo, em Venegas (de ben, filho, em drabe, Egas, em gético). Nas imprecagoes religiosas do catolicismo peninsular sobrevive a invocagao a Allah em Oxald (do arabe ins-Allah, Ald 0 queira) e no Cancioneiro da Vaticana ainda se emprega Ai mezela (do arabe Mashallah, Ald 0 quer). Nao acumulamos mais exemplos, porque toda a etnologia consiste em restabelecer os antecedentes étnicos dos costumes. Vi- co possuiu a extraordindria intuigéo do valor cientifico destes factos frag- mentérios de sobrevivéncia: «As rufnas da antiguidade, intiteis até aqui a ciéncia, porque elas ficaram bagas, quebradas, deslocadas, produziréo uma grande luz quando elas forem polidas, ajustadas e colocadas no seu lugar.»?° Augusto Comte, primeiro do que ninguém, alcangou a importancia do pro- cesso etnolégico, primeiramente para introduzir 0 critério evolutivo na so- ciologia e depois para garantir as formas das aspiracdes do progresso: «Para fundar a verdadeira ciéncia social, bastava estabelecer irrevogavelmente esta teoria de evolucdo, combinando com a lei dinamica que a caracteriza antes de tudo o principio estatico que a consolida, e depois a extensao temporal que a completa.»®* O valor desta base estatica da tradigo acha-se formula- do por Comte com uma nitidez admirdvel: «Mas, a qualquer grau a que possa chegar o progresso social, serd sempre de uma importancia capital que © homem nfo se creia nascido de ontem, e que 0 conjunto das suas institui- des € dos seus costumes ligue por um sistema de sinais intelectuais e mate- Tiais as suas recordagdes do passado as suas aspiragdes de um futuro qualquer.»?” Os investigadores alemaes tém procurado fundar a ciéncia que unifique num corpo de doutrina os conhecimentos desses vestigios da Anti- guidade, preocupando-se em recompor o Allgeist, ou 0 espirito colectivo, e 0 Volkgeist, ou espirito de um povo (Steinthal); pela sua parte, Stuart Mill previa a formagao de uma etologia, ou determinagao dos caracteres nacio- nais. De facto, além de um fundo comum que se revela na similaridade de um certo niimero de tradigdes ¢ de processos mentais, explicavel pelos cru- zamentos das ragas e pela influéncia constante do meio, existem diferengas Ciéncia nova, p. 91. Trad. francesa Systéme de Politique positive, t.t, p. 35. Nesta primeira concepgao ficou Spencer, Philosophie positive, condensado por Miss Martineau, 1t, 166. 48 . INTRODUGAO. étnicas de povo a povo que vio constituindo a sua individualidade nacional. Os édios locais € internacionais, que se conservam na poesia do povo, a diversidade dos seus processos tecnolégicos ¢ 0 antagonismo de classes, a variedade das suas dangas e instrumentos musicais, dos trajes e habitos festi- vos, enfim dos caracteres morais, s4o outras tantas expressdes determinati- vas das individualidades nacionais, que se vao acentuar em formas superio- res da actividade hist6rica, das criagdes da arte e da literatura. Compreende- -se como alguns espiritos eminentes cairam na ilusio de considerarem esta soma de factos concretos como constituindo 0 campo da sociologia, quando esta ciéncia nao pode elevar-se ao seu cardcter geral senao pelo estabeleci- mento de previsées a partir das civilizagdes mais altas. De facto, a par da sociologia deve organizar-se uma ciéncia descritiva coordenando esta enor- me soma de factos, A falta de um titulo, Vico deu 0 nome de Ciéncia Nova ao conhecimento derivado dos vestigios tradicionais dos povos explicando as suas instituigdes e historia. Esta ciéncia teve um desenvolvimento crescente, mas sem plano sintético; Grimm estudou os simbolos juridicos conservados nos velhos do- cumentos germanicos € nos costumes, Herbart sentiu a necessidade de estu- dar a psicologia no povo, e Waitz continuou este novo critério nas diferentes ragas humanas tomadas em conjunto; as literaturas populares foram estude- das como base tradicional das grandes obras-primas, como a Divina Comé- dia, 0 Decameron, as Tragédias de Shakespeare ¢ 0 Fausto; os estudos da antropologia procuraram diferenciagdes dos povos nos costumes ou modos da sua actividade. As superstigdes populares vieram completar os processos da ciéncia das religides; ¢ a historia comparativa procurou as origens consuetudindrias das instituigdes sociais ¢ politicas. Destas diferentes contri- buigdes isoladas nasceu a necessidade de dar-lhes um nome complexo que as abrangesse, formando um corpo de doutrina; propés-se 0 nome de Dero- psicologia, que nao se aceitou, por incompleto, por abranger somente um aspecto dos fenémenos sensoriais e racionais; em 1846, Williams Thoms in- troduziu a designagao de Folk-Lore (isto é, saber do povo) para compreender esta ordem de fenémenos, vindo em 1878 este nome a servir de titulo a uma associacéo destinada a «conservacao e publicagéo das tradigées populares, baladas, provérbios locais, ditos, superstigdes € antigos costumes, ¢ 0 mais que se refira a estes assuntos». Como titulo de uma associagao inglesa pode aceitar-se; como designagdo cientifica é imperfeita, porque nao exprime senao um lado de tao complicados problemas, o que se refere ao saber do povo. E preciso, antes de tudo, coordenar todos esses fendmenos, tomando o homem nas manifestagdes do seu ser: a actividade, 0 sentimento e a raciona- lidade. Assim, a este conjunto de fenémenos dariamos o nome de DEMOTI- CA, dividida nas seguintes partes: I. Etnologia e Demografia. IL. Demopsicologia e Hierologia. IIL. Nacionaliteratura e Etologia. 49 TEOFILO BRAGA Esta ciéncia descritiva compreende pois, na sua primeira parte, a P: leontologia humana, tal como a tém desenvolvido os gedlogos € os antropé- logos (Lyell, Broca, Quatrefages, Hamy, Huxley); e a Etnografia dos costu- mes, instituigdes e formas de actividade (Lubbock Tylor, Baschoffen, Spen- cer, Bastiat, Wundt, Mac Lennan, Lavelleye). © estudo dos movimentos in- conscientes passados na multidao, tais como a estatistica da natalidade, esta- turas, casamentos, crimes e mortalidade, formam a Demografia, iniciada por Quetelet e continuada por Bertillon. A segunda parte da Demética sera constituida pelo estudo da psicologia an6nima ou colectiva, a que ja se d4 o nome de Demopsicologia, e pelo estudo das religices na sua forma de mitos, cultos, teologias e supersticdes com o nome de Hierologia. O critério cientifico moderno, ampliando as leis cosmolégicas e biolégicas aos fenémenos sociais, adquire uma nova capaci- dade para compreender o estado mental do homem primitivo, que pelo seu sincretismo espontaneo explicava os fenémenos do mundo fisico e organico pelo confronto com a sua individualidade. © que era nesse estado emocional uma confusao, pela impossibilidade de relacionar os elementos do conheci- mento, é hoje uma sintese coordenadora. A Demopsicologia pode j4 esbogar 0s contornos da histéria ou evolugdo mental da Humanidade; esses contor- nos destacam-se nas seguintes épocas: as impress6es do mundo exterior, pe- la sua intensidade e complexidade. nao s4o elaboradas subjectivamente. Este periodo de inconsciéncia é representado pelos selvagens actuais mais degra- dados e pela estado patolégico da idiotia. Numa segunda época as impres- s6es séo excedidas pela elaboragéo subjectiva, e portanto a realidade é substituida pela visualidade. Este estado € representado pelas organizacoes sociais teocraticas, pela concepgao das teogonias e teologias primitivas ¢ ain- da pelos metafisicos e alucinados. Comte define nitidamente esta situagao mental: «O pensador fetichista, que nao sabe distinguir entre a actividade ¢ a vida, acha-se menos afastado da verdade cientifica do que o sonhador tedlogo, que apesar da evidéncia considera a matéria como passiva. Um ob- serva, sem diivida, de uma maneira pouco profunda, mas 0 outro concede a imaginagao uma influéncia exorbitante.»®* E apreciando a vacuidade das ¢s- peculagées metafisicas, acrescenta Comte: «Aas olhos de um verdadeiro fi- Jésofo, a ingénua ignorancia que distingue sob este aspecto (0 fetichismo) os humildes pensadores da Africa Central é mais estimavel, mesmo em racionalidade, do que 0 pomposo palavreado dos soberbos doutores ger- mAnicos,»2® E sobre esta base de positividade mental das concepgoes feti- chistas na sua aproximagdo geral da realidade que assenta esse principio, descoberto pela intuigao genial de Jacob Grimm de que nas tradigdes popu- lares ndo existe mentira. O nosso século vai compreendendo com uma sur~ ™ Systeme de Politique positive, ttl, p. 85. ™ ibidem, t. , p. 99. 50 INTRODUGAO preendente lucidez a psicologia da crianga € do selvagem, ¢ interpreta com um sentimento de verdade os mais complicados mitos ¢ religides antigas ¢ as manifestagdes da arte rudimentar, ao passo que 0 que se observa nos passa dos metafisicos € uma severidade brutal dos pedagogos pata com as crian- gas, uma intolerdncia da parte dos tedlogos para com as outras religides, um desdém dos retéricos para com as produgdes estéticas que no sio greco-romanas, A terccira época da nossa evolugao mental, representada pela actividade cientifica, distingue-se pelo estabelecimento entre as impressdes objectivas e a elaboragao subjectiva de uma relagdo critica que nos aproxima da realida- de, por onde se verifica 2 nogao abstracta. A lei dos trés estados, definida por Comte, dé-nos 0 método para sistematizar os factos da Demopsicologia, em que se distinguem Lazarus, Waitz e Gerland. A Hierologia estuda 0 grande sistema das relagdes subjectivas que deri- vam da nogdo de causalidade e que recebem a forma dos mitos, das praticas cultuais ¢ da relagdo entre a vida doméstica ¢ a existéncia piiblica. O ho- mem faz 0 Deus a sua imagem, e o estado social organiza-se segundo a concepgao que 0 homem faz da divindade. Numa sociedade rudimentar, em que prepondera o regime da maternidade, 0 Deus é wm fetiche ferninino, a Terra-Mae, a Virgem-Meretriz, que tira de si mesmo os deuses e todas as coisas criadas. Numa sociedade em que prepondera o regime da paternidade, patriarcas, eupdtridas e patricios, 0 Deus é masculino, criando tudo pela sua mao, que se representa como um simbolo félico do linga. Quando vem a prevalecer 0 regime familista, a mulher nao perde 0 seu lugar, se 0 filho entre neste agrupamento, formando a trindade doméstica, sobre cujo tipo se organiza @ hierarquia divina, a qual se renova pelas encarnagdes ou avatar. Depois da vida doméstica, temos a vida social influindo na concep¢ao reli- giosa. As formas da actividade do homem, a natureza do seu trabalho, determi- nam a morfologia das divindades. Numa sociedade agricola, a Terra é a deusa mae, Deméter, e todos os acessérios da terra, os montes, as cavernas, os charcos € 0s arvoredos sao 0s objectos do culto; a terra € concebida como um Utero, 0 kteis fecundo, e o seu culto toma o cardcter da prostituicgao sagrada, ou 0 hetairismo social. Sacrifica-se as divindades femininas 0 ado- lescente, 0 macho como 0 objecto mais propiciatério, Nos costumes moder- nos, especialmente nas superstiges, conservam-se numerosos vestigios do primitivo hetairismo, como no culto das cavernas e montanhas € em muitas formas do marianismo. A actividade agricola influi sobre a estabilidade civil, como 0 descobriu Turgot®, sendo assim que as sociedades atingiram o regi- me industrial; a necessidade da vida némada imposta pelo estado pastoril, levava as ragas a um isolamento ¢ a uma inferioridade fisica € moral. As % Obras, t.1, p. 599, Ed. 1844, SL TEOFILO BRAGA racas pastoris nao conheceram as relagdes definidas da familia nem da pro- priedade, nao se afeigoaram pela economia, nao criavam forca pela indis- tria, e errantes de regido em regido, tornavam-se odiadas pela pilhagem, pelas doengas fisicas como a lepra e pelas monstruosidades dos costumes de incesto e bestialidade. Numa sociedade pastoril prepondera 0 culto sidérico, a idealizagdo dos fenémenos da luz, adorando nos paises quentes a Lua e nas regides frias 0 Sol, formas que nos aparecem muitas vezes sobrepostas ¢ que ainda modernamente subsistem no calendario catélico nos dois cémpu- tos lunar e solar anual. Cria-se o culto das divindades malévolas das trevas e dos ventos, € 6 Fogo como encarnagao da luz celeste torna-se 0 mediador, 0 Agnis, 0 Mitra, 0 Cristo, cujas alegorias morais e abstractas acompanham as fases superiores da civilizagao. O estado pastoril foi desaparecendo diante da superioridade do regime industrial, e com ele o siderismo decaiu transfor mando-se entre um grande ntimero de povos em Epopeias solares. O estabelecimento da diferenciagéo dos caracteres nacionais, ¢ as origens das criagées literdrias ¢ artisticas como manifestagdo desse individualismo social formam a ultima parte da Demérica. Os modernos trabalhos de Free- man, de Fustel de Coulanges, estabelecendo o critério comparativo no estu- do das instituigdes, tem determinado de um modo muito claro os tipos pri- mérios da organizagao social. Existe a sociedade baseada sobre 0 facto do nascimento (de gnatio, nagdo) e a que tira a sua cocsdo da estabilidade territorial (Demos, a planicie); estes dois tipos, 0 Familismo e 0 Cantonalis- mo, desdobram-se diversamente, dando forma as mais complicadas institui- gdes, No Familismo, aparece primeiro a organizagao da tribo, em que nao ha individualidade, porque os filhos, os aderentes, e os servos so iguais sob a autoridade do patriarca, que funda o seu poder na veneragao a idade. Do poder do patriarca, provém a realeza, na sua forma hereditdria, em que o poder se funda na veneragéo do nascimento, como nas aristocracias, ou também na forma electiva ou militar, em que o poder vem da veneracao pela forga. Da eleicao dos chefes militares, deriva essa forma de indepen- déncia senhorial do feudalismo, que vem mais tarde a extinguir-se pelo con- flito com os reis dindsticos que fixaram 0 poder da eleigao na sua familia. Da outra forma social, 0 Cantonalismo, deriva a Cidade, na sua forma de municfpio, em que se destaca o individuo como cidadao, exercendo a sua liberdade civil pelo sufrégio e desenvolvendo-se nesse concurso activo e es« pléndido que se chama civilizagdo. O conjunto de cidades, prevalecendo o interesse local a par do interesse geral, vem a produzir as repiblicas, as federagdes, j4 na forma completa de unificagao de nagao, j no acordo vo- luntario de hegemonias. E no conflito destes diversos elementos, conhécidos pelos nomes de mo- narquia e democracia, que se destacam as formas das nacionalidades moder- nas, conforme o estado social primitivo das racas que se fusionaram ou se invadiram. Nos costumes locais destacam-se muitas vezes estas diferencas, ainda nos factos mais acidentais. Firmin Caballero recompée os tipos diver 52 INTRODUGAO sos das populagées primitivas da Peninsula Hispanica pelos seus instrumen- tos musicais € hAbitos festivos, processo que conduz a criagdo da nacionalite- ratura: «A Espanha, composta de gentes tdo diversas, necessariamente hd-de apresentar uma variedade de dancas, bailes, cangées, instrumentos musicais € jogos, muitos deles em harmonia com os distintivos provinciais. Um anda- luz passa horas esquecidas cantando a cafia ou a rondera, estimulado com alguns copos de manzanilla; a0 passo que um navarro exercita a sua forte musculatura na pelota, ou descansa jogando o mus entre algumas pintas do neto, Uma salamanquina nao pode suster os pés ouvindo as habas verdes, a0 passo que Ihe parece fria e sem alma a mufieira, que encanta a galega. Uma manchega ficaré uma noite inteira cantando seguidillas ao compasso das castafiuellas ¢ do guitarrillo, enquanto a fria biscainha se contenta com bailar algum zorcico ao mondtono ruido do tamboril. Em Castela eram frequentes as dancas de mouros e cristdos e os compassados palofeos, que os valencianos substituem com saltos 4geis e provas de equilibrio. Numas partes ao som da dulzaina, noutras ao da gaita zamorana ou da gallega em Galiza, e Astirias ao da zamporia, nos bairros de Madrid ao da bandurria, e em muitas provin- cias a0 da guitarra ou vihuela, que temos apresentado & Europa para sua admiragao, se entoam alegres cantares de poesia popular inimitavel, e com especialidade nos paises onde acompanham os rudes porém vivos instrumen- tos da pandereta € sonajas. Os serranos costumam entregar-se a0 jogo de bolas; 0s manchegos ao boleo de bolas de ferro, que fazem girar muito longe pelos seus caminhos planos; e em muitas partes preferem o tir da barra. A jota é a Aria mais variada das nossas cangdes vulgares, € com os nomes de aragoneza, malaguena, valenciana ¢ estudantina se ouve pot toda a parte de mil maneiras levando a animagdo aos concorrentes; porém, comum- mente a acompanham com bolero ¢ © fandango, que como recordagao histérica se conserva nos intervalos teatrais, Dos jogos de naipes, 0 supraci- tado mus, 0 tute, 0 truque, a flor e a brisca s40 os mais generalizados entre 0 povo. Porém, a diversao nacional por exceléncia sao as corridas de touros, Para as quais se tém construido circos ou pragas de propésito nas povoacdes principais do interior ¢ do meio-dia, que é aonde mais entusiasmo se conser va por estas festas arabes.» As origens populares ¢ tradicionais das formas Titerésias € que consti- tuem © objecto da nacionaliteratura. Existem formas gerais a todos os po- vos, tais como o lirismo, a cpopeia e o drama, bases universais das mais variadas @ remotas literaturas, A elaboragao dos pocmas homéricos compreende-se e explica-se hoje pelo estudo dos cantos populares, como 0 pressentiu Wolf, e Lang vai determinar elementos populares que ainda min Caballero, Manual geogrifico-adminisirativo de la monarquia espafiola, p. 187. Madrid, 1844 53 TEOFILO BRAGA subsistem ia tradigo e que sao 0 niicleo primitivo de episddios homéricos. Os poemas indianos apresentam as mesmas fases de elaboracdo, como nota Emile Burnouf, comparando os Aedos da Grécia com os Sutas da {ndia, celebrando & mesa dos principes nos banquetes as suas faganhas. Os cantos liricos fixam-se tomando por tipo as formas populares dos cantos das vindi- mas, dos noivados e das tristezas funerais, os Linos, Idlemos, 0 Paean, os Himeneus e os Trenos. Embora se nao observe esta continuidade e sucessao organica em todas as literaturas, por efeito da influéncia de outras mais adiantadas, contudo existem os elementos mesmo nos povos que mais tém esquecido as suas tradigdes. A criagdo do género dramético é a que mais se aproxima das suas fontes populares; na Grécia o drama sai da forma sincré- tica do Coro, primeiramente destacando-se 0 bailado, depois a musica, conservando apenas as neumas, mais tarde destacando-se uma voz, © por fim estabelecendo-se 0 didlogo. Diz Stuart Mill: os interesses separam e os sentimentos unificam; € nos produtos da nacionaliteratura que se observam profundas similaridades de temas tradicionais ¢ de formas estréficas entre os povos ainda os mais separados. Os modernos estudos da novelistica, inicia- dos por Grimm, Schmidt, Benfey ¢ Khoeller, tm determinado a existéncia dos mesmos assuntos tradicionais desde as ragas némadas da Alta Asia até ao extremo ocidente europeu; Nigra, Wolf ¢ Du Puymaigre tém determina- do um grande mimero de tradigées épicas, comuns & Grécia moderna, Italia, Franca, Espanha ¢ Portugal; Paul Meyer, Liebrecht e Mainzer notam igual similaridade na forma lirica das baladas, pastorelas e serranilhas da época provengal. E assim que a nacionaliteratura nos conduz a unidade de um fundo étnico, comum na civilizagdo ocidental. Torna-se aqui aplicdve! o principio de Tylor, da necessidade de um relance sobre as divisdes da espé- cie humana, A ocupacdo das Gilias pelas racas descritas por César, Pomps- nio Mela ¢ Amiano Marcelino, a ocupagao das Ilhas Britdnicas pelas ragas descritas por Técito, e as da Peninsula Hispanica descritas por Estrabao ¢ Stefano de Bizancio reduzem-se a trés tipos semelhantes entre si, 0 que nos explica a conformidade de certas formas da civiliza¢do entre os povos do Ocidente. O mais antigo de todos é o representado pelo elemento aquitani- co ou ibérico, depois 0 proto-céltico, ligirico ou mesmo pelasgico, e por ultimo os emigrantes arianos, que sé deixaram intacto «o triangulo com- preendido entre os Pirenéus, 0 Garona e 0 goifo da Gasconha»®, Este facto € que nos explica a narrativa de Estrab4o, pela qual os Aquita- nos formaram peia sua lingua e caracteres fisicos um grupo completamente a parte dos outros povos da Gélia, ¢ muito mais proximo do Ibero do que do Gaulés®; explica-nos por que forma a civilizacao itélica penetrou em Lyon, Autun, Tolosa, Bordéus, em quase toda a antiga Lionesa®; como os Ligt- ® Broca, Mém, d’Anthropologie, t.1, p. 395 ® Ibidem, t.1, p. 405. ™ Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. it, p. 33. INTRODUCAO. rios se estenderam pelas Galias, Espanha, Itlia e has Britanicas, confundi- dos pelos Antigos com os Iberos"®. Este répido prospecto antropolégico es- tabelece um meio de coordenagao para as manifestagdes mais desconexas dos costumes, em especial dos povos do Ocidente; muitos jogos infantis, restos de cultos decaidos em superstigées populares, vestigios de mitos conservados nas festas pttblicas, persistem como documentos destas varias sobreposicées étnicas. Ha aqui a estabelecer duas sinteses, uma consciente, que € a verdadeira coordenagio da histéria moderna da Europa, € outra espontanea, que é consensus em que se fundaram as varias fases da civiliza- gao de que as modernas sociedades da Europa sdo érgaos solidarios. Esbo- garemos rapidamente cada uma dessas sinteses; na sua forma historica, a sintese que se caracteriza pela unidade da civilizagéo ocidental resume-se nos seguintes periodos: 1.° Mediterraneo, no qual o Egipto propaga para a Grécia a cultura afectiva, e os Fenicios iniciam na Grécia a concorréncia activa do comércio ¢ da navegacio; 2.° Mediterréneo-europeu, contrapondo as civilizagdes isoladas 0 univer- salismo, j4 no helenismo que a Grécia propaga pela sintese especulativa dos seus artistas, literatos e filésofos, ja pela incorporacéo romana dos povos barbaros; 3.° No periodo atlantico, a Franga, reptesentando a entrada dos Germa- nos na ocidentalidade, continua a hegemonia romana, e dé 4 Europa uma unidade de acgao nas Cruzadas, e ao sentimento uma nova poesia das can- goes ¢ das gestas; Portugal e a Espanha, pelas grandes navegagdes ¢ coloni- zag6es, dao pelo sentimento nacional a coesao a esse cosmopolitismo, que é a manifestacdo da ubiquidade humana e que nos leva A posse do planeta. Como se chegou a esta altura surpreendente? Nos costumes, crengas ¢ tradi- ges populares devem-se conservar os recursos que nos fizeram transitar do barbarismo para a civilizagdo. O etndlogo, coordenando esses elementos fragmentarios, deve ir organizando o consensus que dirigiu cada época ou fase da Humanidade, como disse Comte: «O homem nao pode dispensar-se de uma sintese qualquer para coordenar seus pensamentos de maneira a dirigir a sua conduta.»% Tal € 0 valor deste consensus, que vai tomando diversas formas; 0s gros por onde se elevam as sociedades consistem na modificagiio dos motivos que as determinam. O pensamento de Comte esclarece-nos: «O principal artificio do aperfeigoamento humano consiste em diminuir a indecisdo, a inconsequéncia e a divergéncia dos nossos de- signios, subordinando a motivos exteriores todos aqueles nossos habitos in- telectuais, morais ¢ praticos que emanaram primitivamente de origens pur: mente interiores.»*” Vontade ou acgdo, dirigida pelas emogées sentimentais fbidem, 1m, pp. 33 € 45. ™ Sysiéme de Politique positive, t.1, p. 80. " Thidem, t.1, p. 28. 55 TEOFILO BRAGA ‘ou pelas nogdes da intelectualidade, eis os modos de manifestagio do nosso ser individual, tomando o seu maior relevo na colectividade social. E por essa origem psicolégica que as sociedades nao se dispensam de uma sintese, que toma necessariamente com a realizagdo do progresso a forma activa, afectiva ou especulativa. Bis a base fundamental para uma boa classificagao na historia dos costumes, das crengas € tradigdes de qualquer povo. Comte acentua © cardcter de cada uma destas sinteses: «A vida pratica dispoe mais ao amor do que a vida teérica, porque o concurso mostra-se nela indispen- sdvel. — Por uma reacgdo moral mais intima e mais directa, a actividade excita a expanséo das afeigdes simpaticas, procurando-lhes uma satisfacao continua.» A existéncia da sintese activa verifica-se nas civilizagdes primiti- vas baseadas sobre o empirismo das artes industriais; 0 proletariado nas so- ciedades modernas, elevado pela dignidade do trabalho, esté organizando a sua sintese activa pela democracia. A solidariedade humana, despertada pela necessidade do concurso, sé podia generalizar-se pelo sentimento que rela- cionou a vida doméstica com a vida piblica; essa relacionacao fez-se pelas crengas. Diz Comte: «A vida publica nao podia realmente desenvolver-se senao sob © teologismo.»** Além disso, 0 sentimento torna-se 0 primeiro estimulo das reflexdes morais: «O impulso de uma paixao qualquer é mesmo indispensdvel a nossa inteligéncia para determinar ¢ sustentar quase todos os seus esforgos.»*° Toda a poesia popular, ligada aos actos da sua existéncia doméstica e civil, é a expressao desta sintese afectiva, que conduz as colectividades humanas a esse fundo de bom-senso ou sabedoria contido Nos seus provérbios e observagdes morais. Comte caracteriza com seguranca esta base de razio em que assentam as instituigdes humanas: «Mau grado as pretenses doutorais de uma orgulhosa filosofia, as nossas principais institui- ges sio sempre essencialmente devidas 4 razio comum, guiada pelas ingé- nuas cren¢as, que s6 podem dissipar o nosso torpor inicial.»“ Tais sio as principios que nos dirigiram na formacdo da nossa etnogenia portuguesa, definindo-nos a area dentro da qual podemos exercer 9 método comparativo na interpretagao de cada facto isolado, e no modo do seu agrupamento sistematico, pelo qual se conhega a evolugdo da existéncia complexa de um povo. 2% Ibidem, tM, p. 44 ™ Systeme de Politique positive, tt, p. 86 °° Thidem, 1.1, p17. “ Ibidem, tM, p. 93. 56 LIVRO I COSTUMES E VIDA DOMESTICA CaptTuLo I Persisténcia dos tipos antropolégicos, determinada pelos costumes populares Como as observagbes antropolégicas estabeleceram 0 facto da persisténcia histérica dos tipos das racas. — Feigdes variadas do portu- gués, coincidindo com costumes peculiares de ragas primitivas. — Costumes ¢ tradigdes da poca ante-historica em Portugal. — As aver- sdes populares ao tipo ruivo. — As hostilidades entre o habitante da montanha € © ribeirinho, — Caracteres antropolsgicos do pé pequeno € nariz aquilino; 0 orgulho nacional ¢ amor da novidade. — Separa- 0 de duas racas em Portugal, segundo os viajantes estrangeiros. — Preponderancias do génio imitativo e pequena capacidade especulati- va, — Sucessao das racas histéricas no solo hispanico, € persisténcia dos seus caracteres, segundo a lei fisiolégica de Miller. — Criagdo completa de um tipo nacional ou mogérabe. — Causas da diferencia- 40 entre Portugal e Espana e da similaridade dos seus costumes. Quando se observam os ttagos variadissimos da fisionomia do povo Portugués, quando nas exposigdes de retratos das oficinas fotograficas se contempla um sem-ntimero de caras, quase que se podia escolher uma amostra bem caracteristica de tipos antropol6gicos os mais preponderantes bem acentuados da Humanidade. Ha caras com um prognatismo singular, € 57 TEOFILO BRAGA com depressées frontais, que lembram o homem pré-histérico; outras tém proeminéncias maiares e disposicdo obliqua das pélpebras, que lembram a raga mongélica; outras 0 traco fino e perfeito do dria, j4 com os cabelos pretos e olhos castanhos, j4 com os olhos azuis e cabelos louros; uns sdo enxutos de carnes, com o cabelo crespo ou curto e negro, com barba lampi- Iha, lembrando o tipo berbere; as vezes a cor da pele toma uma cambiante bronzeado-clara do tipo fula; um tem a estatura alentada dos homens do Norte como o antigo germano, outro a obesidade do turco, outro a estatura mea do mouro, outro a cor ruiva dos cabelos e barba como o alano ou 0 cita. Parece-nos uma feira dos diferentes povos da Terra, e longo tempo nos foi impossivel explicar racionalmente a persisténcia de tipos tao variados, pela influéncia de estudos exclusivamente histéricos. As ideias fundamentais com que em 1829 W. F. Edwards estabeleceu as relagOes entre a Histéria e a antropologia é que nos puseram no caminho de compreender 0 mativo do encontro num mesmo solo desta multiplicidade de tipos. Diz o notavel an- tropologista: «Em hist6ria, quando um povo é conquistado, quando perde a sua independéncia e ndo forma jé uma nacao, ele deixow de existir; ¢ nestas revolugdes politicas como nos cataclismos do antigo mundo, julgar-se-ia que cada época desastrosa fez desaparecer as racas que tinham subsistido até entdo. Porém, um outro ramo de conhecimentos, fundado em nossos dias, vem rectificar estas falsas impressOes.» ! Edwards justifica esta afirmacdo im- portante pelos fenémenos da linguistica, em que pelas linguas actuais se re~ monta as linguas antigas de que elas derivam. Nao podendo acompanhar aqui as provas acumuladas pelo naturalista, consignamos a conclusao admiti- da geralmente pelos mais eminentes antropdlogos: «Os principais caracteres fisicos de um povo podem conservar-se através de uma longa série de sé- culos numa parte da populacao, apesar da influéncia do clima, da mistura das ragas, das invasdes estrangeiras e dos progressos da civilizagao.»? Na aplicagéo deste principio, Edwards € ainda mais explicito: «Devemos pois esperar 0 encontrar nas nagdes modernas algumas cambiantes quase, ¢ numa proporgao maior ou menor, os tracos que as distinguiam na época em que a Histéria nos ensina a conhecé-las. Nés temos visto que, se a acepcao de varios povos multiptica os tipos, ela nao os confunde, 0 seu ntimero aumen- ta, n@o sé por aqueles que estes povos trazem, como pelos que criam fusionando-se; _porém, eles deixam subsistir os antigos, restringindo-os contudo na razéo da extensdo que tomam as racas intermedidrias.» A multi: plicidade dos tipos fisionémicos portugueses, a que acima aludimos, deixa de ser uma miragem da imaginacdo, e corresponde na sua manifestagdo mais geral ao facto histérico do grande numero de ragas que passaram ou se estabeleceram no solo da Peninsula Hispanica ¢ que nunca se extinguiram ' Des caractéres physiologiques des races, p. 6. * Des caractéres, etc., p. 37. 58 PERSISTENCIA DOS TIPOS ANTROPOLOGICOS totalmente. Isto concorda com a ideia de Edwards, que este fenémeno da persisténcia dos tipos s6 pertence A grande massa ou multiddo. Na pequena faixa territorial em que se forma o tipo portugués existem vestigios de todas essas ragas, desde o homem da Idade do Bronze ou 0 ibero até aos tipos mais pronunciados dos ramos dricos europeus*. Deve ser pois a série da sua sucessao 0 meio de organizar a critica comparativa dos costumes, aproxi- mando-os como persisténcias dos costumes descritos como pertencentes a algumas dessas ragas que aqui estacionaram. A raga ante-historica da época miocena, conhecida pelos silex talhados da Ota, base de Monte Redondo, aparece nas mesmas condigdes em Thernay, em Monte Aperti (Toscana) e na Pertisia (Umbria); néo seremos exagerados, se no confronto dos costu- mes procurarmos as analogias entre os povos ocidentais, partindo para a conclusao da sua unidade primitiva. Sobre este fundo autdctone, aparecem- -nos as trés ragas meridionais, comuns & Italia, Espanha, Galias e Bretanha; uma dessas é a raca dolicocéfala, achada perto de Salvaterra de Mugem ¢ caracterizada pelo cranio basco dos arredores de Cambo. Esta primeira raga, construtora das antas (délmenes) da Beira e do Alentejo, assim como na sua forma craniana apresenta uma notavel similaridade com o cranio berbere, também nas suas construgdes, como os délmenes de Antequera (Malaga), apresenta analogias com outras de Africa. Huxley considerava esta raga, que ao sul da Europa precedeu os Celtas, como sendo dos Esquimés: «Os habi- tantes primitivos da Idade da Pedra no Ocidente pertencem a raga dos Es- quimés: a mesma pequenez de mio, os mesmos costumes, utensilios, armas, desenhos, sobressaem na época dos nossos mamutes*...» Outros, como Arndt e Rask, consideram-na como finica. A circunsténcia dos caracteres andlogos aos Berberes e aos monumentos da Africa nao inibe de aceitar que, além deste elemento que desceu do Norte da Europa, um ramo do mesmo povo, atravessando a Africa, como se depreende das construgdes lacustres, se fixou na Europa Meridional. Se o elemento finico serve para fixar os limites da comparagao, 0 elemento fula estd indicado como 0 outro extremo para recompor a raga primitiva, que se estabelece antes dos Arias no Ocidente. Diz Anselmo de Andrade: «Nos lagos Chade e Makrya (Afri- ca), nas margens do Zambeze e do Niger, na Costa dos Escravos é certo haver cabanas lacustres que reproduzem exactamente as pré-hist6ricas da Europa.»® Qual esse povo que atravessa a Africa com os recursos da civili- zagao lacustre? As palavras Fulah e Fuleh significam branco, e sem duivida resulta este nome do cruzamento do elemento proveniente da Asia Meri- dional com elemento indigena das ilhas oceanicas, vindo esta raga mista a ser a que iniciou no Ocidente Europeu as habitacdes lacustres € 0 culto " Esta sucessio de racas jé foi por nés tratada sob o titulo de Elementos da Nacionalidade Portuguesa, na Revista de Estudos Livres, onde ocupa 150 paginas compactas. “Ap, Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. 1, p. 165, nota 3. 5 As Populagées Lacustres, p. 37. Lisboa, 1882. 59 TEOFILO BRAGA lunar que persiste nas superstigdes populares. Esbocemos agora alguns contornos dos costumes. Os Esquimés dao aos seus barcos 0 nome de kajak, que entre nds persiste na forma de caique, usam a tatuagem, principalmente as mulheres, da mesma forma que em Portugal as meretrizes; usam os amu- letos, tais como no nosso povo os signos-saimdes, figas, bolsas com objectos ou reliquias de pedra de ara, fitas; as superstiges das almas penadas, de ter alma de um defunto em si, a crenga na caca misteriosa por um espirito (Inua do Inverno), os loucos com cardcter sagrado, as festas de Julen ao mesmo fenémeno solar da festa de Sao Joao, sao factos étnicos que sobrevivem no povo portugués, como entre os Escandinavos e Germanos, e que se acham numa camada mais remota de que os Esquimés sao os representantes®, Na linguagem popular, como documento étnico, subsistem as vezes referéncias a estados sociais extintos; diz um anexim portugués: Quem quer a bolota é que trepa, 0 qual com certeza se refere a0 tempo em que o homem se alimenta- va com bolota doce (balanos) antes de a cultura dos cereais ter sido introdu- zida na Europa pela raca asidtica dos lacustres. Os primitivos pelasgos alimentavam-se também com a bolota doce antes da cultura cerealifera’. Ainda hoje no Alentejo come-se a bolota ou landra torrada, mas nao pelo motivo porque a comem os Yezidis da vertente ocidental dos montes Sindjar nas crises de fome. As tradigdes da época lacustre aparecem em Portugal, mas ja desvairadas pelas interpretagoes religiosas de cidades subvertidas por castigo do céu; a lenda galega da cidade de Valverde, localizada pela tradi- 40 na lagoa do Carregal, na de Donifios e na de Riega, nao é outra coisa senao a reminiscéncia das povoagées lacustres, como o entende Murguia* Nos contos populares portugueses € frequente o tema de lagos que ficam depois da ruina de palacios ou castelos. Parece-nos que em Portugal se estabeleceu uma certa diferenciagdo entre estas duas racas primordiais, a que desce do Norte da Europa e a que vem da Africa; na zona galega, em especial no Minho, as achas de bronze sio muito aperfeigoadas, com anéis e meia-cana na parte superior, porém no Alentejo as achas sao simples e no Algarve extremamente raras. Esta dife- renciagdo prolonga-se com os tempos, € os viajantes estrangeiros notam-na; lé-se na Viagem do duque de Chatelet (Desateux): «Ha todavia entre a capital e o Norte deste reino uma diferenga notavel. Nas provincias seten- trionais os homens nao sao tao trigueiros nem tao feios; s4o mais francos ¢ mais trataveis na sociedade, muito mais valentes e mais laboriosos; porém esta diferenga da-se igualmente nas mulheres; sao muito mais brancas do que as do Sul.» Rackzynscki também notou esta diferenciagéo quanto ao gosto artistico e & capacidade arquitecténica nas provincias do Norte. Nos “Morillot, Mythologie et Légendes des Esquimaux, pp. 244, 250, 262, 268. (Actes de la Société de Philologie, t.1v, 1877.) ? Maury, Hist. des Religions de la Gréce antique, t.1, p. U1 “Anseimo de Andrade, op. cit, p. 17. 60 PERSISTENCIA DOS TIPOS ANTROPOLOGICOS anexins populares ainda se conserva a aversie ao tipo ruivo, o qual entre os povos germanicos é considerado como um vestigio cita: Barba ruiva Home’ de barba ruiva De longe a satida, Uma faz, outra cuida, Rugo de ma pélo, De ma casta E ma’ cabelo. Esta mesma antipatia de raca se encontra entre os Egipcios € os Isracli- tas para com os tipos de cabelos ruivos; arias e semitas detestavam essa raga inferior que os precedeu na Histéria. O conflito entre as duas ragas tornou- -se permanente, acentuando-se na luta entre 0 montanhez e o habitante da planicie; diz Estrabao®: «Sempre na verdade viveram em guerras ou entre si, ‘ou com os seus vizinhos além do Tejo, até que os Romanos puseram fim a este estado de coisas, fazendo descer os povos da montanha para a planicie, e reduzindo a maior parte das suas cidades a simples burgos, fundando ao mesmo tempo algumas col6nias entre eles. Foram os serranos, como facii- mente se acredita, que iniciaram a desordem; habitando um pais triste e selvagem, possuindo téo-somente o necessdrio, desceram a cobigar o bem de seus vizinhos. Estes, por sua parte, tiveram para os repelir de abandonar os seus préprios trabalhos ¢ com eles mesmos se puseram a guerrear em vez de cultivar a terra; 0 pais pela falta de cuidados cessou de produzir ...» O nome de serrano é considerado ainda entre 0 povo como injuriosa, e Gil Vicente nas suas farsas reproduz certos usos «imitando os da serra». O cruzamento destes dois elementos antropolégicos operou-se com a acco do tempo ¢ pela pressio de outras racas que sucederam no territério hispAnico, mas nem por isso os seus costumes e feigdes se unificaram. Gustavo Le Bon assim 0 reconhece: «Apesar da influéncia considerdvel dos cruzamentos, as trans- formagdes do cardcter de que é susceptivel uma raca ndo sdo tdo profundas como se poderd acreditar; os elementos diversos que ela contém justapsem- se antes de se fusionarem, e a hereditariedade sustenta-se por muito tempo.»"° Muitos dos costumes destes dois primeiros povos ainda subsistem entre nés; no Minho encontrémos em uso o lavar-se com urina para em- branquecer a pele, e Diodoro Siculo (v, 33) refere isto mesmo dos Celtiberos'!. O alongamento dos cranios berberes era produzido por um modo artificial, e Gosse considera-o como um cardcter porventura ibérico; nas aldeias ainda se costuma apertar a cabeca da crianga recém-nascida com " Estrab., lib. it. cap. 3, § 5. " L'Homme et les Sociéiés, tt, p. 133. " Bellogeet considera este uso derivado da purificagao da urina da vaca, descrita no Avesta (Fagard vit) © no Codiga de Manu (x1, 108, 109). Ethnogénie, t. 11, p. 139. 61 TEOFILO BRAGA lengos, «para Ihe arranjar a moleirinha», ficando depois com verdadeiras deformagées. Nao é menos notavel a persisténcia de caracteres antropol6gicos na raga do Sul; Clapperton, falando dos Fulas, diz: «A sua cor nao é mais bronzea- da do que a dos Espanhdis ou dos Portugueses da classe inferior.» "? E em outro lugar escreve Eichthal: «As raparigas felanas ... distinguem-se por um cardcter anatémico dos mais importantes, a pequenez e delicadeza dos pés e méos.»"® O fula é um dos vestigios dessa raga primitiva que atravessou a Africa, € por isso os seus costumes podem ser comparados com os dos pri- meiros povos que entraram em Espanha. Na tradigéo popular portuguesa o pé pequeno € uma beleza celebrada nas cantigas: Tendes 0 pé pequenino Do tamanho de um vintém: Mer'cia calgar de prata Quem tao pequeno pé tem. Diz Gustave d’Eichthal: «O orgulho nacional é um dos tragos mais ca- racteristicos dos Fulas.»™ Citaremos as observagées de estrangeiros, mais impressiondveis do que os naturais: «Em patridticas jactincias e gabos, nenhuma nacdo leva a melhor aos Portugueses ...»!8 Depois de Beckford, Du Chatelet (Desateux) nao é menos claro: «O povo portugués é natural- mente orgulhoso, soberbo e animoso, e detesta em geral qualquer outro povo.» Suidas atribui este cardcter a todas as nagées scyticas, aparecendo constantemente entre os Celtas; 0 elemento céltico que constitui também o nosso tipo nacional recrudesceu neste cruzamento, vindo por isso essa quali- dade a preponderar no portugués. O orgulho excessive (Diod., V, 32) parece ter mais particularmente caracterizado raca céltica; Pompénio Mela (111, 2) chama-lhe gentes superbae, e Silio Itdlico (Pun, x1, 25) tumidissimus Celta, € estas qualidades preponderam no cardcter espanhol, orgulhoso da sua fi- dafguia, arrotando valentias e com um exclusivismo patrio"’. Este elemento celta prepondera mais para a regido do Norte de Portu- gal, e para a orla maritima, do cruzamento dos Ligirios. Este tipo médio acha-se descrito por uns viajantes do fim do século xvi: «Os homens da cidade de Lisboa ¢ de todo o Portugal sao de mediana estatura, mais baixos que altos, magros, de cor ferrenha, cabelas e barba preta, olhos negrissimos mui semelhantes no exterior aos Gregos. — As mulheres portuguesas sio singulares na formosura e proporcionadas no corpo; a cor natural dos seus © Ap. Gustave d’Eichthal, Les Foullahs, p. 6. " Les Foullahs, p. 52. “Op. cit, p. 54, Beckford, Carta xxiv. 4 Belloguet, Evhnogenie gauloise, t.1M, p. 19. 62 PERSISTENCIA DOS TIPOS ANTROPOLOGICOS cabelos € a preta, mas algumas tingem-no de cor loura; 0 seu gesto é delica~ do, 08 lineamentos graciosos, os olhos negros e cintilantes, o que Ihes acrescenta a beleza; ¢ podemos afirmar, com verdade, que em toda a via- gem da Peninsula as mulheres que nos pareceram mais formosas foram as de Lisboa.» ‘7 Gabriel Pereira, nas suas Notas de Arqueologia, descreve 0 tipo dos habitantes da aldeia de Palheiros, a uma légua de Ourique, e por ele quase que se reconstitui 0 tipo primitivo na sua pureza: «Casas rudes e negras sem reboco nem cal assentam no xisto do solo, calcada natural das ruas ou antes dos espacos irregulares entre as casas, — Nada que denote civilizagdo, tudo pobre, mesquinho, primitivo; algumas mulheres fiavam a roda, outras ajudavam a atar fardos de cortica. O aspecto daquela gente pareceu-me diferir da outra alentejana; domina a cor trigueira, 0 {ris preto, © cabelo negro e corredio; corpos delgados, secos, nervosos, mas sem recor- dar 0 tipo arabe; pouca viveza, gestos sdbrios; notei mesmo diferenca consi- deravel entre o aspecto desta gente e o da de Ourique. HA por ali usos com seus laivos de primitivos; as dangas de bodas concorre a rapaziada de Ouri- que e arredores; pela beira do caminho vi alguns pogos, ¢ em todos havia caldeiras para tirar 4gua, caldeiras que ninguém furta, porque fica perdido para todo o sempre o que furta uma caldeira; nos muros toscos das casas quinxorros vi pedras rudemente faciadas, delgadas, com buracos ou para cougoeiras das cancelas ou s6 destinadas a prender cavalgaduras, pedras que me fizeram lembrat algumas da Citania.»