Vous êtes sur la page 1sur 365
GARCIA DE REZENDE EXCERPTOS SEGUIDOS DE EMA NOTICIA SOURE SUA VIDA E ODRAS um guize cRitico APRECIACOES HE CELLEZAS E DEFEITOS E ESTUDOS DE LINGUA Por AMTOMO FELICIANO DE CASTILIO RIO DE JANEIRO LIVRARIA DE B.L. GARNIER, EDITOR 69, RUA DO OUVIDOR, 69 PARIS. — AUG. DURAND, EDITOR, RUA DES GRES, 7 1865 Ficio reservados todos os direitos de propriedade vw INDICE NUNO PEREIRA A Sra, D, Leonor da Silva, porque, em tempo, dee elle a s w Gaevle veeae ear eeaeaeesecuaiae \ D. Guiomar de Gastro, poryne, querendo-a servir, Ihe disse eve du parentes, semo sete. 2 6 ee eee D. JOAO MANOEL, CAMAREIRO- MOR D’EL-REI D. MANOEL Falla, ow palavras moraes. 2. ee Regia pa viver ew ps Caiigs ee PEDRO HOMEM Cantiga, quando casou a Sra, D, Branea Couliua. 6. TRISTAO TEIXEIRA, CAPITAO DE MACHICO Troy JORGE DE AGUIAR Cot swan saeco Tee erais Peres tee eee erat titliiettiat at enieutiidtatiiettel tettaitiet DIOGO MARQUAO Cantig: CONDE DE EORBA A Sra. D, Leonor da Silva, 2... rarer et ese g Ee FRANCISCO DA SILVEIRA em se MOMENT. 6 pieco BRANDAO Trovas a wna dan sparea a uma senb: Fingimento de amor Si sobre fe ches: nada aun imoste a capa, sem The dizer oulra cousa. 2 6... LUIZ HENRIQUES Ao duque de Braganga quando tomou Azamor, em que conta como fuses eet ictee pe eae eee meas pees YOAO RODRIGUES DE CASTELLO-BRANCO , parlindo-se. ener RUI GONCALVES DE CASTELLO-BRANCO DR. FRANCISCO DE SA 49 al o2 Bi 16 97 98 oO INDICE LUIZ DA SILVEIRA Guim Ge GREGORIO AFFONSO, CRIADO DO BISPO D'EVORA Avrenegos.. ee ee oe es SOMO RODRIGUES DE LUCENA A Sra. D, Joanna de Mendonga, porque Ihe mandou a rainha que nao sahisse Resposta d' Ulysses a oe tir guagem. . : Carla de Enone a Paris. dla do Sabino, “de Jatin om tine ila do Ovidio, ent cop D. RODRIGO DE MONSANTO Av conde prior porque achirio num inho um seu mogo de esporas, cont uma trouxa de vestides ds costas. . . : Testamento do machy rugo de Luiz Freire e-tando para morrer. ANONYMO em Setubal, no s fet. 2 ee Estes io os porques que forio tempo d’el-rei D. Join, sem se DIOGO DE MELLO Vindo d’Azamor, achando sua dama casada se DIOGO VELHO DA CHANCELLARIA Da caca que se cage em Portugal, 116... feita 10 amo HENRIQUE DA MOTTA Glosa a este mote que fez em que ndv estio mais tras do que as do nome de Antonia Vieira '— Ji viel Aum clerigo, sobre uma pipa de vinho que se the fi lamentava-o' esta maneira. 26 ee ee Trovas a uma mula unity magra e velba, se GARCIA DE REZENDE Trovas 4 morte de D. Egnez de Cas! A Ray de Figueiredo, estando dete Qua vinte e quatro de damas e vinte e quatro de homens, deze de louver e doze de deslonvor. 6 6. ee eee BREVE MEMORIAL DOS PECCADOS Sete cousas que & mi necessario av sa cio para dizer depois da cunfissao dote saber. peacdens ese eceeeetee vu 100 101 1s 126 145 14h 165, 166. 73 1i8 18.5 190 7 arieE vn INDICE. MISCELLANEA Vimos cadéas, collares.. 2... eee .: CHRONICA DE D. JOAU II Capircyo XNVIL — A mancira em que se as menagens dio... . Carrruvo LIX. — Da j que em Abrantes el-rei mandou fazer na estatua do marquez de Montemor.. 2. ee Carmruro XLVI. — De como el-rei perdoon ao duque de Visen a culpa que n'este caso tinha, ¢ da morte do duque de Braganga. . Carircto LI— Do que aqui em Santarem acaeceu ael-rei de noite. Carituto LIL. — De como se comegou o caso em que o duque de Viseu foi contra el-rei. . 2. 2. ee aie eetee Cartroco LIL. — De como foi a morte do duque de uw. Carrruto LVII. — Da mudanga que el-rei fez no escudo real “de suas armas e das novas moedas que mandou fazer... ee Caprruco LXIV. — De como el-rei defenieu as sedas e brocados. . Carrrvto LXXVIL. — Do que el-rei fez, indo com a rainha a ver correr touros em Alcochete Carrrovo LXXXUIL. — Do que el-rei passou com Pero Pantoja em PTavilas scutes cee aae sees tac staunutat eee Cavtrezo C.— Do que el-rei fez no feito do earcereiro Jodo Bago Caprrezo CII. — Do ane el- se a um homem que the dizia maldeontro.. 2. ee ee Carrre.o CXH. — De como foi muidado o most ee Cavireto CNXVIT. — Dos ricos momos que etre fxm sala da madeira, para desafiar ajusta.. i Carrre.o CXXVUL — De como el-rei dew sua mostra, e do grande Carituro CXXXT. — De como 0 principe ea princeza entrérao em Santarem. 0. ee ee eee : Caprruto CXXXIL. — De como foi a triste morte do principe. . Caprroco CXLVIIL — Do que el valleiro que fora de seu. pai Carrrvzo CLUIT. — Do que el-rei disse a win homem m ue be bebia vinho mais do necessario. Carrruno CXCVI. — Do que el-rei conselho.. Fallecimento d’el-rei_ D Serio pos REIS MAGOS... . 2. cee reettart erica: Exrrara p'er-ner D. Mavoet ra Castetta. 2... ee . Noricta pa vina & ounas DF Garcia pe RrzeaDe. . tie FIM D0 INDICE. 297 299 301 305 PROLOGO DE GARCIA DE REZENDE DIRIGIDO AO PRINCIPE NOSSO SENIOR Muito alto e muito poderoso principe, nosso senhor! Porque a natural condigio dos Portuguezes & nunca escreveren: cousas que fagao, sendo dignas de grande memoria, muitos e mui grandes feitos de guerra, paz e virtudes, de sciencia, manhas e gentileza sio esqueci- dos. Que se os escriptores se quizessem vecupar a ver- dadeiramente escrever nos feitos de Roma, Troya, e todas outras antigas chronicas e historias, nio achariao mores faganhas, nem mais notaveis feilos, que os que dos nossos naturaes se podiio escrever, assim dos tempos passados, como d’agora. Tantos reinos e senhorios, cidades, villas, castellos, por mar e por terra, tanlas mil leguas, por forga de ar- mas’ tomados, sendo tanta a multidis de geute des con- m. 1 Es LIVRARIA CLASSICA. trarios, ¢ Lio pouca a des nossos, sustidos com tantos trabalhos, guerras, fomes e cercos, Liv longe de espe- ranca de ser soccorridos ; senhoreando por forga de ar- mas tanta parte de Alrica; tendo tantas cidades, villas ¢ fortalezas tomadas, e continuamente guerra sem nunca cessar: ¢ assim Guiné, sendo muitos reis grandes ¢ zrandes senhores scas vassallos ¢ tributarios; ¢ muita parte da Ethiopia, Arabia, Persia e Indias, onde tantos reis mouros e gentios, e grandes senhores sio por forga feitos seus subditos e servidores, pagando-lhe grandes pareas e tributos; e muitos d'estes pelejando por nés debaixo da bandeira de Christo, com os nossos capi- ties contra os seus naturaes, conquistando quatro mil Jeguas por mar, que nenlumas armadas do soldao, nem outro nenhun gr com medo das nossas, perdendo seus tratos, rendas e vidas; tornando tantos reinos ¢ senhorios com innume- ravel gente 4 {éde Jesus-Christo, recebendo agua do santo baptismo, e outras notaveis cousas, que se nado podem em pouco escrever! Todos estes {eitos, e outros muitos de outras substan- cias, niv sio divulgados, como fordo se gente de outra nagio os fizera; e causa isto serem tio confiados de si, que nao querem confessar que nenhuns feitos sao maiores que os que cada um faz, e faria, se 0 n'isso mettessen, E por esta mesina causa, muito alto e pode- roso principe, muilas cousas de folgar e gentilezas sio perdidas, sem haver d’cllas noticia, no qual conto entra aarte de trovar, que em todo o tempo foi mui esti« mada, ¢ com ella Nosso Senhor louvado, como nos rei, nem senhor, io ousio navegar, PRULOGO. a hymmos e canticos, que na santa igreja se cantio, se vera: @ assim muitos imperadores, reis, ¢ pessoas de memoria, pelos rimances e troyas sabems suas histo- rias ; e nas cortes dos grandes principes ¢ mui nece ria na gentileza, amores, justas e momos, ¢ tamben para os que mios trajos e invengdes fazem. Por trovas io castizados, e lhe dao suas emendas, como no livro ao diante s passados se puderio haver, e dos presentes se escrevé rio, ereio que esses grandes poctas, que por tantas partes sio espalhados, mio tiverio tanta fama como tem. E porque, senhor, as outras cousas sio em si tio grandes, que por sua grandeza, e meu fraco entender, nao devo de tocar mellas, n’esta que é a somenos, por em alguma parte satislazer ao desejo que senipre tive de fazer alguna cousa eu que Vossa Alteza fosse ser- vido, e tomasse desenfadamento, determine ajuntar algnmas obras, que pude haver de alguns passados e presentes, ¢ ordeuar este livro; nao para por ellas mos- t vera; e se as que sio perdidas, dos nossos tar quaes fordo, ¢ sio; mas para os que mais sabem se espertaren a folgar de eserever, ¢ trazer ad memoria os outros grandes feitos, nos quaes nado sou digno de met- tera mao. CANCIONEIRO!' D. JOAO DE MENEZES CANTIGA (16 ¥) Pois minha triste ventura, Nem meu mal nao faz mudanca, Quem me vir ter esperanca, Cuide que é de mais tristura. 1 Edie#o comecada em Almeivim e acabada em Lisboa, por Herma de Campos, Allemio. 4516. Vio indicados : 4° os nomes ilos poetas; 2° os titulos dl: os tént; 5° a folha d’onde ellas se extrahirio. A lettra v da folha do original. LIVRARTA CLASSICA, E pois vejo que em morrer Levais gloria nao pequena, Antes nio quero viver, Que viverdes vés em pena. Quero triste sepultura; Quero fim sem mais tardanea: Pois nuuea tive esperanea, Que nio fosse de tristura. GLOSA A MEMENTO HOMO QUIA CINIS ES (17 v.) Lembre-te que és de terra, FB terra te has de tornar : Nao queiras por outrem dar A ti mesmo tanta guerra ; Perdéa a quem te_erra, Se de cima perdio queres, Quia in cinere reverteris. o captives Leu cuidado Em cousas nio de cuidar Porque assim ha de pa () porvir, como o passado : Olha que has de ser julgado Pelas obras que fizeres, Quia in cmere reverteris. GARCIA DE REZENDE, CANTIGA ANDANDD ELLE ED PRIOR DO CRATD DE AMORES COM 0. GUIDMAR DE MENEZES, E FINGID QUE O FAZIA PELO JOGD. (7 ve Pois nio tenho que perder, Nem espero de ganhar, Para que quero jogar? 0 jogo sempre traz damno A quem joga mais verdade = O ganho vem por engano, Por hulras e falsidade ; E de tal enfermidade Poucos podem escapar, Se nao deindo de jogar. 0 perdido ¢ 0 ganhado, Tudo vai como nio deve : © que menos dita teve Foi melhor aventurado : Leva menos emprestado, Tera pouco que pagar, Quando quer que o tornar. Tina joia preciosa, Cujo eva, que perdi, LIVRARIA CLASSICA, Sendo falsa e enganosa, Inca cousa mais senti! Porém nella conheci Que o triste, que a levar, A vida Ihe ha de custar. Com mas cartas, ma figura, Com mios dados im’a leyou! Ambos temos ma ventura, Quem perdeu, e quem ganhou! Eu, porque me ella deixou; 0 triste, que a levar, Porque cedo o ha de deixar. Levou-m’a; mas nao por ter Melhores truntos, nem mais : Com muito poucos metaes, Com inuito menos saber... Seno sé por ella ser Tal que nunea péde estar Uma hora sem se mudar! GARCIA DE REZENDE. 9 D. JOAO DE MENEZES, E D. JOAO MANOEL, A PERO DE SOUZA RIBEIRO PORQUE, ENTRANOD NA CAMARA OO PRINCIPE, LHES PROMETTEU DE DIZER D'ELLE, E NAO OISSE. (Is wv.) Se vés la dizeis de nds O que ca de vés dizemos, Razio é que nao entremos. E direis que por medrar, Sabemos mui bem fazer, Co’ os de dentro nao dizer, Co’ os de fora murmurar. Se taes sumos, como a : Uses Confessamos, conhecemos, Que é rai Ao que nao cntremos, 40 LIVRARTA CLASSICA. FERNAO DA SILVEIRA COMPEL-NOR, TROVAS DE FERNAO DA SILVEIRA, COUDEL-MOR, A SEU SOBRINHO GARCIA DE MELLO DE SERPA DANDO-LHE REGRA PARA SE SABER VESTIR, E TRATAR 0 PAGO. (49 ve) Pois vos tachio de cortez, Sobrinho, entil cunhado, Sobre alto, alyo, delyado ; Nao ha mais em um Franeez. E que a barba tenhais pouca, Pois bem vestir vos alegra, Regei-vos por esta regra, Que fundei, vindo d’Aronea. A qual, pois en si é boa, E geralmente vem bem, - Que fara ao que tem Som corpo, hoa pessoa! E pois tendes estas ambas, Tendes quanto haveis mister, GARCIA DE REZENDE, nt Se o vaio de amor vos der Por lugar, que cubra as echambas. Mas eu perdoado seja, Se fallar @ me nio chamio ; Pois que sio dos que vos amio, Que mais vosso bem deseja. Cunhado, nio duvideis Que isto trago por lei; E por isso me fundei IVescrever as que lere Duas cousas, que nao calo, Ha no paco de seg Tima é saber vestir ; A outra saber tratal-o : As quaes ponlo por escripte Em estylo verdadeiro ; E fallo logo primeiro No vestir ja sobredito. Sapatos de Basiléa ; Pontilhas sobl o molle: As calgas tirem de folle, Roscadas como obréa : Tragiio sas de marcar, Forradas de irlanda parda, Ca cousa é que muito alarda Para gra bomborrear. oe LIVRARIA CLASSICA. Quem trouver porta dhollanda Camisa trazer nao cure : Menores porém ature, Porque nao pendao 4 banda, O gibio de qualquer panno Na barriga bem folgado : Dos peitos tio agastade Que seu dono traga ulano. De pelote se guarneca Pouco menos do artelho: Seja de branco, e vermelho, Que sio cores de cab Pardilho deve mantio Sobre elle trazer coberto = Pelas ilhargas aberto Ventaes pelo cabecao. Neve trazer craminhola, Nao menos de tres batalhas ; Tao fina, que tome as palh Como a d'Alvaro Meola. 0 capello ande no hombre, Feito como o do Cintrao, Traga o cabo em uma mio, E na cutra um cogombro. dun sé pollegar, de pelle de lontra, GARCIA DE REZENDE 1S Galante que as encoutra, Nio Ihe devem d’escapar. Estas taes de meu conselho Todavia havél-as-ha; E item mais trazera Baluerque em wm joclho. Traga cinta de verdugo, Pejada com capagorja ; Ca tal par sabei que forja Um valente patalugo. De grandes bugalhos traga Ao pescoco um bom ramal; Porque escusa firmal, E a bolsa nao estraga. 