® A esta raca primitiva pertenceu 0 culto das montanhas e das deusas hetai- sistas, que prevaleceu em todo o Ocidente; € nas superstigdes € culto dos santuarios populares que ainda persistem esses primitivos costumes. Gabriel Pereira descreve 0 templo da Senhora da Cola no planalto impraticdvel por todos os lados na jungao das ribeiras de Odemira e Mariscdo, que correspon- de a0 tipo dos templos estonianos, feitos em planaltos artificiais:" «A romaria e festividade de 8 de Setembro concorrem os povos de muitas léguas em redor; recebe grande numero de esmolas em cereais, azeite, cera e dinheiro ... enfim é um dos santudrios de maior devocao no Sul do Alentejo, e isto constitui um dado importante no ponto de vista etnogréfico.»2” Da mesma descrigdo podemos tirar outros caracteres que definem bem a indole do culto hetairista: O nome de Grego tem um sentido completamente separado da Historia, mas liga-se as tradigdes do fim da Idade Média acerca do terror dos Ciga- nos; em geral os Ciganos foram denominados no século xv gregos, como se vé pelo Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e pelos Autos de Gil Vicente. Na linguagem popular temos ainda a locugo Ver-se grego, signi- ficando: achar-se em dificuldades, perseguido, como acontecia aos Ciganos por onde eles passavam. O nome de Gotico é empregado no sentido de obsoleto, atrasado, mas unicamente na linguagem culta. Q Mouro, que os escritores eclesidsticos pintavam como odioso as populag6es cristas, é um sinénimo de trabalhador, do que leva uma vida afanosa. E vulgar 0 proléquio Trabalhar como um mouro, & mourejar, porventura da época em que os mudéjares ficaram cati- vos na reconquista crista, Referindo-se ao tempo dos Mouros, € aos tesouros enterrados que deixaram em Portugal, a tradi¢o popular diz do sitio de Castro e de Santa Maria de Ul: Entre Castro e Castril C4 deixaram seu ouril®, O nome de Sarraceno aparece-nos na forma injuriosa de Sarrasina, 0 teimoso, impertinente, com 0 mesmo sentido empregado na poesia francesa medieval, nielles sarrasines*. A palavra Aravia significou a linguagem do vulgo, ¢ ainda modernamente designa nas ilhas dos Agores 0 canto herdico © Relation du Voyage d'Espagne, p. 2. Ed. 1874 Vid. 0 nosso estudo sobre A Origem das Ciganos, no Positivismo, t.1, p. 269. * Panorama, t. Vil, p. 344. © Du Méril, Hist. de la Poésie scandinave, p. 479. 90 RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA ou romance cavalheiresco. O nome de Galego é sin6nimo de grosseiro, s6rdido, brutal, como se vé nos versos de Gil Vicente, S4 de Miranda, Anté- nio Prestes e Camdes. O povo portugués esqueceu as suas origens comuns com o galego, e a fidalguia a sua principal proveniéncia. No Alentejo chama-se galegos a todos os povos do Ribatejo, como uma reminiscéncia vaga da antiga unidade territorial da Galiza, que se estendia até ao Tejo. Aldeia Galega envergonha-se do seu nome, ¢ chegou a representar a0 go- verno para mudar de designagao! «Nas provincias do Minho, Beira Alta e Trés-os-Montes se chamam ga- legas as coisas fracas, pequenas ou pouco aproveitadas, v. g., gados, linhos, frutas, etc, Da mesma sorte disseram antigamente Psalterio gallego, 0 que era de cardcter mitido e nada majestoso. Aquela antipatia das nagGes limi- trofes € que repetidas vezes se tem combatido fez que os Portugueses olhassem com indiferenga ou menos afecto para as coisas da Galiza como nao frisando com os seus génios briosos € altivos.» FE notavel a hostilidade instintiva entre 0 povo espanhol e a pequena nacionalidade portuguesa, que tem sempre resistido & incorporagio politica; dizem os Espanhdis: Portuguezes pocos, Y eses locos, Os Portugueses, que conheceram as consequéncias dos casamentos reais da filha de D. Fernando I, de D. Afonso V, do principe D. Afonso, de D. Manuel ¢ D. Joao TH, e também de Carlos V com uma princesa portu- guesa, dizem ainda: De Espanha, nem bom vento Nem bom casamento. Nos ditados tépicos espanhéis, acha-se a forma original: De Jerez Ni buen viento, Ni buen casamiento, Ni mujer que tenga asiento“. Blucid,, t.1, p. 166. Ed. Inocéncio. Temos um proléquio popular: Duzentos galegos ndo fazem um homem, ‘Sendo quando comem. El Folk Lore frexnense, p. 67. OL TEOFILO BRAGA Este mesmo ditado é aplicado a outras povoagées, tal como a Granja de Torrehermosa, da provincia de Badajoz: «Em todos os ditados que se refe- rem a ventos é regra constante que cada povo tenha ma disposigao contra o que esta do lado do vento que mais nocivo the possa vir para a satide piibli- ca € para a agricultura. Por isso este ditado aplicam-no A Granja os vizinhos de Berlanga e Ahillones, que recebem do lado dela o desastroso solano; e pela mesma razdo deve encontrar-se entre os vizinhos de Fregenal, Oliva, ‘ou Zahinos.»“ E esta a razdo por que 0 nome de Galego significa brutal, insolente, porque esse 6 0 nome do vento norte: El viento gallego Es la escoba del cielo” Santa Rosa de Viterbo, traz no Eluciddrio a antiga designagdo injuriosa que os Portugueses davam aos Espanhdis: «J4 conta alguns séculos 0 prejut- 20 louco com que o vulgo portugués chama aos castelhanos Rabudos, como se nascessem com um grande e vergonhoso rabo. Mas nao hé que admirar nisto, pois todas as nagdes confinantes entre quem houve guerras, dios, invejas, etc., se costumam reciprocamente injuriar com anexins e apodos, ou bem ou mal fundados, E se os portugueses chamam aos espanhéis Rabudos, estes os tratam de Judios.» Nos ditados tépicos espanhdis os moradores de Calera chamam-se por 2podo Rabudos*®. No tempo de D. Joao I, também ‘os Espanhéis nos chamavam Chamorros*. © nome de Francés emprega-se no sentido de falso e cortés, ¢ francesis- ‘mo € essa qualidade moral que repugna ao povo na sua franqueza. As pala- vras Franco e Franquias tém o sentido qualificativo de liberal, e de garantias locais. Vé-se que sobrevivem da época em que varias colnias do norte da Franca se estabeleceram em Portugal com foro privilegiado, ao passo que as palavras com sentido pejorativo datam do édio nascido pela invasio napo- leénica. Desta época da anarquia militar ficou 0 grito de guerra: Mata, que é francés! & essa locugdo Roupa de franceses, como um objecto que se destréi impunemente, era j4 popular no século xvit: “El Folk Lore Betico-Estremeno, p. 114. " Ibidem, p. 85. «H4 um vento particular chamado vento galego; quando ele sopra, diz-se que foi algum galego que morreu arrebentado.» (Torre de D, Chama) Leite de Vasconcelos, Tradigées, p. 47. “ Folk Lore frexnense, p. 66. * «O nome de Chamorro deram os Castelhanos por desprezo aos Portugueses, ressentidos da batalha de Aljubarrota ... O mesmo rei D. Jodo I de Castela dizia, que nao tivera tanto sentimento, se 0 vencera outra qualquer nagdo do mundo, mas que nio podia sofrer que assim © derrotassem uns poucos de Chamorros.» (Elucidério.) 92 RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA dizei por que tantas vezes fazeis roupa de franceses a de um triste portugués®, «H4 um fado antigo que pesa sobre este mesguinho Portugal, e que, segundo cremos, a experiéncia de muitos séculos converteu num desses ri- fOes, que representam e resumem a sabedoria popular. Tudo quanto é rapi navel e rapinado tem entre nés uma denominagdo caracteristica: chama-se- -lhe roupa de franceses; porque 0s sucessos da nossa histétia nos ho bem a nossa custa provado que no meio daquela nacdo, alids generosa ¢ honesta, ha muitos homens prontos sempre a langar mao de tudo 0 que podem tirar sem resisténcia e converté-lo em substancia propria. Os saltos dos Norman- dos e Lotaringios nas costas do Minho e da Beira durante o século xi; as depredagdes de Du-Guesclin e de seus homens de armas, a soldo dos reis de Castela, no fim do século xIV; as piratarias dos armadores da Bretanha € Normandia que no século xvt infestaram os nossos mares de Europa e da Africa; 0 saco do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século xvi; a invasao do principio do século x1x, em que ficaram as igrejas de Portugal sem um lampadério, sem uma custédia, sem um vaso sagrado; todos estes factos santificaram 0 rifao, ¢ levaram até a ultima evidéncia que sobre nds pesava o fatal destino simbolisado na frase popular.» *! Herculano, apesar da sua erudigao, nao tinha o sentimento da histéria; a frase Roupa de Franceses exprime o fervor das nossas represdlias, que inspirou esse outro grito das guerrilhas nacionais no principio deste século: Mata, que € francés! Beckford, em uma das suas Cartas, conta que recabera um insulto chaman- do-se-Ihe Francés; € Manique nas suas Contas para as Secretarias alude a hostilidade das mulheres do povo no tempo da Revolugao, que ameagavam os estrangeiros chamando-lhes Diabo de Francés. Também quando os Jesui- tas entraram em Portugal em 1542, chamavam-lhes em Coimbra Franchino- tes, nome que ficou uma injiria banal. Diz o padre Baltazar Teles: «por desprezo e zombaria Ihes chamavam comummente os Franchinotes, nome que em Portugal costumam dar a alguns pobres estrangeiros que vem do norte € andam pedindo esmolas cantando pelas portas»*?, Em menos de quarenta anos esses pobres Franchinotes, apupados em Coimbra, tinham mi- nado a independéncia da nacionalidade portuguesa E frequente no nosso povo empregar © nome de outros povos como uma das maiores injatias: Cafre, significa malvado, Alarve, comildo, Cigano, usu- rério, Chino, um poreo, Maltés, 0 trabalhador ambulante, que vai para as © Antonio Serfio de Castro. Os Ratos da Inguisicao, p. 113. ™ Herculano, Pan. t. vil, p. 19. Cronica da Companhia, livro 1 cap. 21 93 TEOFILO BRAGA cavas e apanha da azeitona no Alentejo. Picardia significa a pirraga ou acto agressivo recebido de quem menos se esperava: alicantina (sub. Alicante) exprime uma traficdncia industriosa; Palerma, € 0 broma ou imbecil. O no- me de Flamengo acha-se com sentido hostil na locugao: Nao conhego Fla- mengos @ meia-noite®. Em Espanha achamos 0 nome de Flamenco no mesmo sentido de cigano € aciganado; Machado y Alvares ndo deriva este nome dos Flamengos que vieram a Espanha sob Carlos I. Desta época data a palavra Frandunagem, ou frandulagem, significando a linguagem misturada com vocabulos de Flandres. O nome de Tartaro também aparece com um sentido grotesco, degenerag4o do antigo terror que o movimento dos Térta- ros no século XII produzia na Europa; no Cancioneiro da Vaticana alude-se a este terror, No seu livro do Pays Basque, traz Francisque Michel: «Nos Pirenéus, 0 que nao se encontra em outros pontos, chamavam aos herejes albigenses Tartarizs.»*4 O nome de Tértaro tornou-se sindnimo de um gi- gante malévolo; em Portugal Tartaranho designa 0 desajeitado, desastrado ¢ vacilante nos seus movimentos. Na linguagem popular também se conserva a palavra Tanso, designando 0 que exerce um influxo sinistro; 0 povo de Hiongnou, antepassado dos Chineses, dava ao seu chefe 0 nome de Tanshu (filho de Deus, isto 6, Tian-shu). F crivel que esta palavra entrasse com os Hunos na Europa, como se infere pelo seu sentido pejorativo. Finalmente a palavra Turca emprega-se na giria popular como sinénimo de bebedeira. As hostilidades locais e os ditados tépicos em Portugal séo extrema- mente pitorescos, como consequéncia de uma longa incomunicabilidade das povoagdes por falta de estradas. No Cancioneiro da Vaticana, cangio n.° 401, ja se cita 0 ditado: «Dessa cidade tam boa, Lisboa.» Na viagem dos dois embaixadores venezianos Tron e Lippomani a Portugal em 1580 vem como vulgar 0 proléquio acerca da beleza de Lisboa: «Celebram Lisboa com tal cépia de palavras, que a fazem igual as primeiras cidades do mundo, e por isso costumam dizer: Quem nao vé Lisboa Nao vé coisa boa.» Contudo nas hostilidades focais os habitantes de Lisboa sao apodados de Alfacinhas, por se alimentarem frugalmente, dispendendo as economias em ¥E para ser meu agoite Conheceis @ meia-noite Flamengos se queijos séo. Sertiio de Castro, Os Raros, p. 139. & Op. cit, p. 223, «Em S. Martinho de Recesinhos (Penafiel) diz 0 povo que, quando hé nevoeiro, se sente um cheito a azeite, que é produzido pelo Tatro azeiteiro. As tecedeiras espantam 0 Tatro de noite, a0 acabar do setao, fazendo mover 0 caneleiro do tear.» (Tradicdes Populares de Portugal, p. 51, 0.° 115.) Evidentemente liga-se a ideia de Tartaro, com personit- cago meteorolégica, ® Ap. Herculano, Panorama, t. vi, p. 84. 94 RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA ostentagao exterior, como no século xvi 0 notara Nicolau Clenardo, descre- vendo a sua alimentacdo de rabanetes. © Porto tem 0 apodo de Tripeiros, por serem as tripas guisadas um prato caracteristico da culindria local; a independéncia burguesa do Porto antigo suscitou o ddio, que transparece neste ditado: Deus me livre do Mouro E do Judeu E da gente de Viseu, Mas 14 ver 0 Braguez, Que € pior que todos trés; E 0 Porto no seu contrato E pior que todos quatro. Nos seus Ditados tdpicos traz Leite de Vasconcelos o seguinte: Coimbra, coisa linda! Lé vem 0 Porto, Que the dé pelo rosto Ser de Braga ao pé & um equivoco injurioso para designar que se anda com grilheta. Diz Anténio José, numa comédia: «Braga é mé terra para cultivar.» * H4 uma locugio: Ver Braga por um canudo, Num jornal encon- trémos: La diz o rifao: Braga para padres, Porto para comércio, Lisboa para doutores. A locugao Ir a Aveiro sem sapatos, refere-se ao costume antigo de ater- rar as ruas em Aveiro com cascas de berbigdes. O costume ainda se conser- va, como vemos por este trecho de um folhetim: «Este ano (1883) uma chuva desabrida ensopou ferozmente os toldos das barracas e empogou 0 chao por forma to abismada, que nao houve casca de berbigao que bastasse para dessecamento dos vastos charcos dos arruamentos. — E fabuloso: mas um exemplo estentérico do carinho dos edis para os pés dos municipes ¢ a0 mesmo tempo um documento do bumano poder inventivo e da variedade das aplicagdes do berbigdo. Denunciar essa maravilha do génio do homem é vulgarizar esta nova utilidade do lamellibranchio, é honrar 0 municipio avei- tense ...»5" Como esta locugio traz D. Francisco Manuel de Melo uma ané- loga: «lr a Setubal e ndo comer besugo. »% Seguir a estrada Coimbra era jé Operas portuguesas, 1.1 p. 120. * 0 povo da Guarda, n.° 26. ™ Cartas, p. 268. 95 TEOFILO BRAGA vulgar ao século xvmt, como se vé pelo Fidalgo aprendiz, *® Jorge Ferreira traz na Eufrosina uma locugao referente as hostilidades locais: «Assim partiu Santarém com Torres Novas.» E nos Apophthegmas de Supico se 1é esta outr Tir-te-l4, que Almeida esté dada.» Da tradigdo popular do Alente- jo coligimos 0 seguinte proléquio toponimico: Lisboa, coisa boa, Eo Porto dé-the pelo rosto. Barquinha, oh, minha menina; Tancos, baila nos bancos. Punhete, belo ramalhete. Passamos a Redemoinhos, E Abrantes esté como dantes; Sardoal, vai-Ihe muito mal. Surra peles de Mogéi Saboeiros do Carvoeiro; Gaviao, Altas mesas, pouco pao, Muita 4gua leva Margem, Em proveito da Polverosa; Carqueijeiros da Comenda, Santieirinhos de Gafete, Bugalho de Vale de Peso; Louceiros de Flor da Rosa, Escalda-favais do Crato. Hé outros apodos locais alentejanos, como: Os de Alvor Mulatos de Alter do Chao; Pisa-barros de Fronteira, Lavradores de Cabeco de Vide, Partidérios de Monforte Ladrées de Sousel; Alltas sobreiras de Povoa Dio peleja a Montalvao; Enxota pardais de Marvao, Lagarteiros de Escusa, Cardadores de Castelo de Vide; Bébados de Portalegre, Alfacinhas dos Fortizes, Balseiros da Alagoa, Papa-solas de Alpalhdo, Queimadinhos de Nisa, Fraca-Justiga de Avis Da combate a Vila-Flor, Bagaceiros da Amieira, | Tronchos da Ponte de Sor. Mataram a Nosso Senhor. — Ah cies de Nisa Que mataram o seu Deus! «Nao fomos nés, Foram os de Arez. | Geéfete, Tolosa e Arez, | Oh que trés! Op. cit, p. 66. " Apoph., parte Il, liv.t, p. 70. 96 RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA Na provincia do Algarve abundam os apodos locais. Os habitantes de Lagoa sao chamados Linguareiros. «Os de Othdo, em Ihe falando nos Santos Grgdos, arrenegam-se. — Os habitantes desta povoagao (Armagio de Péra), em se the dizendo: Larga o prego! zangam-se ¢ correm airds de quem tal disser, batendo-Ihe se podem. —Os de Alvor so Os que roubaram o Senhor... Os de Budeus sie Casmurros. — As mulheres de Estéi, em se lhe falando no Garrocho, insultam © excomungam a quem o diz.» ! Na Estremadura temos também abundantissimos ditados: Salvaterra, Benavente Correr Seca e Meca Gericé fica no meio, E olivais de Santarém. Pinheiral de Escaropim, Balada, Porto de Mos, A Cascais Santarém e Almeirim, Uma vez e nao mais. Estas terras que eu nomeio, F que deram cabo de mim. Oh caes de Carnide, Cadelas do Lumiar, Quem vai a Santarém Acudi as de Benfica Se burro vai, burro vem. Que se querem afogar. Os habitantes do lugar de Pedreiro so apodados pelos de Tomar com 0 nome de Batoteiros; os de Carregueiros, com 0 de Mantas-ro‘as. Tem cardc- ter injurioso a locugao Meu amigo de Peniche, e Seu criado Matias de Al- verca. Da Beira e Douro coligiu o sr. Leite de Vasconcelos muitos apodos locais, e com especialidade 0 Minho é a provincia mais bem representada na sua colec¢ao: E como as da Mealhada, Zagées, (Oliv. de Azem.) O que dizem & noite Perna curta Pela manha nao é nada. Pai dos cdes. E como os de Campanha, S. Martinho de Leitées (Minho) Casam a noite Vinte e nove fregueses, E descansam de manha. Trinta ladrées. Os da Balga (Oliv. de Azem.) Mirandela, Bebem o vinho, Mira-a de longe E quebram a malga. E foge dela. "1 Reis Damaso, no Anudrio das Tradigdes Portuguesas, p. 5) 7 TEOFILO BRAGA Oh de Viseu, Guimaries, Larga o rabo Perna torta, Pai dos ces. Que nao é teu. Bem te conheco; Gondiaes, Esfola cabras, E de Vila Nova, E capa cées. Chamas-te Lourengo. Guimarées Em Barr A cada porta De cem homeas Sete cies. Nem um bom. Os apodos locais tém uma forma estrofica desde o distico simples, ou de Pparelha, até 2 forma ditirambica: Os de Nagosa (Beira Alta) Valdigem, Tem rabo como raposa E terra que Deus nao quis. Chavaes (Ib.) Pesqueira, Terra de caes. Linda roseira. Ervedosa (Ib.) Porca ranhosa. Sao Joaneiros (S. Joao de Tarouca) ‘Comem cornos de cameiro. Tabuaco (Ib.) Rilha bagaco. Sao Joaneiro (da Foz do Douro) Vinho de Air, Rezingueiro. Nao o dés, bebe-o s6. Os habitantes da freguesia de Sobrado, concelho de Valongo, sao cha- mados Os da broa de unto; explica-se pela mesma injiria: Rema que & quei- jo aplicada aos algarvios. Um homem de Sobrado, tendo visto no rio a ima- gem da lua, meteu-se pela agua para ver se apanhava aquilo que Ihe parecia | um unto®, Os habitantes de Cabagos so apodados de lobos; os de Leomil de ju- deus; 08 de Riodades, gatos monteses; os de Escurquela lagarteiros; 0s de Longa malhados; os de Mondim, meieiros; os de Arcos, caes; de Vilar, Pica- -peixes; Mileu, terra de atacas. «Os habitantes de Guilheiro, em Ihes pergun- tando Pelo papel, vao logo atras de quem faz a pergunta.» * Os habitantes J, Leite de Vasconcelos, Tradicdes, p. 18. J, Leite de Vasconcelos, Ditados Tépicos em Portugal. Porto, 1882; desta colecgio ex traimos muitos materiais do presente capitulo. 98 RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA da Granjinha sio chamados batoteiros; os de Cabacos, lobeiros. «Os de Granjal, em thes perguntando pelo pao da cruz, arrenegam-se todos e batem em quem faz a pergunta.»® Os de Coimbrées sé apodados de paneleiros; de Santo André, mariolas; de Valadares, capadeiras; os de Sarzedo zangam- -se quando Ihes dizem que sao da terra dos cucos; ¢ os de Penajdia e de Tavora enfurecem-se quando se Ihes pergunta: A espada vai na burra? Na ilha de S. Miguel, os habitantes de Agua de Pau arrenegam-se ao perguntarem-lhe: A porca jd furou o pico? Os de Murga também se zangam a0 perguntarem-lhe pela barca. Os de Samodies so chamados judeus. Na Redinha enfurecern-se ao perguntarem pela sepultura de Pilatos, e em Cernache ao perguntarem-lhe pela muisica, Os homens das ilhas s4o igual- mente apodados: «O ithéu, da coice trés dias depois de morto.» E também: E das ilhas E conta maravilhas; Come favas E diz que sio ervithas. Qs habitantes da ilha de Santa Maria sao aleunhados de cagarros; os de S. Miguel unha na palma, e 0s da Terceira, rabos tortos, e Faca sem ponta O padre Anténio Cordeiro na Historia insulana explica a origem hist6rica deste apodo, do tempo da ocupagao castelhana. Nos Cantos do Arquipélago acham-se estes apodos insvlanos: Sao Miguel, unha na palma, Na Terceira sao alferes, Terceira, faca sem ponta, Em S$. Jorge capitaes, Pico, Faial, Graciosa, No Pico sao picarotos, ‘Tudo vai na mesma conta. No Faial finos ladrées. (Op. cit. p. 83) Dos habitantes da ilha da Madeira, dizem: Um, dois, trés, filho de ingles; Um, dois, trés, quatro, filho de mulato. O espirito das hostilidades locais aproveita-se das cantigas, para transmitir-se no meio da improvisagao popular; € um género poético bem caracteristico: Casar em Valongo, Vou-me casar a Salzedas, E melhor que ser bispo; Que me deram por degredo; Tem mulher para a cama Que é terra de muito padre, E burro para o servigo. Canta la © euco cedo. "Idem, Ihidem, p. 12. 99 TEOFILO BRAGA Bois de Ramalde, Homens de Silvalde, Mutheres de Santo André, Livra-nos e dominé. Perguntas-me onde eu moro, Minha terra € Serzedo, Terra de muito ramalho Onde canta 0 cuco cedo. Nao vas ao serdo A Avintes Nem para Id botes 0 jeito, Olha que as mogas de Avintes Tem-na semente do feito. Os homens de Vouzela Alguns que sio Também tocam na trombeta Na procissdo, Se Armental tivera renda Como tem de gravidade, Carregosa fora vila E Arrifaninha cidade. Certas terras sao apontadas como injuriosas: «Ser como as de Beja» isto € prostitutas; ou notadas como foco da idiotia: Ser da Lourinha; ou do Er- melo, em Celorico de Basto®. Os moradores de Perosinho sao leiteiros; os de Avintes, porqueiros; os de Serzedo, polainas: «quem quiser fazer zangar os de Serzedo, diga-lhes: Virai a porta para o mar»®. Os moradores de Vilar do Paraiso sao gravatinhas; os de Oliveira do Douro, rabdes; os de S. Cristévao, ceirinhas; as mulheres de Madalena, sao amazonas; as de Ca- nelas, bruxas. Os povos de Miranda do Douro, véem as dguias pelas costas, Assim como as localidades, também as classes sociais tém a sua hostili- dade mitua, apodando-se com acriménia: «Sete alfaiates para matar uma aranha.» Alfaiates nao sao homens, Aqui d’elrei quem acode Carpinteiros também nao, Ao fogo de Santarém! Homens sao os Lavradores Acudam os Alfaiates Que enchem a casa de plo. Enquanto os homens nao vém. "No século xv1 o habitante de Rates era tido como o tipo da ingenuidade Jorpa; Gil Vicente introduz nos seus Autos 0 personagem nacional do Ratino, descrito também por Mi guel Leitéo de Andrade © Balthazar Dias. Serrio de Castro, nos Ratos da Inquisicéo, diz deles: Com ser a gente de Rates tao simples e boa gente. quando téo aproveitados da Beira séo os Ratinhos. (p. 117.) * Anuério das Tradicéee Populares Portguesas, p. 50. 100 Alfaiate das mentiras Todo o pano faz as tiras. RUDIMENTOS DA ACTIVIDADE ESPONTANEA Caldeireiro na terra, Chuva na serra. Sapateiro mangoneiro, 2 Pedreiro, eirete Come tripas de carneiro. Teo Regi nete, Hé-de ser sempre ; es t or, Ferreiro da maldigao, Pobrete e alegrete Quando tem ferro Nao tem carvao. Estudante, bargante, Chapéu de alguidar, Com 0 sentido nas mogas Nao pode estudar. Trotha, mirolha, Rabo de solha. Os barqueitos também se apodam, como acima notdmos: «Os rebelos (barqueiros do Douro) zangam-se igualmente, quando alguém lhes diz: Co- ¢a, coca, carrega o prego! carrega o prego! a panela tem cominhos; a panela estoirou.» No Mondego d4-se 0 mesmo, dizendo: «Oh Zezinho, ferra a unha.» Os moleiros sto desprezados por se pagarem por suas maos tirando a maquia 4 moenda®. Depois das hostilidades locais seguem-se por fim os chascos pessoais, ligados ao nome do individuo, ou ao seu apelido: Antao, Ana, Magana, Guardava ovelhas, Rabeca, Susana, Umas suas Pariste um menino Outras alheias. Debaixo da cama; Nao come, nem mija Antio, Nem vai & igreja. Era moleiro, Fazia anzdis Oh Augusto, E pescava caracdis, Lava a cara com cuspo. Leite de Vasconcelos, Tradigdes, p. 250. % Diz uma Parlenda popular La vem a minha mulher. Tirard © que quiser’ A minha fitha Mari F tira a sua maquia; Vem o meu fitho Manoel, Também leva o seu farnel; E no fim diz © meu criado: — Este saco ainda nao foi maquiiado, (Porto) 101 TEOFILO BRAGA Jodo, garanhao, Sao Luts Focinho de cio; Perdeu o nariz Vai com a ceira No jogo da bola; Ao camarao. Quem Tho achar Que Iho dé por esmola. Oh José, Carramé, 7 Bota os gatos On Mane, Seeehe Fia, fia, A maré; g Sete magarocas ao dia, Enfiados numa linha Para tocar a campainha, uc tates tata Oh José, Fragaté Oh Rita Clemente, té, é, té! Caganita, Teu pai é de Angola Quando mija Tua mae da Guiné Vai de bica®. Teu pai cameiro, Tua mae é mé. Acudi sapateiros Magalhaes, ‘Ao largo da Sé, Esfola gatos Com formas e buchas E mata caes; E seu tira-pé, Leva a pele a Guimaraes Para fazer mais botas Enfiada numa linha Ao nosso José. Para tocar a campainha. Todos os factos aqui acumulados so a prova do principio abstracto, formulado por Kant acerca da insociabilidade socidvel, que actua no apertei- coamento das relagdes humanas. ® Muitos destes apodos nominais foram pels primeira vez publicados na Zeitschrifte fur romanische Philologie. 102 CaPITULO IIT As indistrias locais e tradicionais ‘As formas primitivas da agregagio local expressas pelo Fogo e Logo. — A Casa: Persisténcia das casas de colmo: a Berga, Cardenha, a Palhoca ou Cabana, — As Varandas. — © uso do sino corrido. — As comidas: Uso das glandes de carvalho. — As castanhas ou bilhés, Mi Iho cozido, Michas ou Mondas. — O3 moinhos de mao ou lambas, — © alho, — O vinho doce. — A vicera ou antiga cerveja. — Os Bodos. — As refeigdes do dia. — A actividade agricola e pastoral: Epocas do ano tiradas do trabalho dos campos — As formas da constituigaio da propriedade segundo as diferenciagdes étnicas. — Os mogos da lavou- ra, — Costumes romanos e Arabes na agricultura portuguesa. — As gueimadas no Alentejo. — As tulhas ou Matmorras. — As hortas ou Onias. — A debulha do trigo. — Os carros. — A Mesta érabe ¢ a deambulagio dos’ gados. — Tipos da raga dos carneiros portugueses. — A mangra, Introdugao do milho. — O costume de deitar as milhas, e de cavalgar 0 cambio. — A cultura da vinha no século xIV: Costu- mes das cavas, — O vinho da Madeira. Relagdes da Agricultura com a Indistria. — As Indiistrias locais e domésticas: A exploragio das mi- nas, — © trabalho da Ourivesaria ¢ da Serralharia. — Leis sumptué- rias. — Estado actual das indiistrias tocais. — Diferengas do trabalho no norte ¢ sul de Portugal. — Os Azulejos ¢ a Cerimica. — Tecidos, bordados, rendas. — As lds portuguesas. — As Feiras, sua origem religiosa. — Ideia moral do trabalho entre 9 povo. O trabalho € uma forma de actividade que corresponde a estabilidade social em que se organizam as instituigdes civis € politicas, depois de ter decaido a exclusiva ocupagao guerreira. No onoméstico peninsular, como notaram George Philipps € Jubainville, as formas em eli, ili iri entram na 103 TEGFILO BRAGA composigao dos nomes de lugares com sentido de cidade, dado pelas po- pulagées ibéricas. Os Romanos enumeraram muitissimas cidades na Terraco- nense, na Betica e Lusitania, e foi pelo apoio das suas cidades, que as tribos ibéricas resistiram a conquista. Os vilares, casais, pobras ¢ aldeias foram os miicleos da populagao que veio a formar os concelhos, em que se criou a liberdade civil e a independéncia politica, por meio das suas Behetrias. Desta organizagao rudimentar ficaram certas formas dos costumes, como a pasta- gem dos gados em comum, na Serra Amarela, a divisio das terras ow Sortes, como no Soajo, os Celeiros comuns, como no Alentejo. O loguo, onde se enterravam os mortos da familia (Jug, 0 herdi) © onde se levantavam as Mamoas, Antelas ou Délmenes para os sacrificios funerdrios, subsistiu na frase Fogo e loguo. A Behetria, formada pelo pacto defensivo das cidades vizinhas, distinguia-se por um monte natural ou artificial, corog, arce (arx) ow castro, tm alto do qual existia o templo (como hoje a igreja da freguesia) © onde se fazia a assembleia dos homens bons, como se conservou nos usos da Idade Média com 0 malhom, junto da carvatheira da igreja. No onomas- tico portugués existem estes vestigios nos nomes de Castros, Castrelos, Campos, Campelos, etc.' Com o elemento rico, que entrou na Espanha com a raga céltica, misturaram-se com as instituig6es locais a organizagao civil baseada cm elementos pessoais das gentes, com a propriedade indivi- dual, confundindo-se a comunidade doméstica com o regime da linhagem, Com estes elementos podemos compreender muitas formas dos costumes actuais das diferentes povoacdes provinciais. A Casa. — As habitagdes gaulesas eram redondas, como nota Belloguet.? de uma inferéncia de Estrabao, fortalecida pela representagéo das casas da coluna de Antonino; é este também o tipo da casa da Citania de Briteiros. Segundo Estrabao, as casas gaulesas eram feitas de colmo ou de canas, com que cobriam os tectos empinados, tecta alta, para que as ne- ves se ndo demorassem ali. Viterbo no Eluciddrio notou a persisténcia deste costume: «Ainda hoje, e principalmente na provincia do Minho, se conser- vam alguns vestigios do antigo costume de serem as casas, ainda honradas distintas, cobertas de colmo ou giestas ¢ no de telha: pois ao Tombo do Aro de Lamego, de 1346, se acha que alguns lugares de Mugeja eram obri- gados a uns tantos feixes de giestas negrais para se cobrirem as casas que 0 rei tinha no castelo daquela cidade. Sobre 0 colmo ou giesta punham uma cerita jangada de paus atravessados, para que os ventos as nao deixassem expostas 4 incleméncia dos temporais. Era pois canger @ casa por-the este reparo ...»* Gaspar Frutuoso, falando da ilha da Madeira, diz: «Ha também muitos fothados, que crescem muito direitos e grossos, de que se faz a arma- * Elementos da Nacionalidade Portuguesa, § 5. Revista de Estudos Livres. = Ethnogénie gauloise, p. 471 *® Eluciddrio, vb.° DESCANGAR, Doc. de 1308. 103 AS INDUSTRIAS LOCAIS £ TRADICIONAIS a0 para as casas, © muitas vezes de um s6 pau se fazem trés e quatro pernas de asnas; mas nao é tao rijo como 0 desta ilha de S. Miguel, etc.»* Nos documentos portugueses da Idade Média, Viterbo encontrou as palavras Berga, Berganca, Cardenha e Pathoca, significando a casa coberta de palha, como as Virgeas casas, que Estrabao atribui aos Gauleses. Isidoro de Sevilha (Etym., xv, 12) dé o nome de Cabana a cafua em gue se abrigavam os que guardavam as vinhas, designagao que aparece com sentido mais geral nos dialectos célticos*; nas Inquirigdes de D. Afonso 111 «com muita frequéncia se chamam Cabaneros os homens braceiros e que vivem do seu trabalho e maneio, e que hoje mesmo se chamam Cabaneiros». (Viterbo.) Esta desig- nagao estd ainda em todo o seu vigor no Minho. Junto da casa isolada ainda se conserva um pequeno campo ou beira; diz Viterbo: «Nos documentos de Lamego, de 1416, 1418, 1422 e 1444, se acha ja Eixido, ja Enxido. Na provincia do Minho ainda hoje chamam Enxido a estes cerrados que ficam junto das casas em que moram; porém a palavra Eido ampliaram a todo 0 assento das casas, hortas ¢ quintais, e a todo o recinto que pertence a qual- quer vivenda.»* O costume das casas isoladas ainda persiste: «Neste pais véem-se as casas de campo isoladas; nas cabanas encontra-se louga inglesa, chicaras de louga do Japao e cha verde, etc.»? A Aldeia significou primeira- mente © casal ou «casa de lavoura ou abegoaria em que se recolhiam os frutos do campo» ¢€ também as casas ou palheiros, na época em que coloni- zamos o Brasil, como nota Viterbo. Dava-se também a estas casas isoladas 0 nome de Alcheria ou Alqueria: «E nada mais eram do que umas quintas mais ou menos extensas, onde os caseiros viviam com a sua familia, pascen- do os gados, lavrando, e recolhendo os frutos com que deviam responder ao direito senhor.» (Viterbo.) A mudanga de habitacdo é um facto que ainda se observa no alto Minho, chamando-se Verandas aos sitios s6 habitados no Verao. Este costume de préximo de Melgaco é notado entre os Fulas por Eichthal: «ocupados do cuidado dos rebanhos € particularmente do gado, vivem em cabanas de folhagem e mudam de habitacao, segundo o curso das estagdes € as necessidades da pastagem»®. Em algumas terras de Portugal ainda existe © sino corrido, em que nao era permitido andar por fora de casa depois das oito ou nove horas da noite, passando depois a proibicdo s6 para as lojas de negécio; é uma persisténcia do Couvre feu do tempo de Guilherme 0 Conquistador, que ordenava aos cidadaos que apagassem o fogo, porque ent&o as casas eram geralmente de madeira. As comidas. — Estrabao, falando dos costumes dos antigos Lusitanos, * Saudades da Terra, cap. X1%. » Belloguet, Gloss. gaulois, p. 240, * Blucid. vb. EIXwW0. 7 Mémoires sur les opérations militaires des Frangais en Gallicie et Portugal, 1808. (Ap. Bernardes Branco, t,t, p. 490.) "Histoire des Foullahs, p.5. 105 TEOFILO BRAGA diz deles: «Nas trés quartas partes do ano o Unico alimento na montanha sao as glandes de carvalho, que secas, quebradas ¢ pisadas servem para fazer pao; este pao pode guardar-se por muito tempo.» Hoje no Alentejo a glan- de ou bolota ainda é comida, sendo previamente torrada. Na Beira Alta predominava a castanha, com a qual depois de assada se faziam as Bilhds ou Beilhods, como encontrou Viterbo num documento da Universidade, de 1508; a generalidade deste alimento conhece-se por um documento de Salzedas e pelo Foral de S. Martinho de Mouros de 1513; descrevendo o modo como as castanhas sao descascadas com os pés na eira, diz Viterbo: «que na Beira se chama riscar; aos fragmentos da casca ... se chama riscay. Avangando para o norte de Portugal comeca a alimentagao pelo milho e centeio, notada pelos antigos gedgrafos. Diz Plinio, que na Aquiténia 0 pio era feito de uma espécie de milho chamado panicum; no Minho, Madeira e Acores 0 pao é geralmente de milho; ao carro que leva a feira os sacos de milho chama-se no Minho um carro de pao, Na ilha de S. Miguel come-se milho cozido, segundo o costume das mulheres galatas, de que fala Plinio; ¢ comem favas cozidas, como os antigos habitantes da Circumpadana. Em um documento de 1417 encontrou Viterbo, a boroa, significando «0 pao de paingo, de que usavam os pobres;» no Minho ainda persiste a boroa de milho, misturada com 0 paingo ou milho alvo, e em forma grande. As mondas, eram um pao pequeno, ou Michas «de centeio au milho © de toda a peneira, que ainda hoje se costuma dar aos pobres nas portarias das or- dens monacais». (Viterbo.) Felizmente j4 passou esta 6poca, em que 0 povo se despojava do que tinha para viver das esmolas dos frades, Na antiga cultura gaulesa 0 Bracé ou trigo blanzé era frequentemente usado por causa da alvura do pao; 0 povo ainda chama pao alvo, ao que é feito de trigo, ¢ no Minho as sopas dele chamam-se bercas, e talvez da comida dada aos trabalhadores que vem gratuitamente a lavrada do milho ou do centeio bessada. O grao era mofdo em casa em pequenos moinhos de mao, como se usa ainda nos Agores, nas povoagdes isoladas; aparecem citados nos antigos documentos portugueses com 0 nome de Cambas: «Outros se persuadem que estas cambas eram moinhos de mao a que chamam zangas... E nao falta mesmo quem diga que eram moinhos pequenos, molinheiras, ov picar. neis (como Ihe chamam na Beira Alta), que fazendo-se anualmente na via dos rios, e durante s6 0 tempo da secura, se Ihe deve alterar a maquia em atencao aos perigos, trabalhos e dispéndios.» O anexim: «Quem tem fome cardos come» jé nao é hoje compreendido; mas ainda no século xvi encontramos em Frutuoso, acerca da ilha da Ma- deira: «Ha muitos cardos de espinhos, de muito bom sabor, 0s quais alporca- dos vendem muitos e bem baratos pela terra.» «E sucedia valer um vintém um saco deles alporcados.» !! » Belloguet, Ethnogénie gauloise, p. 458. " Viterbo, Elucidério, vb." AZENHA. " Saudades da Terra, pp. 49 ¢ 50. Ed, Funchal. 106 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS Nas aldeias ainda se come junto do lar, exactamente como Diodoro Si- culo desereve os repastos dos Transalpinos; e 0 peixe é assado na brasa (Cada um puxa a brasa para a sua sardinha) temperado com vinagre, como refere Sulpicio Severo dos que habitavam no litoral do Mediterraneo e do Oceano. Nos anexins populares exprime-se a pobreza pela locugdo: «Nao ter onde embrulhar cinco réis de cominhos.» Belloguet, na Ethnogenia gaulesa, descreve 0 uso dos cominhos nas comidas dessa primitiva raga que ocupou 0 ocidente. O alho € também do uso exclusive do povo; $4 de Miranda alude a esse cheiro caracteristico: E podem cheirar ao alho Ricos homens ¢ Infangdes ®, ‘A comida de carneiro dos antigos Lusitanos ainda se conservava nos séculos XV e xvi, em forma de caldeirada a que se dava 0 nome de Badula- que, como nota Viterbo, Na provincia do Minho é mais frequente a came de porco, a que se d4 o nome de Persigo, e na Beira Alta, Apeguilho. (Viter- bo.) Na Description de la Ville de Lisbonne, de 1738, fala-se dos «presuntos de Lamego, que sao melhores que os de Bayona e de Mayence>. Assim as terras vao-se também diferenciando pela especialidade de suas comidas. No Cancioneiro de Resende, citam-se as castanhas da Beira: E por fruta das castanhas das colharinhas da Beira. (111, 94.) Tolentino também alude a especialidade do manjar branco de Celas: Da bolsa os bofes the arranco No fresco pateo de Cellas, Pedindo com genio franco Doces, gratuitas tigelas Do famoso manjar branco. (Obras, p. 173.) © vinho doce, que ainda se fabrica em Abrantes com 0 nome de muste- a, cra usado pelos antigos Gauleses na provincia Narboneza, onde Ihe da- vam o nome de helvenaque, como observa Plinio®. O uso da cerveja, também peculiar dos povos gauleses, era ainda vulgar nos primeiros tempos da monarquia portuguesa, segundo afirma Joao Pedro Ribeiro, nos retoques a0 Eluciddrio de Viterbo: era conhecida pelo nome vulgar de Vicera, © a cevada com que a fabricavam era mojda nos cambées ou moinhos de mao, * Memorial do Marqués de Montebelo, p. 248 ™ Belloguet, Echnogénie gauloise, p. 461 107 TEOFILO BRAGA Estrabao descrevendo os costumes festinantes dos Lusitanos, fala «dos gran- des banquetes de familia tao frequentes entre estes povos>. Este costume persistiu nas Bodas, ou banquetes ja com cardcter religioso, como os Bodos do Espirito Santo, de Alenquer e iJhas dos Agores, j4 com cardcter funerario como os bodivos, ceras e obradas do Minho, ou como os tamos, das festas de casamento. ‘As comidas do nosso povo, s40 a parva, que se da aos trabalhadores na Beira Alta, tendo pao e azeitonas por peguilho ou condoito; depois, vem 0 almoco; entre este ¢ o jantar, ha em Carrazeda de Ancides a refei¢o cha- mada cédea, ou fatiga; segue-se 0 jantar ao meio dia, geralmente, e a ceia ao sol posto. Entre 25 de Margo e 8 de Setembro, ou os dias grandes, ha a merenda; no Minho o trabalho das eiras faz-se muitas vezes de noite, ¢ gratuitamente, dando-se na despedida 0 ceiinho, a que se chama ceiote em Taboago, e compée-se de pao e uma sardinha', A relacdo entre a comida e © trabalho acha-se naquela locugdo do século xvi, que mais tarde aparece na satira de Serrao de Castro: Olhai que quem quer comer trabalha, lida e trabuca; que quem trabuca manduca, mil vezes ouvi dizer. como quem sua ¢ trabalha, beba quem na eira malha ao sol € calma 0 centeio*, A principal comida da gente do campo consiste em couves cosidas, com boroa, e por isso junto das cabanas existe sempre um pequeno couval, ¢ a sua cultura acha-se mistificada na imaginagdo do povo: «Disse a couve quando falava: Esterca-me de uma vez, Sacha-me cada més, E rega-me de cada vez.» "8 A alimentagao do povo portugués é insuficiente, como se verifica pelos dados estatisticos, influindo isso na sua existéncia valetudindria, apética e sem iniciativas, € a0 mesmo tempo no desenvolvimento morosissimo da po- pulagao. Nos Relatérios médicos acerca do Colera-morbus em 1855 acham- J. Leite de Vasconcelos, Tradicées Populares de Portugal, p. 228. Os Ratos da Inquisigdo, p. 135. "© Ap. J. Pedro Ribeiro, Reflexdes Histdricas, parte tp. 17 108 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS -se indicages preciosas sobre a alimentacao do povo portugues, e de onde se inferem consideragdes fundamentais: REGIAO MONTANHOSA: Distrito da Guarda: Alimentagao de pao de centeio e batatas (Foz Céa e Almendro), 0 mesmo, com algum trigo (Aldeia do Bispo e Aldeia Velha); 0 mesmo com pao de milho, hortaligas e alguns frutos. (Cortico.) REGIAO DO NORTE: Distrito do Porto: «a gente de campo usa muito de legumes, de peixe seco, salgado ou defumado, carne de porco, boroa em abundancia, ¢ em algumas localidades batata em lugar de pao». — Distrito de Braga: «Na grande maioria 0 povo € mal alimentado, principalmente em relacio & quantidade dos alimentos, que se reduzem a pao de milho, legu- mes @ peixe salgado.» — Distrito de Aveiro: «A alimentagdo é na maior parte de milho, feij40, batatas, hortalica, assim como de peixe para os que vivem perto da costa, e carne para os que se dao a cultura da terra.» — Distrito de Coimbra: «O pao de milho, legumes, batatas, hortaligas, algum vinho ordinario, etc., formam a base da alimentagao dos menos abastados.» REGIAO DO CENTRO: Distrito de Santarém (Rio Maior); «Alimentagao em regra composta de pescada salgada e de vegetais,» — Distrito de Leiria: «pio de milho, batatas, peixe salgado, legumes e hortalicas adubadas com azeite.» — Distrito de Lisboa: «A alimentagao da classe pobre consiste em pao de milho, legumes, hortaligas, bacalhau e sardinhas (Azambuja);» © «ca- vala salgada, bacalhau, sardinha e legumes (Vila Franca de Xira).» REGIAO DO SUL: Distrito de Faro: «Os habitantes sao pobres, e alimentam-se ordinariamente de batatas, papas de farinha de centeio, feitas com mel ou gordura, e de frutas muitas vezes verdes (Aljezur). — Na Fuze- ta: «alimentam-se ordinariamente de peixe, mariscos, milho, couve, abobora, favas, figos e uvas». Em Tavira e freguesias vizinhas: «marisco, peixe, papas de milho com marisco ou azeite, e raras vezes comem pao». No concelho de Faro: «Os trabalhadores pobres raras vezes comem pao de trigo ¢ 0 alimen- to ordinario € no Inverno: couve em abundancia e papas de milho; na Pri- mavera, favas; no estio, abébora, uvas ¢ figos; e no Outono, figos secos, ¢ peixe de ma qualidade. — As mesmas observagées se repetem acerca de muitos outros concelhos.» — Distrito de Portalegre: «O comum do povo faz grande uso de legumes ¢ de carne de porco muito apimentada (Campo Maior).» Em Assumar € Montalvam: «Sustentam-se os habitantes quase ex- clusivamente de legumes e carne de porco.» !7 A locucdo popular portuguesa enganar o estémago sintetiza esta alimen- tagao insuficiente na qualidade ¢ na quantidade. A aclividade agricola e pastoral. — A vida do campo tira dos trabalhos das culturas e das colheitas as épocas cronolégicas da divisio do ano e da " Relatério sobre 0 Comércio dos Cereais, pp. 32 a 34. 