0 que for assim aposto Nao é galante de borra; Nem Deos queira que se corra, Pero Ihe corrio de rosto: E alguns sao ja conhecidos, E poder-se-hao nomear, Que trazem, por passejar, Motejar dos hem vestidos. Pero quem for ao serio, Pelo modo dito em cima, Apupar alto lhe rima A as damas dal-a mao; _Sobrinho, 0” LIVRARIA CLASSICA, K fallar fagueiramente Aos outros de redor; I; se ouvir — non stor — Acudir mui rijamente. ‘ “a par F Na oulra parle segunda, Pois ja dei fim a pr al, a mancira A tengio minha se funda : Para o pago se tralar Estas manhas se requerein ; E nos que ellas couberem, Na corte séo de prezar. FE wui bom ser alterado, E ser gra desprezador ; Eé bom ser rifador, Mas melhor ser desbocado: Outrosim é bom d'ufano Em todo caso locar, Mas melhor é ja gabar E mentir de maxa mano. E mui bom buscar punhadas, E etter isso pareeivo ; Mas nao ser o diauteiro Por resguardo das queixadas. Aos arruidos da villa A acudir ser nui disposto ; GARCIA DE REZENDE. 13 Mas Havel-os pés ala fila. se alguem liver 0 rosto Item manta de louvar jogar bem o malhio ; E ae jogo do pio, Louvor se Ihe deve dav. Nem sei porque mais vox gabe Ser gra pescador de naga; Mas jogar a badalaga, Em qualquer galante cabe. Saber bem o pego chuna, E o cubre bem jogar, Sao duas para medrar Galante contra fortuna. Nem saberia a um filho Escolher melhor conselho, Sendo que jogue o fitelho, Jaldeta, cunca, sarilho. Quem estas manhas tiver, Que ja disse inteiramente, Péde haver ao presente Quanto the lizer mister. Ca t se elle descobrir, Qual sera a tao soffruda, Que lhe logo nao acuda, E lhe dé quanto pedir? LIVRARIA CLASSICA. Mas que digo? saiba, saiba Jogar de espada e broquel: Porque dentro no bordel, Come fora d'elle caiba ; Ese lhe viesse 4 mio, Poder-se-hia nelle ter Quem ajudasse a suster Seu andar sempre lougio. Regalo deve mostrar Que uo leva em collo duas; E que todas cousas suas Sado mui dignas de prezar. Item mais fallar em tudo, E aperfiar sem medo, E aos olhos ir co’ o dedo, i fingir de mui agudo. Fallar nos feitos da guerra As duas partes do dia: Esta manha louvaria Pois o leva assim a terra. E tomar unais 0 caso sobre seu peito; Mas na conclusao do feito O fazer buscai por hi. outrosi Ttem nav é manha fea, Quem achar dama ao escuro, GARCIA DE REZENDE, 7 Estar quedo, e mui seguro, E bradar pela candéa. Nem é menos verdadeira Que a outra do fitelho, Mostrar ser gri dominguelho, E pegar pela primeira. Eis-aqui outra tao boa, Nem menos para nolar, Sempre o paco ir demandar Entre a vespera e noa; Porque nao desacotie Com hombradas © pardilho, Que assim fazia o filho, Daquelle, que Deos perddc. Tambem vos quero avisar Viv vades como patao, Se ventura no sarao Com damas vos for topar. Da boca podeis dizer; Mas a mio sempre esté queda, E toca-lhe na moeda Se se pode corriger; E por esta mesma guisa, Sabe d'ellas todavia, Que recado se daria Ase bem tirar a sisa: irs m1. LIVRARIA CLASSICA. E falla-lhe no outomno, i nos outros femporaes, Ca com estas cousas taes Podes escapar ao somno. Leixo em vossa discrigio As que leixo descrever, Assim como quer dizer Lutar pelo Tavascio : Da sacalinha de dentro Podeis tirar, se quizerdes ; E se dormir nio puderdes, Soccorrei-vos ao coentro. Boas sao, geutil sobrinho, As manhas, nio duvideis ; E vés me nomearcis Se levais este caminho ; E pois estas as melhores Sao, se as podeis cobrar, Podem-vos todos chamar Um revolvelbas d'amores. GARCIA DE REZE A RUI DE SOUZA SOM UMA CARTA DE SEGURO, EM QUE PAGOU POR ELLE SESSENTA E NOVE REAES. 2 v.) Sessenta brancos na palma, Postos con tres vezes tres, Fez de custos, que me péz, Us quaes ja dou por minha alma. Nem quero ter esperanca Que homem vosso mos traga : flavei vos a seguranca, E mao grado a quem n’a pag CANTIGA (22 v.) Pois se fordo descobrir Vossos feitos pouco e pouco, E mui bom homem ouvir, E nao ser mouco. Uugo-vos chamar madoma, Porque amor cm ys nao callsa 5 E ouvi que sois tio mansa Que qualquer homem yos tuma. 20 LIVRARIA CLASSICA Ouvi-vos mais descobrir Por mulher que sabe pouco ; E por isso é hom ouvir, E nao ser mouco. TROVA 5 v.) Pois mio vejo quem: me ampare, £ meu mal ornais em dobro, Sobre mim convem pdr cobro, Que ja minha mai nao pare. Metti-me de companhia Por vosso bem desejar Para ver se medraria, Como vi outros medrar. Mas pois dais mal que me fare, Ea outros bem em dobro, Sobre mim convem por cobro, Que ja minha mai nao pare. GARCIA DE RE TROVA 12h) Porque meu mal se dobrasse Vos fez Deus formosa tanto, Que nao s nto tao santo, Que peccar niio desejas: Polo qual sei que me vejo Ne todo ponto perder, Por nao ser em meu poder Partir-me deste desejo, Mas que me este malfadasse, E me traga danno tanto, Praz-me ; pois nao sei tio santo, Que peccar nao deseja Ce 2 LIVRARIA CLASSICA. ALVARO DE BRITO PESTANA TROVA 6 v.) Vive mais morto que vivo 0 livre que se captiva + Ledo forro sempre viva Qnem se livra de captive, Nao é lei de humanidade, Nem consente descripedio Leixar homem liberdade, Por viver em sujeigio = Sendo contra si esquivo Contra si todos esquiva : Ledo férro sempre viva Quem se livra de captive. GARCIA DE REZENDE, A EL-REI FORQUE © MANDOU AO ESMOLER, PEDINDO-LHE MERCE. er) + — Menospreco desconsola : A verdade bem se vé Que quem merece mercé, Mio espera por esmola. As esmolas de Deos Chamadas espirituacs : As merecés os reis as dio Por galardao Dos serv Este mundo é embola : Bem esta quem em Deos cre, Que quem: merece mercé ‘os temporaes. Mio espera por esmola, TROVAS A EL-REI QUEIXANDO-SE DE TRES DESEMBARGADORES QUE ERAO JUIZES D'ENTRE ELLE E UM vILAO. Qs) Senhor, Jad, Pero, Luiz, Tres da vossa relacio: LIVRARIA CLASSICA. O que Deos nio quer, nem quiz, Querem mostrar por razio : Querem salvar wn vildo ; Querem condemnar amin; Querem fazer, por latim, Do nao sim, e do sim nao, RIFAO Vossas borbulhas me comem, Bom ehristio quasi hart; Sois, por quem disse Jest Peza-me porque fiz, homem! Sois sem fé, sem compai Sois muito mao pagador ; Sois mui negro de cario ; Nois de negra condi¢ao : Gracioso semsabor, Sois galante de palomem ; Cortezio de barzald ; Sois por quem disse Jest Peza-me porque fiz hcem! Sois um bruto animal, Belfa quasi tartaruga ; Sois um corvo cornical ; Sois um demo infernal ; i quem de vos nao fuga ; GARCIA DE REZENDE, Sois damnado lobishonem, Primo d'Isac nafi ; Sois por quem di Peza-ine ter feito homem, e Jest —M LOUVOR DE PERO DIAS ESCRIVAO D'ANTE D CORREGEDDA DA CIDADE DE LISaOA. QS v) Todos mui calados sejio Por bem ouvir e escuitar : Todos venhiao ver, e vejio Como medem e varejio Um que quero declarar. Estes todos numerados Do conto dos escrivies Do civel, erime contados, E assim d'outros julgados, E tambem tabelliaes. Entre todos escolhido F este, que vos direi : Pero Dias, e havido Por homem, que merecido Tem a Deos, e a el-rei. A Deos tem as profundezas, Onde mora Barrahaz ; La lem cousas e riquezas, 26 LIVRARTA CLASSICA. E tambem umas defesas, Que partem com Satanaz. E tem mais wma herdade, Que houve, com condicio De nunca fallar verdade, Nem tamhem a seu abbade Em nenhuma confissao. Tem officio na cozinha, Das caldeiras mechedor : Sobre lombo de sardinha Bebe mais sumo de vinha Do que leva um tenor, Tem mais rindo, e folgande Por homem de mui bom tento, Suas bochechas inchando, Officio d’estar soprando 0 foo d'tt dio tormento ; E mais é posentador De todos os que la yao : Com rosto triste amor, Os recehe pela mio Porque la tem gra favor. Os quaes leva como damas, Soccolor de repousarem : Em fogo de vivas chammas Lhe ordena barras e camas Por se melhor aquentarem. E disposto pasteleiro GARCIA DE REZENDE, 27 Do archanjo Lucifel ; De Barzabu carniceiro ; Margarefe verdadeiro, — - Grande mestre de cristel. Item mais é triagueiro, Dos abysmos boticairo ; Faz a prova sem pareciro, Da-vos purga sem dinheiro, (Que vos é mui gra repairo, Nos abysmos sempre mora ; Mas vem ea fazer servico, Pelo qual sua alma chora ; E diz que muito ma hora Se metteu no seu cortico. Ja mudou a condigao : A Deos gragas todos demos ! Convertido de razio Vos escreve 0 sim por nio, Assentando falsos termos. De ruim tem apparelhos : O esp’rilo tem malino : De macis d’escaravelhos Com pimenta de coelhos Vos faz ambar muito fino, Outras mil composigdes Yos faz desta guisa feitas : Tudo passa com razdes, Porque tem taes condicdes LIVRARTA CLASSICA. Testes casos mui perfeitas. Sabe-vos mui bem o eanto Dos erros judiciaes, Porque 0 seu corpo santo Tem-nos em costume tanto, (Jue traspassa seus iguaes, F-vos tao hom tintureivo, Que nio fot melhor Gabai : Por quem The da mais dinheiro Faz do preto mui ligeiro Um mui fino verdeguai : Luila bem pela travessa, E tambem por sacalinha Por quem dinheiro arrevessa, Sua mio com grande pressa Mette logo entrelinha. Nega sempre a verdade ; Escreve sempre mentira; Porque a condigdo da herdade Foi assim, e bem se Perguntem Duarte Xi Perguntem Sebastiao ; Perguntem Heytor Lampréa, Se é este o escrivao, U mais falso, e mais bulrio, Que no mundo se noméa ! he : Perguutem a seu cunhado, Ea todos em geral : GARCIA DE REZENDE a Vejao uns autos d Amado, Um judéo, que foi queimade No recio por seu mal. Perguntem aD. Joao, D'Abranches é nomeado ; E ao conde, seu irmio, E mais quantos aqui sdo, Salvo Fernido Penteado- Mem Rodrigues me esquecia, Porque nao é magoado ; Mas pero mui bem seria Perguntar-The o que sabia D'este corpo sem peccado ; Porque é homem que dira, Assim Deos em bem me acabe, U que disso sabera ; E nao no duvidara De dizer-nos 0 que sabe. Deos Ihe da por galardio Q inferno para sempre 5 Pero com tal condicae Que elle seja, e outro nav, O que as almas atorniecite. Elle diz que é contente Do partido aceitar, Pelo qual quer entramente Ca andar entre a geute Comegar-se d'ensaiar. LIVRARIA CLASSICA, Ora leixemios estar O que a Deos tem merecido : Venhamos a declarar U que Ihe el-rei deve dar Pelo ter tio bem servido. Neve-o primeiramente Mandar bem aposentar Na casa da muita gente, Onde esté seguramente Com hom grilhao, ¢ collar. A qual casa the darao Por tres aunos assigmados, Porque crie hom car Na qual bem o servir: Com conservas de privados Este tempo, porque saiba, U dem dos attribulados, E porque parte Ihe caiba, E goste d'aquella raiva, Que tem os enearcerados, Depois d’elle haverio Piedade os humanos; i Wahi o tiraraé Com grande voz e pregio Que declare seus enganos : Leval-o-haio passeando, Direito por seu caminho, De seu cabresto irando GARCIA DE REZENDE. a A guia, que for guiando Unde esta v pelourinho. E depois que la chegar, Sem detenca, nem tardanga, Por se mais munea cocar, Alli The fardo leixar Sua destva mio da lav Porque nado mate, nem feixa Ji mais dos que mortos tem, Em dia de ter¢a-feira, Se tera esta mancira, Porque as gentes vao, e vem. E Walli o levarad Com diligencia, e cuidado, A parte do aguiio; E de juro the darao Uma casa sem telhado, (ue tem paredes e cume, Esta posta em bom chio, Na qual inca fazem lume, Por razio que nio defume, Mas enxugue os que alli vio. Se se houver por agyravado Das condigdes da pousada, Mui prestes seja tornado Ao pelourinho, e levado A cabega ser cortada; E feito em quatro partes, LEVRARIA CLASS KE cinco com a frecura, Darao fim a suas artes, E prazer a muilas partes A que elle deu tristura. A caheca lhe porao Escontra o vendaval A porta da relagao, E tambem o cora¢: Com que cuidou tanto mal. Seus quartos lhe parti Pelas casas d’tt julgarem, Porque qualquer escrivao Saiba que tal galardao Lhe darao, se assiin usaren. ado, Isto tem bem merecido A dous Sem, de quanto teu servido, Nunea ver, nem ter havide Nenhuma sati Mas praza ao rei divine Que ponha no coracgie este nosso rei benino, Que de tudo o que for dino Lhe mande dar galardio. —~ 40, pis, que mortos GARCIA DE REZENDL an NUNO PEREIR! A SENHORA D. LEONOR DA SILVA PORQUE EM TEMPO QUE ELLE A SEAVIA, SE CASOU. (32 vs Pois que dama tao perteila Consentio de a casarem, E quiz ser @outrem sujeila, Os servidores, que engeita, Tém razio de praguejarem. Oh! crueza tio sobeja! Se for dé na tal donzella, Quanto Ihe desejo seja, Praza a Deos que tal se veja, Como me eu vejo por cla! Seja muito nama hora Um tio t Pois se vai do page fora A senhora minha senhora Por meu mal, e seu que sento. Eu sento ver-me morrer ; e casamento, LIVRARTA CLASSICA. Sento vél-a enganada; Sento vel-a padecer; E sento vel-a vender So’ color d’encaminhada. Pois se poz em tal affronta De querer saber de rocas, De meadas tome conta, E saiba quanto se monta A noite nas macarocas. Seu marido na cabeca! Ainda a vejio criar Gallinhas, e as Jancar Porque mais dona parega. Va morrer, pois me matava, Entre os soutos ]4 na beira : Pois servil-a nao prestava, Pene 1a quem pena dava Ca ao seu Nuno Pereira. Donzella mal maridada, (Que se nos vai d’esta terra, Deos Ihe dé vida penada, Porque lhe seja lembrada Minha pena ki na serra. Pois que leixa com tal chaga 0 meu triste coragio, Eu The lango mais por praga, (Jue chaves na cinta traga GARCIA DE REZENDE oO Com ceitis em gra bolsio : Pois se nao dée do marteiro Que me da, e nao lhe pesa, Ainda conte dinheiro, E saiba eu que ao dispenseiro Toma a conta da despeza. Que