109 TEOFILO BRAGA sua propria orientacdo no tempo. No Minho diz-se Pelas bessadas, para de- signar 0 tempo em que se lavram as terras para a sementeira do milho (em Maio); Pelo sacho. designa a época em que 0 milho recebe a primeira cava; Pelas malhadas, isto é no tempo em que se recolhe o centeio das eiras (em Agosto); também se diz Pelos linhos, e nas Espadelladas. No Alentejo segue-se a mesma cronologia com outras colheitas, como Pela azeitona, quando vém os malteses ou caramelos da Beira para o trabalho da apanta. No trabalho da terra conservam-se as feigdes étnicas da raga, e pelas formas da agricultura na Peninsula pode Firmin Caballero, na sua obra da Popula- ¢ao rural, estabelecer as analogias dos seus primitivos habitantes. Como tipo da primitiva populacéo rural figuram em primeiro lugar Navarra e Rioja com 0 sistema beneficidrio das Caserias, imensamente vulgarizado em Portu- gal com o nome de Casaes e Cabdal, como descreve Santa Rosa de Viterbo. Depois segue-se Astiirias e Galiza, com os seus complicados foros e subfo- ros, a que em Portugal correspondem os emprazamentos na provincia do Minho, e em todas estas provincias a populagdo é devorada pela paixao demandista e pela exploragao dos advogados ¢ escrivaes, Para Firmin Cabal- lero, Catalunha, Aragao e Baleares constituem um terceiro grupo; Valéncia Murcia, onde prepondera a tradi¢ao agricola mauresca, forma um quarto grupo digno de ser imitado; a Andaluzia com as suas encortijadas, distingue- ~se pelo defeito da grande acumulacao de propriedade; na Estremadura con- serva-se a reminiscéncia das Encommiendas, e da hostilidade contra a orga- nizagao da Mesta, e € por isso a provincia mais atrasada; Castela e Leao ainda apresentam os estragos da reaccdo neogética contra a antiga povoacao muculmana. Criticando este livro de’ Caballero, diz Sanchez Ruano: «O au- tor da Memoria, instruido a fundo nos anais da nossa histéria, recorda mui oportunamente, para explicar 0 estado agricola das provincias, as origens de raga de cada uma. No biscainho encontra o antigo vasco, independente até a ferocidade nos antigos tempos; no cantabro indouto, de erguida cerviz, indé- ci] mesmo para suportar o jugo dourado de Roma; no astur, 0 aguerrido e incontrastavel descendente de Pelayo ...; no valenciano vé reminiscéncias do laborioso € pitoresco mouro; ¢ no andaluz, tao mole, tao fatalista, movendo- -se em um clima delicioso, de primavera sem fim, nao € dificil contemplar os tragos caracteristicos do arabe indolente e leviano. — Quem nao admira nos naturais destas provincias (Astirias e Galiza) aquela raca goda, religiosa, frugal, dura e perseverante, que ousou iniciar a guerra contra a mourisma ...»'8 Estas diferengas étnicas acentuam-se com a especialidade das daneas e instrumentos musicais de cada provincia. (Vid. p. 31.) A persisténcia do costume nota-se principalmente nas praticas agricolas; ainda hoje se conservam em Portugal os potes de barro untados de pez, em que se guardava o vinho, apesar dos Celtas e Romanos terem preferido as “La Democricia, de 22, 23 © 26 de Fev. de 1864, 110 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS cubas, No Alentejo, onde preponderou © elemento bastulo-fenicio, as ade- gas sdo formadas com esses potes. Ainda hoje se usam as rodas dos carros fixas aos grossissimos eixos méveis; ainda se fazem as sebes de ramos entre- lagados e se usam 98 trilhos para a debulha do trigo. Na provincia do Minho os costumes da vida agricola ainda sio os mesmos do tempo de D. Afon- so UII; quando se contrata um criado ao ano, ajusta-sé tanto em dinheiro, € 08 usos e costumes; estes usos e costumes compreendem a comida € o vestit e calgar. Joao Pedro Ribeiro remonta estes usos ¢ costumes, até ao tempo de D. Afonso III, porque na lei de 7 das calendas de Janeiro de 1291", os cita, estabelecendo as taxas para a provincia do Minho secundum consuetudinem terrae*. Os Romanos ja acharam na Peninsula as boas praticas agricolas, ¢ Columella, o autor da Re Rustica, era natural de Cadiz grande proprietario na Bética; os drabes, deviam os seus conhecimentos agronémicos a civiliza~ ¢40 da Caldeia, ¢ é a esse tronco comum aos acddicos (os turanianos) que pertencem as tribos ibéricas da Peninsula. Portanto esta persisténcia revela- -nos 0 fundo étnico primitivo que tendia para uma revivescéncia todas as vezes que novas ragas trouxessem as suas qualidades, como os libio-fenicios, 0s romanos, os colonos germanos € os arabes. Para que estes paises to ricos sob o regime agricola dos Arabes se tornassem estéreis e miseraveis, foi precisa a acgao diuturna de abusos sistemdticos, como a devastacao estraté- gica, as doagdes régias as Ordens religiosas, a introducao da enfiteusa roma- na, enfim a escravidao da terra depois da escravidao das pessoas, Onde o territério est4 ainda hoje séfaro ¢ abandonado é justamente o que em menos de meio século foi absorvido pelas Ordens religiosas dos Templarios, Hospi- taldrios, Satarios, « Monges cistercienses de Alcobaga, que por doagdes ré- gias se apoderaram da Estremadura, do Alentejo ¢ do Algarve. A esterilida- de da terra trouxe as fomes periddicas, com o seu séquito da peste, ¢ portanto uma subserviéncia do povo as Ordens religiosas, que 0 conserva- vam na sua estupidez pelo terror supersticioso destas calamidades atribuidas a célera divina. Os que ainda possuiam terras doavam-nas as Ordens para aplacarem as iras divinas, e a miséria publica nao dava aso a pensar para descobrir a origem do mal; as Ordens religiosas faziam também 0 monopé lio das letras ¢ das vocages, € $6 por um sistema tao habilmente montado de perversao das leis econdmicas é que o catolicismo péde fazer da Peninsu- la um reduto de prepoténcia clerical. Por isso podemos dizer que a feicao essencial do cardcter portugués é uma hesitagao constante, incapacidade de uma determinagao pronta, que faz do povo sofredor, contemporisador e vi- siondrio, sem espirito de empresa, nem originalidade industrial. Tiraram-lhe os conventos, contrariaram-lhe © génio solitério; acabou direito de conquista, deixou de ser aventuroso e ficou miseravel O portugués foi sempre um precioso colonizador, e a sua tendéncia para se nas Dissertacdes Cronolégicas, t. Ml, parte 11, pp. 59 © segs. © Repositério Literdrio, do Porto, n.° 10, ano 1834. Md TEOFILO BRAGA a emigragdo um cardcter de todas as épocas histdricas, em que se viu sempre despojado da propriedade acumulada nas maos dos grandes senhores, Escre- ve Rebelo da Silva, sobre a situacdo do povo no século xvi: «bandos imen- sos de mendigos ¢ de vadios validos, homens e mulheres, percorriam as vilas 0s campos, pedindo esmola e alegando que nao achavam ocupacio, Mui- tos passavam aos reinos estrangeiros ¢ principalmente a Castela pela facili- dade da vizinhanga, e fundavam verdadeiras colénias em algumas cidades. A quarta parte da populagao de Sevilha nascera em Portugal, nas suas ruas nao se ouvia quase senao a nossa lingua. O mesmo se podia dizer de Madrid. Nas provincias de Castela Velha e da Estremadura 0 maior nimero dos mestres ou oficiais de artes manuais eram portugueses»!, Estas relacdes dos dois povos sentiam-se na agricultura; Frutuoso falando da ilha da Ma- deira esereve: «tem muita hortalica, muias couves murcianas, mas espigam; pelo que sempre vem a semente de Castela»®. Com estas relagdes dos dois povos explica-se a persisténcia de certos costumes agricolas. O costume das queimadas do Alentejo, acha-se entre os Fulas, 0 que prova a sua origem primitiva; diz Gustave d’Eichthal, citando Leander: «Es- te progresso da industria pastoral reagiu felizmente sobre a agricultura dos Fulas; cada ano antes das sementeiras arrancam e queimam as més ervas, ¢ depois misturam as cinzas, com o estrume que tém em abundancia.» *As queimadas foram no come¢o do século xvi regularizadas pela Ordenacéo Manuelina, porque existia uma rivalidade entre os que apascentavam 0 gado € 0s que lavravam a terra**, Certos costumes populares, como os silos ou celeiros subterraneos, acham-se simultaneamente entre os germanos e arabes. Escreve TAcito, no seu livro De Germania: «As familias vivem isoladas. Habitam dispersas por aqui e além, conforme uma floresta, um campo, uma fonte as fixou. — E também um dos seus costumes cavar subterrdneas, que enchem de estrume. Dos subterraneos fazem tulhas para as sementes, ¢ ali se refugiam dos frios excessivos, bem como das incursdes do inimigo..» (§ xvi) Os Arabes também tinham este mesmo costume dos Silos?® ou Atamorrhas, ou Matmorras, que se conservou em Portugal; em um documento do século xiv citado por Viterbo, pertencente a S. Vicente de Fora, se Jé: «Ha mais a dita Capela cinco Covas de ter pao, que estdo na dita aldeia da Cuba no terreiro, que esté diante das portas da dita casa: e s40 duas delas grandes, que leva- rao ambas VII moios pouco mais ou menos: convém a saber, uma IV moios, € outra III.»* No terreno de Monte-Fragoso, antigo Ferragial de Cima, Rebelo da Silva, Mem. sobre a Populacdo e a’ Agricultura de Portugal, p. 68: cita Severim de Faria, ® Saudades da Terra, p. 106. Ed. Funchal. ® Histoire des Foullahs, p. 249. * Rebelo da Si 2 Rossew Saint * Eluciddrio, vb.° COVA. 112 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS achou 0 arquitecto José Valentim masmorras érabes ou covais para guardar 08 cereais””. As duas correntes germAnica e arabe fundiram-se na sociedade mosdrabe; muitas designagdes territoriais s40 germanicas, tal como o Scire, que entre nés se conservou em Xira, Cira, Xara e Enxara, 0 matagal, e se Tepete ja sem sentido na parlenda infantil: Sarra madira (madeira) Da ponta da cira ... «O que porém é admirdvel é que os trigos ¢ outros frutos da ilha (Ter- ceira) nao duram além do ano em perfeito estado. Os que restam corrompi- dos no fim do ano nao tém valor algum. Para que, pois, preservem 0 trigo, guardam-no os habitantes debaixo da terra por espago de quatro a cinco meses. Para este efeito, cada cidadao abre num certo largo ou praca um poco redondo, tirada a terra com pequeno trabalho, deixando-lhe uma aber- tara por onde a vontade pode descer um homem, ¢ com uma tapadeira onde se inscreve 9 nome do dono. Desta forma cada um guarda na sua cova 0 trigo que tem, depois da ceifa em Julho, e coberto com a terra ¢ com a tapadeira 0 conserva até o tempo do Natal. Entao os habitantes o tiram inteiro ¢ S40, por parte, sé aquele de que querem usar, deixando o resto no mencionado pogo. Passado 0 tempo em que se gastou 0 outro, este que desenterraram dura por todo o resto do ano em cestos ou cabazes de cana, sem nenhuma necessidade de lhe tocarem.»** A palavra Wilari, 0 burgo, conservou-se nos antigos vilares, como Gardr, o nome de uma grande povoacdo; o magistrado germAnico electivo abaixo dos condes, 0 Tunginus, conserva-se na forma de uma entidade malévola 0 Tanganho ou Tanganhao. Os costumes arabes da agricultura conservam as suas antigas designa- gies, tais como o sistema de regas por meio das noras, (Norias) e pelas presas ou pogas, como no Minho, a que os arabes chamavam albuheras® As hortas, a que os 4rabes chamavam Almonias ou Almunias, conservam este mesmo nome ainda hoje, e Viterbo diz: «As hortas e pomares de Santarém ... se chamam Omnias, 0 que parece corrupgdo de Almonias ou Almunias.» No Cancioneiro da Ajuda citam-se as Almenas, e é este 0 nome das terras planas ou de veiga nos campos da Golega, ribeiras da Torre, Brescos, $. Tiago de Cacém, no século xv e Xvi ainda no Alentejo, como nota Viterbo, chama-se alcacel (de Alcazar) 0 campo de erva com ferra ou cevada, Rebelo da Silva, na citada Meméria, diz dos Arabes: «Na disposigao amanho das hortas e pomares eram insignes, e da enxertia das Arvores de fruto possuiam nog6es adiantadas ... Muitas hortaligas mimosas e raras fo- Dr, Guimaraes, Sumdrio de Varia Hist6ria, t.1, p. 92. % hinerdrio de Lintschoten, de 1592: Descrigao dos Agores, (Trad. de I. de Torres, Pan, LxIY, p. 39) ® Rossew Saint Hilaire, Hist. d’Espagne, t. Ul, p. 140, TEOFILO BRAGA ram introduzidas por eles, entre outras as aleaparras e os espargos.»® O sistema da debulha do trigo pela unha do boi na eira, usado pelos Ara- bes, persiste ainda na Espanha®! ¢ na nossa provincia da Estremadura. Nas eiras em que se debulha 0 trigo, nos Agores, emprega-se um carro puxado a bois, e nas tabuas lascas de pedras basilticas encravadas para desfazerem a espiga; na Beira usa-se um cilindro com dentes de ferro. Sobre estes proces- sos diferentes transcrevemos aqui as palavras de Roulin: «Segundo Wil- kinson, a espécie de traineau que empregam ainda agora os felds egipcios para bater o cereal, e que segundo duas passagens da Biblia era conhecido entre os Hebreus no tempo de Isafas, teria sido antigamente armado por baixo com pontas de sflex, pontas hoje substituidas por laminas de metal fazendo saliéncia na face inferior, e sobre os eixos que giram a medida que a maquina avanga. E certo que na Itdlia, pouco antes do comego da era crista, e provavelmente muito depois havia em certas provincias um apare- Iho semelhante, chamado tribulum. — Id fit e tabua lapidibus, ut ferro aspe- rata —, como descreve Varrao. O sdbio agrénomo nos diz mais que na Es- panha citerior se estava melhor provido, porque as l4minas cortantes esta- vam como no traineau egipcio sobre cilindros méveis; 0 nome pelo qual o designa é plastelum poenicum, 0 que parece indicar que os Hispanos o rece- beram directamente dos Cartagineses, tao superiores em agricultura aos seus vencedores, como estes o confessaram assaz quando traduziram para seu uso © tratado de Magon.»® O general Loysel viu usado na ilha da Madeira o tribulum semelhante ao descrito por Varro"; nas proximidades de Lisboa vimos 0 trilho com laminas de ferro, e com certeza a coexisténcia destes trés processos correspondem a trés civilizades diferentes. No Minho para a debulha do centeio emprega-se 0 mangoal, ou malho, formado de um cabo de pau de salgueiro e um pirtego preso a ele por couro cru. Na lavoura conservam-se instrumentos e aprestos caracteristicos pela sua remontissima antiguidade; o carro gaulés de duas rodas, 0 essedum™ é 0 que se usa em Portugal em todas as provincias, no Minho dé-se 0 nome de Chéda a uma pega do carro de bois, que entre 0s Gauleses também se cha- mava Carrus ¢ era comum & Itélia%. Ainda se usam as rodas fixas € maci- % Meméria sobre a Populacdo, p. 95. °! Saint Hilaire, Hist. d’Espagne, t. ut, p. 141 % Rapport a l'Académie des Sciences sur une collection d'instruments de pierre decouvers 4 Java. Compt. rend., t, LXVt ® Lenormant, Premiéres Civilisations, t.1, p. 169. % Belloguet, Ethnogénie gauloise, p. 492 % Tbidem, Glossaire gaulois, pp. 125 a 226. — Mme d’Aulnoy, na sua Viagem a Esparha, P.9, descreve uns cartos e usos comuns a Portugal: «Eu notei em todo 0 caminho, desde Bayona até ali (Bidassoa), pequenos carros, nos quais se carregam todas as coisas que s¢ trans- Porta; no os hd seno de duas rodas, que so de ferro, ¢ a sua chiadeira é tao grande que se ‘uve a um quarto de légua, quando vio muitos juntos, 0 que acontece as vezes, encontrando-se sessenta © oitenta simultaneamente. Sio puxados a bois, Vi-os semelhantes nas landes de Bordéus ¢ particularmente do lado de Dax.» Em Portugal os carros chiam nas estradas peft falsa ideia de que isso alenta os bois, e também por causa de espantar as coisas rains 14 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS gas, como entre os Celtas™. A corda do carro, a qual media doze bragas, era chamada Adival na Beira, e servia de unidade de medida territorial no sé- culo xt, como a Aguilhada (de dezoito palmos) em Coimbra no século xv, ou o Astil, (de vinte e cinco palmos nos campos de Santarém.)*” No Minho 0 carro € unidade de medida, ou quarenta alqueires de milho, e quando alguém tem mais de quarenta anos, diz-se: Jd passa de um carro; se tem sessenta anos, diz-se: anda ld pelo carrameio. «O tipo 0 mais antigo dos carros de transporte dos Romanos, o plaus- trum, tinha também rodas cheias e apresentava esta particularidade, digna de ser notada, que as duas rodas, munidas cada uma de wma abertura cen- tral, de forma quadrada, eram espetadas sobre os eixos de pau, os quais ram guarnecidos de pinos (tourillons) redondos, permitindo-lhes girar sob o carro. Este modo de construgao tem-se conservado até hoje em Portugal, € é ainda sobre este tipo que os indigenas da ilha Formosa constroem os seus carros.» 38 A grade, que ainda se usa nas lavradas e bessadas, a que os Romanos chamavam crates dentatae, ¢ de que fala Plinio (xvi, 50), eram, segundo Reynier e Cancalcan, de invengao gaulesa;® o engago, a foice, o crivo feito de crina, eram também usados pelos gauleses*® e persistem na nossa lavou- ra. No Minho os bois so jungidos com a canga no pescogo, € nisto difere no Alentejo que junge o boi pela cabega como se usava antigamente na Italia (Plinio, vitt, 70). Ainda hoje se conservam os potes de barro untados de pez por dentro, em que se guarda o vinho na Estremadura e Alentejo, apesar dos Celtas e Romanos terem preferido as cubas, as quais no século XIII € XIV se chamavam coteira, laioneza, frona, chastelar, bentalha sacudida, cas- tanha®, A cultura dos cereais nas suas diferengas demarcam as zonas agricolas de Portugal; na regiéo do norte, compreendida pelos distritos de Viana, Braga, Porto, Aveiro, Viseu e Coimbsa, predomina a produgdo do milho; na regio do centro, abrangida pelos distritos de Leiria, Santarém e Lisboa, 0 milho e 0 trigo contrabalangam-se em uma produgdo quase igual; na regiéo do sul, que se estende pelos distritos de Portalegre, Evora, Beja e Faro, domina a cultura exclusiva do trigo; na regido das terras altas e montanhosas, dos distritos de Vila Real, Braganca, Guarda e Castelo Branco, prevalece em primeiro lugar a produgao do centeio’, Além das condig6es climatolégicas que diferenciam estas culturas cerealiferas, a propria constituigéo da pro- priedade influi na preferéncia dada a algumas destas frumentéceas. Lé-se no 3 Rebelo da Silva, Memoria sobre a Populacao e a Agricultura de Portugal, p. 4 Viterbo, Elucid., vb.° ADWAL, ASTIM, etc. ** Reuleaux, Coup d’oeil sur l'Hist, du développement des Machines dans l'Humanité, p. 15. % Belloguet, Ethnogénie gaul, p. 460. © Elucid., p. 222. Ed. Inn. Elucid, p. 222. Ed. Inn. ® Relatdrio e Projecto de Lei sobre 0 Comércio dos Cereais, p. 8. 4s TEOFILO BRAGA Relat6rio sobre os Cereais: «Ocupa o milho a quase totalidade das terras cultivadas de cereais na regido do norte, e tem um lugar igual ao do trigo na regido do centro. E na porg4o mais pavoada do reino que esta planta fru- mentacea predomina. O milho é 0 cereal da pequena cultura; é a planta sachada que se intercala ao trigo nas medianas e grandes culturas; é 0 recur- so do layrador quando ndo pode agricultar as suas terras no tempo oportuno para a sementeira do trigo.»* Cultivam-se vinte e trés variedades de milhos em todo o pais, variando as colheitas segundo elas sio de regadio ou de sequeiro. Efectivamente na regido norte de Portugal é onde a propriedade se acha mais dividida pela preponderancia do regime enfit€utico. No Minho a cultura do milho é intercalada com a do centeio, propria das terras altas; ¢ por isso diz-se nas parlendas populares, que o milho chasqueara do centeio barroso, pela seguinte forma: Gandarela, gandarela Que andas cinco meses na terra! Respondeu-lhe o centeio: Cala-te 14, meu gadelhudo, Quando te acabas, sou eu que te acudo. Em outras regides cerealiferas repete-se este mesmo didlogo entre 9 trigo € 0 centeio. Diz 0 citado Relatério: «A cultura do centeio tem impor- téncia na regio montanhosa, onde este cereal representa, em relacdo & ali- mentagao, papel igual Aquele que o trigo representa na regio do sul.» Na tradicao popular, em Vila Nova de Gaia, repete-se: © trigo disse para 0 centeio: | — Cala-te 14, centeio, centeiago, Que tu nao fazes as fungdes que eu fago. O centeio disse para 0 trigo: «Cala-te 14, trigo espadanudo, Que nao acodes a0 que eu acudlo.»® Aqui 0 nome de espadanudo € um epiteto injurioso, significando a sua qualidade inferior; das vinte e nove qualidades de trigos portugueses que se cultivam, prevalecem catorze variedades inferiores do sriticum durum, ou du- * Relatdrio ¢ Projecto de Lei sobre 0 Comércio dos Cereais, p. 14. " Ibidem, p. 14. " Leite de Vasconcelos, Tradigdes, p. 128. — Hii preciosis variantes no Ms. E 5-29, 8.7, da Bibl, Nac. de Lisboa. 116 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS razio, na maior 4rea do Pais. Lé-se no citado Relatério: «Este predominio dos trigos durdzios & 0 resultado em parte do clima, em parte de antigos usos tradicionais, em parte do mau amanho e pouca riqueza do solo. E no centro € no sul do reino que domina a produgéo do trigo, e ai abundam sobre todos os trigos durézios»**. A cultura da aveia, que se alastra por todas as regides da Europa, «tem entre nés importancia unicamente em re- lacdo a alimentagao dos animais.»*” Este seu destino ordindrio, acha-se na parlenda popular, em que a aveia disse: — Eu sou a aveia, Negra e feia; Mas quem me tiver em casa, Nao vai pr’a cama sem ceia®. A situagdo da agricuitura esté dependente da criagéo dos gados, e da falta ou diminuigao destes provém a esterilidade da terra, e a insuficiente alimentagao do povo que decai na sua constituigao fisica e individualidade moral. Diz 0 citado Relat6rio: «Infelizmente em Portugal é limitadissimo (0 uso da carne), © © nosso povo dos campos pode dizer-se que usa quase exclusivamente de uma alimentagéo vegetal.» «Temos muito pouco gado para a extensio do nosso territério, e dai resulta nao crescer, antes diminuir a fertilidade do solo aravel, principalmente nas duas regiées do centro e do sul, onde a cultura exige do solo muito mais do que Ihe restitui.»% Na actividade pastoral é maior a persisténcia dos costumes érabes, come- gando mesmo pelas designagdes vulgares; 0 rebanho, manada, fato, e até o proprio curral chamam-se Alfeire; 0 maioral do gado é 0 Algandme, o guar- da dos rebanhos ¢ 0 Almocouvar; a enxada ou picaveque da cultura horten- se é a Alferce, como a colheita dos frutos se chamava Alacir, Os Arabes pastorais passavam a estagéo do verao (Mesaifa) no Iraque ou na Caldeia, e a. estagao do inverno, (Mesta) no Egipto € terras do poente; Mr. Delabor- de nao atribui este costume privativamente aos Arabes com o intuito de tornar mais fina a 1 dos seus gados*, ¢ Rossew Saint-Hilaire considera-o como comum a Outros povas pastorais antes da entrada dos Arabes na Pe- ninsula hispanica®. Spencer explica este costume pela necessidade de livrar os gados das picadelas das moscas, como se observa entre os Kirguisses que jevarn no més de Maio os gados para as montanhas, quando as estepes esta * Relatério, p. 9. © Ibidem, p. 16. 5. Leite de Vasconcelos, ibidem. Relatério, p. 19. * Relat6rio, p. 25. M. Delaborde, Voyage pittoresque en Espagne, ttl, p. 4) ® Histoire d’Espagne, t. 10, p. 142. 7 TEOFILO BRAGA cheias de fartas pastagens™. Em Franga os carneiros das provincias meridio- nais viajam cada ano, ¢ j4 no tempo de Plinio (xx1, 31) vinham procurar o timo aos campos da Narboneza; 0 costume dos gauleses tem-se conservado no sul da Franga*, Em Portugal este costume foi observado por alguns ¢s trangeiros, como Hoffmansegg, na sua Viagem a serra da Estrela: «Nao tém alguns outro meio de subsisténcia sendo seus rebanhos, mas véem-se obriga dos a manda-los durante cinco meses do ano para o Alentejo, e a carestia das pastagens bem como as despesas da viagem quase que absorvem o valor da la.»* A Mesta da Espanha mudava anualmente os seus enormes reba- nhos das planicies da Andaluzia e Estremadura para as montanhas de Ara- gio; sobre este ponto lé-se no Panorama: «Entre nés se imita isso pelo mesmo principio, e duas vezes no ano passam e repassam 0 Tejo os reba- nhos do Alentejo para a Serra da Estrela.»% A deambulagao dos gades também se costuma fazer nas povoagées para as sanificar em tempo de peste: «Quando © povo da vila (Guimaraes, 1509) se quis recolher a suas casas por estar aplacado o contdgio da peste, primeiro encheram a povoacio por alguas dias de gados dos contornos, para que com seu bafo sanassem as partes infeccionadas.»*” As raparigas que guardam o gado chamam-se doeiras em Vouzela e Mortagua. As ragas dos carneiros portugueses, em quanto as suas qualidades lani- geras, correspondem aos trés tipos das racas espanholas, a ribeirinha ov charrua ou lacha, (Ledo, Castela Velha e Mancha) a merina, estante (Estre- madura, Andaluzia, Cordova e Aragio) e transumante (de Leao a Estrema- dura). Segundo estes tipos, temos 0 carneiro bordaleiro, 0 merino e 0 estam- brino. O carneiro bordaleiro € de pequeno corpo, com pontas voltadas em espi- ral, ou sem elas, distinguindo-se pelos pélos cabrios, (churros) ou pelos pélos lanosos empastados (bordaleiro feltroso). E esta a raga mais generali- zada no pais, mas sobretudo em Viana, Braga, Viseu, Coimbra, Leiria, Santarém e Lisboa, e € geralmente preta. Nas serras do norte de Lisboa, chamam-se careos, charnequeiros & galegos. Neste primeiro tipo hé uma terceira variedade, em que os pélos cabrios diminuem, prevalecendo o velho em mechas, ou bordaleiros comuns; estes constituem a raga alentejana, das areias € dos matos, (transumantes da Serra da Estrela, do planalto de Mi- randa de Trds-os-Montes, campinas e encostas dos vales do Tejo e Monde- go). Desta variedade, os das areias (Portalegre) e os pretos (Serpa ¢ Moura) aproximam-se do tipo merino, fornecendo a melhor [a, O segundo tipo, ou o cameiro merino, ou que no tem pélos cabrios, apresenta as seguintes variedades: dos barros (Elvas, Campo Maior e Mou- ® Sociotogie, t.1, p.49. Ed, franc % Belloguet, Ethnogén., p. 465. 8 Ap. Bernardes Branco, Portugal e os Estrangeiros, 1.1, p. 396. 8" Panorama, t. Vill, p. 127. 5 Membérias Ressuscitadas da Antiga Guimardes, p. 352. 118 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS tdo) semelhantes aos merinos estantes da Estremadura espanhola; raga fina saloia ou brancos finos, (carneito branco das cereanias de Lisboa, concelho de Oeiras); e os badanos, da terra quente do distrito de Braganca (entre Torre de D. Chama e Torre de Moncorvo). O terceiro tipo, chamado estambrino, 6 0 que produz a \a de pente, dividindo-se em grande churro ou lacha espanhol pouco vulgar; os churros nas serranias de Viana, e 0s bordaleiros comuns (Castelo Branco, Guarda, Viseu e Braganga). O tipo bordaleiro predomina nas ithas da Madeira ¢ ‘Agores; € 0 estambrino em Angola e Mocambique, e mestigado em Cabo Verde e §. Tomé e Principe As persisténcias na vida agricola séo verdadeiramente notaveis; na citada Memoria sobre a Populagao e Agricultura de Portugal escreve Rebelo da Silva: «Todos os individuos, hoje empregados numa grande lavoura, nos aparecem jé em accdo no século xm desde 0 abegdo, (abegom) o lavrador, (mancipius de lavoura) 0 azemel ou condutor das cavalgaduras (azamel) e 0 mogo da lavoura {cachopius de vaccis) até a0 maioral dos vaqueiros, (maior ‘mancipius vaccis) ao conhecedor dos porcos (cognitor porcis) € das ovelhas, (cognitor de ovibus) aos azagais © porcarigos (mancipii de ovibus et porcis) a0 tapaz do gado {cachopius de ganato), € a criada do campo, (mancipia).» «No Alentejo j4 subsistia 0 uso, ainda hoje em vigor, dos lavradores darem a certos criados pequenas searas para cultivarem por conta propria e colhe- rem para si 0 produto.»® © regime do trabalho agricola ainda hoje apresen- ta singularidades notaveis; ha individuos que contratam operdrios da Beira para virem trabalhar durante trés ou quatro meses nas carvoarias no Alente- JO; esses contratadores sao chamados Manajeiros, e 0s contratados Malteses, cujos costumes desregrados se acham parodiados em uma oracdo popular comum a Portugal e 8 Andalucia. O antigo trabalho agricola estava sob a intervengao directa do poder real, que proibia ou impunha certas culturas; uma lei de 12 de Fevereiro de 1564 deterina: «que se monde o trigo, 0 centeio ¢ cevada nos meses de Margo, Abril ¢ Maio, e se faca o mesmo aos mihos nos tempos que for necessario. E que se sacudam os pdes da dgua e neve que neles houver catdo com um cordel de la comprido, da grossura de um dedo, que cada lavrador deve ter para o referido fim: Ordenando mesmo que os Juizes ¢ Vereadores em cada ano vao ver os termos dos seus lugares antes que se recolham as novidades, ¢ pravejam sobre as ditas coisas, etc». O orvalho que embaraca © crescimento das searas era chamado Mangra, e de o modo de sacudi-to com 0 cordel de 1a, diz Viterbo: «em a vila de Sanceriz junto a Braganca, SA. J. Teixeira, Relatério do Conselho Geral das Alfandegas nos Anos de 1876 ¢ 1877, patadl % Op. cit, p. 103. © [bidem, p. 104. % Ap. Elucidario, vb.° MANGRA. 119 TEGFILO BRAGA em cuja cimara se guardam ainda estes longos cordéis com que se sacudiam 0s pies; mas sem a lembranca ou memoria de que tivessem algum uso». Junto com a mangramella das searas, cita-se num documento do século XV a alforra, ¢ esta palavra subsiste ainda nos Agores como chiste sarcéstico que se diz a quem espirra: Viva, até que morra, Com a barriga cheia de alforra A cultura do milho € considerada como do século XIII, em Portugal; no Minho ainda se chama milhdo, tal como num documento de S, Simao da Jungueira de 1289; diz Viterbo: «D'aqui se podia inferir, que jé entao havia em Portugal milho maiz, ou grosso, a que hoje chamam n’aquela terra mi- thao,» Depois acrescenta um facto acerca da introdugao tardia do milho «no século XVII um certo Paulo de Braga 0 trouxe a sua terra, vindo da India, Ao principio, dizem, se proibiu 0 semed-lo, € s6 alguns semearam poucos pés nas suas hortas € jardins, Hoje € 0 mais frequente pao naquela provincia, ¢ the chamam milho zaburro, milho grande, milho gratido, milho maiz, milhdo, ou milho grosso ¢ milho de magaroca» "*, Existe de facto um certo milho arredondado, que predomina no Minho e um milho grado, de cana alta, que é exclusivo das ilhas dos Agores; este é que ainda se chama ali milho de magaroca, a0 passo que no Minho é a espiga Viterbo aponta 0 facto, depois da descoberta da Guiné, de ser trazido para Portugal o milho grosso de macaroca «e que se principiou a cultivar nos campos de Coimbra, de onde passou a todo o reino». A sementeira do milho é uma festa em casa de cada lavrador do Minho; ¢ a bessada, a que concorrem todos os vizinhos com os seus bois, 8 maneira do Potirum ainda usado no Brasil Depois da bessada, segue-se a picada, indo as mulheres cobrir ou enterrar os graos do milho que estéo fora do rego. Depois do milho nascido hé a monda, depois a sacha, a rega, a escava, ou descroa, até que depois de ma- duro 0 milho no pé este é cortado, trazido para a eira, onde se faz a esfolha- da ou descamisada, a0 som de cantigas ¢ de coléquios dos embugados, sendo por fim malhado a mangoal (Mondim da Beira) ou debulhado & mao como nos Agores, dando-se em paga as mulheres o carrilho ou carole. Nos Ago- res, na esfolhada do milho ficam algumas folhas na magaroca, por onde clas se atam com um vencilko formando um mancho; € logo que estéo muitos formados guarnecem-se com cle trés paus que se espetam no campo em forma de barraca, a que se chama tolda, Ali seca o milho ao ar livre, de onde é tirado antes das chuvas para ser debulhado. Quando na esfolhada se “ Ap. Eluciddrio, vb.° MILHAN. © Thidem, vb.° MACAROCA. *" Leite de Vasconcelos. Tradicées, p. 236. 120 AS INDUSTRIAS LOCAIS & TRADICIONAIS acha uma magaroca vermelha, fica-se com direito a dar um abrago em cada uma das mogas. ‘A sementeira e colheita do centeio tem também suas praticas especiais; na época da sementeira procura-se uma rapariga que seja Maria e que esteja donzela para langar os primeiros graos a terra, para que os campos déem maior novidade; é uma reminiscéncia do culto de Demeter. Na colheita usa- -se wma ceriménia logo que acaba a malhada, em que os malhadores apupa- ram (aclamaram) os donos da casa: reunem-se todos em volta de uma pa- diola, onde deitam um mono de palha, vestido de velha, e junto dele chora um dos malhadores fazendo de vitivo, os outros levam a padiola e fogem com ela para os campos, e 0 vitivo pée-se em altos berros e com gragolas diz que Ihe querem roubar a sua velha, agarra-a e vai pendurd-la no cimo de uma cetejeira. No desafio dos malhadores, aqueles que ndo sabem ow nem tém forga para fazer zoar 0 mangoal, so vencidos, ¢ ao virar da palha gritam-lhes: Leva a gata! Leva a gata! O grito, que é injurioso, alude a um costume de perto de Viana do Castelo em que no fim da malhada se queima uma meda de palha mofda, em cima da qual se colocava uma panela com um gato dentro, que fugia pelos campos quando a panela estoirava®. A colheita da azeitona na Beira e Estremadura é em geral feita por mulheres, e também ao som de cantigas, sendo esta época do ano aquela em que as modas (melodias) passam de uma terra para outra. No trabalho do campo existem costumes supersticiosos verdadeiramente extraordindrios; tal é 0 que se chama Deéitar as milhas: «Deitar as milhas (més ervas que prejudicam as sementeiras) é uma operagao que consiste no seguinte: Ena véspera de entrudo. O que quer deitar as milhds, chama o vizinho em voz alta pelo nome, e grita logo em seguida: Milhas para né: Milhas para vos! Levai 0 burro Corregidos sereis vés. «E desata logo a tocar numa buzina com toda a forga e de modo que nao possa ouvir a resposta do vizinho. Se ouvir a resposta do vizinho (que é © mesmo palavriado), a eficdcia deste esconjuro ou imprecagéo perde-se Pelo contrario, o que primeiro deitar as milhds fica com elas. O vizinho que ficou com as milhas 0 remédio que tem é passd-las a outro vizinho. De sorte que nesta noite muitas aldeias até A meia-noite nao fazem mais do que dei tar milhas (as vezes para um comparochiano de longe) € tocar buzina.»"* O lavrador, para guardar 0 seu campo das influéncias maléficas, espeta ® Leite de Vasconcelos, Tradicées, p- 237. © Superstigées populares, n.° 642, col. Z. Pedroso. 12 TEOFILO BRAGA nele um corno de carneiro, uma ferradura caida de uma mula, € na noite de S. Joao atira ao campo com trés pitadas de sal dizendo: Trista com trista, S40 Joao Evangelista! Ao derredor Deste renovo assista; Porque se alguma bruxa M’o quiser levar, Hé-de contar as estrelas E as areias do mar, Com a cabega para o chao E as pernas para o ar. E este sal hé-de apanhar™. (Minho.) Para afugentar a passarada o dono da seara mete fel de boi num pticaro novo € pendura-o no campo; depois do que uma moga chamada Maria e que esteja em folha, dé trés voltas a roda do campo, dizendo: Passarinhos! ao monte, ao monte, Que o meu campo tem fel, E 0 do meu vizinho mel. (Briteiros.) Ou indo a mulher em fralda: Passarinhos, deixai o meu paingo Que tem fel! Ide para o monte Que tem mel No tempo da ceifa é preciso tirar o piicaro de fel para que 0 paingo nao fique amargo®®. Nas aldeias ha um ditado, que se aplica aquele lavrador que teve bons milhos: Aquele andou no cambéo. Alude a locugéo a0 costume que hé-de montar o lavrador em um cambao na noite de S. Joao e atraves- sar © campo do seu vizinho proferindo esta formula: Aqui estou neste cambao Na noite de S. Joao, P'ra trazer atras de mim Pipas de vinho e carros de pao. * Também em Pedroso, Supersticdes, n.° 647; Leite de Vasconcelos, Tradicdes, p. 235, ® Pedroso, Supersticdes, n° 657; Leite de Vasconcelos, Trad. p. 165. 122 AS INDUSTRIAS LOCAIS & TRADICIONAIS Depois disto, 0 campo do vizinho ndo viga e 0 daquele que montou no cambéo fica abundante, Aquele que for, depois de ter andado no cambio, bater com malho ou mangoal nas medas do centeio do vizinho, vem-lhe o gro cair na caixa em casa®®, Antes disto, ao ter cavalgado no cambdo de sete chavelhas, deve ter dito, simulando fustig4-lo: Vai boi, vai vaca, Esta terra € fraca; O renovo que ela der Cairé na minha arca”, Os mogos de gado, quando andam no monte e se espalha o nevoeiro, sobem acima de um penedo, e dali proclamam uma formula de imprecacao: Névoa, nevoeiro Vai para tras daquele outeiro, Que 14 anda Joao Cabreiro Com as calgas queimadas. Quem th’as queimou foi o fog; O fogo anda na mata; Que a mata deu a cabra, E a cabra deu o leite, E 0 leite é para as velhas, E as velhas dao 0 milho, E 0 milho come-o a galinha; A galinha pée 0s ovos, E 08 ovos comte-os 0 cura, E 0 cura diz a missa Atrés daquela arrabiga”!, (Serra da Estrela.) Num Auto de Gil Vicente este Joao das Calgas queimadas, aparece na formula: No penedo, Jodo preto E no penedo. Quais foram os perros Que mataram os lobos, Que comiam as cabras, Que roeram o bacelo Que pusera Io’o preto No penedo” J. Leite de Vasconcelos, Tradigdes, p. 234. 17, Pedroso, Supersticoes, n° 644 M Leite de Vasconcelos, Tradigdes, p. 50. * Obras, t., p. 448. 123 TEOFILO BRAGA £ evidentemente uma imprecacao contra 0 nevoeiro, usada pelos pasto- res no século xvi. A cultura da vinha foi devida a influéncia drabe; uma cangao de Este- vio da Guarda, privado do rei D, Dinis, descreve minuciosamente esta cultura: : D’uma gram vinha que tem em Valada, Alvar Rodriguis nom pod’aver prol, vedes porqué, ca el non cura sol de a querer per seu tempo cavar; et a mays d’ela jaz por adubar, pero que tém @ mourisca podada. EI s‘entende que a tem adubada, pois th’a podaram et sen tazon, e tan menguado ficou 0 torgom que a copa nom pode bem deytar; cA em tal tempo a mandou podar que sempre Ihe ficou decepada. S’entom de cabo nom for rechamtada nenhum proveyto nom pod’end’aver, ca per aly per hu a fez reer j4 em dezembro est para secar; et mays valeria j4 pera queymar, que de jazer como jaz mal parada”* © assunto desta cangao com intengao satirica bem nos revela os assuntos das conversas da corte do rei lavrador; a alasio a Valada, por ventura en- cerra o facto do costume da divisao anval das terras de Valada, no tempo de D. Afonso Henriques", Na cava das vinhas 0 tiltimo da direita é chamado 0 rei da cavada, o da esquerda € a rainha, ¢ 0 que anda no meio é 0 vassalo. O rei da cavada & 0 que dé o sinal para as comidas, dizendo a formula: Comam e vamos, Limpem as barbas E atem os panos. O vinho que se distribui é mandado vir pelo vassalo, a rainha s6 dé ordens no sdbado A noite. A segunda cava & chamada redar € stravessar™. Na sdtira Os Ratos da Inquisigdo, \é-se: Eu empo, cavo e podo E vés vindimaes a vinha™. ® Cancioneiro Portugués da Vaticana, 1. 905. Viterbo, Elucid., vb.® BALATA. Leite de Vasconcelos, op. cit, p. 235 % Ed, Porto, p. 121 124 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS O trabalho das vindimas, como as esfolhadas do milho e espadeladas do linho sao feitos entre cantigas € risadas ‘A produgao do vinho na ilha da Madeira foi precedida pela do agticar, que dali se propagou para o Brasil, onde se tornow a sua principal riqueza; escreve Frutuoso: «o infante D. Henrique mandou as canas de Cecilia para se povoarem na ilha, e de Candia mandou trazer bacellos de malvasia para se plantarem»”. Depois da decadéncia da cultura da cana do agiicar € que 0s vinhedos tiveram 0 seu maior desenvolvimento, criando-se as seguintes qualidades © sercial, considerado como superior, 0 boal e bastardo, 0 tinta afamado e 0 seco”, As terras também se diferenciam ou sao conhecidas pela especialidade dos seus frutos; de uma Satira do século xvit tiramos algumas indicagdes, preciosas pela tenacidade da sua persisténcia: so as péras que levaes as de Ociras tao galantes, Conicabra e carvalhal, as da Lourinha chainhas, See eat as de Monte-mér rainhas, A péra parda na cama e as de Alcobaca brilhantes”. de v6s nao esté segura; em vés fazeis dependura da bergamota de fama: a que pigarca se chama que é péra de estimacao, tanto que vos chega a mao, logo d’ella fazeis farga e sendo péra pigarca vos a fazeis péra pao. Nao vos escapam por pés minhas ceréjas bicais, nem as ginjas garrafais.. AS laranjas extcemadas da China ricas e bellas . na canastra nao se esconde A fructa fresca gostaes, nem minha péra de conde e para desenfastiar nem péra de Rio Frio; ides a séca buscar e inda d’esta gostaes mais: A de Alcobaga levaes, bocce bene a do Algarve estremada, as ricas magas de Abrantes, a das Pias téo gabada, etc. saudades da Terra, p. 113. ™ Dr. Alvaro Rod. d’Azevedo, Ed. Frut., p. 707, Ratos da Inquisicdo, pp. 147 a 150. TEOFILO BRAGA Os trabalhos do campo conduzem a um certo mimero de induistrias locais e tradicionais, como vemos por esses produtos ja celebrados desde 0 século XVI; podemos apontar ainda outros que estao no seu vigor: © meu gueijo do Alentejo que quando vou mui contente comel-o por ser frescal. Aos queijos do termo nosso que chamamos de Saloias ... € até os de Monte-mér que tém graca por salgados*, Ao descrever a situagdo das pequenas indtstrias na regiao do norte de Portugal, a Comisso do inquérito de 1881 apresentou o facto da regressio dos operdrios fabris para o trabalho dos campos, ou muitas vezes a alterndn- cia do trabalho da lavoura com qualquer oficio: «todos os operarios das indistrias locais rurais alternam 0 exercicio da profissio com o trabalho agricola conforme as construgdes s40 mais ou mertos abundantes, ¢ tanto mais quanto menor € a sua aptidao profissional»*. «Em grande parte os operdrios sao também lavradores, pequenos proprietrios, e as economias do salario consolidam-se na terra.» Falando-se dos fabricantes de telha, diz 0 mesmo Relatério: «altermam este servigo com o rural, como sucede a uma grande parte das indistrias do campo», Dos calafates de Vila do Conde, Porto e Gaia, diz: «uns trabalham nos campos, outros emigram para o Brasil» ®. Na decadéncia lamentavel das pequenas indistrias, os operérios que nao emigram pedem ao trabalho agricola os recursos imediatos da sub- sisténcia; os oficiais de ourives, dos concelhos de Gaia e Gondomar, depois da entrada do ouro francés, tiveram de ir trabalhar nos campos, ou, como se diz na locugao chula: «foram plantar batatas». O mesmo aconteceu aos ofi- ciais de marceneiro no concelho de Paredes. A Agricultura torna-se assim um trabalho secundario, um sucedaneo da emigracao. As indistrias locais e domésticas. — E este um dos quadros mais pitores- cos da nossa vida nacional; em Portugal a pequena industria apresenta o cardcter singular de ser mais activa e fecunda do que a grande industria. "© Ratos da Inquisi¢ao, pp. 139 € 140. % Relatorio, pp. 26 ¢ 27. "© Ibidem, p. 32. © Ibidem, p. 34. ™ Ibidem, p. 52 € 53. 