viva sempre sentido Co’ o cuidado sempre nella: Vingar-me-ha li seu niarido, Que vestido, e desvestido Ila de ter poder sobre ella; Pois casou com tal triganga Quem assi mesmo mal quer, Que me tirasse esperanga, Nao quero maior ving: Que o chamar minha mulher! ala Eu viverei padecendo! Nunca mais servirei dama; Mas por se ir arrependendo, Elle, com ella jazendo, Lhe vire as costas na cama; E quando se lhe virar Diga-Ihe — quero dormir! Pela mais desnamorar Comece logo a roucar, E ella nao ouse buli Por aleala vinho beba Com dor de madre, que tenha : 56 . LIVRARIA CLASSICA Porque mais pena receba Elle the tenha manceba, Com que nunca ante ella venha = Tenha candéa d'azeite, E lengées gordos na canta ; Crie seus filhos a leite; Entre elles sempre se deite Que parega mai e ama. Perder-ine-hei; mas mais perdida Sera quem tal fim se deu; Cada anno venha parida : Deos Ihe dé tio triste vida Como eu tenho pelo seo; E pene tao de verdade Como eu peno cada dia Pelo seo com saudade, Porque lhe doa a vontade De quanto mal me fazia. U imarido Ihe aborrega, E elle the queiva mal ; Um ao outro mal parega, E com saudade padega Por vivermes por igual. Pois que a minha vida ja De todo o prazer me priva, Folgavia que ella la Padecesse, pois me da Saudade, com que viva. GARCIA DE REZENDE 37 0’ fortuna, tu que imudas, Uma cousa n’outra cousa, Da doengas mui agudas, A que nao prestem ajudas Nem jolepes ao de Souza. Porque niio possa casar, Esta senhora de todas De si veja, mao pezar, Quem cantar e nio chorar Naquestas io tristes vodas. AD. GUIOMAR DE CASTRO PORQUE, QUERENOO A SERVIA, LHE DISSE QUE ERAO PARENTES. SEM O SER. Gi * Que nés nos nao conhegamos De tio estreita amizade! Senhora, ambos nos cridmos, Vos, e cu, wessa cidade : E vosso pai ¢ 0 mecu Quatro geolh Outro tanto vas 6 eu, <1 e nds, Sois a mie ena vés. E yossa mai ea minha Ambas n'um jugar inorario : * Ambas virdo a rainha, E ambas se ja finarao. 38 LIVRARIA CLASSICA. Tambem erao nossos padres, Entrando por outro conto, Maridos de nossas madres, Nem mais, nem menos, nem ponto. FE sao casi vosso irmio; Ambos de ventre naseémos Com cinco dedos na inio! Véde bem quanto seremos = Ambos vimes de lugar De que vindes. de que venho; Nem podiamos casar Se tivesseis 0 que eu tenho. Ambos d'uma cousa somos La da parte descendentes FE somos quanto nos somos, E ambos muito parentes Ne parentesco chegado : Por esta mesma raziv, Como vos j -ine vos quanto vos sao. a vai contado, GARCIA DE REZENDE. 39 D. JOAO MANOEL CAMAREIRO-NOR DEL-REL D MANOFI. FALLA, OU PALAVRAS MORAES (GL) Nunea vi entre privados Verdadeira amizade Nem fallar nmuita verdade Os em tratos enfrascados ; Nem serem mui aguardados Do: Nem os muito semsabores Que fossem mui avisados; Nem homens mais enganados Que os principes e reis; Nem ser umas mestuas leis A grandes e a pequenos ; Nem homens, que tenhio menos Que os muito verdadeiros ; Nem vi pobres lisonjeirus Seniio se siv mal discretos ; galantes seus senhores : LIVRARIA CLASSICA Nem homer Que os mui vangloriosos ; Ss menos secretos Nem os muito graciosos Que nao sejio maldizentes ; Nem vi munca bons parentes Os da parte da mulher ; Nem oflicio Vescrever Mal servido de presentes; Nem homens menos contentes Que os de mui grande estado : Nem viver desempenhado Quem vergonha ha de pedir; Nem algum muito bolir Que fosse niuito sisudo ; Nem vi nunca grande agudo, Que nao toque de doudice; Nem no mundo mdr pequice Que casar com mulher fea; Nem honiem que pouco lea, Que seja mui singular; Nem vi muito rebolar O ardido cavalleiro ; Nem mais certo alcovilciro Que o physico judéo; Nem diligente sandéo Que nao danme quanto serve; Nem vi homem muito leve Que se nao queiva vender ; Nem homens menos saber Que os que presumem que muito: GARCIA DE REZENDE. 4l Nem mér dondice que lito Mais de tres mezes trazer ; Nem dous negocios ter Que ambos se nio perdessem ; Nem trovas que se escrevessem Assim como forio feitas ; Nem melhor cousa que peitas Para ser hem despachado ; Nem homem mui esmerado Que fosse muito galante ; Nem algun corpo gigante De gigante coragio; Nein servigo de vilio Que folgueis ter aceitado; Nem santo canonisado Que fosse gra cagador ; Nem alyum brassamador Que morresse d’entrevado ; Nem rei d’outrem mandado Que dos seus fosse bemquisto ; Nem mais certo Anti-Chii Que o velho vingativo ; Nem imperador altivo Mais que o vilio honrado; Nent viver mui descansado Quem tem a mulher garrida ; Nem no mundo melhor vida Que a da crasta, ou do estudo ; Nem quem quer fallar em tudo Que saiba fallar ein parte : - & LIVRARIA CLASSICA, Nem no mundo melhor arte Que a que ensina a bem viver; Nem outro maior prazer Que experimentar amigo; Nem outro maior perigo Que pousar com moucarrées ; Nem vi mais certas razies Que d’escudeiro d'além ; Nem senhor, que solte hem Que nao seja mui amado ; Nem vi principe louvado Que nao fosse liberal: Nem no reino maior mal Que ruins desembargadores ; Nem esmerados cantores Serem sempre d’un senhor; Nem vi nescio trovador ; Nem sandéo mal razoado; Nem judéo gra letterado ; Nem mouro mui verdadeir Nem ter somma de dinheiro Nevhum grande alchimista ; Nem homem de pouca vista Que o queira confessar; Nem daima muito chilrar Que engeite os servidores ; Nem morrer homem d’amores Seniio depois de casalo; Nem outro maior cuidado Ho que a susp GARCIA DE REZENDE. us Nem vi condicio tio ma Como é dos inyejosos : Nem homens mui rigo! Que nao caiio em desordem ; Nem bestas que mais engordem Que as que soffrem as esporas; Nem mui alti nhoras : Senio doudas claramente: Nem outra mais douda gente Que a do monte, e estribeira : Nem alguma alcoviteira Que nao seja mentirosa; Nem alguem na graciosa Que désse assucar rosado : Nem inulher d*homem privado Que seja pouco pomposa; Nem cousa mais vergonhosa Que quem faz 0 que reprende; Nem yelho que se emende De vicio habituado; Nem homem mais aviltado Que o que algumas vezes mente; Nem n‘este mundo excellente Cousa mais que a boa fama; Nem amizade de dama Que dure bons quinze dias : Nem sustedor de perfias Senio desarrazoado ; Nem homem mais esforcado Que o vencedor da vontade; ab LIVRARIA CLASSICA. Nem“isitar a bom frade As donas sempre da villa; Nom Carihides, nem Seylla Perigosas mais que 0 paco; Nem p'ra a alma mér cmbar Do que 6 esta honra negra Nem outra mais linda re; Do que é a de Sio Bernardo ; Nem homem, que sendo sardo, Nio fosse maticioso ; Nem rico mui engenhoso Que The nao custasse caro; Nem vi homem mui avaro Senio cheio de lianpeza; Nem outra mator simpleza Que vangloria de virtude ; Nem