126 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS Lé-se no Relatério da Subcomissio do Inquérito Industrial de 1881: «Ainda hoje porém no distrito do Porto e em todos os do reino a chamada pequena indistria 6 numérica e economicamente muitas vezes maior do que a gran- de.» Ela luta com o elemento capitalista, com a celeridade das mquinas e com a inconsciéncia do regime das pautas e tratados de comércio. Nao acompanharemos 0 quatro doloroso do seu atrofiamento, mas limitar-nos- -emos a esbocar as feicdes tradicionais dos seus processos. ‘A riqueza metalirgica da Peninsula, explorada pela raga ibérica, atraiu os navegadores fenicios, e continuou a ser explorada sob 0 dominio dos Romanos; deu-se porém um facto importantissimo para se deduzir dele uma conclusio histérica, E vem a ser: 0 conhecimento da indistria metalirgica perdeu-se ¢ as minas ficaram por largos séculos abandonadas**. O trabalho de mineragao substituiu-se pelo trabalho agricola. Ha neste facto a revelacdo de uma caracteristica étnica; entre as ragas ibéricas da Peninsula 0 ramo berber era essencialmente agricola, e € a agricultura que ainda hoje prepon- dera entre as povoagées vascongadas; os elementos Ifbio-fenicios, introduzi- dos pelos Cartagineses em Espanha, eram também agricolas, bem como os Liti, que se ofereciam como colonos agricultores 4 administrago romana. Quando os Arabes vieram a ocupar a Peninsula, o elemento berber, que diferenciava 0 mouro do 4rabe, veio também influir no desenvolvimento ex- clusivo da agricuitura. Pode dizer-se, que estas causas, ligadas a outras mais. fundamentais da marcha da civilizagao da Europa, faziam que a indistria agricola se tornasse uma nova fonte de riqueza para a Peninsula; porém as devastagdes do territério, usadas como téctica militar na reconquista crista, tornaram este vasto territ6rio deserto ¢ miserdvel: mineragao e agricultura tudo se esqueceu. Falando das riquezas metalirgicas do tertit6rio portugués exploradas por Iberos, Fenicios e Romanos, ndo podemos deixar de dar aqui um leve esbo- co da sua extensdo. Abundam em todo o territério os jazigos de cobre, nos granitos e porfirios, nos xistas cristalinos e argilosos e grauwackes devonia- 0s, nos trias ¢ calcdrios jurassicos", Onde se estendeu a civilizacdo fenicia ai se encontra a maior abundancia de minério e os vestigios de uma explora- gio primitiva continuada pelos Romanos; na parte central do Alentejo, os veios de cobre apresentam uma uniformidade de estrutura e de composigio, e de direcgao, que os ligam a um tinico sistema, Esta regido esta compreen- dida entre a Serra de Ossa, Serra de Portel, Serra de Viana e Serra de S. Tiago do Escorial; as exploragdes primitivas fizeram-se a superficie do solo e somente nas planicies. Sobre a margem diteita do Guadiana existe 0 jazigo de cobre de Xeres e Barcas abandonado apesar da sua riqueza; e na zona dos porfirios feldspaticos de Aleécovas, entre Vila Nova de Bardnia ¢ Relatbrio, oficio ao governador civil % Buckle nota este facto importante no capitulo sobre a Civifizagdo em Espanka " Exposition portugaise (de 1867), grupo V. 127 TEOFILO BRAGA Alcdcovas, existem os fil6es de cobre numa abundancia tal, que justifica os vestigios de largas exploragées primitivas. A regiao xistosa, que compreende as vilas de Estremoz, Borba ¢ Vila Vigosa, Alandroal e outras, é de uma riqueza metalifera tal que nao escapou a exploragdo dos antigos, sendo continuada pelos Romanos, pelos Arabes ¢ até pelos reis portugueses. As minas de ferro, igualmente abundantes em todo o territério portugués, chegaram também a ser exploradas pelos Roma- nos, como se vé pela grande quantidade de escérias e vestigios de fornas ¢ restos de construgdes do jazigo de ferro da Moita do Arnal. O Romano nao fez mais do que continuar uma indiistria que j4 estava montada, e aproveitar a actividade de povoagées submetidas, empregando-as no trabalho das mi- nas. O abandono sucessivo dessa indtistria pode em parte explicar-se como uma reace4o violéncia empregada pelos Romanos nas suas exploragoes. Depois da queda do império € sob 0 dominio gético ¢ arabe, a peninsula tornou-se especialmente agricola. O trabalho das minas s6 renasceu em Portugal de um modo progressivo em 1853, regularizando-se este trabalho pela lei de 1854, imitada da lei francesa de 1810. Em 1853 havia em Portu- gal apenas duas minas em exploragdo; em 1862 ja se exploravam mais ou menos activamente vinte e quatro minas; e em 1866 ja se contavam cin- quenta e seis em exploragéo, noventa e quatro concessées, € cento e setenta € um pedidos de concessio. A decadéncia da industria metaltrgica, ligada a causas historicas das an- tigas civilizag6es peninsulares, seguiu-se também a decadéncia da agricultu- ra, substituida pela rapina sistematica sobre as riquezas dos Arabes. Quando essa riqueza se anulou completamente nas mos dos dominadores neocatéli- cos, isto é, terminada a reconquista crista, tanto Castela como Portugal se langaram na corrente das expedigdes maritimas, 4 descoberta ¢ conquista de novos territrios. Pode estabelecer-se que, além dos estimulos organicos, ¢ da provocagao do territério, esta extingdo de recursos econémicos foi um impulso que nos levou para o mar. © trabalho dos metais, especialmente 0 do ouro ¢ do ago, tornou-se um caracteristico do génio portugués, e apesar de todas as vicissitudes porque tem passado a nossa nacionalidade, a ourivesaria e a serralharia conservam a sua tenacidade local e tradicional. E certo que nos falta a originalidade, mas isso resulta do proprio caracter da estabilidade da tradigao, que a tem mantido a despeito de todas as causas que Ihe atacam a existéncia. De todas as formas da Arte portuguesa é a Ourivesaria a que tem uma evolucdo completa, podendo pelas suas relagdes com a Arquitectura e coma Escaltura, com a opuléncia cultaal ¢ com a sumptudria civil, e mesmo ainda com os ornatos populares, formar-se por ela a sintese do génio artistico portugués. A Ourivesaria entre nés foi o reflexo passivo da Arquitectura, imitando mesmo a sua policromia nos esmaltes; 0 gosto ou estilo bisantino, as criagdes da construcao gotica ou ogival, o misto da renascenga greco-ro- mana produzindo 0 gético florido (a que em Portugal se chama o estilo 128 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS manuelino), © barroco e rococé da época jesuitica e pombalina, tudo isto aparece imitado nos imimeros produtos da Ourivesaria portuguesa, conser vados nos mosteiros, nos pagos & nas casas fidalgas. Este fendmeno nao é exclusivo a Portugal; Renan, falando da Arte na Idade Média, acentua este cardcter absorvente da Arquitectura: «ela teve a desgraca de prejudicar mui- to as outras artes plasticas, condenando-as a uma condigao subalterna. Co- mo a teologia matava a ciéncia racional reduzindo-a a situagao de ancila, a arquitectura gética, sendo 56 por si a arte, tornava impossivel o progresso da pintura e da escultura. Que diria Phidias, se ele se visse sujeito as ordens de arquitectos que Ihe tivessem encomendado uma estdtua destinada a ser colo- cada a duzentos pés de altura?» ®. A esse fervor religioso e politico, que espalhou pela Europa as Catedrais géticas, aparece a Ourivesaria como parte complementar e acidental da ornamentagao desses portentosos monu- mentos. Se a Escultura teve de se amesquinhar em minudéncias, a Ourivesa- ria, para ser vista de perto e como um meio de deslumbramento da sump- tuosidade cultural, tornou-se um desenho de miniatura, reproduzindo o esti lo e 0 aspecto da propria catedral que ornamentava. E por isso que a in- fluéncia da Renascenga da Itdlia sobre a Arquitectura gética é a mesma na Ourivesaria; Bramante e Miguel Angelo sao continuados no mesmo espirito por Benevenuto Cellini, Em portugal den-se a luta da Arquitectura gética com a nova escola greco-romana da Renascenga, nao s6 pela transacgao do gotico florido, como pela preponderdncia das doutrinas de Francisco de Hollanda; na Ourivesaria 0 estilo gotico de Gil Vicente € indirectamente satitisado por Garcia de Resende nos seus versos da Miscellanea: Ourives e Escultores (sc. italianos) Sao mais sutis ¢ melhores. Num pais em que 0 povo s6 muito tarde teve existéncia civil, a arte apresenta apesar disso uma certa feigao democrdtica na Ourivesaria, que ainda hoje persiste nos ornatos de fifigrana, em arrecadas das orelhas, dixes © nominas ou veneras. A Ourivesaria foi quase que exclusivamente religiosa, porque as ordens claustrais absorveram em si todas as riquezas e energias durante séculos; a sumptudria civil sé se desenvolveu segundo a intervencao dos decretos reais, e por isso sem um plano tao manifesto. O facto da existéncia de formas populares na Ourivesaria leva-nos a su- por a existéncia de um veio tradicional nesta forma de Arte portuguesa. A filigrana € um resto do dominio dos Arabes na Peninsula; a civilizagao bastulo-fenicia, que precedeu aqui a cultura jénica e romana, aproveitou-se da inddstria metalirgica dos povos ibéricos. Os fenicios tinham caracteres attisticos préprios, que as col6nias maurescas renovavam, e um desses é a ™ Lean an Moyen-Age (Rev. des Deut Mondes, 1862) 29 TEOFILO BRAGA industria metalirgica, em que o génio escultural se manifesta, Diz Renan: «Em geral os antigos Fenicios parecem ter sido mais escultores do que arquitectos.»® Deste caracter deduz 0 eminente critico 0 tipo e 0 gosto da arquitectura fenicia: «Um obreiro costumado a trabalhar em metais ou em marfim, se se aplicar A pedra, traira os seus primeiros habitos; assim nos fragmentos de Um-el-Awamid sente-se 0 estilo formado sobre outros mate- siais e nascido num outro meio. A aparéncia grosseira de todos os antigos monumentos fenicios vem de que os seus muros recebiam toda a ornamen- tagio de placagem e de revestimentos.»® E este gosto semita, que nos explica 0 azulejo na arquitectura e essa ornamentagao de fitas e linhas geo- métricas do estilo arabe, de que a Espanha ainda apresenta assombrosos monumentos, E entre esta dupla corrente da Arquitectura, ora absorvendo como su- balternas todas as outras artes, como 4 escultura e a pintura na Idade Média da Europa, ora sendo apenas um pretexto para a ornamentagao da escultu- ta, como na tradig&o semitica peninsular, que se deve procurar a razio dos estilos e da fecundidade da ourivesaria portuguesa. A Igreja popular da Idade Média aristocratiza-se em Portugal, Jutando contra 0 poder rea} pelas imunidades dos seus bispos, verdadeiros bardes feudais; a classe senhorial serviu-Ihe de instrumento, que ela conservou sem- pre numa submissao fandtica, perdeu a sua resisténcia ¢ tornou-se um apa- rato da monarquia absoluta. E por isso que a Igreja deu ao culto essa sumptuosidade deslumbrante, empregando montes de ouro nas suas cusid- dias, cruzes, baculos, lampadérios, cilices, relicdrios, frontais, sacras, nribu- los, tocheiras, e outros objectos litdrgicos que excediam a opuléncia desvai- rada dos grandes principes. Os Ourives trabalhavam para as ordens reli giosas © para os reis que as presenteavam, quando lhes compravam indul- géncias para os seus crimes. E uma arte especial, profundamente ligada ao espirito das classes ¢ as transformagées das grandes épocas sociais. No livro y, tit. 56, das Ordenagées Filipinas, publicado em 1603, encon- tramos estas curiosas disposiges: «Mandamos que aenhum ourives lavre ‘cure em obra sua ou alheia, de menos quilate, do que se lavra na moeda, ‘Mas as pegas que comprarem de ouro, que forem feitas fora do reino, ¢ que notoriamente parece que sao de obra estrangeira, poderdo vender, posto que nao sejam de ouro dos ditos quilates que corre. E primeiro que as vendam as mostrarao aos juizes do seu oficio, para reverem a qualidade delas. E quando as venderem, sera por a lei do ouro de que as tais pegas forem. «J — Nem outrossim venderao pecas de prata, ou ouro a olho, senio a peso, nem faréo manilhas de prata ou ouro sobre outro metal algum, qual- quer que seja. 8" Mission de Phénice, p. 829. % Ibidem, p. 819. 130 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS «2 — E mandamos que ourives algum, ou outra alguma pessoa nao en- gaste nem ponha pedra alguma falsa ou contrafeita, assim como sao rubis, diamantes, esmeraldas, safiras, turquezas, balais, jacintos, pérolas, aljofar grosso ou mitido, nem outra alguma pedra em anel de ouro ou de prata, nem em outra coisa nem pega alguma. O que se nao entender nas coisas que the mandarem fazer para servigo das igrejas. «3~E quem fizer 0 contrario em cada um dos casos acima ditos, per- dera todos os seus bens, metade para a Arca da Piedade, e a outta para quem © acusar. «4—E nenhum ourives de ouro, ou de prata faga falsidade nas obras de ouro ou prata que fizer para vender metendo-lhes alguma liga porque a lei, bondade € valia do ouro ou prata seja abatida, nem metam nas obras, que Ihe mandarem fazer, mais baixo ouro ou prata do que os do- nos das obras mandarem. E qualquer que maliciosamente 0 contrério fizer, se a falsidade que tiver feita chegar 4 verdadeira valia de um marco de prata, morra por isso. E nao chegando a dita valia, seja degradado para sempre para o Brasil. E em cada um destes casos sua fazenda sera confiscada.» Por esta lei se descobre um tépico para conhecer os objectos da ourive- saria portuguesa, pela analogia com os quilates da moeda; além disso, a escola portuguesa era tao distinta na sua feigao, que para distinguir os ob- jectos estrangeiros, se apelava para o confronte da sua notoriedade. Nos objectos de ornato das igrejas é que era somente permitido o engaste de pedras falsas. Esta tiltima cldusula explica a extingao da ourivesaria religiosa, porque mostra que acabara essa crenga que inspirava Os artistas da Custédia de Belém, ou da oferecida Senhora da Oliveira. E nas provincias do norte que se conserva a tradicao industrial da ouri- vesaria, em S. Cosme, Valbom, Rio Tinto, Jovin, S. Pedro da Cova e Fanze- res, onde ainda existem varias oficinas. A situacdo desta industria acha-se curiosamente descrita no Relatério da subcomissdo do inquérito industrial de 1881: «Sao os concelhas de Gaia e Gondomar que se ocupam nesta indiis- tria local e histérica: — 0 foco industrial desta espécie é Gandomar. Todo 0 concelho, a excep¢do das freguesias serranas, possui mais ou menos oficinas onde trabalham operarios hospedados ¢ alimentados pelos patrées, ou ofi- ciais que trabalham domesticamente por tarefa e por conta dos mestres das oficinas.» Depois de definir bem a organizagao desta inddstria, continua: «Os oficiais que trabalham em suas casas recebem por pega. Fabricam prin- cipalmente corddo, ¢ a unidade da obra é 0 cordao de grossuras ordindrias com oito palmos de comprimento, cujo feitio é pago a razio de 320 réis. Cada operario pode fazer meio cordao por dia... A indtistria decai desde 1870 pela introdugo do oura francés. O ntimero dos ourives era ha dez anos triplo. Setecentas ou oitocentas pessoas foram expulsas pela concorrén- cia, indo trabalhar para os campos, emigrando muitas. Assim se despedagam gradualmente as pequenas indistrias hist6ricas € tradicionais, diminuindo os 1B TEOFILO BRAGA elementos da riqueza tradicional.» Além desta causa de decadéncia da ou- rivesaria, 0 autor do Relatério apresenta uma de cardcter social: «E a aitera- g40 dos habitos da populagao rural. As populagées primitivas entesouram sob a forma de alfaias de ouro, ¢ 0 Minho era ¢ ainda é um tipo curioso desta espécie. Mas ha maneira que as novas nogdes crematisticas vao en- trando no espirito do povo, as economias preferem empregos lucrativos.»® Para lutar com a bijuteria francesa, falta aos nossos operarios o essencial, ignoram o desenho, ¢ poucos sabem ler, e apenas haveis em reproduzir, os madelos estrangeiros, tém em seu favor a barateza dos salarios proveniente da sua organizagao doméstica. O ouro em que trabalham é fundido das anti- gas pecas do século Xvi ou de D. Joao V, das dguias americanas, ou de obras velhas. Na industria da prata, a organizagéo é a mesma que na do ouro; traba- lham em prata importada da Inglaterra e na dos pintos, hoje retirados da circulagio, e a oitava parte da sua produgao é destinada ao culto catélico e © restante A sumptuaria civil®. A serraiharia teve 0 seu esplendor no século Xvi, como se infere deste quadro tragado por Frutuoso: «A Justiga ¢ 0 Capitio (da Wha da Madeira) Ihe encarregaram (a Gaspar Borges) a arcabuzaria, € ensinou certos serra- Iheiros do Funchal a conserté-la. Ensinou a todos os serralheitos da cidade de Ponta Delgada 0 concerto e feitio da arcabuzaria e armas, tanto que 0 que dele nao aprendeu nao as sabe bem fazer, como é € notorio. Fez as ba- langas da alfandega desta ilha e da Terceira, que so pecas reais e de grande desengano ... Fez 0 relégio da cidade e de Vila Franca, e renovou 0 da Ribeira Grande, tudo em baixos pregos a respeito da delicad2 obra que fez ... Fez alguns ferros de hésticas ... 0 que cumpre de armas, espingardas novas, assim de pederneira como de fogo; grades para a alfindega e para a capela do Santo Sacramento da vila da Ribeira Grande, que nao acabou e outras obras ... e contudo vive pobre, tendo tao rico engenho.»™ No Relaté- rio do Inquérito industria! de 1881 lé-se também: «Em torno do Porto, nos concelhos de Bougas e de Gaia, vé-se ainda o resto das antigas Ferrarias, jé de todo extintas no da Maia»®; «na Pévoa repara as ferragens dos barcos, por toda a parte as alfaias agricolas e os acessérios da construgao de casas. Em Penafiel © cardcter da ferraria é também este, mas ja foi outro. Ainda resta uma velha oficina, onde trabalham dois homens no fabrico de candeias de ferro estanhadas, de que outrora se fazia uma exportagao importante pa- ra 0 Brasil. — Porque morreu esta pequena industria? Porque essas antigas candeias passaram de moda, especialmente depois da introdugao do petré- ®' Relatério, pp. 51 © 52. * Relatério, p. 357. % Tbidem, p. 359. ™ Saudades da Terra, p. 294 % Relatério, prdlogo. 132 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS leo. — A causa do atrofiamento da antiga industria do prego no concelho da Maia é outra. Véem-se ainda hoje ao longo da estrada de Braga, fechadas, arruinando-se, as numerosas casinhas dos antigos ferreiros condenados pela concorréncia do prego de arame fabricado mecanicamente em Lisboa ¢ no Porto, etc.» «As oficinas de prego batido e de fechaduras de Gaya estdo jocalizadas ao sul do concelho, na Bandeira, no Padrao, no Marco, e em Avintes hé trés que funcionam exclusivamente para a exportagio. Pequenas ¢ miseraveis oficinas, os mestres recebem a matéria-prima da mao dos nego- ciantes do Porto, aos quais vendem o produto depois de fabricado: existe nas condigdes tipicas da pequena industria.» °” Um dos caracteres do povo portugués € a habilidade com que trabalha a pedra; escreve Hautford: «Merece especial mengao a maneira como em Portugal trabalham a pedra produzida neste pais. Nenhum outro possui melhores materiais pata as construgdes. Esta pedra é calcdria, é 0 mérmore nobre de Linneo. A pericia dos habitantes para a lavrarem é pouco vulgar, ¢ as obras que saiem das suas mos sao de uma perfeigéo admiravel.» % Com- provaremos esta observacdo por estas palavras de um director da Academia de Belas Artes de Lisboa: «Os nossos operdrios foram sempre tidos na conta de mui habeis canteiros e ourives, e com eftito é inexcedivel a perfei- go com que sabem reproduzir os modelos que thes séo apresentados. Na execucao sic admirdveis, e todas as vezes que se trata de levar a cabo uma obra para que tenham bons modelos, podem os seus produtos correr pare- Ihas com os de qualquer outra nagao. O caso porém é diferente, quando se the pede algum trabalho original, quando se the pede nao sé que reprodu- zam sendo que inventem quando Ihes falta um guia seguro para o que respeita & concepgao. A razao deste fendmeno é facil de encontrar. Os ope- rérios portugueses tém boa educagao técnica, mas nao a tém artistica; e esta falta € por tal forma importante, que Ihes nao valem sua natural propensio ¢ facilidade para suprir 0 que !hes nao deu o estudo.»%® A primeira influéncia a que obedeceu a industria da construgao foi fran- cesa; ainda num documento de S$. Tiago de Coimbra, de 1324, as paredes de taipa eram chamadas muro francés, como o notou Viterbo; as descobertas maritimas actuaram directamente sobre 0 tipo da construcao civil, como ob- servou Azurara, «e as grandes alturas das casas, que se VAO a0 céu, que se fizeram com a madeira daquelas partes» . Os portugueses que regressam do Brasil com os seus capitais tm modificado também as formas da construgao, como se reconhece no Relatério do Inquérito industrial de 1881: «O conce- Iho de Felgueiras, por exemplo, onde a abundancia de capitais dos tepatria- % Ibidem, p. 29. " Ibidem, p.31 “ Coup d’oeil sur Lisbonne et Madrid en 1814, p. 13 " Observacées sobre o Acnsal Estudo do Ensino das Belas-Artes em Portugal, p. 39. ‘% Crénica da Conquista da Guiné, p. 14, Ed. Paris, 133 TEOFILO BRAGA dos € tanta... aparece mosqueado de verdadeiros palécios bordando as estradas.» !°! Os costumes e forma do trabalho sao primitivos: «O operario dos arrabaldes (do Porto) vem aos bandos a segunda-feira de madrugada, carregado com a saca onde traz a broa para toda a semana: vive durante ela arranchando pelas obras a0 caldo, € ao sdbado regressa a passar 0 domingo em casa com a familia, que entretanto cuida da lavoura e da engorda dos bois. Em parte os operarios so também lavradores, pequenos proprietérios, as economias do saldrio consolidam-se na terra. Ler ndo sabem, em geral, nem tém rudimentos sequer das artes do desenho: copiam com certa habili- dade os modelos tradicionais, e trabalham sob 0 comando dos mestres-de- -obras que ou dirigem as construgdes por conta de seus donos ou as tomam de empreitada. O mestre, formada a sua turma de carpinteiros ou pedreiros, procura o trabalho para conservar esses que sao e ficam como seus clientes, e do salario de cada um cobra 40 réis, além do que mete em conta ao proprietario como jornal dos aprendizes, a quem nada paga. E um regime de trabalho primitivo, em que o operério paga um prémio excessivo a quem Ihe angaria trabalho, e no qual a aprendizagem é brutal, impedindo as crian- gas de aprenderem as primeiras letras.» * Precisamos mais uma vez trans- crever as préprias palavras do Relatério oficial, para definir o cardcter tradi- cional da industria construtora, e que diferencia as duas regides portuguesas: «O sistema diverso das construgdes faz com que a natureza do trabalho dos oficios de pedreiro e estucador seja diferente no norte e no sul do reino. Na regiado dos granitos os muros fazem-se ordinariamente com paralelipipedos, mais ou menos regulares, que vém desbastados das pedreiras e so assentes em fiadas que o operario cimenta com argamassa: no Porto e seus arredores sob 0 nome de perpeantio usa-se de lages que tém em regra 0,28 m de espessura, ¢ com as quais se levantam panos de muro de casas de trés ¢ quatro andares. A construcdo das paredes é mais simples e mais facil do que no sul, onde se necessita estudar o assentamento de cada pedra, de dimen- sdes € formas varidveis; mas 0 pedreiro do norte é a0 mesmo tempo cantei- ro, isto é, lavra a pedra das vergas e umbreiras, das cornijas e mais adornos das casas, trabalho que nos calcarios do sul compete a um oficio particular. No sul é 0 pedreiro que enche e reboca os muros que fez; aqui (norte) esse trabalho compete ao trolha ou estucador, que, depois de encher com arga- massa, guarnece de cal fina ou gesso nos tectos. Assim a construgao empre- ga no sul pedreiros, canteiros ¢ estucadores; no norte s6 pedreiros e tro- Ihas. — Mas a pedra que vem para as obras, chega jé aparethada de modo que entra directamente na construgdo dos muros, se é destinada a eles, ou carece apenas de ser acabada se é destinada a vergas, umbreiras, cunhais ou cornijas isto € 0 que se chama esquadria. Esse primeiro aparetho da pedra é © oficio dos chamados montantes que trabalham nas pedreiras de onde se 2! Op. cit, p. 26 " Relatorio, p. 27 134 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS. abastece a cidade.» Além desta organizacao e forma do trabalho, existem costumes particulares da classe, tais como esconder as ferramentas na obra ao sbado, quando retiram os operdrios; nao as levam consigo, para que a obra ndo fique interrompida. Em Lisboa, assim que se acabou de armar a gaiola de madeira para se revestir de magame, langam-se foguetes, embandeira-se tudo, ¢ d4-se um beberete aos operdrios; é ao que se chama colocar © pdo de fileira. Tanto no norte como no sul de Portugal os estuca- dores vém de Afife ¢ de Viana. Cabe tratarmos aqui das formas tradicionais da construgiio naval; Azura- a fala no Barinel**, do qual ainda no século xvii dizia D. Francisco Ma- nuel de Melo: «Era uma embarcagdo de remo, que entéio se usava, cujo nome ainda retemos nas Varinas subtis, de que hoje nos servimos.» 195 Na ria de Aveiro, usam-se os barcos moliceiros «construgses obesas, de proa e ré contraidas € que servem para o transporte das algas impropria- mente chamadas moligo, pois que elas nao podem servir para as palhogas e constituem apenas um riquissimo adubo para a agricultura, etc, — Estes barcos aparecem por centenas na sua feira (25 de Margo) sarapintados na popa e proa com pessoas reais e animais disformes» !%, Diz 0 Relatério do Inquérito Industrial de 1881: «A construgao naval pode dizer-se extinta: os estaleiros de Vila do Conde, do Porto, de Gaia, ndo tém a quilha de um navio; — ¢ a cabotagem e a pesca que alimentam esses operdrios. Os construtores de Vila do Conde sumiram-se; uns traba- ham nos campos, outros emigraram para o Brasil. — A decadéncia da mari- nha € a da construgao naval, porque os dois factos sio correlativos, etc.» #7 A cordoaria apenas se conserva na Pévoa de Varzim por causa das pes- carias. Os trabathos da carpintaria levam-nos a falar da indistria da louca de pau, da qual j4 no século xvi escrevia Frutuoso, referindo-se 4 habilidade dos habitantes da ilha da Madeira: «Em muitas partes desta ilha produziu a natureza muitos dragoeiros do tronco dos quais se faz muita louga, e muitos so tdo grossos que se fabricam de um s6 pau barcos, que hoje em dia ha, que sao capazes de seis ou sete homens, que vao pescar neles; e gamelas que levam um moio de trigo.» "* No Minho ainda se conservam estes costu- mes na fabricagio de concas, maceiras e pds para as eiras, socos ou taman- cos. Lé-se num estudo sobre a Reforma do Ensino das Belas-Artes: «Todos 0s que viveram em Coimbra conhecem a habilidade dos filhos da terra nos trabalhos de escultura em madeira; essa aptido natural pode e deve servir ™ Relatério, p. 373 ™ Crdn., p. 59 "= Epanapharas, pp. 317 ¢ seg "8 Carlos Faria, Folhetim no Povo Portugués, da Guarda. ™" Relatério, p. 34. ‘= Saudades da Terra, p. 50. 135 TEOFILO BRAGA para alguma coisa mais do que fazer palitos mais ou menos frisados. E igual mente triste ver 0 modo como nas localidades do Minho 0s operarios malba- ratam a sua natural habilidade na escultura em madeira, cortando dentro de uma garrafa de vidro estreito uns castelos fantésticos de madeira, que séo abortos de uma fantasia artistica inculta.» "A indistria dos marchetados € obras de vime da ilha da Madeira, que hoje sai da sua estreiteza local, j4 nos aparece celebrada no século Xvi: «E nas faldas da serra, da banda do sul, muita giesta, que é mato baixo como urzes, que dé flor amarela, de que gastam nos fornos, e dela se colhe a verga, que esburgam como vimes, de que se fazem cestos brancos mui galantes e frescos para servigo de mesa e oferta de baptismos e outras coisas, por serem mui alvas e limpas, e se vendem para muitas partes fora da ilha e do reino de Portugal, porque se fazem muitas invengdes de cestos mui polidos e custosos, armando-se 3s vezes sobre um, dez e doze diversos, ficando todos juntos em uma peca 6; e para se fazerem mais alvos do que a verga é de sua natureza, ainda que muito branca, se defumam com enxofre.» #° Na Viagem a Portugal de Tron e Lippomani, em 1580, jd se elogia a habilidade dos artistas portugueses para 0 torno: «Trabalham delicadamente ao torno, em que fazem guarda- -s6is de barba de baleia, obra acabada, ¢ cocos lavrados a modo de tacas com “embutidos de madeira do Brasil. Vasos de estanho e mais objectos deste metal se fabricam abundantemente, e se carregam para a India, onde dao grande lucro.» Este tipo de guarda-sol ainda se conserva no Minho. A indiistria do barro € a que conserva no seu tipo tradicional o carécter de um importantissimo documento étnico; Viterbo cita um documento de Penacova de 1192, em que a palavra infusa tem ainda o sentido actual: «Era a infusa, como hoje, um vaso de barro.com igual disposig4o para servir a Agua e ao vinho, e sem determinada grandeza.» Os puicaros de Estremoz j4 eram citados no século xvi pelos viajantes estrangeiros; na Relacdo da Viagem do Cardeal Alexandrino em 1571 lé-se: «Sobre a mesa estava sem- pre um grande vaso de prata, cheio de agua, do qual se deitava em um jarro, chamado na lingua portuguesa puicaro, do feitio de uma urna anti de altura de um palmo, e feito de certo barro vermelho, subtilissimo e ht dio, que chamavam barro de Estremoz, pelo que el-rei bebeu seis vezes.» Madame d’Aulnoy, na sua Viagem a Espanha, fala destes pucarinhos nota- dos pela sua porosidade™, que produz pela vaporizacdo a frescura da 4gua A louca preta que se consome nos campos produzida nos fornos de Baio e de Gaia 4 Reforma cit, p. 197. 40 Frutuoso, Saudades da Terra, p. 106. ™ all semble quelle (I'eau) bouille quand elle est dedans, au moins on la voit agitée, et qui frissone (je ne sais si cela se peut dire), mais quand on I'y la laisse un peu de temps, la tasse se vuide, tant cette terre est poreuse; elle sent fort bien.» Camédes, na sua primeira Carta da India, diz das damas que «chiam mais do que pucarinko novo». 136 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS Na Revista de Instrugao, do Porto, lé-se acerca de ceramica nacional: «Em Coimbra conservou-se tradicionalmente 0 fabrico de uma faianga bara- ta, popular, cuja ornamentagao é sumamente caracteristica. O barro é de boa qualidade, o esmalte delgado, bastante claro, e funde-se bem com a massa; a cozedura é satisfat6ria, porque a louga dé um toque metélico, as cores Sao vivas, resistentes e bastante variadas, numa palavra: o produto agrada; ... Para 0 arquedlogo essa louga de Coimbra tem um valor especial, porque é a unica faianca nacional que representa hoje claramente a tradicao oriental, ¢ diremos, particularmente a influéncia do estilo arabe. Se fossemos aescolher entre os estilos do Oriente, diriamos que é a arte persa popular a que tem com a arte de oleiro de Coimbra maior semelhanga. FE sabida a intima ligacdo que existe entre 0 estilo persa e 0 estilo hispano-arabe da Wdade Média; isto é corrente para aqueles que estudam a histéria da Arte, mas neste lugar convém acentuar a ligagao, para que nao haja diividas. Nao deve admirar esta remota afinidade através dos séculos ¢ dos mares, quando na olasia das aldeias, tanto na Jouga preta como na vermelha tosca (nao vidrada), achamos formas de vasilhame © mativos de ormamentacéo pura- mente pré-historicos € que poderiam ter sido achados tanto nas habitagdes lacustres da Suica, como na Asia Menor, como na Bretanha ou Escandiné- via. — Essa pintura da louga de Coimbra, simutando penas e penachos de aves raras, de plumagem aveludada, deslumbrante, de caudas de pavo, tra- gadas sobre um fundo formado por grandes fetos verdes, produz um efeito tio singular, dé a louga um aspecto tao arcaico, tio caracteristico, que € impossivel confundi-la com a de outra qualquer regiao.» ¥#? © historiador francés Henri Martin, ao visitar Portugal pela ocasido do Congresso Antropoldgico de 1880, descreve nama das suas cartas o nosso génio colorista a propésito do aspecto das casas: «O pitoresco aspecto nao esté so na grandeza e na diversidade dos locais, esté também na decorago destas elevadas casas brancas, muitas delas revestidas de (azulejo) faiangas azul-claro, com tabuinhas verdes, beirais e telhados encarnados. Este povo é colorista por instinto; nos campos as mulheres e as raparigas, quando se juntam, agrupam as cores vistosas ¢ variegadas dos seus trajos com uma harmonia que poupava a qualquer pintor 0 trabalho de compor 0 seu qua- dro, B singular coisa, que um pove que neste grao tem o sentimento da cor, nio possua escola de pintura, ele, tao vizinho da grande arte de Andaluzia.» Ao tratarmos da ourivesaria j4 caracterizémos uma das formas de arte popu- lar; 0 trabalho dos azulejos é a transigao da industria para a invengdo artist ca, € provém das mais remotas orientagdes das racas peninsulares. As civili- zagdes da Mesopotamia empregaram o tijolo esmaltado para o revestimento dos seus muros, como em Erek, com cores vermelha, branca e negra; sabe- -se que a liga do bronze dos povos hispanicos era igual da civilizagio da Caldeia, e que um ramo ibérico veio da Asia Ocidental através da Africa até "J. de Vasconcelos, Revista da Sociedade de Instrucao, t. 10, p. 379. 137 TEOFILO BRAGA entrar na Espanha. Aqui temos estabelecida a linha de continuidade, pela qual se pode explicar 0 desenvolvimento exclusivo que teve a ornamentagio dos azulejos na Espanha, logo com o primeiro contacto com os Arabes, ¢ 3 sua invencivel persisténcia depois de terminada a reconquista crista. As ca- sas, 05 templos, as colunas, em tudo se empregava o azulejo segundo o gosto mauresco, como um luxo proprio da gente abastada; donde vem o ditado espanhol, aplicado por Sancho a um individuo pobre: No hara casa con azu- lejos. No seu livro sobre as Artes em Portugal, Raczynski escrevia em 1845: «Os azulejos constituem em parte a fisionomia de Portugal. — Ha poucas igrejas, poucas casas que os nao tenham. Umas vezes circundam as portas dos edificios, outras vezes ornam os vestibulos © as escadarias. Na maior parte das casas, mesmo nas mais pobres, as paredes interiores so guarnec: das deles até a altura de trés pés ou mais. Ha casas que sao revestidas exteriormente desde a sua base até ao tecto.» Os azulejos antigos, como observa Ceuteneer, sao caracterizados pelo seu reflexo metélico, sendo o mais vermelho das fabricas de Valéncia e Maiorca, e os mais dourados da Andaluzia formam 0 tipo hispano-mauresco. Depois temos 0 azulejo em ca- mafeu, em que predomina a cor azul sobre fundo branco, dos séculos xvile Xviil; desta categoria diz Raczynski: «Os mais belos azulejos sao aqueles que pertencem aos séculos XVII € XVIII, ¢ que representam cagadas, assuntos sagrados, factos referentes & histéria de Portugal, cenas campestres, paisa- gens, vasos de flores, arabescos, ormamentos arquitecténicos da época de Le Notre. Estes assuntos sao muitas vezes tratados com talento.» Os azulejos em que predomina a cor amarela so os que se consideram fabricados sob a influéncia italiana. O gosto do reflexo metalico foi decaindo com a influén- cia arabe, ou mudéjar. conservando-se até ao século XVII, em que a Pragmé: tica Real de 1566 proibiu em Espanha o trabalhar a mourisca’™, Compreende-se como num pais catélico, € sob a intolerancia da Inquisigio, s€ Operasse esta revolugdo repentina no gosto. ¢ em Portugal se imitasse a faianga holaadesa, como na Espanha se imitava o estilo italiano. Diz Ceule- neer: «Os melhores azulejos, no género holandés, datam em Portugal do XVII XVIII séculos. O funda é branco e o desenho em camafeu é de um brilho azul-ferrete: alguns destes azulejos tem uma cor violeta, como nos corredores do Convento de Cristo de Tomar. A principio estes azulejos vinbam de Delft: até que se comegaram a fabricar em Portugal. — Foram mais longe que os Holandeses. Nao se contentaram em fazer azulejos oma- dos de alguns pequenos desenhos, mas quiseram produzir verdadeiros qua- dros de faianga. — Estes quadros sao muito mais raros em Espanha do que em Portugal. — Os azulejos em relevo sip sobretudo vulgarissimos em Portugal: © actualmente ainda em Lisboa. Porto e outras localidades as fachadas das casas sao revestidas com estas faiangas. O ornato que nelas s¢ 88 Op. cit. p. 427 "8 Ceulencer. Le Portugal, pp. 55 € 56. 138 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS encontra mais frequentemente é 0 cacho de uvas, ¢ as cores dominantes so o amarelo € 0 verde. Estes produtos s4o em geral de uma produgio pouco esmerada, e de um valor artistico relativo; porém, esta policromia dé as casas um cunho e aparéncia de alegria ...» ¥ Vé-se que 0 periodo de flores- céncia da ceramica dos azulejos coincidiu com a influéncia holandesa, que tantas relagdes tinha com a arte antiga de Portugal; desde que a influéncia italiana entrou c4 tardiamente, acabaram essas cores vivas que consolam a vista, predominando o verde e 0 amarelo, ¢ extinguindo-se as composigées largas da pintura mural 8, (© mosaico, transformado pelos Arabes em azulejo, recebeu também em Portugal uma forma caracteristica, a que se chama Embrexados, dos quais escreveu o visconde de Juromenha: «...que se compde de pedrinhas de diversas cores, misturadas com conchas € cacos de faianga. Também se em- pregavam os embrexados para ornar com eles os muros, as fontes, as salas de jantar, os refeitérios, etc.» As industrias locais acham-se também reforcadas por notaveis indiistrias caseiras; sobre este ponto observa o Sr. Vasconcelos, entre a extraordindria actividade das provincias do Douro e Minho: «Guimaraes com a sua ourive- saria e os seus magnificos linhos, © seu belissimo aco; ... Faro, ha ali uma indastria unica no pafs, e de grande futuro: a dos tecidos de crina, nao falan- do na das rendas de Olhao ¢ outros pontos. — A ilha da Madeira e as dos ‘Agores (Angra) florescem ali numerosas indiistrias caseiras, que se podem transformar facilmente em indiistrias de concorréncia; citaremos somente as indistrias de vime e junco, dos tecidos de palha, das rendas ¢ bordados, das madeiras intarsiadas (embutidas), das flores de penas e de cera, etc.» No Minho séo muito gerais os teares, em que se tecem os panos de linho, os bragais, e dali o singular fenémeno de abandonarem os trabalhadores do campo a tabutagao da lavoura pela tecelagem dos cotins. As racas pré- -célticas do Ocidente da Europa distinguiam-se pela sua grande habilidade para a tecelagem; Plinio (xxx, 2) enumera entre os tecidos mais estimados, que’suplantavam os dos Romanos, os fabricados pelos Cardiicios, pelos Ru- tenos, pelos Bituriges, pelos Caletes e pelos Morins"®; entre os nomes anti- gos dos panos, temos ainda 0 cadarco, 0 cadoxo, as rotinas, as baetas, as chitas ¢ 0S morins que coincidem com estes nomes de povos. O asseio de 43 bidem, p. 59. hsNum estudo sobre a pintura moderna em Lisboa, Ramatho Ortigio lamenta: «... que do deploravelmente se houvesse quebrado no século Xvi, juntamente comm a nossa tradigéo mariti- ma ¢ comercial, a nossa tradigao de arte tao estreitamente ligada a tradigao flamenge no tempo de Van Eyck e de Francisco de Holanda, de Joao Flamengo e de Grao Vasco, tnica época da nossa histéria em que a pintura nacional teve o seu clardo no mundo.» Revista de Esudos Livres, 4.1, p. 540. "Ap. Raczynski, Les Arts en Portugal, p. 429. "A Reforma do Ensino das Belas-Artes, p. 194. ™ Belloguet, Ethnogénie gauloise, p. 482 139 TEOFILO BRAGA uma casa ainda hoje entre 0 povo consiste na abundancia das roupas bran- cas, e em ter na arca teias de linho. Na sua viagem a Espanha, Mme de Aulnoy observou este mesmo facto: «E preciso que me nao esqueca dizer- -vos que se ndo pode achar linho mais belo do que o que se tece neste pais (Bayona) — a teia é feita de um fio mais fino que os cabelos, € 0 belo linho € ali to comum que toco nisto acidentalmente.» J4 no século Xvi, na relacdo da viagem a Portugal de Tron ¢ Lippomani, se citavam os panos portugueses pela sua superioridade: «As telas portuguesas sao na verdade belas; algumas chamadas casiquino, mui alvas e finas, ¢ alguns lengéis 4 mourisca, que s40 baratos e lindos.» Alguns desses panos acham-se citados nos forais antigos e emprazamentos com o nome de Bragal, e da sua persis- téncia diz Viterbo: «Na Beira ¢ Trés-os-Montes ainda hoje chamam Bragal a um pano de linho grosso atravessado com muitos cordées.» Da habilidade de mios das mulheres fala também mo século xvi Frutuoso, indicando a causa do vigor das indistrias caseiras: «Esquisitos manjares de toda a sorte como os sabem fazer as delicadas mulheres da ilha da Madeira, que, além de serem mui bem assombradas, mui formosas € discretas e virtuosas, sio extremadas na perfeigdo deles, e em todas as invengdes de ricas coisas que fazem nao téo-somente em panos com polidos lavores, mas também em agii- car com delicadas frutas.» 