nos vencidos sande Sendo nao na esperar : New vi hispo visitar, Como deve, seu hispado; Nem vi beneficiado Sem corda ou symonia ; Nem outra imér ousadia Que deixar aqueste mundo, Por eahir no profunde Inferno sem alegria. GARCIA DE REZENDE, 45 REGRA PARA QUEM QUIZER VIVER EM PAZ (Bt v.) Uuve, vé, e eala, E viveras vida folgada! Tua porta cerraris, Teu vizinho louvaras, Quanto pédes nao far Quanto sabes nio di 9 Quanto vés nao julyaras, Quanto otves nio ereras, Se queres viver em paz. Seis cousas sempre ve, Quando fallares, te maudo. Be quem fallas, onde, e que, E a quein, e€ colo, € quando, Nunca fies, nent perties, Nem a outro injuries, Nao estés inuito ua praga, Nei te rias de quem passa. Seja teu todo o que vestes, A ribaldos udo doest:s, Nae cavalgaras ean potro, Nem ta mulher gabes a outro. LIVRARIA CLASSICA, Nao cures de ser picdo, Nem travar contra razio ; Assim lograras tas cans Com tuas queixadas sans. CANTIGA (e2 Nao péde triste viver Quem esperanga deixar, Nem ha no mundo prazer igual a desesperar. A esperanca cumprida Bem védes quao pouco du E dura sempre a tristura, Antes e depois da vida! Quem esperanga tomar, Sempre tristeza ha de ter ; Quem quizer ledo viver Saiba-se desesperar ! GARCIA DE REZENDE. 4 PEDRO HOMEM \ CANTIGA QUANDO CASOU A SENHORA D. BRANCA COUTINHA 9) Pois a todos, se casais, O viver sera tao caro, Lembre-vos 0 desamparo, Senhora, que nos leixais. Leixais-nos toda tristura! Levai-nos toda alegria! Ditosa foi a ventura De quem vio a sepultura Primeiro que tio mio dia! Para que vivemos mais, Pois morrer no esta claro, Vivendo no desamparo, Senhora, que nos leixais? LIVE RIA CLASSICS TRISTAU TEINEIRA CAPITAU DE MACHICO, TROVA 164 v.) Folge muito de vos ver; Peza-me, quando vos vejo!... Como pdde aquisto ser, Que ver-vos é meu desejo! Isto nao sei que o faz, Nem donde tal mal me vem; Sei bem que vos quero bem, Comquanto danmo me traz. Mas isto é para descrer Ter, senhora, tio gra pejo, Morrer muito, por vos ver, Pezar-me quando vos yejo! GARCIA DE REZENDE. 49 JORGE DE AGULAR CONTRA AS MULHERES (64 v.) Esforca, meu coracio! Nao te mates, se quizeres! Lembre-te que sio mulheres ! Lembre-te que é por naseer Nenhuma que nao errasse ; Lembre-te que seu prazer, Por bondade e merecer, : Mio vi quem delle gostasse. Pois nao te dés a paixio! Toma prazer, se puderes! Lembre-te que so mulheres! Descansa, triste, descansa, Que seus males sio vingancas ; Tuas lagrimas amansa: + Leixa as suas experancas. Ca pois nascem sem razio, Mm. 4 LIVRARIA CLASSICA. Nunca por ella the esperes, Lembre-te que séo mulheres ! Tuas mui grandes firmezas, Tuas grandes perdigdes, Suas desleaes nagdes_ Causirio tuas tristezas. Pois ndo te mates em vio; Que quanto mais as quizeres, Verds que sio as mullicres! (Que te presta padecer? Que te aproveita chorar? Pois nunca outras hio de ser, Nem sio nunca de mudar. Deixa-as com sua nacao ; Seu bem nunca lho esperes ; Lembre-te que sio mulheres! Nao le mates cruamente Por quem fez tio grande errada, Que quem de si se niio sente Por ti nao Ihe dara nada. Vive, lancando pregio, Por t fores, e vieres, Que sio mulheres, mulheres! Mespanha foi ja perdida Por Letabla uma vez; E a Troya destruida Por males que Helena fez. GARCIA DE REZENDE. al Desabala, coragio! Vive, nio te desesperes! Que a que fez peccar Adio, Foi a mai d’estas mulheres. TROVA (65.) Coragio, ja vepousayi Ja nao tinhas sujeiga Ja vivias, ja folgava: peta sae Pois porque te subjuga Outra vez, meu coragio? Softre, pois te pao soflreste Na vida que ja vivias; Soffre, pois te tu perdeste: Soffre, pois nado conheceste Como te outra vez perdias. Soffre, pois ja livre estavas, E quizeste sujeicio ; Soffre, pois te nio lembravas Das déres de que escapayas, Soffre, soffre, coragao ! LIVRARTA CLASSICA DIOGO MARQUAO CANTIGA 68 v.) Pois uio pode ser peior, Se melhor me nao fizerdes, Fazei o peior e mclhor, Senhora, que vos souberdes! () peior ja feito é; Que peior nao péde s O melhor tenho por fé Que de vos nunca hei de ver. Pois que pode ser peior, Se melhor me nao fizerdes, Fazei o peior e inelhor, Senhora, que vés souberdes ! GARCIA DE REZENDE 35 CONDE DE BORBA A SENHORA D. LEONOR DA SILVA (it w) Sempre me a fortuna deu Tristezas com que nao posse, Dés que deixei de ser meu, Pelo ser de todo vosso, Que depois que vos servi Comm tal firmeza, senhora, Nunca de vés até agora Uma mercé recebi. Desde entao padeci eu Mil males, com que nio posso, Porque deixei de ser meu Pelo ser de todo vosso. LIVRARIA CLASSICA. FRANCISCO DA SILVEIRA TROVAS A UMA DAMA, SEM SE NOMEAR. 186 vd Dama, que o fostes ja, F que nao sois ao presente ; Velha que mil annos ha; Sao que parece doente! Mantendes mal a mensagem, F? tegna de mil maueir: Garganta, miios, ¢ trincheiras Dos que soba terra jazem. Ossos de que hei piedade ; Que a tado o paco aborrece, Tao imiga de verdade, Como de quem bem parece. Sobre todas invejosa Conhece-vos, e era ma, Que, inda que fossei Vosse tempo passou ja. formosa, GARCIA DE REZENDE. i Deixe 0 paco, cas damas, Quem for da vossa mancira, Inda que para mudangas Sereis a mor dansadeir E tambem d’aconselhar, Por muito que tendes visto, Podereis aproveitar, F servir 0 pacgo n'isto. Mas vosso conselho vio Que sahe d’esse cascavel, Nao no ouvir era mais siio, Porque é azedo como fel. Sois n’este paco peconha, E entr’as damas damnosa, F sois a mér mentirosa Que vi e mais sem vergonha! FE nao digo eu sé isto, Mas a muitos 0 parece; E no que vos acontece () podeis ja ter bem visto. Porque de quanto quereis Vossa mereé quem na queira Nao acha, nem por terceira, De ventura o achareis. Tomai ora este conselho Em que seja d'homem moco; LIVRARIA CLASSICA, Langai-vos antes n’um poco Que curardes mais despelho. Mas isto, senhora, ouvi! Casai vés co’ o Salvador, E servi Nosso Senhor, Que nao sois ja para aqui. Quem por si isto tomar, Dissimule, nav se queixe, Porque quem inal quer fallar Cumpre que em si fallar leixe. Nao cure d’arrapiar, Pois em salvo nao repiea, Porque me fara tornar A dizer 0 que inda fica. GARCIA DE REZENDE. oe DIOGO BRANDAG A MORTE D'EL-REI D. JOAO 0 SEGUNDO QUE E EM SANTA GLORIA (vd Todos altentos na morte cuidemos, Na qual duvidamos por mais nosso mal, Que della sabendo ser cousa geral Mais nos espantamos do que nos provemos, Us bens temporaes por alheios deixemos, Pois mais nos provecdo a inal que mio bem, Os quaes cuidando nos outros, que temos, Elles com fortes cadéas nos tém. Os bens que sio da alma, aquelles sigamos, Pois n'elles consiste o vero proveito : Os de fora busquemos, havendo respeilo