12" Da manufactura do linho, lé-se no Relatério do Inquérito de 1881: «E esta uma das industrias mais gerais e mais caracteristicas de todo o Minho. Nao hé concelho do distrito do Porto onde mais ou menos se nao cultive, se nao amasse, se nao fie € se nao teca 0 linho. — Ha cerca de duzentos teares, especialmente nas freguesias de S. Cosme ¢ Fanzeres, distribuidos pelas ca- sas; e além dos panos lisos, ou dos atoalhados, tecem-se riscados tintos e cobertas de um tipo caracteristico em que a la de varias cores entra como ‘ornato em desenhos mais ou menos barbaros.» " Em Gondomar e Penafiel esta industria caseira ja se alargou em oficinas, tendo entrado num periodo de concorréncia de que decaiu haverd dez anos. A fiandeira do algodio desenvolveu-se na Maia e em Bougas, tormando-se a sua tecelagem uma pequena industria local dos cotins riscados*. Em Santo Tirso «fabricam as baetas carricas, de um uso local tradicional» ". Na Pévoa e em Felguei- ras tecem-se «mantas para a gente do campo». As camisolas de malha de la grossa dos marinheiros e camponeses que se produziam em Bougas ainda sdo objecto de uma industria doméstica em Vila do Conde, onde se mantém a inddstria das rendas, definhada com a decadéncia da navegacio. As rendas ainda sao uma forma da actividade doméstica em Vila do Conde e Azurara, ® Op. cit. p.S "! Saudades da Terra, p. 200. Relatorio, p. 44 Ibidem, p. 48 Ibidem, p. 47 140 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS sustentando-se por causa da bela linha de Guimaries, e pelo comércio de mulheres que as exportam para o Brasil e as vendem pelas portas. Os costu- mes domésticos da fiacdo € da tecelagem acham-se determinados desde os tempos mais antigos da nossa nacionalidade; no Cancioneiro da Vaticana le-se: Sédia {a fremosa seu fuso torcendo, sa voz manselinha fremosa dizendo cantigas de amor. (Cang. n° 321.) Vy boas donas laurar e tecer cordas & cintas, nem as vy teer berc’ant’ o fogo a dona muy honrada,... (Canc. 786.) A inddstria das las anda ligada a actividade pastoral e as suas qualidades sio também caracteristicas em cada provincia, segundo as racas ovidias que ai estacionam; elas apresentam as qualidades tipicas das trés variedades de carneiros portugueses, dividindo-se em 14s merinas, feltreiras e longais, co- muns as las brancas e pretas, As las brancas apresentam as seis qualidades merino fino, entrefino, ordindrio, grosseiro, feltroso ordindrio e entrefino, en- tremerino e longal-lustrino, todas do tipo merino. Ao tipo feltreiro perten- cem as qualidades feltreiro ordindrio, entrefino e fino; ao tipo longal perten- cem 0 longal lustrino, simples ¢ feltroso, € 0 longal churro, simples ¢ feltro- so. Nas las pretas também hd divisdes especiais segundo os trés tipos; a0 merino. pertencem as qualidades do merino entre simples fino, surrubeca e mesclado; merino ordindrio simples, crespao e feltroso, merino grosseiro. Ao tipo feltreiro pertencem o feltreiro entrefino simples, altoso e mesclado, feltreiro ordindrio simples, mesclado e altoso; entrefeltreiro e merino. Ao ti- po longal pertencem o entrelongal ¢ merino, ordindrio € grosseiro, longal, lustrino feltroso © longal churro feltroso™’. A la suja (churdo e lurdo) ou com-suarda de Trés-os-Montes lava-se em Agua para a exportago; a do Alentejo lava-se com urina ou soda (ou sugarda)'* e secam-na em ramblas. A industria da seda tem em algumas provincias a forma doméstica, criando-se 0 bicho e vendendo-se 0 casulo as rasas; florescente no tempo da administragao do marqués de Pombal, «foi rapidamente decrescendo até chegar ao estado em que hoje se acha, permanecendo a cultura reduzida quase as provincias de Trds-os-Montes ¢ das Beiras, e ai bastante decadente agora em resultado da moléstia que atacou o sirgo, etc.» #” "5 A.J. Teixeira, Relatério do Conselho Geral das Alfandegas, em 1876 € 1877, p. 41 "8 Relatério da Subcomissdo do Inquérito, p. 323. 4 A. J. Teixeira, op. cit, p-43. 141 TEOFILO BRAGA Em Santo Tirso e Penafiel refina-se a cera; em Pacos de Ferreira, na freguesia da Carvalhosa, fabricam-se as crocas ou palhocas; em Penafiel, as chancas ou tamancos; no concelho de Pagos de Ferreira, os fiusos. A fabrica- go do pao é ainda nas provincias uma industria cascira, tornando-se jé fabril no concelho de Gaia, do Marco e de Valongo, ¢ como emprego de mulheres; governar 0 pao consiste em peneiré-lo e amass4-lo; quando come- ga a fermentago da massa, diz-se que est finto ov levedo, tendo-se-lhe previamente feito trés cruzes na massa, com as seguintes f6rmulas: 2 primeira cruz: O Senhor te acrescente, O Senhor te levede. @ segunda: S40 Mamede Te levede. 0 Vicente Te acrescente @ terceira: Do fermento que se mete na massa fez 0 povo a entidade Sao Crescent € nos Agores chama-se-lhe 0 crescente; 0 Sr. Leite de Vasconcelos, descre- vendo os costumes supersticiosos ligados a cozedura do pao, cita uma for- mula italiana andloga a nossa: Pani, crisci, Come Diu ti binidissi; Crisci, pani, ‘ute Ja farnu Comu Diu crisciu a tu munno. Se a massa nao leveda, pde-se-lhe em cima um rosdrio ou roupa de homem, ou passa-se com um tigao por cima; para que a massa nao azede mete-se uma faca na cruz, ou um copo de Agua; © bolo que se faz da massa das rapaduras chama-se neto ou brindeiro, e costuma dar-se as criangas Quando ha forno comum numa terra o homem que trabaiha nele recede uma poia (Tabuago) ou pao que the é destinado em cada fornada. Vejamos agora o tipo tradicional do pequeno comércio que é coexistente com a pequena industria: as Feiras andam correlacionadas com certos dias da semana e com as festas religiosas do ano. Os nomes dos dias da semana perderam em Portugal a sua designacio politeista: apenas se encontra dia martes em uma poesia de Luis de Azeve- do, do meado do século xv; sob a pressio catélica ficou-se chamando por férias, derivado das rezas canénicas. Os mercados permanentes € os anuais também se chamam feiras; fazem-se por ocasiéo dos ajuntamentos populares "8 Tradigbes populares de Portugal. p. 230. 142 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS nas férias religiosas de comemoragdo de templos ou dos patronos, ou da exposigéo de reliquias; numa feira de Coimbra, no Campo de Santa Clara, era a abadessa que vinha almotagar os g€neros, como se usava em muitas feiras de Franga. Diz o abade Corblet na sua Notice historique sur la Foire de la Saint Jean, @ Amiens: «O aniversario da dedicacao das igrejas, as festas patronais das mosteiros e das paréquias, 0 culto de certas reliquias venera- das, atraiam anualmente uma grande afluéncia de fiéis a certas localidades. Os mercadores eram ali atraidos pela esperanca de uma venda facil, e as festas da igreja, como diz S. Basilio, tornavam-se para de logo festas de comércio ... Quando se conhece a origem religiosa das Feiras, nao ha que admirar ver a Igreja representar nelas uma parte tao importante durante 0 curso da Idade Média. Em Rudo a abertura da feira era inaugurada pelo prior ¢ pelos religiosos de Notre Dame. Na feira de St. Germain dizia-se missa todas as manhas ...» Isto mesmo se vé em Portugal ainda agora; as feiras so sempre por ocasiao de festas de santos, como de S. Bartolomeu, em Coimbra, ou da Agonia em Viana do Castelo. O Auto da Feira, de Gil Vicente, é neste ponto curiosissimo para a histéria dos costumes portugue- ses. No Auto de Mofina Mendes, Gi\ Vicente fala na Feira de Trancoso, ¢ num documento de 1395, em que D. Jodo I concede uma feira franca em 15 de Maio a Torre de Mem Corvo, diz-se af com os privilégios da Feira de Trancoso; no século xit! jé existia a feira franca anual de Moncorvo quinze dias antes da Pascoa ¢ quinze dias depois para pao, gados ¢ marchandias ™® Uma feira tradicional, destinada &s coisas velhas, é a da Ladra, em Lisboa, da qual escrevia no século xvit Serrao de Castro: Se essa pobreza que tem Tanto, ratinhos vos quadra, Para que a Feira da Ladra Vos dela fazeis também? ™° Transcrevemos aqui algumas linhas que pintam esta feigéo do comércio local: «A Feira de Margo é o grande acontecimento anual desta localidade (Aveiro). E a exposicao do que Guimaraes dé em bons e duradoiros guarda- napos, do que Braga produz em espantosos ¢ invenciveis tamancos e guarda- -chuvas, do que Penafiel inventa em albardas com as respectivas retrancas, do que as némadas lojas de capela e quinquilharias contém de mais avariado e vendavel. — Ea tinica época em que as familias convivem e conversam na tua, em que saem diariamente e em que se vestem desafectadamente com as melhores roupagens. — A 19, no muito catélica, técnico e alusivo dia de "Viterbo, Elucid., vb.° AGINHA. +" Raios da Inquisicao, . 125. 143 TEOFILO BRAGA S. José, ha a Feira de madeira de pinho, carvalho € castanho © de charruas, arados e cabegalhos, 0 que tudo representa uns trés contos de contratos pecunidrios. A 25 faz-se a venda de barcos moliceiros...» “! Ha também as feiras especiais de porcos, de gado, de milho, ¢ no Porto a feira dos mogos todas as tergas-feiras de Abril em que se contratam os criados para a lavou- ra. Nao levamos mais longe estas indicacdes, porque nos parecem jé bastan- tes para se determinar a feigéo da actividade local. Gil Vicente alude ao cardcter festivo das feiras Eu no vejo aqui cantar Nem gaita, nem tamboril E outros folgores mil Que nas feiras soem de estar. (Obr, t1, p. 175.) Na sua actividade, em geral, 0 homem do povo pouco confia na eficécia do trabalho e da economia; cré na entidade da fortuna, da sorte, ou de qualquer poder magico, ¢ procura obter o seu favor. E por isso que em todos os processos do trabalho se encontram superstigGes ou agouros, prati- cados para alcangar um bom resultado. A planta do jarro indica se 0 ano sera estéri] ou abundante (Ucanha); a Erva de Nossa Senhora, apanhada no dia de S, Joao, conserva-se sempre verde como sinal de ser feliz a pessoa por cuja sorte foi colhida; a Feitelha, ou o feto-real colhido & meia-noite em ponto na festa de S. Jodo, dé aquele que o apanhou todas as venturas que desejar. A mesma virtude se atribui & erva moliana, & qual Gil Vicente alude entre as cantigas da Rubena. Colhida esta planta, dispée-se num vaso onde se deitaré um pedacinho de ouro, outro de prata e outro de cobre; todos os dias quando o individuo se levantar da cama deve ir saudar a erva moliana (nos Agores diz-se: Cantar a moliana) com a seguinte oracdo: Deus te salve, moliana, Onde Nosso Senhor Jesus Cristo Pés os pés e fez a cama, Assim como Nosso Senhor Te encheu de verdura, Assim tu me enchas de fortuna No comprar € no vender, E em todos os negécios Que eu pretender fazer; '3" Carlos Faria, Fothetim, cit. 144 AS INDUSTRIAS LOCAIS E TRADICIONAIS Assim como te eu dei prata e cobre, Assim tu me dés ouro Para eu dar esmola ao pobre. Enquanto a erva se conservar verde hi felicidade na casa; quem tiver a ‘moliana e a der a alguém perde a sua fortuna. Os dias da semana tém certas virtudes especiais, como determinadas horas do dia (das onze para a meia- noite, pino do meio-dia) € como os meses no ultimo dia, Neste estado de espitite a actividade do homem do povo est subordinada a uma disciplina afectiva de agouros, de esconjuros de superstigoes, que torna quase neces- séria uma classe de pessoas de virtude que © dirijam nesse dédalo da creduli- dade. A falta de confianga nos préprios recursos faz com que a major parte das vezes se iluda 0 trabalho, ou se aproveite primeiro pretexto para a ociosidade. Na parlenda dos dias da Semana da mulher preguicosa, de Tras- -0s-Montes, diz-se: Na segunda me eu deito, Na terca me levanto, Na quarta é dia santo; Na quinta vou para a feira Na sexta venho da feira, Sébado vou-me confessar Domingo vou comungar, Diz-me agora comadrinha Quando hei-de trabalhar? ** "= Z. Pedraso, Superstigdes Populares, n.° 595, no Positvismo, —- Esta mesma erenga se aplica também a0 Azevinho, que s€ borrifa com vinho no momento de ser colhido, dizendo-se: Azevinho, meu menino, ‘Aqui te venho cother Para que me dés boa fortuna No comprar e no vender, E em todos os negécios Em que me eu meter. (ibid, 0. 247 € 600.) O mesmo se di com a Laranja para dar fortuna, colhida nas mesmas condigdes, ¢ dizendo- -se voltado para o nascente: Laranjinha redondinha, Cortada por minha mao; Dai-me fortuna No comprar e no vender, E em tudo o que eu pretender (bia, n° 631.) "Leite de Vasconcelos, Folk Lore andaluz, p.211. — Na tradigao espanhola hd esta férmula aplicada & semana do sapateiro; ib., p. 186. 145 CapiTuULo TV Estados sociais representados nos costumes portugueses Relagdo entre os ritos funerdrios, as ceriménias do casamento € as formas simbélicas do direito, derivada da constituigao primitiva da Fa- milia, — Dos ritos funerdrios em Portugal: Actos por ocasiao do fale~ cimento. — Despenadeiras. — Montes de pedras. — Pogos secos. — Formas de incinerago e da inumacao. — O banquete funer: Obradas, Bodivos; P50, vinho e candeias; Ofertas aos meninos. — ‘A encomendagiio: Nenias ¢ Danga funeral. — © pranto as carpidei- ras. — Os Clamores € Voceros. — O luto nas suas formas popular e oficial, — Tosquiar 0 cabelo. — Formas do culto ou Comemoragao dos mortos. — Almas santas, — O gilde ou banquete sobre as sepul- turas, — Mamoas ¢ Antelhas. — A Tripudia hispana. — O toque dos 10s. — Consequéncias da falta do culto dos mortos: Almas pena- das. — Baptismo de cinza. — Semear 0 morto. — Requer alma ¢ ter espirito, — A evocagio dos mortos. — O burburinho e a Procissdo dos Defuntos. — Das formas populares do Casamento: Epoca do Fa- milismo, e formas hetairistas da Promiscuidade ¢ da Ginecocracia. — Unido tempordria, Prostituicdo sagrada e Virgindade igndbil. — Po- liandria, escolha pela mulher ¢ Celibato. — Epoca da tribo patriarcal, ou casamentos endogdmico e exogamico. — Sacrificio 4 comunidade; Compra de corpo, Dote paternal, Coabitagao. —- Q Rapto da mu- Iher, 0 Combate simulado ¢ a Confarreagéo. — Na época nacional: Ceriménias no lar do pai, na transigdo € no lar do marido. — Com- paragdes com 0s costumes gregos ¢ romanos. — Costumes e simbolos juridicos: As duas formas sociais do estatuto territorial ¢ -pessoal. — Os Pelourinhos e a liberdade municipal. — As Irmandades. — A justi- ga local ¢ a do Foro do rei. — Sistema tradicional da penalidade. — As penas infamantes. — Os estados das pessoas nos costumes popula res, — Formas dos contratos. 147 TEOFILO BRAGA No nosso trabalho intitulado Sistema de Sociologia, apresentamos 0 se- guinte principio geral que nos servira de guia na coordenagdo dos complica- dos materiais deste estudo: «Enquanto a sociedade estava embriondria no tipo de familia, a religido era o vinculo de unificagao, acompanhando todos 0S actos colectivos, como os ritos funerdrios pelos antepassados, as cerimé- nias do casamento, a consagracdo da propriedade, a propiciagio para a sementeiras e colheitas.»'! Todos estes actos tao variados e quase sempre praticados sem consciéncia do seu intuito primitivo acham-se relacionados entre si pela sua origem religiosa. Com a sucesso € cruzamento das racas, com a elevagéo dos estados sociais, que passam do familismo rudimentar para o cantonalismo ou para os agregados nacionais, alteram-se as concep- G6es religiosas, os dogmas substituem-se, mas ficam os actos exteriores, co- mo a tiltima coisa que se perde. Bem diz Fustel de Coulanges: «Se é preciso muito tempo para que as crengas humanas se transformem, é preciso muito mais ainda para que as prdticas exteriores e as leis se modifiquem.»® Os ritos funerarios em Portugal apresentam actos isolados e incompreendidos que pertencem a um sistema primitivo do culto dos mortos; as ceriménias do casamento, praticadas na vida provincial, derivam desse mesmo sistema, que transparece em muitos dos seus elementos através da crusta catélica, A relagao entre estes dois grandes actos da vida social é a principal luz para a coordenagao de elementos t4o desconexos e para a inteligéncia do seu espi- rito tradicional; a falta deste ponto de vista faz com que espiritos subalter- nos se limitem a compilar sem plano os usos Jocais, condenando como init e aprioristica toda a tentativa de reconstrugao dos estados sociais. antigos no limite da sua incapacidade, envolvendo no seu azedume Fecham a cién os que avangam. Partindo dos estados sociais superiores, como o de nacionalidade, vamos encontrar nos costumes os vestigios primordiais da agregacio no. tipo de familia, Na Grécia a palavra que designa a familia significa — aqueles que estao juntos do mesmo lar; © essa unidade rudimentar da familia nfo se funda socialmente no parentesco do sangue, mas na obrigacéo moral de ve- nerar os antepassados que ela representa®. Esta veneragéo nao podia manter-se por um sentimento abstracto de dever, incompativel com o estado da consciéncia de civilizagdes nascentes, mas sim por meio de actos, praticas ou diligéncias culturais de forma concreta, constituindo um rito obrigatério para os parentes e excluindo de um modo absoluto dessa participacao todos aqueles que nao pertencessem a famitia. Na agregacao social dos povos 4ri- cos preponderou o tipo de Familia, e por isso em todos os ramos deste 1p. cit. p. 311. * La Cité antique, p. 17 * Diz Fustel de Coulanges: «Uma familia era um grupo de pessoas as quais a religido permitia o invocar 0 mesmo lar, ¢ o oferecer 0 mesmo banquete fiinebre aos antepascadas.s Le Cité antique, p. 41 148 ESTADOS SOCIAIS tronco antropolégico, na india, Grécia € Italia, o culto mais antigo e geral é © dos mortos, conservando através de todos os acidentes histéricos as suas formas ritualisticas. Diz Fustel de Coulanges, observando esta similaridade fundamental, derivada de wma mesma ordem de concepgdes: «Os dogmas podem ter-se extinto muito cedo, mas os ritos tém durado sté ao triunfo do cristianismo.» * Os costumes funerdrios em Portugal confirmam este prinei- pio, apesar da cruzada catélica durante cinco séculos contra o islamismo na Espanha, em que se envolvia também o politeismo greco-romano, € apesar de trés séculos de canibalismo da intolerancia inquisitorial. Ligado ao pri- meiro rudimento social do familismo, 0 culto dos mortos antecedeu todas as outras formas religiosas, ¢ na nossa raga rica, como observa Fustel de Cou- langes: «Antes de conhecer ¢ adorar Indra ou Zeus, 0 homem adorou os mortos, ete.» E esta orientagao primordial da credulidade que persiste ainda entre 0 povo nas suas praticas de veneragao pelos mortos, ¢ que fez com que a Igreja convertesse os Deuses Manes ¢ os Penates nos Figis defuntos da sua hierologia. Estabelecido o culto dos mortos em cada familia, 0 pai era o pontifice da religiéo doméstica e daqui derivava a forga ou poder moral e material sobre os que se reuniam em volta do mesmo lar. A mulher que passava in manu marisi, que casava, tinha por uma ceriménia particular de abjurar do culto dos seus antepassados, para ser admitida sem profanagao aos actos cultuais da familia do scu marido. Nas superstigdes e agouros po- pulares tanto de Portugal como da Espanha, ainda existe uma vaga relagao entre o culto dos mortos ¢ 0 acto de casamento; dizem 08 nossos anexins: A terga-feira Nao cases a filha, Nem lances a teia. E no refraneiro espanhol: En Martes, No te cases, Ni te embarques. Basta lembrar que o deus Marte, consagrado na terga-feira (Dia martes, no Canc, de Resende; no mardi, francés, etc.), era 0 que ditigia as almas dos mortos come psicopompo, ¢ este cardcter aziago de tal dia liga-se in- conscientemente & consagragao dos mortos. A frase biblica «por mim deixa- ras pai € mae» alude a esta substituigéo do culto doméstico no casamento, como notou Fustel de Coulanges: «Desde 0 casamento a mulher nada tem de comum com a religiéo doméstica de seus pais, ela sacrifica ao lar do "Op. cit.. p. 15 * El Folk Lore andaluz, p. 155. 149 TEOFILO BRAGA marido,»® Quando Estrab&o observa que os costumes do casamento entre os Lusitanos se pareciam com os dos Gregos podia estabelecer logo a correla- ¢4o para com os ritos funerarios A propriedade era também primitivamente demarcada pela ceriménia eligiosa da implantagao do fermo ou marco sobre os carves do lar em todos os povos indo-europeus; a propriedade tormava-se tao individual ¢ inamovivel como o culto da familia, que lhe confiava 0 depésito dos seus antepassados. A medida que as familias se associam sobre o mesmo territé- rio, organiza-se um cvlto ptiblico dos antepassados que serviram a comuni- dade, € so esses os herdis, 0 genius loci, centro de convergéncia das inst tuicdes municipais; 0 Picus, ou Pilus, dos povos itélicos conservou-se longos séculos nos Municépios portugueses na coluna chamada Picota ou Pelow- rinho. Nos costumes populares portugueses existem vestigios de outras ragas que nao pertencem ao grupo indo-europeu; por isso na coordenagao dos elementos consuetudinarios importa agrupar em sistemas isolados esses frag- mentos, recompondo com eles os estados sociais que se sobrepuseram ou confundiram. E esta a principal condigao para a clareza descritiva e para as conclusées sociolégicas. Dividiremos, portanto, este capitulo de uma manei- ra Idgica, seguindo as relagdes étnicas que existem entre os Ritos funerérias com as Ceriménias dos casamentos € com os Simbolos do direito consuetu- dinario. Dos ritos funerdrios em Portugal. — A complexidade ¢ variedade de 2- tos praticados pelo povo quando morre alguém, ou quando comemora al- gum falecimento, organizam-se em trés grupos independentes: a) 0 que respeita a ocasidio de ser sepultado o defunto; b) 0 que se refere a consagra- gao da sua meméria em épocas anuais; ¢) € 0 que resulta do abandono com- pleto do culto, em que os mortos se tornam seres malévolos de que se tem medo, ¢ que importa tornd-los propicios por meio de determinados agoutos Por esta divisio podemos agrupar as formas rituais pertencentes as diversas camadas étnicas que constituem 0 povo portugués. O antigo costume de dar a morte aos velhos ou enfermos incurdveis pele mao dos préprios parentes com um intuito de piedade € um facto que re- monta a época mais atrasada das sociedades, quando a falta de subsisténcia ou os acidentes da guerra forgavam a tribo a este recurso violento. Robert- son. na Histéria da América, descreve este costume do assassinio dos velhos existindo entre todas as tribos do continente desde a baia de Hudson até a0 tio da Prata: Jacob Grimm também em numerosas Sagas escandinavas com- provou este costume entre os povos do Norte da Europa antiga; Koenigs- warter coligiu documentos por onde comprova este costume entre os Héru- ESTADOS SOCIAIS los, os Iaziges, 0s Cantabros (Silio Itélico, Punica, 11, 328) e bem ainda na raga eslava do Leste da Europa, os Vagrianos, os Vendas, os Vilsas e os Prussianos?. Era preciso que este costume tivesse raizes étnicas muito pro- fundas para existir nos contos populares a sua reminiscéncia e para se pra car ainda excepcionalmente. Nos contos do povo conta-se que um filho ia abandonar 0 pai para a morte voluntdria; e ao deixar-Ihe uma manta velha, observara 0 pequeno que desse ao avd s6 metade, porque a outra metade da manta serviria para quando Ihe tocasse a vez de ser atirado ao escampado. Porém, mais do que esta reminiscéncia existem pelas aldeias certas mulheres que vao as casas ajudar a morrer os doentes que est4o na agonia, gritando- -lhes A cabeceira, para afugentar o diabo: «Ande, diga comigo do fundo do seu estOmago: Ih, Jesus, que morro.» © cardcter deste acto acha-se na sua forma primitiva em Nisa, onde estas mulheres eram chamadas as Despena- deiras, a8 quais para abreviarem a agonia do moribundo cravavam-lhe os cotovelos sobre 0 peito, comprimindo-Ihe a caixa tordcica! Ainda ha bem poucos anos se passava isto assim, como o observou uma testemunha insus- peita que no-lo garantiu; as vezes os doentes pediam por misericérdia que os ndo despenassem ainda!® E evidentemente a persisténcia desse costume das antigas ragas da Europa que aparece na Espanha entre os Cantabros. Da freguesia de Cabreira, relata J. Avelino de Almeida, no seu Diciondrio Corografico, 0 seguinte costume: «No tempo da primitiva igreja, os filhos, tanto que os pais nao podiam trabalhar para se sustentarem, levavam-nos as costas a uma laje corredica, e os precipitavam no Pogo de Portocales, acima da Ponte, no rio que vem de Outeiro maior ...»* O modo de tratar os cad4veres, enterrando-os, queimando-os ou aban- donando-os, corresponde a determinadas ragas ¢ épocas de civilizacdo, e por isso trataremos das formas da inumagao, da incineragao e do abandono em covas descobertas segundo esta coordenacéo étnica bem evidente entre as ragas antigas da América. A inumagdo era de preferéncia usada na América do Sul, e em especial no Peru; a incineragdo acha-se como peculiar do Mé- xico, sobretudo aplicada as pessoas de distingdo; na América do Norte dava- se o abandono dos cadaveres. A incineragdo dos cadaveres ataviados com vestes e jOias era uma ceri- ménia dos Lusitanos e dos Galegos, ou propriamente céltica. Sibelo e Mur- guia referem-se a urnas cinerdrias achadas nos timulos ou mamoas da Gali- za. Como a incineracdo caiu em desuso entre os Gregos e Romanos, veio também este costume a decair na civilizagao peninsular sob a influéncia jéni- ca e pela incorpora¢do romana. Apiano, ao descrever a incineracdo de Vi- tiato, chama a este rito funerdrio costume bdrbaro; Tito Livio, descrevendo as dangas funerais ordenadas por Anfbal em honra de Graco, chama-lhes * Eudes historiques sur le développement de la Societé humaine, p. 9 *Comunicagao do digno juiz de direito Celestino Emidio. "Op. cit. t 1, p. 200. Ist TEOFILO BRAGA tripudia hispanorum. Os Romanos estavam j4 na Idade de Ferro quando ocuparam a Peninsula, e por isso consideravam como nefando esse uso de incineragao caracteristica da Idade do Bronze. Existe uma profunda diferen- ¢a entre os povos primitivos que enterravam os seus mortos e aqueles que os queimavam, Lubbock no seu livro O Homem antes da Histéria, tenta apresentar esta caracteristica: «Nao se pode duvidar que durante 0 periodo neolitico da Idade da Pedra enterrava-se ordinariamente 0 corpo na posigéo de assentado, Em resumo, parece provavel, embora nada possamos afirmar positivamente, que na Europa Ocidental esta posigo do cadaver caracteriza a Idade da Pedra, ¢ a incineracao a Idade do Bronze; ao passo que, quando © esqueleto esta estendido, pode-se sem muita hesitagao atribuir o timulo a Idade do Bronze.» O que se conclui é que a incineragdo € um facto muito especial das raga amarelas ou mongoldides", e que sendo elas que introdu- ziram o bronze na Europa, os vestigios da incineragao so documentos desta camada étnica, odiada pelos elementos dricos. Na linguagem popular ainda se diz as cinzas como sinénimo dos despojos mortais de um individuo. Como costume de uma raga detestada, € a0 mesmo tempo como dispendioso, € tanto que se tornou um distintivo das pessoas elevadas, a incineragdo, que sucedera ao abandono dos cadaveres, foi por seu turno substituida pela inu- macéo. © abandono dos cadaveres aparece simultaneo com a incineragao, preva- lecendo sobretudo aquela forma primeira nas classes inferiores; diz. Finlay- son isto das classes pobres dos Mongoldides, Pausanias diz que os Celtas abandonavam os seus mortos no campo da batalha, ¢ Silio Itdlico diz efecti- vamente «que este uso de abandonar os mortos existia entre os mais antigos Celtas que nds conhecemos, derivado da sua fé religiosa»'*. Belloguet pergunta se ndo sera isto consequéncia do Masdeismo? E afasta-se da ver- dadeira origem ibérica, isto é, da sua proveniéncia de uma raga amarcla que precedeu na Europa os ramos dricos. O facto dos pogos secos & a prova do sistema do abandono dos cadaveres, que ai se deixavam; tanto na Inglaterra como em Franga existem largos boqueirdes escavados, cujo destino, em ter- renos sem agua, «parece ter sido unicamente funerdrio, pelo que se vé dos ‘ossos de animais e esqueletos de homens que ai se encontram»™. Este costume aparece ainda entre os Romanos, no cemitério da plebe do Monte Esquilino, onde os escravos eram abandonados em puticuli, «espécie de pe- quenos pogos, que existiam na mesma colina, e de que as valas nos cemit rios de hoje sio uma tristissima recordagao, etc.» ", Do Arquivo da Camara Municipal de Lisboa extraiu o autor do Relatério sobre os Cemitérios desta "Op, cit. p. 107, Trad. Barbier 4 Letuureau, Sociologie, p. 226 * Belloguet, Ethnogénie gauloise, t. 1. p. 141 % Ibidem, p. 476. Os Cemitérios de Lisboa. Relatorio. 9. 9. 1880. ESTADOS SOCIAIS cidade um documento importante sobre o abandono dos cadaveres; é uma carta do rei D. Manuel dirigida aquela corporagio, que aqui transcrevemos pela sua importancia: «Vereadores procurador e procuradores dos mesteres. Nos elrey vos em- viamos muyto saudat. Nos somos certificado, que os escravos que falecem nessa cidade asy dos tractadores de guynee como outros nam sam asy bem soterrados como devem nos llogares onde sam Ilangados e que se Hangam sobre a teerra em tall maneira que fiquam descubertos ou de todo sobre a teerra sem cousa algua delles se cubryr, ¢ que os ces os comem, © que a maior parte d’estes escravos se Ilangam no monturo que estaa junto da cruz que estaa no caminho que vay da porta de Santa Catherina para Santos, ¢ asy tambem em outros llogares pllas herdades dhi da redor. E que posto que nyso tenhaaes provide com pnnas € provejaaes todo ho posivell, por a corrugam que se se segiria da podridam dos ditos corpos. Consyramos que o melhor remedio seria fazerse hum pogo o mais fundo que podesse ser no lugar que fosse mais convinhavell ¢ de menos inconvyniente no quall se lancasem os ditos escravos e que fose llangado de tempo em tempo no dito pogo allgua cantidade de call virgem pera si melhor gastarem os corpos € se escusar 0 mais que possivell for a dita corugam e que este pogo fose feito ao tedor da boca hu cercuyto de parede de pedra e call e que qualquer que escravo Ilangasse ou mandasse langar em outro cabo salvo no dito poco, pagése huua certa pnna qual se vos bem paregese, porem vos encomenda- mos € mandamos que lloguo nysto entendaaes € veiaees o Ilugar que sera mais convynyente para 0 dito pogo se fazer e ascentay a pnna que se pohera e todo 0 que nyso fizerdes nos escrevei cumpridamente para o vermos averdes nosa resposta. E encomendamovos que llogo nysto entendaaes porque ho avemos por cousa de muito noso servigo. Escripta em almeyrim a Xu de novembro de 1515. Rey. p.* a gidade sobre © pogo p.* se Hancarem escravos.» © sitio hoje denominado de Poco dos Negros coincide com o local em-que se abandonavam os cadaveres no tempo de D. Manuel. A sepultura no mar, era também uma antiga tradigao hindu, usada por necessidade pelos marinheiros, quando thes mortia alguém a bordo; no Nau- fragio da Nau S. Paulo relata-se a morte de uma menina: «encomendou-a o padre, e em uma alcatifa, com um pelouro aos pés, tornou ao mar, etc.» "6, © sistema da inumagdo veio a prevalecer nas mais elevadas civilizagdes, como entre os Semitas, talvez pelo seu cruzamento com o elemento negréi- de, como entre os Arias Védicos ¢ os Persas, ou coexistindo com a incinera- gio como entre os Germanos. A locugao A terra Ihe seja leve é uma nogao moral derivada deste costume generalizado com o cristianismo. Os monticu- Arquivo da Camara de Lisboa: Provimento de smide, Liv. 1, fl. 51 — Ap. Relat cit. po 14, © Hist. tragico-maritima, (1p. 411, —~ Barros, Decada 1. 153 TEGFILO BRAGA los funerdrios sdo frequentes em varios pontos de Portugal, restos de uma populacdo ante-histérica; tem na linguagem popular 0 nome de mamoas, antelhas e antinhas, ndo obstante uma grande parte deles ter sido destruida pela exploracao agricola, e também pelos rabuscadores de tesouros. O Dr. Martins Sarmento da uma curiosa noticia destes monticulos do Vale Ancora, alguns deles em grupos: «O exame dos délmenes e témulos de Ancora mos- tra mais que os délmenes e timulos sdo sempre ou foram cobertos por uma mamoa maior ou menor, conforme o tamanho da sepultura que escondia, mas composta sempre do mesmo modo, terra e pedregulho.»"” © terreno entre a Citania e Sabroso, onde esta um monticulo sepulcral, ainda conserva o nome de Monte d’Antela; e em Pamplide 0 Campo das Antinhas tem algu- mas sepulturas contiguas abertas em rocha'*. Estes montes formavam-se por um acto cultual, atirando pedras para cima da sepultura; quando novas pri- ticas religiosas atacaram este uso, alternado as formas da crenca, ficow ainda © costume de langar pedras nas sepulturas, porém considerando-as como de justigados ou abandonados. Na época crista, em Portugal, quando se na enterrava o morto em sagrado, isto é, nas igrejas e adros, langavam-lhes pedras sobre a sepultura, fazendo monticulos chamados Fiéis de Deus, ou na linguagem popular Montes Gaudios, No Eluciddrio de Viterbo fala-se deste uso: «Em todo este reino vemos destes pedregulhos junto das estradas, sem que nos fique a mais leve diivida que ali foram advertidamente postos e nao por acaso.» E cita um documento de Pinhel, de 1473, em que se refere este titulo «que 0 povo também chama Montes Gaudios». Santa Rosa de Viterbo atribui este uso a origem grega, derivado do costume de se atirarem pedras para honrarem Hermes ou Merciirio para tornar propicia a viagem; mas 0 deus dos viandantes era primitivamente um psicopompos, ou guia das almas dos mortos, e por este aspecto nos remontamos a origem mitica deste uso funerdrio. Nos cantos populares, como o de Petit Poucet, a crianca atira as pedri nhas pelo caminho por onde a levam para a exporem A morte, e por elas descobre 0 caminho para voltar para casa. No mito de Pyrra, das pedras atiradas para tras nascem os homens, durum genus. A pedra funerdria tem portanto um sentido mitico a que se liga a esperanca da ressurreicao do morto, ou pelo menos a guia para achar no mundo subterraneo o caminho para a luz e a bem-aventuranca. Gubernatis cita este costume entre os ‘Tartaros da Pequena Riissia, que em viagem atiram para a sepultura que encontram na estrada pedras com um sentido religioso propiciatério"; este mesmo uso é indicado em Sérvio como existindo na Italia Meridional; Lie- brecht encontrou-o entre os antigos gregos, bem como entre os Germanos, * Revista © Pantheon, p. 4 % Ibidem, p. 21. % Mitologia comparada, p. 102. 154 ESTADOS SOCIAIS Escandinavos e Celtas da Gra-Bretanha, remontando-os também a India, aos Chineses, aos Japoneses e Hotentotes”. O costume de colocar pedras sobre as sepulturas acha-se entre as racas selvagens, entre os povos que atingiram uma civilizacdo rudimentar, e per- siste ainda nas ragas superiores da Humanidade como vestigio de uma con- cepgdo primitiva. Segundo Park, no interior da Africa existem montdes de pedras que os negros acumulam sobre as sepulturas dos seus parentes e amigos, aumen- tando-os quando por ali passam; Galton descreve 0 mesmo costume entre os Damaras, e Spencer nota-o entre os Bodos ¢ os Dimals. Darwin, na sua Viagem de Um Naturalista, observou na Sierra de las Animas, em Maldona- do, mont6es de pedras, a que atribui um intuito comemorativo histérico, mas que em rigor sao exclusivamente de uso funerdrio; basta o nome de Sierra de las Animas e a relacao ja estabelecida por Gubernatis entre a pedra ¢ 0 monte (adri) nos mitos indianos*! para se conhecer o intuito das racas indigenas da América e estabelecer mais um ponto de contacto com a civilizacdo primitiva dos Arias. Darwin compara estes montdes de pedras da Sierra de las Animas com os que comummente se encontram nas montanhas do Pais de Gales. Os Arabes também costumam atirar pedras as sepulturas com um fim religioso, prevenindo-se de longe com pedras que acham pelo caminho para n4o faltarem a este piedoso dever; assim 0 observou em 1845 9 viajante\Carrete, na Argélia Meridional: «Viajando um dia com muitos arabes, admirei-me de os ver apanhar uma pedra cada um deles sucessiva- mente; um deles apresentou-me uma, e perguntei-lhe porque é que proce- diam assim, — Devemos passar diante do nza (timulo) de Bel-Gassen. Nao compreendendo, peguei na pedra; dai a pouco chegémos a um montao in- forme de pedras de metro ¢ meio de altura. Cada um dos companheiros foi langando a pedra que trazia na mao dizendo: ~ ao nza de Bel-Gassen. Fiz como eles.» © nosso amigo Teixeira Bastos cita igual costume na provincia do Mi- nho, por informagées recebidas de Cabeceiras de Basto: «Quando um al- deao passa por pé de uma cruz, que indica 0 sitio em que se cometeu um assassinio, apanha uma pedra, e depois de rezar pelo descanso eterno do motto, atira-a para o montdo de pedras, que se vai formando em volta da cruz. O mais interessante é que as vezes, quando naquele sitio nao pode encontrar facilmente uma pedra fora do montao, tem o cuidado de a trazer de longe, para nao deixar de prestar aquele preito supersticioso A alma do finado.»* Vé-se que o costume primitivo foi particularizado para os mortos violentamente, talvez para guiar as almas errantes dos que nao foram enter- % Smith, Histoire des Druides, p. 71, descreve 0 uso céltico dos montes de pedras nas sepulturas dos justigados. 4 Mitologia comparada, p. 100. % Ensaios sobre a Evolugdo da Humanidade, p. 19. 155 TEOFILO BRAGA rados em sagrado; e o intuito de desacreditar 0 costume popular fez com que as pedras fossem atiradas por devogao para as sepulturas dos justicados Contudo, 0 costume ainda persiste em Portugal, ligada a tradicao da pedra ao culto da montanha; diz o Sr. Leite de Vasconcelos: «Ao pé do Rio Tinto, junto A Serra da Mulher Morta (segundo informagdes que obtive do meu amigo © Sr. Leite de Faria) conserva-se 0 costume de deitar uma pedra e rezar um padre-nosso ao pé de uma cruz de ferro que ai hd, e assinala morte. Ninguém pode tocar os monticulos de pedra.»® Em nota acrescenta: «Sabemos que existe noutras partes de Portugal.» A cruz é ainda na lingua- gem metaforica a drvore da redengao; nos mitos indianos, a palavra adri, que significa a pedra e 0 monte, exprime também a drvore, origem da vida. Ha aqui dois sistemas religiosos correspondentes 2 duas concepgées das ori- gens do homem, uma que o deriva da terra, ou argila animada, como nas racas kuschito-semitas, € outra que o deriva das drvores, como nas racas dricas; portanto na esperanga de renovagdo do morto, 0 monte de terra ca pedra pertencem @ concepgdo rudimentar da raga sobre que se desenvolve- ram os Semitas; e a drvore corresponde ao dominio de uma raca superior, 0 Aria, que substituiu na Historia a hegemonia semita Hoje j4 se nao atiram pedras & sepultura do morto, mas nos costumes provinciais os individuos que acompanham 0 saimento consideram como um dever religioso 0 atirar um punhado de terra para dentro da cova. Guberna- tis alia estes dois factos, dizendo que a palavra indiana adri significa pedra e monte. Diodoro Siculo conta que Semiramis levantara sobre a sepultura do marido uma colina de terra; o timulo de Heitor era de terra ¢ de pedras, do mesmo modo que o timulo a Aliates por Xenofonte: Pausfnias diz que 0 ttimulo de Laius era feito por um monte de pedras, e segundo Virgilio, 0 rei do Lacio Dercennus foi enterrado sob uma colina de terra. Lubbock traz uma frase proverbial dos montanheses da Escécia, colhida por Wilson, que é uma espécie de cortesia: «Hei-de ajuntar uma pedra ao timulo que te cobrir.» (Curri mi clach er do cuirn.) Sao numerosissimos os factos coligidos por Tylor, Lubbock, Liebrecht e outros, e por isso € facil a erudi¢do, mas dificil um sistema de coordenagao. A imensa generalidade destes usos nas racas mais vetustas da Asia, da Africa e da Europa revela-nos a persisténcia de um fundo de civilizagéo proto-histrica que se acha nos povos dricos ¢ indo-curopeus, especialmente nos costumes. Qual 0 povo que forma este fundo étnico da Europa? As ragas ibérica, gaulesa, citica, finica ¢ tartar nao foram eliminadas pela migracdo indo-europeia, e sobretudo no Ocidente da Europa é onde se conservam mais evidentes restos de uma civilizagio anarica rudimentar. A Etnogenia nao deve ficar simplesmente descritiva, co- mo aconteceu a Geografia antes dos estudos de Ritter; precisa apoiar-se na Antropologia como primeiro elemento de coordenagdo e visar a reconstru- # Era Nova, p. 78: Tradigées das Pedras. 156 ESTADOS SOCIAIS ao da histéria social da Humanidade, interrompida entre a vida das caver- nas e a extraordinaria civilizagao do Egipto. Nos contos populares portugueses encontra-se ainda um vestigio das Ar- vores funerdrias, com todo o seu sentido mitico antropolégico; nas costumes actuais, planta-se nos cemitérios os ciprestes com o sentido funerério como no tempo dos Romanos, em que se plantavam a porta das casas dos patri- cios que estavam de luto™. A drvore funerdria acha-se descrita no romance do Conde Ninho: Morreu um e morteu outro Jé la vao a enterrar; De um nascera um pinheirinho, Do outro um lindo pinheiral; Cresceu um & cresceu outro As pontas foram juntar, Que quando el-rei ia A missa Nao 0 deixavam passar. Pelo que 0 rei maldito Logo os mandara cortar; De um correra leite puro E do outro sangue reat De um fugira uma pomba, E do outro um pombo trocal ...™ Temos aqui preciosos elementos miticos, tais como a Arvore félica da vida, a drvore que deita sangue, o pinheiro essencialmente funerario ¢ a pomba como forma concreta da alma do finado. Discutindo o sentido das arvores do Uttarakuru, junto da qual habita o deus da morte Yama, e do Ygedrasil, junto da qual habita o rei dos mortos Mimir, conclui Gubernatis: «A Srvore plantada sobre o timulo considera-se representando a alma tor- nada imortal, e pensa-se mesmo que a Arvore rebenta espontaneamente do corpo. Quem se nao recorda do célebre episédio de Polidoro, em Virgilio, € da imitagao que dele fez Dante no canto de Pietro delle Vigne, 0 terceiro do Inferno.»® As Arvores que vertem sangue so frequentes nos contos indo- -europeus; representam 0 céu alumiado, idealizado em forma de arvore «de onde pode correr a ambrésia, ou também o sangue, conforme a Arvore é considerada como drvore de vida ou Arvore de morte.»?” Estas duas concep- goes primitivas aparecem no romance portugués, em que de uma drvore ® Gubermatis, La Myshologie des planes, 4p. 118, Romanceiro geral, n.° 15; Cantos populares do Argchipelago, n.° 32; Cantos populares do Brazil, n° 4, Myth, des Plantes, t.\, p. 161 Siem, p. 284, 157 TEOFILO BRAGA corre leite puro e da outra sangue real. O cardcter funerario do pinheiro, acha-se jé aotado por Plinio, ¢ na Riissia ainda cobrem 0 defunto que vai a enterrar com ramos de pinheiro™. A alma deixando o corpo em forma de pomba perpetuou-se nas lendas cristés da Idade Média”, e vemo-la no mito de Semiramis; nos jogos funerais atirava-se 8 pomba presa num mastro, ¢ é com 0 caracter funério que aparece no Rig Veda. As concepgdes animistas do homem antigo acham-se expressas ainda num grande ntimero de actos gue se praticam actualmente nos enterros. ‘A mesma ideia da relacao entre a vida e a morte, que se exprime pelas pedras atiradas e pelas drvores funerdrias, que vertem o amrita ou o sangue, € a que inspira os cantos e as dangas ligubres das incineracdes e inumagses antigas. Estes cantos tristes e alegres eram também o elemento cultual dos fenédmenos sidéricos dos solsticios estival e hibernal; e com igual sentido religioso se ampliavam as ceriménias funerdrias. Chamavam-se Nenias os cantos acompanhados de danga em volta da pira em que se incinerava 0 morto, € a que os Romanos deram o nome de Laudes. Tito Livio, descre- vendo o funeral de Graco ordenado em sua honra por Anibal, chama-lhes tripudia hispanorum; € Silio Itélico alude aos barbara carmina dos Lusitanos, ‘0s quais eram tao caracteristicos para os Romanos que Ihes chamavam Hi- berae naeniae, como sc acha num proldquio latino coligido por Erasmo, Es- tes cantos persistiram em toda a tradigéo ocidental, transmitidos nos costu- mes populares dos Voceros, dos Clamores, das Carpideiras; a Igreja, que atacou profundamente os costumes do povo, proibiu essas ceriménias que eram o vinculo moral entre a familia e a patria. No Concilio II de Toledo diz-se: «Proibimos completamente 0 cantar carmes fiinebres, que 0 povo costuma entoar aos mortos.» Apesar disso, nas linguas vulgares continuaram a ser entoados esses cantos, que ainda hoje se repetem na Peninsula. Costa, na Poesia Popular Espanola, consigna o facto: «Y todavia hoy existem poblaciones a uno y otro lado del Pirineo, donde permanece Ja castumbre de formar el duelo dos hijos, los padres, fa esposa, etc., del defuncto, y hacer en el publicos extremos de dolor y ponderar las excellencias del defuncto.»® Os cantos populares de Espanha e Portugal, que se elaboraram por ocasiao da morte do filho daico de Afonso VI, pela do Condestavel D. Nuno Alvares Pereira e pela morte do principe D. Afonso, filho tinico de D. Joao Il, ligando-se a este costume, so a localizacdo das primitivas tradi- g6es da mélica elegiaca ocidental renovadas entre 0 povo por uma impressio casual da realidade. O canto da morte de Maneros, dos Egipcios, identifica- do por Herédoto ao Lins, era segundo a lenda dedicado & morte prematura do filho tinico de um rei; as relagdes deste canto com o mito siriaco de ® Jhidem, p, 289. ® Alfred Maury, Essai sur les Legendes pieuses, p. 184 Op. cit. p. 281 158 ESTADOS SOCIAIS Adonis, alargando-se pela universalidade da tradigao a Hylas dos Bitinios, a Bormos dos Mariandines, a elegia dos Lityerses da Frigia, 20 Skephros de Tageia, e ao Idlemos da Asia Menor, vieram achar na Peninsula as citcuns- tincias que o transformaram na Endecha. A morte prematura do principe herdeiro e filho unico de Afonso VI, no século XI, provocou ao proprio pai este pranto, que traz Sandoval: Ay meu fillo! Ay meu fillo Alegria de mi corazon, Et lume de meus ollos, Solaz de mifia vellez. Ay meu espello, En que yo me soia veer, E con que tomaba Muy gran pracer. Ay meu herdero mayor, Cavalleros hu me fo lexastes? Dadme meu fillo, Condes. Também na morte do rei trovador D. Dinis fez um jogral esta endecha: Os namorados que trovam de amor, Todos deviam gram doo fazer, E nao tomar em si nenhum prazer, Porque perderam tao bom senhor, Com el-rei D. Dinis de Portugal. Qs cavaleiros e cidadaos Que deste rei haviam dinheiros, E outros donas e escudeiros Matar-se deviam com suas médos, Porque perderam a tao bom senhor®. Ha aqui uma alusdo aos sacrificios funerdrios dos reis barbaros, em que thes imolavam as mulheres, os amigos mais intimos ¢ os escravos, como se vé dos costumes dos Mexicanos, ¢ do Peru, como conta Balboa dos funerais do inca Yupangi, ou nos de Huagu-Capac’. Num dos contos do Orto do Ap. D, Manuel Morguia, Hist. de Galicia = Cane, da Vaticana, n° 708. ® Letourneau, Sociologie, p. 221 © 222 159 TEOFILO BRAGA Eposo, escrito no tempo de D. Dinis, hé um sobre este costume referido na cangao do jogral®, Os cantos e as dangas funerais aparecem-nos com um cardcter comemorativo na romaria que todos 0s anos 0 povo dos arredores de Lisboa fazia 4 sepultura do Condestavel; porém, a vitalidade do costume acha-se indicada no Alvard de 14 de Agosto de 1423: «Porque 0 carpire depenar sobre finados & costume que descende dos gentios e uma espécie de idolatria, e € contra os mandamentos de Deus, ordenam e estabelecem os sobreditos, que daqui em diante em esta cidade, nem em seu termo nenhum homem, nem mulher nao se carpa nem depene, nem brade sobre algum fira- do, nem por ele, ainda que seja padre, madre ou filho, irmao ou irma, ov marido, ou mulher, nem por outra nenhuma perda nem nojo, nao tolhendo a qualquer que nao traga o seu doo, e chore se quiser; e qualquer que o contrério fizer pague cinquenta libras para as obras e tenha o finado por Cito dias na casa, e quem ndo tiver por um pague, seja degradado da cidade e termo até merece d’el-rei.» O brado do costume popular aparece-nos na forma de Baladro, que chegou a penetrar na literatura, como se infere do titulo de uma composicao 0 Baladro de Merlim sepultado pela fada Viviana; a balata, que era uma pantomima funerdria dos Gregos acha-se proibida por uma lei de Sélon, € o /essus era também condenado pelas Doze Tabuas como um costume barbaro. Apesar da proibi¢do do Alvard de 1423, no fim do século XV vamos encontrar estes costumes no seu vigor, manifestando-se pela morte do principe D, Afonso em 12 de Julho de 1491. As Endechase Clamores chegaram até nds, como se vé pelos cantos insulanos ¢ brasileiros%*, Garcia de Resende descreve esse sucesso com as emogdes que desperiou nO povo: «E com isto se levantou entre todos um muito grande ¢ muito triste e desventurado pranto, dando todos em si muitas bofetadas, depenan- do muitas e mui honradas barbas e cabelos; e as mulheres desfazendo com as mos a formosura de seus rostos, que Ihe corriam em sangue, coisa tio espantosa e triste, que se nao viu nem cuidou. El-rei por tamanha perda ¢ tamanho nojo se tosquiou. E a princesa tosquiou seus prezados cabelos e se vestiu toda de almafega, e a cabeca coberta de negro vaso. E na corte e em todo o reino nao ficou senhor, nem pessoa principal, nem homem conhecido que se nao tosquiasse ... E a gente pobre que nao tinha com que comprar burel, que valia a 300 réis a vara, muito tempo andou com os vestidos vira- dos do avesso ... e porque se no achava tanto burel, os lavradores e gente baixa vendiam os cobertores de suas camas a preco de panos finos, ¢ 0s homens se vestiam de sacos e cobertas de bestas.» Eis como se manifestou 0 pezar das pessoas mais importantes que assisti- ram as exéquias no Mosteiro da Batalha: «Vendo-lhes muito cruamente dar * Contos tradicionaes do Povo portuguez, t. 1 % Memorias de Dom Jodo I, t. 1V, p. 335 ™ Contos populares do Archipelago acoriano, n.° 54 55. 160 ESTADOS SOCIAIS na ega tamanhas cabegadas, que parecia que quebravam as cabegas, depe- nando todos suas barbas e cabelos, dando em si muitas bofetadas, e assim homens como mulheres, velhos € mogos, coisa tao espantosa e de tanta dor e tristeza que ndo se viu, e durou tanto que os ndo podiam fazer calar.» & curiosissima a Endecha que entdo se cantou sobre a morte do principe D, Afonso, achada por M. Gaston Paris, num manuscrito do século Xvi: Ay, ay, ay, ay! que fuertes penas! Ay, ay, ay, ay! que fuerte mal! Hablando estava la Reyna, En su palacio real, Con la infante de Castilla Princeza de Portugal, etc.” Seguem-se mais quatro estrofes narrativas, sempre acompanhadas do es- tribilho ligubre; Gregorovius, descrevendo os costumes funerdrios, diz que as mulheres fazem um improviso ditirambico e «O coro berra a cada estro- fe: Deh! Deh! Deh!». Na Endecha do principe D. Afonso: Lloran todas Jas mugeres Casadas y por casar. Pelos costumes populares da Cérsega, em que as mulheres é que cantam 0s Voceros junto do cadaver, se compreende o costume das mulheres de Lisboa cantarem pela Pascoa florida sobre a sepultura do Condestavel, no Convento do Carmo, como se vé pelos versos tradicionais conservados por Azurara € publicados pelo cronista José Pereira de Sant’Ana, Gregorovius, descrevendo estas mesmas ceriménias nos costumes actuais da Corsega, diz: «Nas montanhas do interior, sobretudo no Niolo, elas subsistem na sua forca antiga e paga ¢ parecem-se com as dancas funerdrias da Sardenha. A sua rvalidade dramatica e 0 seu éxtase furioso agita e amedronta. Sao s6 as mulheres que dangam, que se lamentam e cantam.» No século XVI repete-se ainda a ceriménia do pranto, mas o costume obliterado que se refugiava nas aldeias persistiu na corte pela imobilidade da etiqueta; escreve Frei Luis de Sousa acerca da morte do cei D. Manuel: «Ao quarto dia depois do faleci- mento se ordenou a ceriménia antiga do pranto, que esta a conta dos que presidem no governo popular da cidade. A ordem 6 sairem os Vereadores da Camara a pé, arrastando grandes capuzes de 46, © com vatas negras nas mios, acompanhando uma grande bandeira negra, que indo aos ombros do * Publicada na Romania, . 1, p. 373; e depois nos Cantos Populares do Brazil, t.1t, p. 170, anotando a verséo brasileira, n.° 10. 16) TEOFILO BRAGA Alferes da Cidade, que a leva a cavalo, vai arrastando as pontas por terra; ... nesta ordem passeiam as ruas principais da cidade, seguida dos senhores e fidalgos mais nobres da corte. Passam em trés lugares notavels, onde se quebram trés escudos, que levam sobre as cabegas ministros honra- dos da Camara. Os escudos negros e as quebras de cada um Soa uma vor alta e triste lembrando ao povo que saiba sentir a falta de um senhor, que nos anos de seu gaverno foi valeroso escudo de suas terras, e contra os inimigos deles trouxe sempre bandeiras levantadas.»® Gil Vicente alude a estes prantos. Quando em 1578 morreu o rei D. Sebastido, repetiram-se 05 prantos populares, como se narra numa carta contemporanea: «Ags vinte ¢ oito de Agosta, as cidadaos fizeram os costumados prantos, ainda que algum tanto enxutos, e ao dia seguinte levantaram rei ao cardeal ...»% Por este tempo vulgarizou-se um canto 4 morte de D. Sebastido, cuja mtisica se acha impressa na Miscelanea de Miguel Leitio de Andrada®®. O que se fazia pela efiqueta palaciana era ainda tomado a sério pelo povo das aldeias; daqui veio o proibirem-se os prantos nas Constituigdes dos Bispados, como vemos em 1621: «Proibimos que nos ditos acompanhamentos e enterramentos, ¢ nas igrejas em que os defuntos se enterrarem, se nao consintam pessoas gue vao dando vozes decompostas ou fazendo extraordindrios e desordenados prantos ...»‘" Estes acompanhamentos aqui referidos correspondem a0 que nos costumes da Cérsega se chama o Corteo; escreve Gregorovius: «Das aldeias vizinhas chegam para 0 enterro os amigos e os parentes, Esta mult- dao reunida chama-se 0 corteo, ou escolta, ou cirrata; e também se diz Andare alla scirrata, quando as mulheres vao juntas A casa do morto.» A palavra ensarrado usa-se ainda no Minho para significar luto de familia, ¢ no romance de D. Linda, as mulheres vao alla scirrata: Ela depois que o viu morto Logo se pds a chorar: —-Chamem-me padres ¢ frades Para o vir enterrar, Eu mando chamar senhoras P'ra me ajudar a chorar*, Nos cantos populares conservam-se nas reminiscéncias de costumes as vezes extintos; hd uns versos chamados Maravithas do meu velho, que sto uma espécie de parddia dos Voceros ou Clamores © Endechas dos mortos, ™ Annacs de Dom Soto iti, p. 20. tal a imobilidade da etiqueta, que isto mesmo praticou pela morte de D. Maria Il em 1853. e de D. Pedro V em 1861; 0 que confina a observagao de Spencer. * Apud Ribeiro Guimaries, Summario de varia Historia, tv. p. 133. ide a letra em o nosso Cancioneiro popular. " Constituigdes do Bispado da Guarda, li. i, cap. 13. —~ © mesmo nas do Porto. "Ap, L. de Vasconcelos, Tradicdes. p. 244, 162 ESTADOS SOCIAIS com preciosos referéncias, como &s despenadeiras, 2s carpideiras e as pedras atiradas & sepultura: Vou dar com 0 meu velho morte Ante as pedras do lagar, Atirei-the com um fueiro Acabei de 0 matar; Fui chamar as choradeiras Que o viesse chorar; Bem chorado ou mal chorado Va 0 velho a enterrar. A pedra que lhe botares De peso de cem quintais. (Maia.) No romance da Dona Infanta, versao da Beira Baixa, \€-se: — Ai, triste de mim vitiva, Ai triste de mim coitada! Ir-me-ei por esse mundo Chamando-me desgracada. Ai triste da s6 viva De mim, que nanja de nada. No romance da Faustina ha também uma endecha funerdria: No romance do Nossa Senhora do Pranto Era quem a pranteava, No seu pranto que dizia: -— Domingo de madrugada Vieram, etc. Casamento Malogrado, cantado na morte do principe D. Afonso, conserva-se a alusdo ao costume: Cobrira-se com 0 seu manto, Tratara de caminhar; As servas iam atrds dela Cuidando-se de a nao alcangar; O pranto que ela fazia Pedras fazia abrandar ... Romaneeiro geral, 0.21 163 TEOFILO BRAGA O costume das mutheres que faziam profissio de andar alla scirrata ain- da vigora em Portugal: — «Na freguesia do Soajo (Arcos) costumam ir as Carpideiras, mulheres com saia pela cabega a chorar ao pé do morto, para o que recebem uma posta de bacalhau, um vintém de pao, ¢ vinho ou dinheiro correspondente a um quartilho.»* Existia também ainda hé pouco em Vila Cha de Cangueiros, ¢ da sua generalidade veio 0 anexim, que se refere 20 seu sentimento: Choram 0 meu e 0 alheio Por uma quarta de centeio™ A saia pela cabega corresponde ao antigo vaso ou sinal de tuto. Na freguesia de De&o achamos indicado 0 seguinte costume: «Quando algum morria, 20 outro dia vinham os parentes a igreja embugados nume capa, € os chapétis com as abas baixas, bragos cruzados, com as maos debai- xo dos sovacos, assentavam-se em bancos, e nem elevacio da héstia e célice se levantavam, nem descobriam; as mulheres em altas vozes queixavam-se do Santo Padroeiro (S. Pedro) por to cedo Ihes tirar deste mundo aquela pessoa falecida.» ** Num documento do século XIV citam-se duas espécies de tuto, 0 que ere usado pelos servigais da casa durante um ano, € se chamava dé de almafega, ou burel branco e grosseiro, e 0 dé de raiz, 0 que competia aos préximos parentes‘”. Este facto explica-nos a razao do tuto decretado pela morte des reis, que consideravam 0s povos como seus vassalos"*; pelo falecimento de D. Joao V, em 31 de Julho de 1750, 0 Senado de Lisboa decretou em J de Agosto «que os homens pobres usassem gorra © as mulheres de toalha néo encrespada»®, Além disto 0 luto devia durar dois anos, um pesado, outro aliviado. Em alvard de 8 de Agosto de 1750, ordenou mais a Camara que todos os cidadaos assistissem & quebra dos escudos vestidos de luto rigoroso, sob pena de pagarem dois mil réis de multa! No falecimento do rei D. José, renovou-se ainda a multa, mas ja reduzida a 400 réis! Quando morre alguém, toca-se o sinal, no sino da freguesia, ¢ a0 dobre dos sinos a0 sair do enterro chama-se os sinais; no romance insulano do Pobre Preso, conhecendo que nao saird vivo da prisao, diz: E dizei ao tesoureiro Que me foque 0 meu sinal “Leite de Vasconcelos, Tradicées. p. 245. “8 Vid. Contos tradicionais do Povo portugues, t. 1 * Dice. chorographico de J. Avellino de Almeida, t. 1, p. 339. * Testamento de Maria Esteves, em 1372. Ap. Stummario de varia Historia, t. 1, p. 1/8 ® Ainda no Tratado de Goa, feito com a Inglaterra os Portugueses so ali chamaos Vassalos do rei de Portugal! ® Summario de varia Historia, tt. p. 136. 164 ESTADOS SOCIAIS E no romance do Toureiro namorado: «Nao me toquem a campana.» Na Beira Alta toca-se trés vezes, se € homem, duas quando é mulher, e repique sendo crianga. O sino ocupa um lugar importante nestes titos: «Em Basto hd duas freguesias limitrofes; no limite delas esta um pau, onde pode igar-se uma bandeira. Quando numa das ditas freguesias morre alguém, na outra iga-se uma bandeira, preta se o defunto € homem, branca se é mulher, vermelha se é anjinho. A primeira pessoa que conseguir nesta freguesia to- car 0 sino, ou a defunto ow a anjinho salva-se necessariamente. Isto dé lugar a diferentes conflitos. Se © falecimento é na segunda freguesia, na primeira repetem-se as mesmas cenas.» Hé algumas superstigdes relativas a0 sino, como: «Quando um sino que esta a tocar a finados se prolonga muito o dobre, € sinal que chama por outro defunto.»*! «Nos arredores do Porto, quando uma pessoa esta para morrer e ndo pode (i. é, na agonia) é costume das pessoas da familia ou amigos mandarem tocar sete badaladas a um sino de Igreja ...»® Eo tiltimo resto do costume da morte dada pelos parentes. Alguns ritos subsistem conservando-se como vagas superstigSes, como se vé por este costume ou agouro de Braganga: «E) bom trazer sempre uma moeda de cruz na algibeira, porque morrendo a gente num caminho deserto pode ser enterrado em chao sagrado por isso que mostra ser cristo; € se 0 defunto for justo, S. Pedro abre-lhe a porta do céu sem nenhum sacramen- to.» Que € isto sendo o dinheiro funeral com um sentido catélico, mas tendo ainda o poder mitico de dar entrada na porta do céu. O nosso amigo Leite de Vasconcelos, solicito investigador dos usos das nossas localidades, alude ao costume primitivo do dinheiro de Charonte, que se conserva ainda no Jura € no Dorvam, como nota Alfred Maury, ¢ que em Portugal se langa no caixdo do defunto, para passar 0 rio dos mortos: «Na freguesia de Guifdes, perto de Matosinhos, deita-se no caixao do morto dinheiro de cruzes para 0 morto passat S. Tiago de Galiza, onde hé um buraco a que toda a gente tem de ir vivo ou morto. Em Cimbres, concelho de Mondim da Beira, deita-se no caixao dinheiro para o morto passar a barca (ou a ponte). O mesmo costume existe em Sinfaes e creio que no Minho. No Porto e em Vila Real sei que se espeta um alfinete no habito do morto para este se lembrar dos vivos perante Deus.»™ A crenga da barca chegou a inspirar na literatura portuguesa os trés Autos hierdticos de Gil Vicente, A Barca do Inferno, do Purgatorio e do Paraiso; a crenga da Ponte da passagem das almas é fixada na via-léctea, ou na linguagem popular, Carreiro de S. Tiago, por onde as almas partem deste mundo, 2. Pedrosa, Supersticdes populares, n.° 629. No Positivismo. 1 bidem, p. 43. 113; Positivismo, t. W. p. 53. © Tbidem, p. 43 © 113; Positivismo, t. 1, p. 33. © Ibidem, p. 43 € 113; Positivismo, t.1V, p. 53 4 Notas sobre os Funeraes, Pantheon, p. 97: € Tradighes, p. 242. * Nas crengas dos antigos Parsis € pela ponte de Tchinevad, que o morto entra no céu. Estas relagdes parecem explicar 0 agouro do cao que uiva pressentindo que o moritumdo expira. 165 TEOFILO BRAGA A Psychostasia, ou pesagem das almas para julgar dos seus merecimentos pelo arcanjo S. Miguel, é vulgar no povo portugués, ¢ acha-se descrita em uma Oracao tradicional do Porto: S. Miguel, pesai as almas, Ponde pesos na balanga. Os pecados eram tantos Foram com eles ao chao! Pés Nossa Senhora 0 manto, Ficaram pesos suspensos: Com a graca de Maria Ficou a alminha contente™ Estas concepgdes acham-se geralmente representadas em todas as mani- festacdes da arte crista. Por aqui se vé como os costumes so a expresso de nogées primitivas, sendo 0 seu estudo um meio directo para se recompor 0 estado psicolégico de onde o homem se elevou as concepsées filoséficas A ideia de que 0 morto revive em outro mundo, levou os povos primiti- vos a enterrarem com o cadaver nao s6 os instrumentos da sua actividade, como também os alimentos necessdrios para manter-se longe dos seus pa- rentes. Joao Muller, citando na sua Histdria universal 0 costume chinés de servir 2 mesa o rei morto, como fazem também os Hiongnu ao seu Tanso, diz: «Este uso, que se pratica ainda na China, praticava-se outrora em Fran- ga, onde até ao tempo de Luis XIV, eram servidos os reis defuntos durante quarenta dias depois da sua morte.» ®” Este resto das nogdes animistas existe em Portugal no enterro do rei, o qual para ser levado do paldcio espera pela voz do parente mais préximo, que vem dizer & carruagem: «Vossa magesta- de pode partir.» O banquete dado ao morto, ou a comida enterrada com 0 morto, passou a distribuir-se por aqueles que vinham acompanhé-lo; e de- pois que estes banquetes funerdrios decaitam por alguma forma entre os povos catélicos, 0 padre é que ficou recebendo esses comestiveis a titulo de Ofertério e de Obradas. E esta a forma da transformagao de um costume tao universal. Os Egipcios usavam os banquetes fiinebres por ocasido do enterro; os Gregos ofereciam as suas Colybes, que consistiam em uma distti- buigdio de frutos ¢ legumes. O funeral romano acabava também por um banquete, ¢ distribuia-se carne pelo povo. Entre os Lituanos bebia-se hidro- mel, leite e cerveja junto da fogueira em volta da qual se dancava; na Riissia este mesmo banquete subsiste com o nome de trizna®. Bastam-nos estas rdpidas indicagdes para compreendermos o valor de certos costumes portu: gueses. No testamento de Joao Afonso Barbadao, do fim do século XIV, 8" Romanceira geral, n.° 49. 57 Op. cit., tp. 267. S* Abb. Bertrand, Diccionaire des Religions, vb.° FUNERAILLES. 166, ESTADOS SOCIAIS lé: «e ao dia de minha sepultura me facam oficio de finado de trés ligdes, e ladainha com sua oficiada, e mando a oficiar com pao e vinho e candeias segundo se costuma...» E mais abaixo acrescenta: «e ao ano saiam sobre mim com senhas missas oficiadas, ¢ mando-as ofertar com pao e vinho e candeias, segundo meu testamenteiro vir.» Temos aqui um facto que abaixo desenvolveremos, 6 0 banquete come- morativo ligado ac culto dos mortos. Ainda hoje no Minho se usa este ofer- trio nos enterros, levando-se ao abade da freguesia um acafate com um bacalhau com 0 rabo de fora; a familia do morto dé um jantar aos convida- dos que assistem ao enterro, e que pagam a leitura de um responso a que se di 0 nome de Clamores. Distribui-se po molete por todos os que estéo presentes, e 0 jantar é em geral composto de feijes, favas ou outros legu- mes. Sobre 0 sentido deste uso, escreve Gubernatis: «O uso deste legume {ervilhas) was ceriménias fiinebres refere-se a um antigo costume. Os rituais védicos fazem j4 mengdo dele a propésito dos funerais; nas crengas gregas, 08 mortos deviam levar consigo aos infernos legumes que Ihes servissem quer para pagar a passagem, quer para os sustentar durante a viagem. No Piemonte é ainda usanca fazer no 2 de Novembro, Dia de Finados, uma grande distribuicao de feijdes A gente pobre, que teza pela alma dos defun- tos. Os legumes, ervilhas, e feijdes sdo simbolos da abundancia, e pode ligar-se a esta ideia numerosas legendas indo-europeias nas quais se faz mengio de favas que se multiplicam por si mesmas na panela, ou de ervi- Ihas que trepam até ao céu, de cujo caule se serve o heréi para ali subir. Os legumes necessdrios para ser introduzido no reino dos mortos, e o caule do feljo por meio do qual o herdi penetra no céu, sdo variantes do mesmo tema mitico.»® Nos costumes populares das ilhas dos Acores (S. Miguel) é de uso comer-se caldo de lentilhas no Dia de Finados. E com relagao ao sentido prolifico dos legumes, os anexins em que eles se empregam tém sempre um intuito afrontoso. Assim: Vai @ fava enquanto a ervilha enche, é uma injiria, tanto como Abdbora! é uma imprecagao de insulto; Pagar as favas € uma ameaga popular. A distribuigéo do molete, no Minho, corresponde 0 Pa de morts da Cata- lunha, segundo escreve Labrés*!; no banquete funerdrio da Catalunha usa- -se 0 grao de bico ou gravangos. Na Italia (Monferrato) e na Grécia moder- na, dé-se po aos pobres nos enterros, como descreve Ferraro®. No Itinerd- vio de Rozmital, em 1465-1467, vem descritos os seguintes usos funerdrios portugueses, observados em Tomar: «Hé também ali esta costumeira: mor- tendo alguém, levam para a igreja vinho, carne, pao e outras ‘comidas; os parentes do morto acompanham o funeral vestidos de roupas brancas pré- * Memorias de D. Jodo I, t. 1V, p. 120; Dec. 18. % Gubernatis, Mythologie zoologique, t. 1, p. 177. % Rivisia di Leweratura popolare, de Sabatini, p. 53. Roma " Joidem, p. 151 167 TEOFILO BRAGA prias dos enterros, com capuzes 4 maneira de monges, com o qual vestudrio se vestem de um modo admirdvel. Aqueles, porém, que sao assalariados para carpirem o defunto vao vestidos com roupa preta, e fazem um pranto como os daqueles que entre nés pulam de contentes ou estado alegres por terem bebido.» Na Ordenagao Manuelina, (liv. v, tit. 33, § 6) proibe-se os Vodos de comer e beber, permitindo-se os banquetes funerdrios: «Porém nos lugares onde costumam comer quando levam os finados, 0 puderam fazer, ¢ puderam fazer sem pena alguma, ndo comendo dentro do corpo das Igrejas.» (Jb., § 7.) Em uma memoria da Peste grande de 1569 se lé sobre este costume: «mas nem esta diligéncia bastou para deixarem de tomar mui- tas pessoas os seus mortos as costas e i-los sepultar até 0 campo da forca, que também sagraram, onde também davam as ofertas aos meninos, que em sua santa inocéncia iam ver, que fazia pasmars", Nos costumes antigos da igreja francesa acham-se também as criangas intervindo nos ritos funerdrios: «Na igreja de S. Quentin, durante oficio da noite, as criangas do pow percorriam as turmas dos fiéis pedindo a esmola dos mortos, sacudindo ba- cias de cobre, que enchiam de pequenas moedas.» Em Coimbra as crian- as tomam parte nas cerimOnias tradicionais da comemoragao, pedindo com grande algazarra pelas portas. Falando dos Bodivos, ou refeigdo, jantar ou comedoria, que se dava aos pobres pelas almas dos defuntos, escreve Viter- bo: «Nas provincias do Minho, Beira e Tras-os-Montes ainda se nao esque- ceu inteiramente a disciplina das ceras € obradas, (assim chamam hoje as oblagdes € ofertas) pois ndo sé quando morre alguém levam de casa do defunto suas ofertas de cera, pdo, vinho e outras cousas, aos Pérocos segun- do os costumes da terra; mas também durante o ano, nos domingos e dias festivos se oferecem por devocdo, picheis ou frascos de vinho, e certos pies que poem em uma toalha estendida sobre a sepultura do defiento e uma vela acesa, Entao reza 0 paroco um responso pelo tal defunto, ¢ faz recolher a Obrada. A esta ceriménia chama-se Ementar, talvez pela corrupgao da pala- vra Memento, com que principia o responso.»® Joao Pedro Ribeiro, também consignou estas observagées: «E nos enterros, que nas aldeias também se notam prdticas nao menos ridiculas que supersticiosas: em algu- mas a oferta para 0 paroco & conduzida por um homem, diante do mesmo enterro, embrulhado em um capote e chapéu desabado, levando uma cana devantada; e nesta espetada uma laranja em que vai enterrada a oferta em dinheiro. Em outras € a oferta conduzida por uma mulher, que tenha a circunstancia de se chamar Maria, e ser errada, isto é, ter tido filhos que naa sejam de matriménio. Em outras a oferta, que se compée de pao, vinho, ¢ um cordeiro vivo, de tal forma se arruma em uma canastra, que se observa a & Ap. Ribeiro Guimaraes, Summ. de varia Historia, tM, p. 169 Revue de Art chrétien, t1, p. 520. Elucidario, t. 1, p. 139. Ed. Innocencio, 168 ESTADOS SOCIAIS etiqueta de se poderem ver as pernas amarradas do cordeiro, dispondo-se para isso a toalha que cobre a mesma canastra.»** No banquete funerario antigo da peninsula, comia-se um anho, ou cabrito de um ano, de onde veio © dizer-se que estd de enojo ou anejo a familia do morto. Em 1843, escrevia-se no Panorama, enumerando-se as supersticbes vivazes do povo: «Finalmente, nos lobisomens, agouros, encantamentos € sortes nas ofertas de pao, vinho, ¢ galinhas, que vao na frente dos saimentos representando ao vivo as comezainas da antiguidade, nisto ¢ no mais que se pratica com tanto descaro, particularmente nas aldeias, desejamos ver descarregar a espada da ilustrago, perseguindo a justica os embusteiros como fomentadores da ido- latria, contra os quais nao faltam leis, ete.» Em Ois da Ribeira, junto de Agueda, a familia do morto paga ao paroco um carneiro se o falecido & homem, ¢ uma galinha, se é mulher; aqui vemos uma distingdo entre as ofertas descritas por Jodo Pedro Ribeiro e Sousa Moura. A marcha do sai- mento tem também seus ritos especiais: «Em Basto (Minho) quando um defunto tem de atravessar a ponte para ser enterrado na freguesia limitrofe, 0 seu padre acompanha-o até a0 meio da ponte. Af pousa-se 0 corpo. Todos 0s que © acompanham, parentes ou amigos (s6 do sexo masculino) levam punhados de areia fina, e cada um por sua vez atira a aria ao rio, dizendo —F... (nome do morto) tantos anjos te acompanhem para 0 céu. como areias caem na gua. — Ao atirarem as areias tapam os ouvidos de modo que ndo ougam © barulho da queda na 4gua. Em seguida o paroco da outra freguesia, que vem do lado oposto da ponte, levanta o cadaver e condu-lo igreja.» Os anojados também praticam actos especiais: «Em Paraduga, a0 pé de Leomil, 0 dorido fica um més com a camisa suja no corpo. No fim deste tempo vai 0 povo acompanhé-lo & missa. — Em Gondifellos (Famali- cdo) o dorido fica um més sem fazer a barba.»® «E costume nesta ilha (do Maio), quando morre alguém, comegar logo o choro (guisa) como na maior parte das ilhas do arquipélago de Cabo Verde; porém, nesta tem mais 0 aparato da esteira, a qual se conserva por sete ou quinze dias, conforme os haveres do espdlio. A festanga ov funeral consiste no seguinte: A um canto da casa, em completa escuridao, jaz a vitiva, em- biocada, coberta com um pano pela cabega, enquanto que as visitas (que so numerosas) jogam a bisca, no centro da casa, sendo a importancia da perda paga em padre-nossos em frente de um imperfeitissimo crucifixo (S. Ma- nuel). A casa da esteira nao & mais que o rendez-vous, de mogos ¢ mogas, € em noites de reza nao € rato encontra-los em coléquios amorosos. No tlti- mo dia do nojo, ha a verdadeira esteira, grande festa, cujo menu é cabra, © Reflexdes historicas. i P, de Sousa Moura (Par, t. vit, p. 408), “Leite de Vasconcelos, Tradicdes, p. 243. © Ibidem, p. 142 169 TEOFILO BRAGA cherém, abdbora, e a nunca esquecida aguardente, que sem ela nao ha festa possfvel.» 7° «Os enterros dos fidis faziam-se (em Nisa) com grande aparato: aas clas- ses pobres, iam os parentes do finado em roda da tumba com muitos pran- tos ¢ alaridos acompanhando-o até a sepultura, onde soltavam grandes ¢ descompassados gritos, recitando os seus louvores, ¢ fazendo um minuciaso relatorio de suas prendas e virtudes; e dali voltavam to sentidos e enojados, que se metiam em casa, chorando no maior recolhimento; e dela nao saiam sem passarem nove dias para os homens e trinta para as mulheres; e as portas e janelas da casa, onde 0 defunto habitara, conservayam-se rigorosa- mente fechadas por um ano inteiro: e em todo aquele periodo de rigoros luto, nem recebiam pessoa estranha, nem assistiam aos oficios divinos; 0 que foi severamente censurado e proibido no ano de 1708 pelo bispo D. Domin- gos Barata, «Nas classes ricas ndo ia a familia acompanhar o féretro, nem prantea- vam com tanto estrondo a sua dor e amargura, mas pagavam a trés ou quatro mulheres, que vestidas de preto o rodeavam e seguiam até a sepultu- ra gritando e chorando; € depois no sétimo dia colocavam-se sobre éla du- rante as exéquias, que se Ihe faziam, recitando-Ihe elogios, no meio de gran des prantos e gemidos... Mas porque elas interrompiam os cdnticos sagra- dos, e desviavam a atengo dos espectadores do verdadeiro fim que ali os levava, foram também severamente proibidas pelo referido pretado no mesmo ano de 1708; mas era tal a simpatia popular por este uso, que conti- nuou por muitos anos, ainda depois da proibigao .. «Hoje, na classe indigente e artista ¢ nos lavradores ainda, as pessoas do sexo masculino acompanham seus parentes e¢ mulheres até a sepultura, e estas em casa fazem seus prantos em voz alta e sonora, as vezes com tal incompeténcia e estranheza, que mais excita 0 riso que o choro; por isso também aqueles que sabem chorar os seus defuntos adquirem fama e repu- tagdo, e sdo invejados e conhecidos, e quando os tém em casa, hé grande concorréncia para os ouvir e desfrutar.»7! Na ilha da Madeira, nos Lourais, pequenas povoagses do concelho da Calheta, quando morre alguma crianca amortalham-na de branco, com lagas de fita, colocam-na sobre uma mesa, e convidam os vizinhos para virem dancar ao anjinho, tocando viola e bailando até 20 outro dia, em que leva a crianga a enterrar”. O dr. Matos e Moura, descrevendo o facto extraordi- nario das despenadeiras de Nisa, fala também da satisfagao com que ficam naquela vila quando morrem os filhos em qualquer familia ®, ® Almanach de Lembr. para 1877, p. 263. 1 Dz. Matos e Moura, Mem, hist. da Villa de Niza, t.1, p. 123 % Almanach de Lembrancas para 1870, p. 287. ™ Mem. historica da Villa de Niza, t. tt, p. 135. 176 BO ESTADOS SOCIAIS Depois das praticas correspondentes ao falecimento e enterro, segue-se sistema de ritos comemorativos anuais, que s40 0 resto do culto dos mortos, admitido pela igreja sob 0 nome de Figis defuntos. Esses ritos consistem também em cantos, dangas e banquetes sobre as sepulturas. As cantigas sobre aS sepulturas ¢ os banquetes fiinebres eram as Dadsila gaulesas (Dihsila, segundo a correcg4o de Belloguet) condenadas pelas Capitulares de Carlos Magno, e que segundo Gregério de Tours existiam no Auvergne, degeneradas em ritos magicos, da mesma forma que na Alemanha do século xi", Este rito comemorativo acha-se entre os Hebreus, como se vé do aviso de Tobias a seu filho: Panem tuum et vinum tuum super sepulturam justi constitue. (Tob., 1V. v. 18.) Na Igreja primitiva conservou-se 0 costume, como se vé pela frase de Santo Agostinho que recomenda acerca dos banquetes funerdrios: Non sint sumptuosae. Importa bem definir o caracter deste cuito com caracter puiblico. Os banquetes sobre as sepulturas aparecem entre 0s povos escandinavos como formando parte das suas festas religiosas; Agostinho Thierry deriva deste uso os banquetes comuns das Irmandades da Idade Média, em que se renova a liga defensiva: «0 terceiro copo era bebido pelos parentes e amigos cujas sepulturas, notadas por monticulos de relva se viam aqui ¢ ali na plani- sie. O nome de amizade, minne, era dado algumas vezes reuniéo daqueles que ofereciam em comum o sacrificio, ¢ de ordindrio esta reunido era cha- mada ghilde, isto €, banquete pago em comum, palavra que significava também associagao ou Confraria, porque os co-sacrificantes prometiam por juramento defenderem-se uns aos outros ¢ de se coadjuvarem como. ir- mos», As satides com vinho sao ainda hoje um sinal de amizade, bem como os bodos nas festas dos santos, s40 0 vestigio do culto dos heréis, da antiga festa da ghilde. Agostinho Thierry descreve a transformagao do costu- me, que na peninsula se liga & existéncia das Irmandades: «Os Germanos, nas suas migragdes tevaram este costume por toda a parte; conservaram-no depois da sua conversao ao cristianismo, substituindo a invocacdo dos Santos a dos deuses e herdis, ¢ ajuntando certas obras pias aos interesses positivos que tinham sido o objecto deste género de associagdes. De resto, a institui- cao original e fundamental, 0 banquete, subsistiu; o copo dos bravos, bebett- “se em honra de algum santo reverenciado ou de algum patrono terrestre; 0 dos amigos bebeu-se, como outrora, em comemoragdo dos mortos por alma dos quais se rezava reunidos depois da alegria do festim. A ghilde crista teve muito vigor entre os Anglo-Saxdes, € vé-se aparecer na Dinamarca, na No- Tuega ¢ na Suécia, pela extingdo do paganismo.» A histéria das associagdes fraternais, das Germanias, Arimanias, Irmandades ¢ Confrarias, em que a liberdade individual se defendeu contra a prepoténcia do feudalismo, esta * Evhmogenie gauloise, t. 1, p. 216. ® Considérations sur Hist. de France, cap. 6. 171 TEOFILO BRAGA ligada a este costume social, que ainda persiste nos usos funerdrios, mas jé sem consciéncia do seu intuito. E preciso portanto separar os Obradorios ou Oblatas, que 0 povo usa pelos enterros, oficios, exéquias e trintarios (ex. Vila de Carros, ete.) dos banquetes sobre as sepulturas, que correspondem a uma fase social mais elevada, como vimos pelo uso escandinavo e germa- nico. Este caracter achamo-lo bem definido no importantissimo documento das Seguidilhas cantadas pelo povo sobre a sepultura do Condestavel; no nosso Cancioneiro popular transcrevemo-las pela seguinte ordem: Seguidilha que as mulheres de Lisboa cantavam pela Péscoa florida na sepultura do Condestavel; — Cantigas que os moradores do Restelo (Belém) cantavam na segunda oitava do Espirito Santo na sepultura do Condestével; — Cartigas dos moradores de Sacavém no aniversdrio do Condestavel. Eis um pequeno excerto de um dos cantos que era pretexto de uma danca religiosa: GUIA 54, e depois todos: No me lo digades, none, Que Santo es el Conde. GUIA sd: O gram Condestabre Nun’Alves Pereira, Defendeu Portugale Com sua bandeira, E com seu pendone. Topos: No me lo digades none, Que santo es e! Conde”. Parece-nos que a proibicdo nos Indices Expurgatorios da Oracéo do Conde se refere a estes cantos inaprecidveis pelo seu valor etnolégico e so- cial. Com valor comemorativo ainda se usa na Rissia o canto do Pesni pogrebalnia ¢ 0 Nad-mertrinsi: «Cantam-no cada domingo, durante um certo tempo sobre as sepulturas dos seus parentes mais proximos, ¢ depois duran- te os grandes dias de festa por algum tempo ainda. Mas 0 que é mais notd- vel, € que cada vez que vao visitar os timulos dos seus parentes, péem em cima pequenos bolos, 4 maneira das colyva dos gregos modernos e da feralia € salicernium dos antigos; acompanham as suas oferendas da conclamatio ou lamentagées usadas na antiguidade.» 7 As dancas finebres russas ou Trisna, so como as que se usavam entre nés na sepultura do Condestavel. E noté vel a persisténcia dos cantos funerdrios, como as Dadsila, ¢ com o carécter ™ Vid Cancioneiro popular, 1. 8, 9 e 10. — Sant’Anna, Chronica dos Carmelistas, 1, P 3.4, p. 466. * Guthrie, Antiquités de Russie, p. 42 e p. 78. 172 FESTADOS SOCIAIS de irmandade, como existe em Santarém: «Durante a Quaresma de todos os anos andam nove homens do campo a cantar de noite pelas portas, pedindo esmolas para as almas. Finda a Quaresma, o dinheiro junto é entregue ao prior para dizer missas pelas almas do purgatério. O prior tem que dar no dia da recepgdo do dinheiro um jantar aos cantores, cujo prego sai daquele dinheiro e o remanescente é destinado as missas. Juntos entéo todos os nove cantam em coro: Rezemos, que todos rezam Este bendito louvado; Também os anjos rezam Na capela do sagrado. Oh que bela perfeigao De ouro tio desejado, Também Jesus Cristo andou Nove meses em sagrado. «Em seguida separam-se em dois grupos, um de seis, outro de trés; aqueles postados & primeira porta cantam cada uma das quadras seguintes, € 0s outros repetem postados junto da porta imediata: A porta das almas santas Bate Deus a toda a hora; Almas santas Ihe perguntam: «Oh meu Deus! que queres agora?» — Quero que deixes 0 mundo, Que venhas para a gléria. «Oh meu Deus! oh meu Senhor, Ai Jesus! quem me la vira, Na companhia dos anjos Também da Virgem Maria. Das almas do purgat6rio E bem que nos alembremos, Nos havemos de morrer, Sabe Deus para onde iremos, etc.» As vozes tornam-se a ajuntar no seguinte coro final: Nés devemos ir ao céu Por umas continhas brancas; Nés somos os devotos Das benditas almas santas. 173 TEOFILO BRAGA Nos devemos ir ao céu Por umas continhas de cheiro, Em nossa companhia venha Jesus Cristo verdadeiro”*. Neste canto ha ainda uma alusao inconsciente ao rito de atirar pedrinhas, que sao as continhas brancas. Os banquetes funerdrios no cemitério eram ainda usados em 1872 em Lisboa. Viterbo no Eluciddrio descreve estes banquetes, que se usam nas festas dos Santos com o nome de Bodos: «0 juiz © irmaos de muitas Irmandades e Confrarias se ajuntavam em certo dit do ano, e & custa do rendimento destas sociedades santas, davam aos pobres um abastado jantar de carnes ¢ outras coisas comestiveis, de que eles mesmos € outros seus amigos participavam. Muitos em seus testamentos dei- xaram grossos legados para instituir ou manter estes bodos.»” Viterbo atri- bui este nome de Bodo aos dos banquetes germanicos bodanos, dados em honra de Wodan. Nas antigas associagdes mortudrias, a que em Roma se chamavam Columbaria ou Collegia compitalitia, entre as quais se estabele- ceu a Igreja Crista, ja existiam estes banquetes comemorativos com 0 intuito cultual que ainda conservam, bem como na visita aos cemitérios e ornamen- tagdo das sepulturas, como no Porto e Lisboa, Catalunha ¢ Sicilia™. Assim como para os povos aricos os mortos apresentavam um carécter sagrado, sendo adorados e venerados pelos gregos com 0 nome de deuses subterraneos, pelos romanos como de deuses manes, € entre os povos cris- taos pelo de Fiéis defuntos, eram também considerados como entidades ma- lévolas quando se nao satisfaziam os ritos comemorativos. A alma penada é esse ser malévolo, que anda errante por lhe ndo terem cumprido a tiltima vontade, ou como entre os greco-romanos, porque ao enterrarem o cadaver ndo se cumpriram perfeitamente os ritos funerdrios. Fustel de Coulanges descreve estes dois extremos da mesma crenga na nossa raga: «O Hindu como 0 Grego considerava os mortos como seres divinos que gozavam de uma existéncia bem aventurada. Mas, havia uma condi¢ao para a sua felici- dade, e é que as oferendas Ihes fossem regularmente levadas pelos vivos. Se se deixava de cumprir 0 sraddha por um morto, a sua alma saia da mansio pacifica e tornava-se uma alma errante que atormentava os vivos; de sorte que se os manes eram verdadeiramente deuses, era s6 enquanto os vivos os honravam com um culto. — Os Gregos ¢ os Romanos tinham exactamente as mesmas crengas. Se se deixasse de oferecer aos mortos 0.banquete fiine- bre, imediatamente os mortos saiam de seus timulos; sombras errantes, ouviam-nas carpir por noites silenciosas. Eles increpavam os vivos da sua negligéncia impia, procurando puni-los com doengas, ou esterilizando os ™ Ap. Z. Pedroso, Positivismo, t. 1¥, p. 408. ® Elucidario, t. 1, p. 140. Ed. Inn. " Rivista de Letteratura popolare, p. 47. 174 sa 88 ESTADOS SOCIAIS campos.» E este lado malévolo do culto dos mortos que mais subsiste en tte 0 povo portugués, a que se chama medo das almas do outro mundo. Sio iniimeras as superstigdes que se ligam ao passamento, enterro e sufrégio, sob a crenca de um poder malévolo do finado. Transcrevemos aqui algumas dessas supersticdes coligidas por Consiglieri Pedroso: Quando uma pessoa morre, 6 bom queimar-lhe a cama, para nao voltar a este mundo. (N° 96.) —E bom quando uma pessoa est4 para morrer, abrir a janela do quarto em que ela esta. (N* 124 e 294.) — Quando uma pessoa morte, 0 seu carnal nao volta mais; mas pode aparecer uma sombra ou uma estdtua. (N.° 588.) Quando se vai amortalhar um defunto, se ele est mole (i sem rigidez) ¢ ndo custa a vestir, é sinal que leva atras de si pessoa da familia. (N° 213.) — Quando se vai acompanhar um defunto, para ele nao lembrar mais, ou a alma dele no aparecer, deve deitar-se-Ihe na cova uma mao cheia de terra. (N.* 29 € 589.) — Quando morre alguém, ndo se devem apagar as luzes que estiverem a alumiar o morto, até que 0 corpo chegue A igreja. (N2 44.) — Segundo algumas pessoas, quando um defunto vai para a igreja sem ser acompanhado por um padre, a alma do falecido fica pelo caminho, e anda errante pelo sitio por onde se perdeu. (N.° 466.) — A alma dos individuos que morrem, aparece as vezes debaixo da forma de um cdo preto. (N.° 447.) — As almas do outro mundo, se ficam devendo alguma coisa neste, e Iho ndo perdoam & hora da morte, tem que vir entre os vivos para o ganharem. (N°592.) — Quando lembra uma alma do outro mundo, deve rezar-se-lhe um padre-nosso e dizer: Toma lA este, mas nao é para avesar. (N.° 95.) Quando se fala nalguma pessoa morta, deve dizer-se: Deus te chame 14, que ninguém te chama cé. (N.° 185.) —Quando uma crianga ao morrer fica com os olhos meio abertos, morre atras dela a pessoa que mais a estimava. (N.° 101.) — B bom pregar alfinetes no vestido dos anjinhos (criangas falecidas em tenra idade) porque elas vao pedir pela pessoa que os pregou. (N.° 654 e 378.) — Quem tem uma ferida, livra-se dela facilmente. Para isso limpa a ferida a um pano, mete 0 panto por baixo da cabeca do defunto, dizendo-Ihe: «Oh fulano (pelo nome) leva-me isto para 0 outro mundo.» (N.