A quao brevemente por elles passamos. Riquezas, favores yue aqui percalcamos, Assim como passao se perde a memoria, Se bem n’este mundo fazemos, obramos, Vive para sempre no outro por gloria. LIVRARIA CLASSICA. Neste fim logo sejamos prudentes, , Pois toda gloria n'aquella se canta, E com boas obras e vida mui santa Devemos na morte mui bem parar mentes. Ese pelas cousas que vemos presentes, Nao bem conhecemos o gra poder Wella, Lembranca tenhamos de qua excellentes Principes, reis, passirio por ella. Dizer dos antigus que sdo consumidos Nao quero em Gregos fallar, nem Rom: Mas nos que nos cahem aqui d@entr’s mios Vistos de nds, e de nés conhecidos. Despertemos de todo os nossos sentidos, Pois este mundo é tio inconstante ; Créamos dos mortos que nao sio perdidos, Mas que sio idos um pouco adiante. Nao péde ser pouco, pois é muito certo Que hoje se pide fazer esta via, E se este nao é 0 derradeiro dia, Sabei que clle esta de nds muito perto. Todos nascemos com este concerto, Que quem tiver vida, tem certo perdél-; I. pois 0 viver nos é tio incerto, Vivendo na morte, cnidemos bem nella. E. pois tio aberta esta esta via Por ordem d’aquelle que a todos nos fez, io nos espautemos de vir uma vez Aquillo que nos pode vir cada dia. GARCIA DE REZENDE, oo Alli cada um ordenar-se devia, Como se fosse 4 morte chegado, E desta mancira nos nio enganaria, Se tivessemos d’ella na vida cuidado, E de tal maneira devemos tratal-a Que pois assim é, sem mais duvidar, Que ella nos espera em todo lugar, Devemos nds outros tambem de esperal-a. Devemos as vezes por nos desejal-a, Conformes com Deos em nossa desculpa, Porque a longa vida, sem mais approval-a, Pela maior parte tem sempre mais culpa. Que seudo compostos d'aqueste metal, (Que sempre desejamos o que é sem medida! Nunca tanto bem fazemos na vida Que mais nao fagamos Waquella de mal. Cresce n’aquesta cobica mortal Raiz e comeco de todos os vicios, Abre-se mais o caminho infernal, Quando se sarrio os bons exercicios! Tornando pois logo a aquesta certeza, Que todos una vez morrer nos convem, Esforcar-nos devemos fazél-o tio bem, Que a morte sintamos com menos tristeza. Esta tomemos com toda firmeza, Pois ha de vir de necessidade : Menos sentiremos a sua crucza, Quando a recebermos com boa vontade. LIVRARIA CLASSICA,. Antigos exemplos 4 parte deixados, Sem os alheios querer memorar, Os mortos em Cannas deixemos estar, Com outros mil contos, que sao ja passados. Deixem de ser aqui relatados! Ahaste fallar nos possuidores Desta nossa terra, que della abaixados Forao ass reom’a pobr pastores (Que se fez d’aquelle que Ceyta tomon Por forga aos mouros, com tanta victoria, () intitulade da boa memoria, Que a si e aos seus Lao bem governou? As cousas Lao grandes, que vivendo acahou, Afora nas batalhas mostrar-se lio forte, Com outras faganhas, em que se esmerou, Nunea puderio livral-o da morte. Seu filho primeire, bom rei D. Duarte, Que foi Lio perfeito e tio acabado, Reinaudo mui pouce, da morte levade Foi, como quiz quem tudo reparte. Seus irmiéios, os infantes, que tanta de parte Na virtude tiverio, pelo bem que obrarao, Tendo nas vidas trabalhos que farte, Com tristes snecessos alguns acabario! 0 sobrinho d estes, infante de glor Progenitor de quem nos governa, Que foi de virtudes tio clara lucerna, Tambem houve delle a morte vietoria, GARCEA DE REZENDE. ol Comtudo nao péde tirar-lhe a memoria De ser esforeado e forte na fe, Tomou este principe, digno de historia, Por forga aos mouros 0 grande analé. 0 quinto Affonso nao quero ealar, Que assini como teve victoria crescida, Tantos trabalhos susteve na vida, Que lhe causario mais cedo acabar. Tambem acabou o filho de dar Fim a esta vida de tanta miseria, No qual determino um pouco fallar, Posto que emprenda mui alta materia. Este foi aquelle bom rei D. Joao, 0 mais excellente que houve no mundo, Rei d'estes reinos, d’este nume ov segundo, Humano, catholico, sujeito a raz: Do qual mui bem creiv, scm contradice’ Julgando das obras, e como morreu, (Que deve bem certo de ter salvagio, Pois tio justamente sempre viveu. Foi em virtudes tio esclarecido, Que é mui difficil poderem-se achar Louvores que possio co’ os seus igualar Tao grandes assim como tem merecido! Mas posto que fosse de todo cumprido De grandes bondades, em que floreccu, Alguin louvor seu direi nio fingido, Que sera mais baixo do que mereceu. 62 LIVRARIA CLASSICA. Teve nas cousas de Deos excellencia : Aquellas amava, honrava, temia; Em fabricas santas mui bem despendia Assaz largainente com magnificencia. Com justa medida, e gra providencia, Suas esmolas mui bem repartia : Quem se prezava de santa sciencia Muito por certo ante elle valia. Nav sei com que lingua dizer-se podia Como era grande e em todo magnilico; Desejava ler mais 6 seu pove rico Que elle de o ser prezar se quer’ ia! Por estas taes obras, que sempre A sua nobreza bem clara se vé; Havia por perda, passar-se algum dia, Sem que n’aquelle fizesse mereé. ia, Jamais nos antigos, modernos que leio, Se achou outro tal em liberalidade ; Partia com todos, com tanta vontade, Que nunca em nobreza ao mundo tal vero. Segue-se logo Paqui, como creio, Que, havendo-se 1 isto assim grandemente, Que mal poderia tomar o alheio, Pois o seu dava de tio boa mente. sre na sanhia: Das cousas virtuosas ha col A todos igualmente fazia jus Sem se lembrarent as teias aranha. Era um mesmo no praz GARCIA DE REZENDE, 63 Era temido, ¢ amado em Hespanha ; E tal que, nio sendo para rei nascido, Segundo a sua virtude tananha, Devéra para isso de ser escolhido. Que d’esta mancira esta confirmado Que o rei ¢ o principe, que ha de mandar, Para os outros saber emendar Deve primeiro de ser emendado ; Este na vida foi tao acabado (Que elle sé era a propria lei, Para cada un viver castigado, Sem mais outra regra nenhuima de rei. Us prineipes hons, por seu bom viver, Exemplo tomayio do bem que faziio: Os indos isso mesmo por elle sal As cousas que bem deviio fazer. D’este devemos por certo de erer Que ainda que cd muitos anos vivér, Ni Mas nunca na d’alina velhice tivera. forga do corpo podia envelhecer, Os reis que vierem para bem reger Tomar devem d’este exemplo geral; Pois é mito certo que aqueste foi tal Qual promettido os outros de ser. Qs seus subdilos, por seu merecer, A Deos someute por elle rogavio, Sendo mui certos que em no assim fazer, Por si, por seus filhos, por todos oravao. uh LIVRARIA CLASSLEA Era cm sas obras tio hem temperado, (Jue o que por palavra fia vez promettia, De tal maneira com {6 0 eumpria, Como se fora