° 652.) O povo também cura as. alporcas (escréfulas) fazendo-as cogar com as unhas de um morto. Para que © morto nao volte a este mundo, além da pratica rigorosa de certos ritos propiciatérios, hé também a ceriménia de semear 0 morto. Lemos Tecentemente num jornal da ilha de S. Miguel: «quando passava para 0 cemité- rio o acompanhamento que conduzia o cadadver de Francisco Vicente, saiu A rua uma mulher trazendo uma porgdo de cinza, e dizem que misturada com sal torrado, que deitou por cima do morto, dizendo estas palavrinhas: Quando esta cinza embarrelar, E este sal temperar, E que has-de cé voltar™. é antique, p. 17. "A Republica federal, 1° 135 anno 111, (1882). Ponta Delgada (Acores), 175 TEOFILO BRAGA A esta ceriménia chama-se propriamente 0 baptizado de cinza; para se- mear 0 morto & preciso ir atras do caixéo até ao cemitério deixando cair escondidamente sal misturado com cevada. Quando morre alguma pessoa, que em vida inquietou outra, a que foi inquietada, torra tremogo, cevada ¢ sal, moe tudo junto € acompanha o préstito do defunto langando na terra, durante 0 camiaho A maneira de quem semeia, alguns pés, dizendo: Quando este tremogo nascer, Esta cevada enrelvar, E este sal temperar, Seja quando me voltes A inguietar®. No Minho espatha-se um alqueire de paingo, para afastar o espirito que vem inguietar alguém; porque ele como subsiste com um graeira por ano, fica para muito tempo ocupado, Uma das crendices do enterro € a ideia da bem-aventuranga ligada ao facto de crescer a terra que torna a encher a sepultura; nos Cantos popula- tes do Alentejo observa-se: Abre-se uma sepultura Na terra mais recalcada, Enterra-se a criatura, Fica a terra como estava. (N.° 1316.) As vezes a alma penada toma inabitavel uma casa ou um sitio qualquer: «Gentes ha, que ndo duvidam despender com benzedeiras e impostores todo seu haver, como se the figure que em sua casa anda alma do outro mundo.» * D. Joao Il julgava-se perseguido pela alma do Duque de Bragan- ga. que ele mandara executar em Evora em 1483; e © Duque D. Jaime ouvia os gemidos da alma de D. Leonor de Gusmao que ele assassinara por esttipidas suspeitas de infidelidade. Segundo a crenca veneziana, catala ¢ portuguesa, as almas fazem-se lembradas puxando pelos pés aos que estio na cama®, No direito portugués, sob 0 titulo de instituigio da alma por herdeira, chegou a influir este terror determinando um culto propiciatério, sendo ex- tinta essa instituicdo pelas leis de 25 de Junho de 1766 ¢ de 9 de Setembro de 1769. As almas que vém a este mundo fazem um ruido como o de cor- rentes arrastadas, on enfronham a roupa de algumas pessoas, sendo entio- necessdrio requeré-las, para se saber qual é a sua vontade; «logo que apare- “\ Almanach do Archipelago acoriano, de F. M. Supivo, para 1868, p. 108. * Sousa Moura, Panorama, t. V1 p. 408. Rivista di Lemeranura popolere, t.1. p. 48. 176 ESTADOS SOCIAIS ce um espectro a alguém deve gritar-se-Ihe: Da parte de Deus te requeiro digas 0 que queres, porque se ha-de fazer, podendo ser. — Nao se dizendo isto, principalmente as uiltimas palavras é muito perigoso; pode a pessoa viva ficar com a alma do morto até se cumprirem as ordens do outro mundo**. As almas dos mortos também costumam meter-se nos carpos dos vivos, a que vulgarmente se chama ter esprito, e que corresponde aos fenémenos patoldgicos do histerismo e da epilepsia; quando fala uma alma, em alguém, € para pedir o. cumprimento de alguma promessa, e cré-se que ela abandona o corpo na forma de wma pomba. O poder dos mortos acha-se sobretudo nas evocagées, como vemos entre os Hebreus, na evocagao de Samuel, ou na /lfada na aparigio da sombra de Patroculo, A evocagao € um proceso magico, empregado para conhecer 0 futuro ou para exercer vingangas; ¢ ainda empregado na bruxaria portugue- sa; nos romances e lendas populares Santo Antonio evoca a alma do morto para confessar quem foi que o matou. Ha formulas magicas para estas evo- cages. No processo de Luiz de la Penha (Inquisig¢ao de Evora, de 1626) vem a seguinte indicagao para chamar uma alma: «P6r-se-4 uma pessoa em pé uma hora com um rolo aceso diante de si, de cera; ha-de rezar trinta e trés credos € trinta ¢ trés ave-marias, € trinta e trés padres-nossos, e antes que teze isto, dird desta maneira: Deus é luz, Luz é Deus Requiescant in pace Pelos figis de Deus. E isto trés vezes; depois ha-de dizer isto: Alma santa desamparada a este mundo sejas tornada e de Deus sejas desconjurada; Por aqueles desejos, ardores e fervores que tendes de ver a Deus nosso senhor, vos pego me venhais falar, me respondeis a0 que souberdes; € isto que aqui rezo nao vo-lo ofereco, nem vo-lo dou até me nao virdes falar; e se me vierdes falar dar-vos-ei tudo (© que até agora rezei, e me pedirdes: amen. ™ Consiglieri Pedroso, As almas do outro mundo. No Pasitivismo, t.W. p. 387. 177 TEOFILO BRAGA «Isto 6 para saber o que esta por vir, e para saber se est4 uma alma em bom lugar, ou onde estard, ¢ isto ha-de fazer-se todas as noites até que a alma lhe venha falar e aparecer.»*? Em Guimaraes, no adro da igreja do campo da Feira juntavam-se ainda ha pouco varias mulheres chamando as almas do purgatério®, Além destas aparigdes, hé outras formas com que aparecem og mortos, que dao lugar a um vasto ciclo de lendas e contos das almas do outro mundo; em todas elas predomina o caracter malévolo: «O balborinho (rede- moinho de vento) sao as almas perdidas que nao puderam entrar no cé por deverem restituigéo aos vivos. O povo foge de ser apanhado por ele (0 balborinho) mas vai-o seguindo e gritando sempre. O grito mais favorito é Vai-te para quem te comeu as leiras! — Quando o redemoinho se desfaz comegam a cair as palhas que ele sorveu para 0 alto, seguem-se com muita atengao estas palhas, e onde elas caem sabe-se logo que uma das almas perdidas fez em vida roubo naquele campo. (Minho.)» # A lenda de D. Jozo tem uma parte popular comum a muitos paises da Europa, relativa 20 banquete para que foi convidado 0 morto; em Portugal € muito geral a crenga conhecida pelo nome de Procissdo dos defuntos, da qual apresenta- mos uma versio do Algarve no conto da Mulher curiosa™, ¢ se acham ou- tros na forma de lenda em Ponte de Lima, Guimaraes, S. Crist6vao de Mex famude, Valenga e Galiza: «Uma pessoa antes de morrer jA se vé sete anos antes na Procissdo dos defuntos. A Procissio dos defuntos faz-se todos os dias as trindades; ninguém a vé sendo as pessoas que tém uma palavra de menos no baptismo. E estas so as que sabem as pessoas que hio-de mor- Ter, porque as véem na procissao.»®? Uma das manifestagdes das almas pe- nadas é uma ave imaginaria, que de sete em sete anos se ouve piar no Alentejo e Algarve, a que se chama a Zorra da Odetoca, tormando-se 9 seu grito mais perceptivel A meia-noite ¢ ao pina do meio-dia. Como as crengas no poder malévolo dos defuntos subsistem no seu vigor entre 0 povo, nao acharia limites este estudo se tivéssemos simplesmente em vista uma compilagdo material para a recomposigao de um sistema cultual tao importante, ¢ das nogdes psico- ldgicas animistas bastam-nos os factos que ai ficam coordenados. Terminando este estudo dos ritos funerdrios portugueses acrescentare- mos alguns factos sobre o assassinato voluntério dos moribundos, mais vulgar € persistente do que pensdvamos. Numa aldeia do concelho de Tondela, estava uma velha, alcunhada de bruxa, nas vascas da morte; como se protongasse 0 paroxismo, disseram as Apud Positivismo, tm, p. 203. ** fbidem, T. WV, p. 399. * Ibid, tv, p. 391; na Beira chama-se-lhe besbrinho, ™ Contos tradicionaes do Povo portugues, t.1. p. 148, " Pedroso. ibidem, p. 395. — Parece-nos ser esta a origem popular da grande tradigio ta Danca da Morte, idealizada na pintura, na poesia € no drama medieval 178 ESTADOS SOCIAIS vizinhas: «que ndo esperassem que ela mortesse antes de Ihe darem com o pau da cruz, porque, diziam elas, a0 contacto do pau sagrado, se afastava 0 deménio, que naquela hora tentava de novo sujeité-la ao seu dominio Com efeito, dentro em pouco, nove pancadas, capazes de produzirem 0 mi- lagre, Ihe eram aplicadas com 0 pau da cruz, por uma vigorosa pitonisa (andloga a despenadeira de Nisa) € passados alguns minutos a pobre sucum- bia, ov vitima da pancadaria, ou porque a sua hora tinha soado! Estes casos ¢ quejandos dao-se por aqui (Viseu) ainda a cada paso». © uso geral primitivo foi-se particularizando as pessoas que tinham pacto com 0 Diabo, cujos paroxismos eram demorados. Na ilha de S. Miguel, 0 que tem pacto no pode morrer, A espera de que alguém queira aceitar os seus poderes; no estertor julgam que essa pessoa diz: — Quem pega, que eu largo! E preciso que alguém diga: — Pega aquela tranca da porta! para que ela possa morrer. Aqui ainda figura a tranca, mas nao j4 de um modo tao directo como nos arredores de Viseu. Em uma Meméria Dos enterros precipitados ¢ seus in- convenientes, publicada pelo Dr. Assis, em 1837, lé-se este facto explicdvel pela tradicao: «Entre nés, os individuos que parece haverem exalado 0 tilti- mo suspiro, s40 logo escandalosamente abandonados; e é pratica geral tirarem-lhes 0 travesseiro, ainda quando agonizantes, circunstancia que pode contribuir para aumentar a congestdo cerebral, j4 determinada para a cabeca.»% As relagdes entre os ritos funerdrios e os nupciais, que observamos nos anexins populares, principalmente neste que est ainda em todo 0 seu vigor: «O casamento & a mortalha, no céu se talha» acham-se manifestas em certos costumes provinciais: «Em muitas freguesias rurais de Trds-os-Montes existe desde tempos imemoriais a costumeira de tocar a finados quando alguém casa.» Formas populares primitivas do Casamento. — O estudo das complicadas formas do casamento entre os povos selvagens, ¢ ainda entre as racas supe- tiores que iniciaram a civilizacao humana, como os Semitas ¢ os Arias, tem sido largamente desenvolvido pelos etnologistas sob 0 ponto de vista da comparagéo, mas bem pouco enquanto a relacdo desses ritos e ceriménias com os estados sociais. E este ponto de vista social o esbogo de coordenagao sintética pelo qual se devem relacionar tao complicados elementos, alguns * Almaniach de Lembrancas para 1865, p. 212 ® Annaes da Sociedade Litteraria pormense, n° 2, p. 57. (1837). Na obra do dr. Matos ¢ Moura, vem esta importante revelagao des costumes de Niza: «quando alguem esté por muito 'empo nos transes da agonia sem poder acabar, vo chamar cestas mulheres mais desembaraga- as ¢ resolutas, as quaes chama despenadeiras, que acabam de a matar ¢ depenar, julgando pacarem um acto de grande catidade poupando-Ihes of sofrientos¢ agonian, Op. ct tt * Almanach de Lembrangas para 1860, p. 299. 179 TEGFILO BRAGA dos quais persistem desde a vida selvagem até as civilizagdes mais elevadas Sob esta ideia escreve Lubbock: «O casamento por coemptio entre os Ro- manos indica uma €poca na sua histéria em que se comprava habitualmente as mulheres, como tantas tribos selvagens o fazem ainda hoje. O simulacm do rapto da mulher na ceriménia do casamento, entre todos os povos, nao se pode explicar sendo pela hipstese, que o rapto das mulheres era outro a triste realidade.»® Estas duas formas do casamento ainda existem en Portugal, 0 que nos nao espanta em relagdo da sua universalidade; 0 casa mento pelo rapto ou captura acha-se usado na Austrdlia, entre os Papuas Esquimés, nas Filipinas, na China, e entre os Romanos e os povos Eslavos; © casamento pela compra ou dote pratica-se na Catraria, no Gabio, Tima- nis, entre os Bongos, na América, na Mongolia, na China, e existiu na Gré- cia e em Roma®. Por isto se vé que é imensamente necessdrio recompor com estes elementos os estados sociais primitivas, de que eles sao a expres so actual, ou também, como diz Lubbock: «as reliquias das idades passa das». Seguiremos este processo racional na coordenagdo dos costumes portugueses. Partindo do estado presente da sociedade até nos remontar- mos As suas crustas ou constituicdo primitiva, vemos com a forma de nagio coexistirem os vestigios da organizagao da tribo, e do isolamento egojsta do familismo. As relagées sexuais do homem com a mulher transformaram-se sucessivamente e aperfeigoaram-se moralmente A medida que a sociedade se elevou do estado familista ao estado de sribo, « deste ao estado de nagao. A forma mais remota da organizagao social € aquela em que a agrege- gio da familia se estabelecia pela vida sedentaria da mulher, isto é, n0 regime do parentesco derivado da Maternidade. Este estado de organizagio social € conhecido em etnografia pelo nome de Matriarcado, persistente nas ragas inferiores da Africa, entre os povos de raga amarela, como no Tibete, na China, no Peru, e entre as Cossacos, e mesmo em povos éricos como na Grécia. Lenormant determina no Genesis, uma alusao evidente a este regime social do Matriarcado, no édio entre a Serpente (simbolo das populagdes agricolas) e a raca da mulher.” Na linguagem populer conserva-se na frase Filho da mae um caracter insultuoso, atribuido a es- se estado de um hetairismo inicial correspondente a um culto estoniano ou de prostituigao sagrada, de que temos abundantissimos vestigios nas nossas superstiges populares. Este culto celebrava-se nos vales pantano- sos, cujos templos eram in solo palustri®; € em relagaa com estas formas cultuais, que o filho sem pai conhecido se chamava Filho das ervas, ¢ a " Origines we fa Civilisation, p. 2 % Letourneau, Sociologie, p. 311 a 354 % Vid. 0 nosso Systema de Sociologia, p. 332 J. Baissac, Origine de ta Religion, t.1. p. 143. 180 ESTADOS SOCIAIS mulher da sociedade hetairista ervoeira. Na cancao da Engeitada, do Al- garve, acha-se: Eu nao tenho pai, nem mae, Nem nesta terra parentes; Sou filha das pobres ervas, Neta das dguas correntes™. Também no Elucidario traz Viterbo um trecho de um documento de Tomar de 1388, em que se cita a palavra ervoeira como uma injuria: «E se oconfrade chamar a confrada Ervoeira.... pague V soldos & Confraria. terbo na sua explicago acrescenta: «Ainda hoje dizemos: filho das ervas, aquele cujo pai se ignora, por sua mae tratar desonestamente com muitos.» Este estado social do Familismo hetairista, apresenta duas formas gerais de agregagdo, a que resulta da Promiscuidade, e a que deriva da preponderdn- cia da mulher no regime da Ginecocracia. De ambas estas formas rudimen- tares temos abundantes vestigios consuetudinétios. Do estado espontaneo da Promiscuidade, temos costumes praticados pela uniao temporéria, pela pros- tituigdo religiosa, e pela consideragao da virgindade como ignobil. No casamento simbélico no Bouro acha-se a consagragac do costume da unido temporaria: «Nos montes criam-se muitos gados que séo guardados por mogos e mogas, que se desregram por causa das Ocasides proximas; ¢ por isso quando se efectua algum casamento, no acto de irem receber-se vern um dos principais parentes do noivo a porta do sogro, onde est um outro dos principais parentes da noiva, e tirando ambos os chapéus, pergun- tao da casa ao de fors — Que procurais? «Responde este: —Mulher, honra, fazenda e dinheiro. «Logo 0 de dentro toma a esposada pela mo, € apresentando-Iha, diz: Ela cabras guardou, Sebes saltou, Se em alguma se espetou, E a quereis; Assim como é, Assim vo-la dou. «Dito isto dirigem-se todos A igreja e celebra-se 0 matriménio; ¢ nao pode haver desuniao, nem questao alguma ainda que haja defeito, porque ela se vale da forga daquelas palavras trocadas entre os parentes de um € “Na sua linguagem popular diz Antonio José: «j4 me néo basta ser ur Saramago nascido das ervas..» Operas, tp. 320 181 TEOFILO BRAGA outro, que so um baptism que lava de todas as culpas passadas.»™* Esa formula portuguesa aparece num refrdo espanhol com 0 mesmo sentido: A Castilla fué, De Castilla volvi Barranco salté, Garrancho le entrd, Tal cual esta Tal te la doy. E importante a circunstancia de referir-se este costume a vida pastoral, Numa cantiga popular hé uma referéncia ao culto das pedras falicas, ra forma da danca com que se faziam os casamentos ou unides temporérias Trés voitas dei ao penedo Para namorar José, Namorei-o em trés dit Valeu-me a mim dar ao pé. F evidentemente um costume das ragas ante-histéricas da Europa; Gi rard de Riale cita trabalhos de Piette e de Lacaze sobre as superstigéts relativas aos monumentos megaliticos, nas regides pirenaicas, em que a rochas falicas conservaram a confianga dos aldedes: «tal € a pedra de Pour beau, a sombra da qual as unides entre raparigas e rapazes se concluem antes de se apresentarem ao maire ou ao cura, em volta da qual se dangava na noite de terca-feira gorda em uma danga obscena; tal é também o menit de Bourg d’Ouvil, que as mulheres abragam e tocam de um certo modo pata serem fecundas> . © antigo casamento portugués era feito religiosamente ¢ chamava-se de Recabedo, e tinha uma forma civil, chamada de Marido Co- nocudo; conserva-se porém nos costumes uma forma natural, a que se che mava de Morganheira. Deste casamento, em que nao era conhecido o mari- do, ¢ era de cardcter tempordrio, diz Viterbo: «Entre as pessoas mais distin- tas e nobres, ¢ talvez reais, se acharam estes matrimonios, que aqui s: opdem ao marido conozudo; pois neles se ocultava 0 marido e s6 por acaso se vinha a conhecer. Estes eram os casamentos celebrados, como diziam, 4 morganheira ... — Eis aqui os matriménios clandestinos, que entre nbs fran- camente grassaram até aos fins do século xv.» No casamento A morge: nheira conservava-se © parentesco pelas maes, e 0 direito civil reconheceu pela avoenga, esse parentesco invocado na compra dos bens tanto por tanto. 10 J. A, d’Almeida, Dice. abrev. de Chorographia, t. 1, p. 157. "™D. Joaquim Costa, Poesia popular espafiola, p. 54, 488 Mythologie comparée, t.1, p. 173. 48 Elucid., vb. MARIDO CONOZUDO. 182 ESTADOS SOCIAIS Nas Constituigdes dos Bispados, de Portugal, proibe-se a co-habitagao antes do casamento, 0 que leva a inferir pela sua persisténcia, a pratica do primit vo costume hetairista. Em uma breve comunicac4o ao Congresso antropolé- gico de 1880, traz 0 sr. Pedroso «Asseguraram-me que em um sitio chama- do a Magdalena, nos arredores do Porto, alguns noivos observam ainda 0 uso de co-habitarem antes do casamento. Mas onde o costume se apresenta sob uma forma verdadeiramente caracteristica, sem sombra de dtivida, quan- to a sua importancia tradicional, é numa pequena aldeia, nas cercanias de Lisboa. Esta aldeia esta compreendida na zona etnografica conhecida sob o nome de Saloios, cuja populagao conserva um grande numero de usos anti- gos € interessantes no mais alto grau. As raparigas que chegam & idade de dezasseis anos, pouco mais ou menos achando-se ainda virgens, sao ali ob- jecto de mofa continuada, a ponto que para fugirem a esta vergonha, se entregam com grande facilidade ao primeiro que as requesta, e estas unides efémeras e pouco recomendaveis em quanto a pureza dos costumes, conti- nuam de ordinério até ao momento em que elas se acham gravidas. Entao uma nova forma de viver comega para elas, esquecendo o seu passado aque- les que se julgam o pai da crianga, desposando-as. Pela sua parte elas tornam-se em geral honestas € passam dai por diante por boas mulheres.» A ideia da virgindade igndbil & comum a certos povos selvagens como os Sakkalaves de Madagascar; na linguagem popular temos ainda uma locugao afrontosa que se diz 4 mulher que nao teve relacdo sexual: Ficou para tia. A ginecocracia, conhecida vulgarmente pela tradi¢éo das Amazonas, é um esbogo de regime social provocado pela estabilidade das mulheres e pela dependéncia dos filhos por efeito de uma morasa criagao. Lubbock conhe- ceu a importancia deste facto natural: «A forca do lago de parentesco deri- vando do aleitamento pela mesma ama, tal como existe nos montanheses da Escécia, € para nés um exemplo familiar dos lagos de parentesco bem dife- rentes daqueles que existem entre nds.» Em Portugal, ainda se reconhece este parentesco por via da mesma ama, chamando-se Colacos ou irmaos de leite Aqueles que foram amamentados pela mesma mulher, embora de classes diversas "5, Do regime da ginecocracia ficaram na civilizacéo humana os se- guintes costumes: a poliandria, ou casamento de uma mulher com muitos homens, a escolha do marido pela mulher e o facto de cardcter essencial- mente religioso no celibato da mulher. A poliandria tornou-se repugnante, € ha apenas uma reminiscéncia afrontosa no Nobilidrio e no Cancioneiro de Garcia de Resende na palavra Burrella; no direito anglo-saxao chama-se Birele a mulher que enche os copos no banquete para os homens beberem, € 0 simbolo da oferta do copo era o sinal da escolha do marido feita pela '™ Origines de la Civilisation, p. 136. "= Segundo a Ord. Afons., liv. v, tit. 139, chamava-se collacia, 0 privilégio concedido aos que tinham 0 parentesco de leite com os cavallleiros 0 ndo poderem ser agoutados ou ter pena vil (Vid. Viterbo, Elucid, vb.° COLLACIA.) 183 TEOFILO BRAGA muiher, Entre os Celtas Ligtirios, as raparigas é que escolhiam os marides, como se sabe pela lenda da fundagdo de Marselha, revelando elas a prefe- réncia no fim do banquete dado pelos pais aos pretendentes 5, Achamos esta forma de casamento completamente conservada em Vermoil, descrita no Diciondrio Abreviado de Corografia: «As maes de familia desta freguesia, quando pretendem casar as filhas, levam-nas a trés espécies de romarias que os habitantes daqueles arredores costumam fazer, e si0 Conceigo Espirito Santo e Bodo de Vermoil. Perto da tarde, maes e filhas, todas vestidas de estamenha ¢ em corpo, com chapéu de aba larga na cabeca, aparecem no arraial, e chegando perto dos rapazes a que j4 tém deitado o fito, chamam- -nos para a venda, onde Ihes pagam o vinho, bebendo cles juntamente com as filhas: estas indo j4 preparadas com dez réis e um guardanapo lavado, compram tremogos ¢ dizem: Dé a mim, dou a ti, Os manéis todos tafuis com seu calgaéo de tripe e camisa de linho com seus colarinhos altos, abrem a jaleca e mostram as namoradas © bolso furtado, dizendo-lhes: Dou a ti, Elas tiram os tremogos dos bolsos, ¢ eles do guardanapo. Dai a pouco ouvem-se as vezes as denunciagdes de um casamento que nao teve outros principios senao esta simples troca de palavras e favores com que reciprocamente se brindaram os dois contraentes.» ”’ No casamento na freguesia de Bonfim, a mulher oferece ao homem uma pequena moeda, por-ventura alusiva a um acto praticado noutras povoagées, como este da compra dos tremocos. 0 celibato da mulher aparece nos costumes de muitos povos antigos, como no México e em Roma: entre nés foi aproveitado para os votos da clausura, ¢ quando uma mulher resolve ficar solteira ainda se diz: Ficou para vestir imagens. Entre os Iberos, segundo Estrabao, predominava o regime do matriarcado, ou do parentesco pelas maes: «Tal € 0 costume entre os Canta- bros de casarem os homens dotando as mulheres, sem que elas levem coisa alguma. As filhas sao ali herdeiras de tudo, de modo que elas sao as que se encarregam da colocagdo e casamento dos irmaos, resultando daqui uma espécie de ginecocracia, ou aristocracia mulheril, que em verdade nio € coi- sa bem pensada em politica.» Além deste testemunho de Estrabio, (Ii, IV, 18), Diodoro Siculo indica 0 mesmo regime social nas Baleares, ¢ César entre os Bretées. A organizagdo ginecocratica é caracteristica dos povos mongoldides, e isto define-nos bem 0 tipo antropolégico do Ibero. A sobreposigao de outras racas fizera preponderar na civilizagao penin- sular o regime patriarcal; assim a organizacao familista seguiu-se a organiza. gao social da tribo, nas suas diversas relagdes endogdmicas e exogamicas. A transicao do regime do matriarcado para o patriarcal observa-se nos vesti gios consuetudinérios da Couvade, ¢ nos simbolos juridicos da Adopgao. A Couvade, costume tao particular dos povos selvagens, existia entre 0s povos 4 Belloguet. Ethnogénie gauloise 1.1, p. 391 1 JA d'Almeida, op. cit, tM, p. 190. ™ Geogr, p. 116. 184 ESTADOS SOCIAIS ibéricos, como se vé por esta passagem terminante de Estrabao: «As mulhe- tes sio to fortes como os homens, mesmo para os servigos mais pesados; clas trabalham na lavoura; e apenas acabam de parir comecam a servir os homens € sdo estes os que ficam na cama em lugar delas.» Em certas terras de Portugal, 0 pai do recém-naseido come marmelada ou molete, para que # crianga se fortifique. A simulagdo do parto, como fundamento material da paternidade, conservou-se no simbolo juridico da adopcao entre os Roma- nos, ¢ nO addgio portugués ainda se diz: «Filho alheio, mete-o pela manga € sair-te-d pelo seio.» No regime da tribo patriarcal, as formas do casamento variaram segundo © casamento era efectuado dentro da mesma tribo, ou endogdmico, e fora da tribo, ou exogamico. O casamento fora da tribo teve formas violentas de rapto © combate, € ainda hoje os adagios conservam esse espirito de hostili- dade: Quem ao longe v. Ou vai enganado, Ou vai enganar casar, No casamento dentro da tribo hé certas relagSes com as formas famili tas anteriores, tais como 0 Sacrificio a comunidade pelo marido ¢ a promis- cuidade antes do casamento ou prelibagao. Frei Bernardo de Brito alude a este costume: «Se algum homem do Porto quisesse receber mulher de Bra- ga, ¢ houvesse consentimento dos parentes para esse fim, a ndo levasse de sua honra, mas qualquer dos parentes que ela escolhesse; ¢ a graca era que acabados os convites ¢ jantar que se dava naquelas festas, 0 triste noivo cobria a cabega com um pano, e tomando a noiva sobre os ombros, a levava até A cimara, onde o parente os estava esperando, etc.» Brito parodiava nisto as velhas tradigdes da Coullage, da Jambage ou Marcheta. Em Espanha ainda em 1810 0 deputado por Valéncia Lloret alude ao direito de pernada, usado em Verdum, segundo um impresso de 1786", A comunidade contentava-se com a paga pelo marido do seu direito exclusivo a mulher; é assim que se explicam variadissimos costumes: «Em Tomar ... 0 que queria casar naquela vila cavalgava um cavalo, com uma langa na mao, e levando um alqueire de pao cozido e um almude de vinho, chegando ao castelo dava com a langa na porta, dizendo: Cavaleiro quero ser! Saia 0 alcaide do castelo a esta voz, e cobrava a pitanga, voltando 0 noivo para casa habilitado para poder casar-se; e se algum nao satisfazia esta ceriménia, nem pagava aquele emolumento, 0 alcaide por via de multa levava-lhe 0 oitavo.»"? Ainda mo- ™ Delicado, Adagios, p. 79. “© Monarchia luzitana, t. 1, p. 535. ™ Soriano, Hist. da Guerra Civil, 2.* Bpoea,t. 11, p. 643, ™ Panorama, t. 1. doe. da época de D. Joao I 185 TEOFILO BRAGA dernamente em Tomar, o noivo vai buscar a noiva a casa da madrinha; a noiva esconde-se por detras da porta, e somente depois de ter o noivo respon- dido a certas perguntas é que se apresenta; este mesmo costume observa-se na populacéo do Barroso. Na Guarda a noiva fecha-se num quarto com algumas das suas amigas solteiras; quando 0 noivo bate a porta nao lhe abrem sem que ele tenha primeiramente respondido a dadas perguntas, ¢ depois de aberta a porta a noiva esconde-se, e logo que 0 noivo a acha vio todos para a igreja. O respeito pela comunidade acha-se em algumas aldeias da Beira: quando 0 cortejo do noivado vem da igreja, os convidados vém atirando pelo caminho fatias de pao de rala para conseguirem passar por entre 0 povo, que finge querer arrebatar a noiva™. O sacrificio a comunida- de & ainda evidente no costume de demorar a consumagao do acto matrimo- nial; em Manteigas 0 casamento s6 se consuma quatro dias depois de cele- brado; nos arredores da Covilha ao fim de trés dias, bem como na povoagéo de Lavos junto da Figueira; no Peral, proximo das Caldas da Rainha, nio se mantém 0 costume da separagao; mas faz-se durante trés noites um chariva- ri desesperado a porta dos noivos para os nao deixar dormir; na Vila da Feira, depois do casamento o noivo sai por uma porta € a noiva por outra. Na Bstremadura e Alentejo, o padrinho tem de atirar aos rapazes conteitos e dinheiro, e se 0 nao faz apodam o casamento com chufas: Desde que morreu o Félix, Nunca vi casamento tao reles. Nas formas do casamento em Germelo é mais evidente 0 sacrificio comunidade: «Primeiramente 0 aoivo com os seus parentes vai buscar a noi- va, que nao deixam sair de casa sem alguma dificuldade; vao dali para a igreja, e a0 voltar para casa tudo so obstaculos a vencer: uns poem-Ihe na frente mesas, com agafates de flores, 86 dao passagem depois de Jhes di- rem alguma coisa; outros atravessam a rua com fitas, exigindo uma certa portagem, enfim todos os obstécutos se vencem com ofertas; chegados @ casa da noiva ela recolhe-se € 0 noivo vai para sua casa. Findo isto, de case da noiva saem trés mulheres a oferecerem ao povo tabuleiros com papas cortadas em quartos; de casa do noivo saem trés homens distribuindo cus- curéis em um agafate, e dando copos de vinho. Acabada esta ceriménia entram os convidados, assentando-se a mesa sem disting&io de pessoa; no fim do banquete aparece 0 noivo com a falange dos seus convidados, que vim buscar a noiva; os de fora querem entrar a forga, os de dentro defendem-se, trava-se a luta, € nisto os poetas Iangam seus versos, pedindo a entrega ds noiva, outros retrucam as cantigas, que ndo a devem dar, até que passado 0 tempo conveniente vence 0 que tem de ser. A noiva é logo arrebatada em "8 Ap, Pedroso, De quelques formes du Mariage populaire en Portugal. "Leite de Vasconcelos, Tradicées, p. 218 186, ESTADOS SOCIAIS triunfo e termina tudo.» "5 Embora j4 apareca aqui o combate e o rapto, a cerimonia é essencialmente alusiva a um resgate e satisfagéo 4 comunidade. No Foral de Pesqueira, Paredes, Souto, Linhares, Anciaes, dado por D. Afonso Henriques e reformado por D. Afonso Ii em 1218, pagava-se 0 direito de Osas & comunidade; este tributo veio a cair especialmente sobre as Vilivas que convolavam a segundas nipcias, como se sabe pelas Inquiri- gées de D. Afonso IIT; 0 tributo das Osas (abreviagio de Goyosa, ¢ contra- posto a Luctuosa) equiparou-se na tradigéo popular a0 costume da preliba- ao. Viterbo alude a tradicéo, que dura nas margens do rio Lima, dizendo: «que um Florentim Barreto, senhor absoluto da freguesia de Cardielos, ¢ fundador da Torre, que hoje mesmo se conserva com 0 nome de Torre de Dom Sapo, extorquia dos seus vassalos recém-casados a infernal marche- ta...» 8 De facto a confusdo das Osas com a prelibagao resulta de uma relacdo primitiva com um costume social que se transformou na prestagdo em tributo de géneros ou dinheiro. O dote paternal e a compra de corpo sie formas do casamento endogamico na tribo patriarcal. O dote tem também as suas formas populares: «Em Lanheses ¢ subirbios (Minho), no dia do casa- mento, a noiva faz-se acompanhar do seu dove (geralmente uma caixa com muita roupa) num carro de bois, ¢ puxam os dois noivos 0 carro para dentro da igreja até chegarem ao local do casamento: terminada a ceriménia, tornam os noivos a levar © carro para a porta, onde de novo se poem os bois ao carro.» Vemos aqui a realidade daquela férmula ja simbdlica no direito romano: Ubi tu gaius ego gaia, que a mulher dizia ao marido; na linguagem vulgar, quando os casados se dao bem diz que puxam certos. No Cancioneiro de Resende citam os poetas palacianos da corte de D. Afonso V e D. Joao II 0 acto frequente de oferecer mulas ajaezadas as damas; esta galanteria, para nds hoje incompreendida, esclarece-se pelo costume aristocratico estatuido no Foro velho de Castela, pelo qual o fidalgo devia dar a sua mulher «uma mula ensilhada e enfreiada»'™*. E acrescenta: «isto soiam usar antigamente». Nos Foros de Aragio também vem o mesmo costume: «Unam mulam de cabalgar.»"* Na forma popular dos casamentos em Cabo Verde ha ainda esta reminiscéncia: «Quando casa uma donzela, vai sempre a cavalo numa égua até & porta da igreja, para ser fecunda; e, nao sendo donzela, a pé; 0 noivo vai a cavalo de calca branea, lengo branco na mo direita com as pontas caidas para 0 chao, € ao pescogo cordao de ouro, que o padrinho € obrigado a pedir emprestado quando 0 nao tenha. Dice. chorographico, '. 1, p. 460. — Almanach de Lembrancas para 1858, p. 360. — Leite de Vasconcelos, Tradicdes, p. 221 "© Etucidaria, vb." OSAs. — A goiosa aparece em documentos do século XVI na formula Casamento © hum contensamento "Leite de Vasconcelos, Tradicées, p. 220. Liv. v, tit 1, leis 1, 2€ 5. ™" Ap. D. Joaquim Costa, Poesia popular espaiola, p. 277. 187 TEOFILO BRAGA E-thes proibido rirem e comerem neste dia, salvo se os padrinhos thes me- tem alguma coisa na boca, sempre em pequena quantidade. Desde que che- gam A igreja até serem conduzidos pelos padrinhos a casa em que deve dormir, ficam os noivos sentados numa espécie de tribuna no interior da casa. Pela noite adiante ouve-se um tiro, esperado com ansiedade pelos pais © parentes, que entao parecem doidos de contentes, batem as palmas, dao guinchos e pinotes, hé batuque e chaveta (toca-se e canta-se). Pela manha vao os padrinhos acordar os noivos e acompanham-nos até & rua, onde jé esté uma mesa € duas cadeiras para estes se sentarem; vem uma mulher, poe em cima da mesa um corte de camisa, outra um corte de pano, outra um corte de saia de chita; os homens uns dao 240, outros, 320, outros, 480 conforme suas posses.» 12° O dote confundiu-se com a ideia de um resgate, como se vé pela identi- ficagao entre arras e compra de corpo. No Cancioneiro da Vaticana, do sé- culo XIV, encontra-se esta preciosa referéncia juridic: Se m’elrey desse algo, j4 m’iria pera mha terra de bom grado, € sse chegasse, compraria dona fremosa de gram mercado ... Eu cuytado, nom chegaria por comprar corpo tam bem talhado. (Cang, n.°:962.) Viterbo, no Eluciddrio, cita uma doagao de Martim Pires a sua mulher com a formula: «por compra de vosso corpo» que identifica com o costume de Aragao da heranca da marido» ¢ que Joao Pedro Ribeiro julga que deve entender-se por arras. Segundo Jacob Grimm, nas Antiguidades do Direito Alemdo, a palavra que significava comprar veio a substituir no fim da Idade Média a palavra casar. No casamento de D. Afonso V com D. Isabel e no contrato de casamento do rei D. Manuel com a infanta D. Maria, a antiga frase «por compra de corpo» foi substituida «por honra de sua pessoa». E nas Ordenagées Manuelinas (liv. IV, tit. 9, §4) a doagao do marido a mulher, de quantia certa, depois de consumado o casamento tinha nome de Camera carrada, costume identificado por Levy Maria Jordéo com 0 Morgengabe germanico ™ A coabitacdo era uma das formas mais frequentes do casamento endogi- mico, conservando-se nas sociedades que se elevaram até a unificagao de nacionalidade. Herculano, nos seus Estudos sobre 0 Casamento Civil, inter- "= Almanach de Lembrancas de 1861, p. 67. "Vide a minha Historia do Direito portuguez (os Foraes) p. 58 a 62, onde vem este assunto mais largamente tratado. 188 ESTADOS SOCIAIS pretando pelos costumes do reino 0 titulo 46 do livro 1v das Ordenagées, diz; «Este titulo estatuja que, convivendo um homem e uma mulher, com fama de cOnjuges pelo tempo estabelecido no antigo direito (vimos j4 que esse prazo era de sete anos), presumir-se-ia haver matriménio entre eles para os efeitos civis.» A intervengdo do clero na sociedade civil fez com que nas constituigdes dos bispados portugueses se condenem estes casamen- tos por coabitago, e diversos dos casamentos clandestinos em que havia esponsais. Na Madalena, nos arredores do Porto, conserva-se ainda 0 casa~ mento pela forma de coabitagdo A coabita¢ao consetvou-se como um acto simulado ou simbélico nos ca- samentos por procura¢do entre as familias reais, sobretudo na Alemanha e Inglaterra. O velho Joo Rodrigues de Sa, casando por procuragao de D. Jodo I com D. Filipa de Lencastre, mete-se com ela na cama como conta Froissart: «Comme procureur du roi de Portugal ... et furent sur un lit cour- toisement, ainsi comme époux et épousée doivent étre.» 4 Nas Cartas de Lopo de Almeida a D. Afonso V, de 1450, dando-lhe conta do casamento da infanta D. Leonor com Frederico III, imperador da Alemanha, vem des- crita a ceriménia da coabitagdo, como complemento do casamento: «Levou el-rei a dita Senhora aquela mesma c4mara com poucos, saivo mulheres, € acharam-no ja langado vestido entre os langdes, e tomarao vossa Irma, € langaram-na na cama com ele também vestida, e cobriram-lhes as cabecas € beijaram-se, e feito isto, alevantaram-se, ¢ tornou-se a dita Senhora a sua cimara, e ficou o dito Senhor na sua, isto foi assim feito a usanca de Alemanha, porque assim foi acordado com El-Rei de se fazer.» ™ Ha aqui também um leve simulacro de violagdo, forma ainda persistente entre as tribos da Australia, como descreve Eyre. Na interessante narrativa do casa- mento do fidalgo Antonio Gongalves com D. Isabel de Abreu, escreve Fru- tuoso: «Teve ele tracas com que entrou de noite com aquela tensio de a receber por mulher. Vendo-se D. Isabel salteada dele, como era mui virtuo- sa e discreta, dissimulou com ele, dizendo: Que the nao convinha fazer casa- mento daquela sorte ...» Na constituigdo das sociedades primitivas em que preponderava a organi- zagio da tribo, os casamentos eram celebrados também buscando a mulher em outras tribos vizinhas, deste facto resultam caracteres e formas especiais que se designam pelo nome genérico de casamento exogdmico. Sob este ti- tulo a Exogamia, compreende-se 0 casamento celebrado pelo rapro, pela luta, e ainda pela confarreatio; nas sociedades modernas j4 nao existe a se- paragdo das tribos, mas ainda se conservam na forma de mengOes ou actos Op. cit.. p. 105. ® Pedroso, De quelques formes du mariage en Portugal, p. 5 ™ Chron., Liv. tt, cap. 53. "8 Sousa, nas Provas de Hist. genealogica, t. 1. p. 643. Frutuoso. Saudades da Terra, p. 198. Ed. Azev. 189 TEOFILO BRAGA simbélicos as praticas primitivas do casamento exogamico. Em Sindim (arre- dores da Régua), simula-se a hostilidade das tribos: quando um rapaz de fora da aldeia vai pedir uma moga para casar correm-no 4 pedrada, © 20 casar, quando vem da igreja, embaracam o caminho por onde ele tem de passar, tendo necessidade de resgatar-se com algum dinheiro. Ainda hoje se usa 0 rapto da mulher, quando os pais nao dao 0 consentimento para 0 casamento; a frase vulgar furtar uma mulher corresponde a uma realidade frequente em que a autorizacao paterna é substituida pela autoridade do juiz. Nas Saudades da Terra, descreve Gaspar Frutuoso o casamento de As- ténio Gongalves da Camara com D. Isabel de Abreu, em 1531, por meio do rapto: «Aconteceu um dia que, fazendo D. Isabel uma romaria, ou como dizem, indo de sua casa ricamente ataviada e muito acompanhada para a Calheta a um baptismo a que a convidaram, passando por junto da fazenda de Anténio Gongalves por ser por ali o caminho, e sabendo-o ele, e tends para si que ela se Ihe mostrava, e queria j4 consentir no casamento (porque quem ama tudo suspeita) ajuntando prestes muita gente, com muitas armas que Ihe nao faltavam, se foi ao caminho, e tomando pelas rédeas a mula em que ela ia, levou D. Isabel ¢ a meteu em suas casas contra vontade dos parentes seus e dela ...» "7 Toda esta narrativa é cheia das mais violentas peripécias, € «se comegou a travar uma escaramuga perigosa entre ambas as partes, pondo-se a risco de haver entre uns ¢ outros muitas mortes, O que vendo Anténio Gongalves ¢ D. Isabel, por evitar tanto-dano de que seriam causadores, sairam ambos a umas varandas donde falaram ao Ouvidor, per- guntando-Ihe: Que queria? Que ele estava com sua mulher! e dizendo D. Isabel 0 mesmo: Que estava com seu marido, e bem se podia tornar embora». A peripécia ndo acaba aqui, mas isto nos basta para compreender a indole do rapto, a que anda ligado 0 combate Em Miranda do Douro 0 casamento celebra-se pela forma de um combate, entre 0 noivo e a noiva, como ceriménia prévia dias antes de irem A igreja; 0 combate faz-se num lugar aprazado, a soco, € diante de gente, nao podendo ninguém intervir no combate *, Na linguagem popular ainda se diz: «Pancadinhas de amor nao doem.» No Jarmelo, na Estremadura, hé também o combate: «Vai 0 noivo com os seus parentes € convidados buscar a noiva a casa, onde os parentes ¢ amigos desta mostram resisténcia em a deixar sair, cedendo porém a final, e partindo todos a caminho da igreja Concluida aj a ceriménia, voltam todos para casa, tendo grandes dificulda- des a vencer pelo caminho fora, etc.» Na Beira Alta, em Vila Nova 4 Coelheira, as duas comitivas dos noivos chamam-se patrulhas; quando vio para a igreja, os vizinhos juntam-se em manadas para roubarem a noiva, ¢ é 7 Saudades da Terra, p. 197 "= Pedroso, op. cit.. p. 2 129 Almanach de Lembrangas para 1859, p. 309, A ceriménia do rapto ainda se encontea em Lede. Folk Lore andaluz, p. 157 190 ESTADOS SOCIAIS numa luta simulada que as patrulhas a defendem, perseguindo-os também simuladamente 0 povo, que Ihes atira com agafates de trigo, com grandes alegres algazarras ™°, Os simbolos da confarreagdo persistem nas formas populares do casa- mento. Em Campelo, «depois da ceriménia, para que fique o casamento completo, noivos ¢ convidados devem comer na sacristia com o paroco, pao, queijo e vinho; ao item para casa os convidados mandam sair-Ihes ao encon- tro borrachas de vinho; mesa 0 noivo e a noiva comem no mesmo prato. Passados oito dias, a noiva é vestida pelas suas amigas, que the levam pre- sentes de coisas necessdrias para o arranjo da casa» "!. «Em Sao Tiago da Cruz, no Minho, penduram num arco um limao e uma maga; a noiva apanha © limao e entrega-o ao marido, e este apanha a maga e entrega-a a desposada.» ™ As formas da confarreagdo so as mais gerais: em Sinfaes, junto do arco sob que passam os noivos, hd uma mesa onde eles comem e bebem, deixando algum dinheira; em Trancoso, também no caminho dos noivos Ihe poem mesas com doces; em Pombalinho, a quatro léguas de Coimbra, estendem guardanapos sobre as pedras por onde passam os noi- vos, € quando estes vem da igreja trazem sacas que enchem com ervilhas, favas e batatas que the vem oferecer a0 caminho. Na Pederneira, depois do banquete, a casa dos noivos fica franca para todos dangarem ali o tempa que quiserem. Chegdmos ao alto periodo histérico em que os elementos primordiais do Familismo e da Tribo se consubstanciam numa unidade social chamada Na- ¢éo: aqui ainda persistem diferengas tradicionais reconhecidas pelo nome de dasses, Entre 0 povo dos campos e a gente fidalga as formas do casamento variaram: nos arrabaldes de Soure (Minho) os noivos véo para a igreja num carro de bois, enfeitado e armado de campainhas"™; nos casamentos da ve- iha fidalguia, a noiva recebia uma mula ajaezada e nela ia para a igreja. Na corte conservaram-se costumes primitivos da tribo genealégica; os fidalgos mandavam as suas filhas para a corte, servindo ¢ acompanhando a rainha como agafatas, e 0 rei & que se encarregava de as dotar e casar; compreende-se este costume palaciano comparando-o com o que existia na Cochinchina no século XIIl, em que os pais levavam as filhas ao rei para prelibé-las, © casa-las depois dotando-as. «Quando um fidalgo tem seu casa- mento justo com alguma das damas do paco, deve trazer na abotoadura uma lita, que € um dos sinais da sua promessa; além disto é obrigado pelo espago de seis meses a apresentar-se no paldcio todas as vezes que as damas saem ou entram com a rainha, ¢ a segui-las de longe, sem que Ihes seja permitido '% Leite de Vasconcelos, Tradicées, p. 222. J, Avelino d’Almeida, Dice. chorographico, t. 1. p. 214 he Leite de Vasconcelos, Trad. p. 218. "Id. ib.. p. 220, 191 TEOFILO BRAGA falar A sua namorada sendo por meio de sinais até ao dia da consumagio do casamento.» Além das formas tradicionais do casamento que correspondem a certos estados sociais extintos, existem também ritos matrimoniais relativos a um tipo cultual j4 obliterado. Coordenaremos esses ritos segundo 0 que se wsava no politeismo greco-romano, pelo fundamento de que Estrabao considerava os casamentos dos Lusitanos semelhantes aos dos Gregos: more graeco™,0 casamento (gamos) sob 0 ponto de vista de um sacramento religioso (telos) era a abjuragdo do culto do pai pela mulher que ia entrar no segredo do culto doméstico do marido; tal € o sentido das cerimédnias, que se podem dividir em trés actos litdrgicos bem distintos: 1.° a engyesis dos Gregos ou a traditio dos Romanos, que se passava no lar paternal; 2.° a pompe ou a deductio in domum, em que a mulher passa para a casa ‘de seu marido; 3.4 iniciagdo do culto da sua nova casa, a felos ou confarreatio, em casa do esposo. Das ceriménias em casa do pai da noiva, citaremos o que se usa nas Covas de Barroso: «Na manha das bodas vem 0 noivo com 9s seus a habita- go da noiva, onde se acham reunidos os parentes ¢ amigos; bate repetidas vezes a porta que estd fechada, e trava-se um didlogo ritmado entre os de dentro e os recém-chegados; aparece depois a esposa e cinge a cintura do noivo com a cinta simbélica. No fim do banquete as donzelas apresentam a casada um ramalhete de flores e um pombo. Afora a cinta simbolica e 0 pombo, observa-se ainda aqui hoje a mesma usanga; o didlogo porém & mais prosaico e é assim: «— Quem é, € 0 que quer? «E F... que aqui vem procurar gente, honra e fazenda. — Entre que tudo encontrara «Os presentes oferecidos pelas donzelas & esposada constam, além de flores, de doces de diversas qualidades dispostos em forma piramidal; sio encetados pelos esposados ¢ depois servem os padrinhos ¢ mais convivas; n0 oferecimento ha versos deste gosto: Aqui tens, menina este ramo Que da minha mao se oferece; Nao é como eu desejava, Nem como a senhora merece.» No Cadaval este ramo tem um efectivo sentido simbdlico. Os vestidos da noiva tem também um talho especial; num documento de Pendurada, de 1480 descreve-se 0 traje obrigado: «H «He ella dita noiva vestida de vestidos "\ Description de la Ville de Lisbonne, 1738. "5 Elementos da Nacionalidade porwguezd, § 6. "J. Avelino d’Almeida, Dice. chor, tt, p. 340, 192 ESTADOS SOCIAIS novos, de dia de voda, s. hua mantitha de meni, (baeta usada no campo) e hua quejanda de courtanai, e hua fraldilha de brestoll.»"” Da freguesia de Dio encontramos estes dados curiosos: «todas as mulheres casadas, quando as maridos estavam na terra, traziam 4 missa a mantilha debaixo do brago, € as que a nao tinham um rodilhao; e estando elles ausentes traziam as manti- lhas 20s hombros, como capas, € as viuvas A cabega» ™, A passagem da noiva de casa do pai para a do noivo faz-se pela igreja: a locugaio levar a igreja significa casar; & ida c & volta passam pot debaixo de areas, com simbolos, como em Marco de Canavezes, ¢ atitam-se confeitos ¢ trigo 4 noiva, ou a gente que acompanha os noivos, como nos Acores Beira Alta. O sr. Leite de Vasconcelos mostra a persisténcia deste uso com um trecho da farsa de {nez Pereira (1523) de Gil Vicente: E tendes vs aqui trigo Para nos geitar por riba? E aproxima-o da descrigio do Romancero del Cid: Por las rejas y ventanas Arrojaban trigo tanto, Que el rey Hevaba en a gorra Que era ancha, un gran puiado, Estes elementos foram rimados por Jodo d’Escobar no fim do século XVI, mas @ sua universalidade mostra a sua antiguidade remotissima. Na Sicilia também se atira srigo na passagem dos noivos, bem como farinha e as vezes pdo, como o descreve Pitré; em Sevilha atiram améndoas e confeitos™. As cantigas dos noivados, que se usavam na época visig6tica, € foram praibidas pelo Concilio erdense do século vi como pagas, persistem em Portugal, e ligadas a certos actos simbélicos. Em Moura, no Alentejo, canta-se: Quem qguizer comprar, eu vendo Um ramo que estou guardando; O estado de solteira Para mim ’std-se acabando. Nos costumes do Cadaval: «Chama-se ramo matrimonial a0 ramo de {10- res seccas que a noiva recebe da ultima rapariga que se casou, que n’esse © Viterbo, Efucid., vb.” Ment. ™ Almeida, Diec., t. 1, p. 339. ' Folk Lore andaluz, p. 206, Em Nisa, a noiva depois de apregoada no saia mais a rua Dr. Matos © Moura, op. eit, t. 6, 9. 129. 193 TEOFILO BRAGA dia deixa de estar de noivado; é entregue 4 recem-casada no fim do baile das bodas. Tambem quando o noivo sae da egreja, passa por debaixo de um arco de canas verdes enfeitado com symbolos allegoricos 4 profisséic dos nubentes; sustentam-no duas raparigas.» ™? Santo Isidoro cita (Exym, Vl cap. 18) os epishalamios cantados por escolares em louvor dos noivos ™!. Nas Comédias portuguesas de Sim4o Machado descreve-se a persisténcia deste uso: Git: Vamo-nos para 0 logar. PAYO: Vamos; seja com cantar, THOM. E por mayor prazer e festa Eya! a cantiga seja esta: THOM. Tambem eu heide ajudar. Cantiga: Com muitos contentamentos Muitos anos melhorados Se logrem os esposados™. Muitos dos costumes conservados ainda pelas aldeias acham-se descritos na ceriménia do casamento de D. Joao com D. Filipa de Lencastre, na prosa ingénua de Fernao Lopes: «E todo prestes pera aquelle dia, partiu-se Elrey 4 quarta feira donde pousava, e foyse aos pagos do bispo, hu pousava a Infanta, e 4 quinta feira foram as gentes da cidade juntas em desvairados bandos de jogos e dansas per todalas pracas com muitos trebelhos gue fa- ziam. As principaes ruas, per hu estas festas aviam de ser, todas eram se- meadas de desvairadas verduras e cheiros. Elrey saiu d’aquelles pacos em sitma de hu cavallo branco, em panos de ouro realmente vestido, € a rainha em outro tal muy nobremente guarnida ... Diante hiam pipias e trombetas, ¢ outros muitos instrumentos, tantos que se nom podiom ouvir, donas filhas. algo, ¢ isso mesmo da cidade cantavam indo de traz, como he costume de vodas.» ™* Era assim a Mascarada mos casamentos da Areosa™*, Segudo 0 Tombo do Aro de Lamego, de 1346, se se tocava adufe em Fevereiro, nas bodas, pagava-se a melhor fogaga ao mordomo do tei, AS superstigdes € agouros ligam-se aqui ao esquecimento do antigo culto do- 4 Almeida, Dice. chor, t. 1, p- 202 Mt Sobre a persisténcia destes cantos nos costumes peninsulares achimos: «Los yogltes é tafiedores non son para la guerra. mas para fa paz, & para honrar bodas.» Madrigal, Eusebié de los Tiempos, cap. S02, ed. 1507. Ap. Amador de los Rios, Hist. da Litt, hespan. t. vit p. 428 “* Comédias portuguezas, p. 182. “ Chronica de D. Jodo 1, P. 1, cap. 96. MJ. P. Ribeiro, Reflex. hist. t- 1, p. 39. 194, ESTADOS SOCIAIS méstico: se chove no dia do casamento é sinal de felicidade para os noivos; © primeiro que entra para a cama € o primeiro que morte. Em casa do noivo termina-se a ceriménia pelo banquete e dancas. © pa- dre Ferndo Cardim descreve os costumes do casamento na coldnia portugue~ sa de Pernambuco (1583-1590): «Casando wma mo¢a honrada com um via- nez, que so os principaes da terra, os parentes e amigos se vestiram uns de veludo cramesim, outros de verde e outros de damasco e sedas de varias cores € os guides e sellas dos cavallos eram das mesmas sedas de que iam vestidos. Aquelle dia correram fouros, jogaram canas, pato, argolinha, etc.» No casamento de Cabo Verde, depois do banquete, e quando os noivos sé unem, couve-se um tiro esperado com anciedade pelos parentes;» pelo casamento nos arrabaldes de Soure, no Minho, se a noiva é reconhecida como estando pura também se atiram muitos foguetes. Nas segundas ntipcias costuma-se fazer assuada a porta de noite, a que em Espanha se chama as Cencerradas, ¢ em Franga 0 charivari, costume a que ja aludem Macrobio e Plutarco, como existente em Roma™®, Em Portugal a vitiva que convolava a segundas ntipcias, segundo os Forais pagava uma multa; o édio contra estes casamentos provinha da ideia da abjuracao do culto doméstico pelo de um outro lar, O fogo do lar j4 nao figura como objecto de culto nos ritos do casamento, porém nas superstigdes populares © fogo ainda conserva um ca- técter augural: «Quando n’um casamento a vela mais pequena esta do lado da noiva, é signal que ella morre primeiro; se esta do lado do noivo € elle quem morre. — Na noite do casamento aquelle que no quarto apaga a luz primeiro, € 0 primeiro que morre. — Para saber se duas pessoas casardo, pée-se um par de flocos de linho, muito fofos, na pedra do lar. Um dos flocos representa 0 rapaz e outro a rapariga cuja sorte se pretende conhecer. Em seguida pega-se fogo ao linho, Se os dois flocos ao arder sobem ao mesmo tempo ou mesmo se sobem ambos, é signal de casamento certo; se um d'elles porém se eleva néo acompanhando 0 outro, a pessoa que elle representa nao corresponde ao amor. — Se na casa onde entram pela pri- meira vez os noivos ha luz accesa, nenhum d’elles vive muito tempo. — Trez luzes n’uma casa, é signal de casamento da pessoa mais nova d’essa casa.» "8 Segundo Homero, as donzelas cram chamadas na Grécia alphesibeas, as que trazem bois em dote; em Roma, a esposada ao entrar em casa do marido sentaya-se sobre uma pele e dizia: Ubi tu gaius, ego gaia. Segundo Michelet «Gaia quer dizer a vacca, € a terra aravel» 47. No Foro de Castela o marido dava a sua mulher uma capa de pele de cordeiro. Todos estes simbolos desapareceram nos costumes portugueses, persistindo a sua reminiscéncia nas superstices populares: «Quando uma pessoa passa por diante de uma abegoaria de vaccas é ellas mugem, é signal de casamento. — Vacca que "Folk Lore andaluz, p. 207. §* Pedroso, Supersticbes, n. 83, 333, 475, 512, 520, na nossa revista © Positivism, “1 Origines sa Droit francais, cap. 2. 195 TEOFILO BRAGA berra, é signal de casamento na terra; mete-se logo a mao na algibeira para casar cedo.» “* Depois que os costumes se extinguem ainda se mencionam em actos e formas emblematicas; € a este fendmeno etnoldgico que se dio nome de Simbolo™. Costumes e simbolos juridicos. — As concepgdes primitivas na sua forma emocional exprimiram-se por manifestagdes concretas, ou significadas; & me- dida que elas se foram generalizando pela abstracgdo, esses sinais simplificaram-se em simbolos, e esses mesmos simbolos foram-se subtilizan- do em ficcées alegéricas e em mengoes sacramentais®*, E este fundo psico- légico comum, a universalidade do sentimento prevalecendo sobre o parti- cularismo das ideias, ou melhor a situagao emocional da multidao suprindo a falta de desenvolvimento da capacidade racional, que faz que em todos os Ppovos se encontrem as formas poéticas do Direito, as tautologias ritmicas, 0 simbolismo dos contratos e da penalidade, essas antiquis juris fabulas, que os Jurisconsultos romanos acatavam no seu Direito. Mais tarde quando na so- ciedade vem a prevalecer o direito escrito sobre a forma consuetudinéria e tradicional, ainda o costume se impde com uma vitalidade inextingnivel, Eo que veremos nas instituigdes portuguesas. Conta Asclepias de Mirleo, que viveu na Andaluzia, ter ouvido aos Turdetanos poemas e leis ritmicas™; nas leis célticas de Moelmud, encontra Summer Maine vestigios ritmicos, e na Irlanda os vates (files) eram também juizes (brehon) ™*; as tribos germani- cas, como observa Jacob Grimm, transmitiam em versos cantados as suas leis e memGrias histdricas**, Tendo entrado na constituigdo antropolégica dos povos peninsulares todos estes elementos de mesticagem, nao admira que se conservassem formas simbdlicas de direito segundo estas diferentes camadas étnicas. Ainda no nosso povo se repetem certas formulas de direito em verso ritmad Morte e casamento Desfaz 0 arrendamento. Boa demanda, ruim demanda 0 escrivao pela nossa banda, Mios atadas Terras abrasadas"*, § Pedroso, Superst, 1.% 334, 330, 315. \ Em Abrantes existe uma locugo: Levar com o saco nas pernas, para significar que algném vai casar, aludindo A obrigag4o de sustentar a familia indo muitas vezes a0 celeio buscar 0 grio fiado. 0 Tratdmos pela primeira vez este problema psicoldgico ¢ étnico na Poesia do Dircio, Porto, 1865 0 Bstrab., 91, cap. 3, 6 82 Joaquim Costa, Poesia popular espafola, p. 271 "8 Poesia do Direito, § 5. ™ Noticias reconditas da Inquisicdo, p. 94. 196 ESTADOS SOCIAIS Um anexim de Jorge Ferreira de Vasconcelos alude ao espirito do direi- to consuetudindrio: No féro em que um homem se pée Nvesse o tern 5, 0 foro € evidentemente o direito derivado do consenso do costume; na legislagdo ¢ historia antiga distingue-se entre leis ¢ foros. Lé-se nas Memo- rias avulsas de Santa Cruz, acerca do governo de D. Afonso Henriques: «E pero tanto tempo senhorezasse € regese, tanto foy o seu cuidado de acrescentar a onrra do reyno que ante de sua morte emcommendou a seu filho que fizesse as lex e foros que visse que compriam pera boo regimento do reino, mostrando que em toda sua vida nungua tevera tempo ocioso em que as podesse fazer.» 1° Hé aqui alusdo as leis pessoais derivadas da autoridade real, e aos esta- tutos focais reconhecidos ou validados pelo rei. Os Lombardos também tinham leis consuetudinarias nao escritas a que chamavam Warfrida, contrapondo-se a esta a palavra Ewa significando lei escrita'*’. O cardcter territorial aparece na designagao de Fara ou Foral; a Fara era o territério livre, onde habitava o Faraman (borguinhdo) ou 0 Ariman (lombardo) 8. Neste encontro de racas que se invadem e subjugam, o invasor impée a sua vontade ov ‘ei pessoal, e 0 vencido fortifica-se nos seus costumes ou lei territorial. Numa carta de Agobard, a Luis le Debonaire, se afirma este facto: «Véem-se miuitas vezes conversarem cinco pessoas sem que obedecam 4s mesmas leis.» 4° © direito local mantinha-se na forma generosa dos asilos € coutos, que os nobres e a igreja observaram como privilégio pessoal; a heranga do crime € a vindicta particular foram as formas mais preponderan- tes do direito pessoal: Que s’eu moir’assi desta vegada Que a vol-o demande meu linhage. (Cang. n.° 668 da Vat.) 0 diltimo vestigio das povoagoes asilos aparece-nos na pequena aldeia de Pereiro, no Algarve: «Era couto para pessoas endividadas, 4s quaes bastava virem assignar termo na Camara de Alcoutim, a que chamavam assentar praca de bulrdo; e no podiam mais ser citados nem demandados por divi das anteriores, » © Eufrosina, p. 45 ™6 Mon. hist (Scriptores) fase, 1. p. 25. ®" Davond Oghlon, Hist. de fa Legislation des Anciens Germains, t. th p. 5. Savigny, Hist. du Droit romain au Moyen age, 6.‘ 9. 159. Dom Bouquet, Rer. gall, t. 1V, p. 356, Silva Lopes, Chorogr. do Algarve, p. 397. 197 TEOFILO BRAGA O antagonismo destes dois direitos representa 0 encontro de duas classes sociais, 0 homem livre decaido em serviddo e que se eleva até 4 indepen- déncia burguesa, € 0 senhor feudal que conserva as formas da tribo geneal6- gica. Assim nos antigos burgos portugueses nao podiam pernoitar fidalgos, como se vé no romance popular de Santa Iria: Eu estava cosendo em minha almofada, Vem um cavalleiro e pede pousada Se meu pae Ih’a nega, bem me pesaria, Se eu ali no fora, meu pae negaria'™. Este direito local é 0 de visinkanca ou das povoagdes proximas (vici) ¢ ligam-se entre si os pobres habitantes em companhia (de com-paganus) para se defenderem contra as assaltos dos cavaleiros prepotentes. E desse terreno livre ou Arimania, que deriva a seguranca da Germania, Germaydade ov Jrmandade. Numa cangio de Ayres Nunes alude-se a Yirmaidade (n.° 455), cujo tipo histérico mais completo se acha nas ligas dos habitantes de Aivsae de Sobrarbe. Viterbo ndo soube explicar certos termos arcaicos por nio conhecer a primitiva organizacao social; assim diz da palavra Hermenho ¢ Heramenha (Arimania): «Dizem que na linguagem antiga de Hespanha significava aspero, duro, intratavel. E taes eram os montes da Serra da Es- trella, e os da Serra da Haramenha junto 4 cidade de Meidobriga (nao longe do sitio onde hoje est Marvao); € néo menos 0 eram os seus habitadores em quanto se nao fizeram trataveis ...» Esta resistencia das garantias lo cais era representada no Portugal antigo pelo Pelourinho ou Picota, Datava esse costume do tempo dos Romanos, mas com certeza o Pelourinho era jé a representacdo artificial de um costume mais vetusto. A liberdade loc exercia-se no monticulo natural, 0 Malhdo, citado no Foral de Cemancelhe (do mallum germanico), ou monticulo artificial ou Arca (de arx), onde se reunia a assembleia dos homens livres. O carn céltico era © monticulo formado por pedras, sagrado por cobrir a sepultura do chefe, e também infamante segundo se atiravam pedras a sepultura do condenado. Nos temos ainda a locugo sem sentido Pedra de escandalo, ¢ também a pena infaman- te de ser amarrado ao Pelourinho, que hoje se tornou uma figura de retori- ca. Quando Roma se organizou sob a forma imperial, as provincias recebe- ram um grande impulso impondo-se aos povos conquistados as formas mu- nicipais; esta organizacdo local robusteceu-se com a crenga politefsta dos genius loci, de que 0 Pelourinho foi a representagdo. Herculano entreviu este facto incompletamente, dizendo que essas cidades municipais podiam «levantar na praca a estatua de Marsyas ou Sileno, com a mio erguida, symbolo da liberdade burgueza». Em nota acrescenta: «Esta é quanto a n6s Romanceiro do Archipelago da Madeira, p. 19. 2 Elucid, vb. HERMEN. 198 ESTADOS SOCIAIS a origem dos Pelourinhos. Abolido o polytheismo, nada mais natural do que substituir-se aquelle symbolo por uma pilastra ou columna, a qual com o decurso do tempo foi tomando diversas formas caprichosas.» "** A ideia de costume local ligada ao Pelourinho conserva-se naquela frase do Marqués de Pombal a um Juiz de Fora, dizendo-Ihe como havia de administrar justiga: «Néo se meta a mudar o Pelourinho.» Gil Vicente também se refere a Pico- tq da Ribeira; este nome explica-nos a relagaéo com a divindade romana Picus Picumnus ou Pilumnus'* Raczynski, na obra Les Arts en Portugal, considera os Pelourinhos como uma das nossas manifestagdes artisticas ®. A. colocagao do Pelourinho diante da casa ou palicio da Municipalidade, leva a reconhecer que o seu sentido de franquia local é anterior ao uso de instru- mento da penalidade infamante. Lé-se numa informag4o do visconde de Ju- romenha a Raczynski: «No antigo livro das Fortalezas do reino depositado no archivo nacional, feito por Duarte de Armas, pintor do rei D. Manuel, eu encontro muitos pelourinhos. Sao elles o de Sabugal, de Castello de Mendo, do Mogadouro e de Penaroia. Tem a mesma forma que os Piloris francezes, 0 que para mim foi uma novidade. Véem-se ali as gaiolas ou guaritas para a exposi¢ao dos criminosos. Quasi todos os que eu tenho visto, consistem em uma columna mais ou menos trabalhada collocada perpendi- cularmente sobre uma base rodeada de degraos. Do ponto superior d’esta columna saem quatro bragos de ferro tendo na sua extremidade um annel € uma cadeia. Ella é terminada por uma coréa ou um capitel. O Pelourinho de Coimbra terminava em cutello. A guarita do de Arruda é quadrada; os seus arcos S40 lavrados, © se bem me lembro termina por um escudo. O Pelourinho da Batalha é bastante lavrado, como o de Alverca ¢ Cintra.» Bastava terem os Pelourinhos um sentido religioso, representando o ge- nius loci, patrono da independéncia municipal, para ficarem diante do catoli- cismo como monumentos de ignominia; assim & medida que o poder real prevaleceu sobre a autonomia foraleira, os Pelourinhos converteram-se em instrumento de wma penalidade infamante reservada para as classes popula- res, porque os fidalgos, representantes do direito pessoal, néo eram sujeitos a essa categoria de penas. Em Franga os Piloris foram empregados com este intuito, e a nossa Ordenagdo Afonsina (Liv. 1, tit. 28) mandava expor nos Pelourinhos os padeiros e carniceiros que furtavam na venda. A transforma- ga0 da penalidade actuou na decadéncia dos Pelourinhos; diz o St. Visconde de Juromenha: «Em 1834, para imitar a revolugao da Franca, arrancaram-se 0s bragos de ferro a alguns Pelourinhos com o fim de apagar a memoria de seu antigo destino, ou melhor de seu atrazado emprego; porque nos ultimos tempos elles j4 nao eram senéo 0 emblema da jurisdicgao municipal.» Na "9 Hist, de Portugal, t. Wp. UL ™Preler, Les Dieux de Vancienne Rome, p. 237. Op. cit.. p. 330. ™* Les Arts en Portugal, p. 426. 199 TEOFILO BRAGA linguagem popular ainda se conserva a tradigo das suas formas de juste derivadas do direito territorial do direito pessoal tornado real; Viterbo cia a frase Justiga de Montemor, empregada na Ordenagao Afonsina (Liv. |, tit 12, § 2) como significando a pena da despenhagao. O condenado era lang do de uma rocha abaixo, e esta pena passou para Santarém e outras ters do reino*"; também se usa ja sem sentido a frase Justica de Fafe. Cont esta jurisdigao local, ¢ ainda contra a guerra privada e vindicta pessl conservadas nos costumes da aristocracia, estabeleceu-se a Justica de eli na linguagem popular temos ainda uma interjeigao caracteristica, 0 gro Aqui d’el rei, forma abreviada da frase Aqui justica de Elrei'*, quando jéo poder judicidrio é reconhecido como independente do poder executivo, Do espirito do direito territorial se deduz um sistema de penalidade: a banigdo. O condenado era langado fora da terra; nos Forais velhos mandava-se que as suas casas fossem derrubadas. Temos ainda na linguagen popular a locugdo: Sem eira, nem beira, nem ramo de figueira, para signif a extrema miséria. A demoligéo das casas conservou-se até muito tart mos costumes portugueses. Na Sentenga do Santo Oficio de Coimbra contra 0 dr. Anténio Homem, lé-se: «mandam que as casas em que se faziam as dias solemnidades e ajuntamentos, em detestagao de tao grande crime, se der bem, ponham por terra e seméem de sal, e nunca mais se tornem a reedi- car, € para constar e ficar em memoria para sempre, se levante no sto d’ellas um padrao alto com o letreiro que declare a causa pela qual se dern- baram e salgaram»'. Este simbolo penal foraleiro renovado em 16%, repete-se nas execugdes do marqués de Pombal nos pagos do duque &e Aveiro em 1759; em Belém existe ainda um marco de pedra, ou coluna con um fogareu no dpice, no lugar onde fora 0 palacio cujo chao fora sagan, proibindo-se 0 levantarem-se de futuro ali quaisquer construgdes; a peda existe hoje escondida detras de uns casebres, e © povo chama-the o Marc salgado. Temos ainda a locugéo Pedra de escandalo, que se referiré a exes usos primitivos. A penalidade antiga era atrocissima. No Foral da Lourinha, confirmado em 1218, estabeleceu-se 4 maneira do direito germanico, que: «O matador, se se poder prender, seja sepultado vivo, e 0 morto langado em cima 7 Elucid., vb.° JUSTICA OE MONTEMOR. 468 «Na linguagem popular das nossas provincias ainda hoje se conserva em uso a exci Gao de socorro. Aqui d’el rei, que cutrora era o reconhecimento da jurisdicio suprema d monarca, ¢ que na actualidade perdeu toda a propriedade, porque 0 poder judicial é indepen dente da realeza. Este brado, simples vestigio agora de antigas épocas, era no tempo de Dow Manuel uma imposigdo legal: — Nenhuu nom seja tam ousado que por arroido que se aeane chame outro appellido, salvo Ague d’EIRey; ¢ 0 que outro apellid chamar seja degrada x cinco annos f6ra do Logar € Termo onde esto acontecer com hum preguam na Aufexis (Ord. Man., Liv. v, t. 61).» — Teixeira Bastos, Rev. de Estudos Livres, vol. t p. 363. Sentenca publicada no Antiquario de Coimbra. 200 ESTADOS SOCIAIS delle.» Sobre este simbolo juridico fez o jogral Johan Ayras, a seguinte «angio trovadoresca: Ay justiga, mal fazedes que nom queredes ora dereito filhar de Mér de Cava, porque foy matar Johan Ayras, ca fez muy sem razon; mays se dereyto queredes fazer ela 6 el devedes a meter, ca 0 manda 0 Livro de Leom. Ca Ihe queria gram bem, e desy nunca Ihi chamava senom senor, e quando-Ih’el queria muy melhor foy-o ela logo matar aly: mays, justiga, poys tam gram torto fez, metede-a ja s6 el hua vez, en o mando € dereyto assy. E quando mays Johan Ayras cuidou que ouvesse de Mor de ‘Cava ben, foy-o ela logo matar por en, tanto qu’el en seu poder entrou; mays, justiga, pois que assy € j4, metan-a sO el et padecerd a que o a muy gram torto matou. E quen nés ambos vir jazer, dir beeyto seja aquel que o julgou™. 0 adultério era punido por uma forma degradante; no Livro velho das linkagens, um marido, D. Goncalo, por esse crime: «filhou sa mulher ¢ tnsquiou-a e ... posea em cima d’hum sendeiro dalbarda o rostro contra o nibo do sendeiro e hum home com ella ...»!7! No Cancioneiro de Resende tina se alude no fim do século XV a este simbolo: Por fazer cousa ennovada hireis 6 revés da sela, 6 rabo mui bem pegada escanchada, faga quem quizer burrella 2, "Cong. da Veticana, n.° 1076. Mon. hist, €. 1. p. 190. "Cane, ger, t. 11, p. 98. 201 TEOFILO BRAGA A defesa do acusado fazia-se pelos Conjuratores; ainda hoje entre 0 po- vo € frequente a defesa a qualquer increpacdo por formulas vulgares de juramento, tais como: Assim Deus me salve; Diabos me lever, Nao chegue a amanha; Raios me partam, etc. A defesa fazia-se segundo os velhos forais pelo ordalio, ou ferro quente; (é-se no Leal Conselheiro: «Eo ferro caldo, que n’aquella terra tantos certificam que © vyrom filhar.»'™ Cardoso, no Agiologio Luzitano conta a lenda da mulher de um ferreiro que prova a sua inocéncia levando na mao um ferro de arado em braza. Ainda hoje se diz Andar sobre brazas, Comer brazas de lume, alusivo & forma do ordalio usa- do pelos Druidas, e conhecido pelo nome de Breithneihme™*; a rainha D. Leonor Teles, como conta Ferndo Lopes, também queria provar a sua inocéncia prometendo atravessar uma fogueira. A porca de Murca serviu de ordalio, porque sendo uma figura de pedra vermelha, mudava de cor em certos crimes como prova de inocéncia do acusado. ‘A pena de decalvacdo, acha-se imposta pelo Foral de Arganil; nds acha- mos uma alusio a ela, na cangZo (n.° 1037) do conde D. Pedro: Alvar Ruiz, monteyro mayor sabe bem qu’a-Ihe el rey desamor, porque the dizem que he malfeytor; na ssa terra est’é cousa certa, ca diz que se quer hyr, et per hu for levard cabeca descuberta, E numa cangdo de Martim Soares, acha-se uma alusio a pena infamante da tosquia: praz-me con el, pero tregoa Ihes dey, que 0 nom mate, mays trosquiarey como quem trosquia falso traedor. Nas parlendas infantis a tosquia tem um sentido degradante, e a crianga que aparece com o cabelo cortado dizem-Ihe as outras: Quem te tosquiou Que as orethas te deixou, Por traz e por diante Como 0 burro do Vicente? No Foral de Santa Cruz de Villarica estabelecia-se que se cortasse as orelhas ao ladra0, como nos Estabelecimentos de S. Luiz; na Ordenagio "Op, cit. p. 211. Ed. Paris. 2 Smith, Hist. des Druides; p. 65. 202 ESTADOS SOCIAIS Afonsina, mandava-se que fosse desorelhado o que se achava a furtar uma bolsa. (Liv. Vv, t. 60, § 11). Outras formas da penalidade conservam-se entre © povo com um cardcter particular ou de vindicta; tal é 0 costume de Moer com um saco de areia. Viterbo cita wm documento de Recido, de 1458: «huma noite com uma calea de areia deram tantas calgadas, de que segundo fama morreu» **, A pena também se estendia aos animais, como vemos pe- los Foros de Torres Novas: «He costume, que se alguem achar porco em sas vinhas maduras, matal-os-ha, se quizer, e cortarlhysha as cabecas quanto tanger bico da oretha pelo pescogo, e havelas ha; ¢ seu dono dos porcos levara os toros, etc.» % Hé aqui um resto da vindicta pessoal e da guerra privada, que se dava tanto entre as terras como entre as familias. Nos Forais portugueses existe a Faida germinica sob as designacées de Homisio (homi- cidio) e caliinia, © consequentemente as formas juridicas que submeteram este arbitrio a uma determinagdo equitativa: 1.° as tréguas (treugae) em que se interrompiam as hostilidades em certas épocas do ano; 2.° os asilos ou coufos, em solares nobres, ou no adro da igreja; 3.° a composicao a dinhei- ro, (wergel) que veio a dar a multa judicial. Na cangéo de Martim Soares vimos a referéncia as tréguas; no Foral de Seia aponta-se a igreja como couto ou asilo. A frase de ameaca popular hade-m’as pagar, encerra a ideia primitiva de Wergeld ¢ 0 espirito da vindicta. A vendetta tao caracteristica dos costumes da Cérsega, é como a vindicta pessoal do direito consuetudindrio germanico, pelo qual os parentes da viti- ma tinham de castigar 0 criminoso. A vendetta nem € exclusiva da Cérsega, nem germanica; pertence a um estado social em que nao ha ainda a justica pUblica regulando as relagGes individuais, mas sim um certo familismo, de sorte que a ofensa a um dos seus membros afecta todos os que o compéem. Por isso diz Gregorovius: «a vendetta nao se encontra sé na Cérsega, acha- -se também em outros paises, na Sardenha, nas Calabrias, na Sicilia, entre os Albanezes e Montenegrinos, entre os Cireassianos, os Drusos, os Bedui- nos, etc». O estado de guerra em que persistiu a Europa durante as conquistas romanas, invasdes germanicas e arabes, manteve este costume de uma raga inferior A raga drica; em Portugal, existe ainda hoje a vendetta, entre a classe infima do povo, sob 0 nome de Fadistas: 0s que vingam as proprias ofensas. Este nome € um vestigio da designacao germanica a Faida, ou vindicta pessoal, do direito consuetudinario; na linguagem do povo pronuncia-se Fédista, 0 que leva a aproximagdo fonética da Faida. Num po- vo relativamente mais atrasado do que nés, enquanto a suavidade dos costu- mes, a vendetta perpetua-se num sistema de banditismo, que em Portugal se desconhece mesmo nas épocas de violéncias politicas. A vindicta foi regula- rizada na forma do Combate judicidrio, de que temos ainda a palavra "3 Elucid., vb.° CALGA "* ineditos da Academia, t. 1V, p. 623 203 TEOFILO BRAGA campar de valente, campar por esperto, € terminou no costume civil do duelo, e no desafio, Canta $4 de Miranda: Entre os Lombardos havia Ley escripta e Ley usada, Como se sabe hoje em dia Que onde a prova falecia Que 0 provasse a espada. Ali no campo 4s singelas Emfim morrer ou vencer, Fosse qual quizesse d’ellas Nao era melhor morrer A ferro que de cautellas As cautelas significam aqui as alegagdes € subtilezas do processo judicié- tio da jurisdigao real, que prevaieceu no século xvi. No velho direito simbé- lico dos estatutos territoriais ou foraleiros, a mulher designava o seu estado de solteira trazendo os cabellos soltos, de casada trazendo-os atados, e de vitiva trazendo-os dentro de uma touca"”*; no Cancioneiro da Vaticana en- contramos preciosas referéncias a estes simbolos, a que aludem ainda as cantigas populares: Par deus coytada vivo, Ppoys nom vem meu amigo, poys nom vem, que farey? meus cabellos com sirgo eu nam vos liarey™. Queria dizer, segundo a eloquéncia dos simbolos juridicos, que ficaria solteira; n’esta outra cangio ha a esperanga do casamento: E com sabor d’ellos lavey meus cabetlos, meu amigo! Des que vos lavey douro los liey meu amigo. (Cang. n.° 794.) 17 Obras, p. 194. Ed. 1677 "Hist, do Direito portugue: "Cane. da Vaticana, 11° 505. p. 53. 204 ESTADOS SOCIAIS Buscade quem vos entouque melhor, € vos correja pelo meu amor, as feyturas e 0 c6s que avedes. (Cane. 981.) A mulher sem estado, no velho direito germanico era chamada arga, como se lé nas Leis de Rothario: «Aquelle que chamar arga a uma mulher, deve jurar que 0 disse em um acesso de colera ...» Nao sera a nossa injiria de Hervoeira uma derivagéo desta forma. Muitas palavras, que significam uma situagaéo moral desprezivel designaram um estado social; assim 0 vadio era primitivamente 0 vadium, ou penhor que se pagava para conferir a liber- dade ao servo, entregando este de mao em mao até que um quarto homem: livre 0 conduzisse a uma encruzilhada, dizendo-lhe que escolhesse o cami- nho que bem Ihe aprouvesse porque era livre. O aldius era 0 servo que se libertava por uma carta, como se vé pelas leis lombardas: «Aquelle que quizer fazer do seu escravo um aldius ou uma aldia, nao deve seguir a ceri- monia da encruzilhada, nem conduzil-o 4 egreja, mas escrever simplesmente uma carta na qual serdo inscriptas as condigdes que se reserva, ou o liberta- 14 de viva voz.» 18° Nao serd este facto, de um modo mais extensivo, a ori- gem da doagao de Cartas de Foral, ou Cartas-pueblas dadas a certas al- deias? A adscri¢do a gleba ainda existia no tempo de D. Manuel, ¢ a palavra terra tem ainda um sentido extensfssimo, como patria. O liberto também recebia a liberdade sendo novamente vestido, segundo Grimm, impanatus; assim 0s jograis cobravam pannos nas festas reais, como vémos pela canc’o 4 morte do rei D. Diniz, e pelos costumes dos lavradores do Minho de vesti- rem os seus criados. A pena da desnudagao deriva da antitese de impans; usava-se nas leis de Lamego'™!. Nao admira que quando tantos vestigios de uma organizagdo social persistem nos costumes, se conserver também formas antiquissimas dos contratos; sob a palavra Alborgues, traz Viterbo esta curiosa noticia: «Hoje se praticam em algumas das nossas provincias os Alborgues entre os que compram e vendem e os que servem de testemunhas; consiste em pagar algum dos contratantes (que ordinariamente € 0 comprador), uma vez de vinho para cada um dos presentes. E por esta alegre cerimonia dao por feito e solemnisado o contracto, de sorte que jd o vendedor ndo pode variar ainda que lhe offerecam maior prego.» ™* Este castume aparece em todos os povos em que ha elemento germanico; Du Cange cita-o sob o nome de Bibera- gium, Lauriére e Galland sob o de Vin du marché, ¢ ainda nas leis francesas do principio deste século a estipulacho do pot de vin, Nos costumes da © Rotharis, 227; Luitprandio, 4, 5. ™\ Hist. do Direito portuguez, p. 65 '™ Blucid., vb.° REBORA. ™ Chassan, Essai sur la Symbolique du Droit, p. 226. 205 TEOFILO BRAGA Alemanha chamava-se 0 Weintrunk, e weinkanf, de que fala Reyscher, na Simbélica do Direito germanico. O simbolo da estipuiagdo, pela troca da palha (stipula festuca) aparece nos nossos Forais, nos Capitulos especiais de Santarém, de 1323 sob a designagao de Palha de fuste, a qual se dividia entre © credo e o devedor; ja se no pratica o acto, mas ainda existe a expresso abstracta alusiva, como arrematacdo © entregar 0 ramo, e na Or denagao Afonsina (liv. 1, tit. 19) hé a citagéo per palha. Na linguagem popu- lar encontramos a locugdo referente a pessoa que se enfurece por dé cé aquela palha usada por Jorge, e também srar palha com alguém, signifi- cando puxar palavra, inquietar. Assim como os costumes persistem adaptando-se a diversos estados de civilizagdo, também convém considerar a influéncia da vontade individual nas transformagées sociais; a lei derivou-se do costume, e por fim proveio da intervengao da vontade dos chefes temporais. Para exemplificar este caso, basta-nos citar 0 documento da Camara do Porto, de 1401, que estabelece: «que os mesteiraes da mesma cidade nao fizessem obra alguma desde sabba- do ao sol posto até 4 segunda feira sol sahido». As leis sumptuarias decreta- das pelo poder real séo a forma mais evidente desta intervengao discriciond- ria que muitas vezes se anula diante da estabilidade do conservantismo. ™ Eufrosina, p. 97. 206 CapiTULO V Automatismo organico na imitagao e na tradicao Da etnogenia ou elaboracZo natural dos Costumes; Accao das criangas, das mulheres ¢ dos velhos: A linguagem emocional — Parlendas e Jogos infantis. — Fenémenos de Filologia generativa. — Os gestos, como manifestago de um perfodo de mutismo. — As into- nagdes: as interjeigdes populares e palavras expletivas, — Imitagées dos sons naturais © vozes dos animais, nas parlendas infantis. — O género do Traba-lenguas em portugal. — As neumas das cantigas, e a criago da linguagem de giria. — Os Jogos infantis e populares: sua origem organica, sentidos miticos e representacao de estados sociais. — Bases da critica comparativa dos jogos populares comuns ao oci- dente da Europa: — A Cabra-cega, 0 Dou-te-lo vivo. Contagem dos dedos. — Jogos numerativos, de adigao ¢ de eliminagio. — Danga e elemento dramatico dos jogos populares. — © jogo da Condessa e da Viuvinha. — Jogos de adivinhagdo como restos cultuais. — Enumera- 40 dos Jogos populares nos escritores portugueses, desde 0 século xiv a xix. — Modas, Trajos e formas cerimoniais. — Unidade ocidental nos trajos primitivos: © mandil, o barrete, a cuia ¢ a mantilha, — Persisténcias de certos trajos ibéricos no uso actual. — As vestes po- pulares descritas por Villas-Boas ¢ Rodrigues Lobo. — Os trajos do século xi € XIV deseritos no Cancioneiro Portugués da Vaticana, — Como os antigos escritores portugueses contribuem para a descricio dos trajos nacionais. — As leis sumptuarias. — Modas francesas em Portugal. — Titulos ¢ cumprimentos. — As Dancas ¢ instrumentos mu- sicais: — As dangas si documentos de diferenciagdo étnica. como se observa na Espanha e Franca. — Tipos das dancas portuguesas. — Evolugdo histérica das dangas, determinada pelas alusdes dos escrito- res portugueses. — Uma cena do Fidalgo aprendiz, de D. Francisco Manuel de Mello. — Influéncia francesa e espanhola nas daneas portuguesas: os Tordides e as Sarabandas. — Os instruntentos musi- cais: suas relagdes com o elemento cultual. — Instrumentos musicais populares. — Transicao da vida doméstica para a vida pablica. 207 TEOFILO BRAGA ‘A razo de certos costumes sociais, nas suas formas ¢ universalidade deriva dos antecedentes bioldgicos, quer pelo determinismo orginico da evolucio individual do sexo e idade, quer pelos graus do desenvolvimento ou regressio fisiolégica, como se observa nas criangas e nos velhos. A persisténcia destas causas através de todos os estados sociais, desde a barba~ rie a civilizacao, obriga o etnologista a agrupar um grande ntimero de factos consuetudinarios, manifestados historicamente, sob a sua dependéncia biol6- gica. Na Etnogenia. ou elaboragdo natural dos costumes da humanidade, a crianca, a mulher & os velhos sao factores imediatos. embora inconscientes, que actuam nos modos de ser de cada sociedade pela imitagao do que veem praticar. pela especificidade de certos actos, ou pela transmissao automatica em forma cerimoniosa ¢ afectiva de eradicao. ‘A crianca na sua evolucdo organica representa fases extintas do hamem emocional primitivo: é assim que pelo estudo de tinguagem infantil se che- gou & descoberta do proceso generativo da linguagem dos povos civilizados ‘A crianca tende por instinto para a imitagéo do que se pratica sua vista, macaqueia, finge, reproduz tudo: mas objecto dilecto que leva a crianga imitacao é fazer como os grandes, como os homens que a cercam. J4 0 poeta Lucilio notara este importantissimo caracter psicolégico: Ut pueri infantes credunt signa omnia aliena Vivere et esse homines, sic istic omnia ficta Vera putant ... Citando estes versos, acrescenta Lactancio: «Illi enim simulacra homines putant esse, hi deas.» Sob o ponto de vista da imitagdo dos actas do homem, € que se devem agrupar os Jogos e as Pariendas infantis; alguns desses jogos foram actos sociais que se obliteraram, persistindo apenas a sua macaquea- do sem sentido. A mulher é também um elemento essencial da actividade etnogenica, coadjuvado pelas condigées sociais. Nas retagdes da mulher com o homem brutal das idades primitivas ou barbaras, uma das qualidades desenvolvidas como meio de resisténcia foi a seducdo, a necessidade de agradar. Spencer, na Introdugéo @ Ciéncia social, fez sentir esta importante caracteristica: «Nés podemos apresentar em primeira linha o talento de agradar & 0 gosto do successo que © acompanha. E evidente que, em condicdes eguaes, alids, entre mulheres vivendo segundo 0 capricho dos homens. aquellas que sa- biam agradar, eram as que tinham mais probabilidades de viver e de deixar uma posteridade.»! Em épocas elevadas de cultura social, esta orientagao imposta pela situagdo do passado da mulher revela-se na preocupacdo do parecer bem; tal é a razio da moda, a modificagdo constante dos trajos no sentido de agradar. A danga ¢ 0 canto ligam-se também a este instinto de * Op. cit., p. 405 208 AUTOMATISMO ORGANICO sedugdo; Shakespeare, para representar a beleza invencivel de Desdémona poe na boca de Qtelo, como motivo da sua paixéo: «uma mulher que canta». As formas feminis acham na danga o relevo que os trajos muitas vezes prejudicam. A admiragéo que a mulher sente pela forga é também uma das causas de desenvolvimento e conservagio dos jogos de valentia entre as classes populares, em épocas em que a ordem para manter-se j4 ndo carece da intervengao da bravura. Os velhos obedecem a um importante fendmeno psicolégica de regressiio moral ao passado. Esquecem-se muitas vezes dos sucessos do dia de hoje, ¢ descrevem com pasmosa minuciosidade acidentes remotos da sua mocidade. E esta tendéncia que os torna os depositdrios do formalismo cerimonial, do respeito pelo passado (laudator temporis acti) ¢ 0 iniciador junto das novas geragdes da tradigao doméstica ou nacional. Aristételes procurando as cau- sas da Eloquéncia na natureza humana, retrata assim os velhos: «Os velhos que j4 passaram a forga da idade, tém um cardcter quase oposto ao dos mancebos. — Eles vivem mais pela recordagio do que pela esperanca; porque © que thes resta para viver € breve, e o seu passado é longo; ora, 4 esperanca reporta-se ao futuro, € a memoria para © pasado; é por isso que cles so narradores; eles passam o tempo a repetir 0 que aconteceu, porque eles gostam de recordar-se.»? As observagées de Aristételes foram compro- vadas fisiologicamente por Erasmo Darwin na sua Zoonomia. E. assim no estudo das transmissdes tradicionais, veremos como os velhos conservam a sabedoria popular derivada de uma pratica anterior, Fora da accdo pela in validez, exercem 0 resto da sua vida nas especulagdes morais, doutrinando; os Anexins sao estas rapidas sinteses especulativas deduzidas da similaridade de casos particulares; as Adivinhas sao 0s problemas espontaneos que esti- mulam a primeira actividade mental; os segredos médicos € 0s agouros, s40 0 elemento de transi¢ao do culto doméstico para © culto pitblico. Seguindo o caracter de cada um destes factores, € que os agruparemos tendo até aqui sido observados de um modo desconexo. A linguagem emacional — Parlendas ¢ Jogos infantis. — © fenémeno da linguagem € um dos mais imprtantes problemas etnolégicos; homens de ciéncia como Bopp e Grimm, pela filiagdo dos grupos de linguas indo-euro- peias e germanicas alargaram © campo da investigacio historica da grande raca drica. Antes porém do processo histérico da filiagao existiu 0 proceso organico de eJaboracdo natural da linguagem, pressentido por De Brosses ¢ Wedyood. a que ja hoje se chama filologia generativa. E este periodo que investigamos segundo o pensamento de Tylor:

Vous aimerez peut-être aussi