por elle jurado. » se gloriava de ter aleangado Por favor de fortuna nenhum bem temporal ; Toda a sua gloria era tél-o ganhado Por alguma virtude e bem divinal. Com lisonjeiros mui pouce folyava : Erao-nos seus conselhos mui sios, Mostrava-se humano aos que eriio incaos, Os grandiosos e vios desprezava. A virtude por obra inais exercilada, Que nao por palavras, nem oulras manciras ; As cousas do mundo assim as amava, (Que nao se esquecia das mui verdadciras. Tinha prudencia; tambem fortaleza : Amava a justiga con: gra temperanga; Fé, caridade, tambem esperanca Nelle moravio com toda a firmeza. Ornirao-no estas de grande riquez: o deixarao na vida, a morte Ihe derain tamanha franqueza, Que gloria por sempre recebe cumprida. E nunea jama Estas, que digo, virtudes geraes, A Porque é justa cousa tamben que fallemos Nas particulares, e mais especiaes ; u assomadas tim potico deixemos ; GARCIA DE REZENDE. oo As quaes conhecidas por muito reaes, Sendo a todos assim mauifestas, Ainda fez outras mui grandes e inais, Que erdo maiores, por serem secrets IPaqui se consire na ordem, que diva Ein pagar dividas, que o seu pai devia; Pois como as suas j Quem tao grandemenie as alheias pag i mal pagaria, al Jamais delle orphao nenhuin se queixava : A todos por inteiro mui bem se pagou : Com pagas dobradas vi eu que pagava A prata das igrejas, que entio se lumou. Pois em Castella? ahi nessa guerra Se fot esforgado mui bem se mostrou! Depois da hatalha, no campo ficou, Os mortos n’aquella mettendo su terral Tambem esas pazes, se a pena nio-crra, Foi inui prudente, « mui sabedor, Ys meios tomando dos valles e serra, Que n’estes consiste virtude maior. Nio menos no reino, por este leor, No tempo que foi aquella discordia, Usou mais com elles de misericordia Do que Wisso fez com justo ri Era temido dos seus com amor; E a Deus lemia com todo querer; Que quando o rei de Deos tem temor, Eutaio o seemos mui mais de temer. ‘or! m a 6 LIVRARITA CLASSICA. Com ammo grande (espera: Abrio 6 caminho de todo Guing, Mais por crescer a catholica fé, ‘ue por cobiga de bens tempor Com ella fez rieos os seus naturaes, Os infieis trouxe a ver salyacdo ; Pois obras tao justas, e tio divinaes, Serio sempre vivas, segundo razio. Se em todo ponente se sente gra gloria, Por serem as Indias a nos descobertas, Elle foi causa de serem tio certas, E tao manifestas por nossa victoria. Pois é sua fama a todos notoria, Culpem-me muitas, e mais d’uma vez, Se (elle nao fago aquella memoria, Que justa merecem vs feitos que lez. O fim ja chegado de sua partida Sendo de todas a cousa mais lorte, Ja muito cerea da hora da morte, Nao se esqueccu das obras da vida! Tendo a candéa ja quasi perdida, A penna na mio tremendo tomava; E, com moderada justica devida, Tengas, mereés, padrdes assignava ! Scus males ¢ culpas, gemendo eom dor, Partio Westa vida na fé esforgado, Pelo qual creiv que outro reinado Possue fi com Deos muito melhor. GARCIA DE REZENDE. Gi Fez fim no Algarve, na villa d’Alvor, No decimo mez, o fim ja propinquo: Sendo da éra de Nosso Senhor Quatorze centenas noventa mais cinquo. Com gra ceremunia a Silves levado Valli foi dos seus, que o muito sentiio : Quem antes um pouco as gentes seguido Alli ficou s6, de todos deixado! 0" morte, que matas quem é prosperado, Sein de formoso curar, nem de forte, £ deixas viver 0 malaventurado Porque vivendo receba mais morte! D'alli a tres annos, no bem precedentes, Foi com gra festa U’aqui trespassado ; E posto no lugar, que esta deputado Em ser mauseolo dos nossus regcules. Quer Deos d'alli dar a muitos doentes Comprida saude? tocio Wonde jaz; Em serem os anjos com elles contentes Nos é manifesto nas obras que faz. Fez isto por elle o mui poderoso Rei excellente, Manoel o primeiro, Que em elle deixou successor verdadciro, Coto rei justo ¢ mui virtuoso. Soube este principe mui animoaso, Que hoje governa com tanta medida, Pagar-Ihe na morte, como piedoso, O bem recebido d’aquelle na vida. LIVRARTIA CLASSICA, Se honras, riquezas, virtudes, poder, Puderdo alguem da morte livrar, Este justo rei, sem mais altracar, Nunea jaais pudera morrer! as pois que assim é que os bons hao de ser Tambem sepultados, a vida deixando, Quanto mais devem os mos de temer Que sempre jiimais vivério peceando! A gloria de Deos de tanta evcellencia Nio husea ninguem, sendo tio preciosa; — Mas a do mundo, que é ta Duscao os homens com g Oh! como é de gra preeminencia Quem pée em sd Deos seu amor e querer ! Quem o mundo nio ama com toda a crencia Nao tem n’elle consa que possa temer! Seja nossa culpa de nés conhecida! Emquanto vivemos fagamos pendenya, Que sem na fazermos, segundo sentenca, Havermos na morte perdao se duvidal Por santos doutores ¢ mui repelida Aquesta doutrina que ver nos conven, Que quem sempre mal viveu n’esta vida E muito difficil poder morrer bem. VU eterno Deos, com justa balanca, Permitte com grande rigor, ¢ mui forte, (ue se esquega de si na hora da morte (Quem delle na vida nie teve lembranga! GARCIA DE REZENDE. 69 No bem que fazemos, tenhamos fianca ; Que por summa justica esta ordenado Que sempre careca de toda a folganca Quem munca jamais careceu de peceado, Pois desprezemos o breve prazer, Que logo se converte em grave tristeza : Que mui facilmente o mundo despreza Aquelle que cuida que ha de morrer! Quem firmemente aquesto tiver Nas cousas de Deos sera mui constante! Por bemaventurado se deve de haver Aquelle que a morte tem sempre diante! EM UMA PARTIDA (95 v.) Meus dias tio tri Serao para sempre com pena tio forte, Que acabara melhor minha v Porque atallira meus males a tnorle. pois 0 ordena assim iinha sorfe, E quer que tal vida padega vivendo, Ouyi Ininha dor, de mim vos doendo, Porque parte d’ella com isso conforte! Sendo levado da parte d’além, Postos os olhos nas vossas moradas, LIVRARIA CLASSICA. Chorei tantas lagrimas, que em Jerusalem Tantas nao fordo, uem tio derramadas ! Minhas tristezis alli memoradas, Que mais crescentavio a minha paixio, Dos tristes suspiros do meu coracio ntes todas pasmadas ! Juntaviio-se muitos, fazidio gra ind, Quando me vido n’aquelle cuidado. Estando com todos, estava tio sd, Como se fora n’um ermo lancado. Era de muitos alli lamentado : Ja meus imigos de ntim se doido, Outros com magoa grande diz Olhai quem pudesse ja ser namorado! Por meu exemplo tomavio castigo! Juravao que unica mais damas servissen. ; Mas eu dizia, fallando comigo, Que aquillo seria se nunca vos vissem ! E lhes aflirmava que tanto sentissem, Vendo a vossa mui gra perfeigdo, Que de cuidados com muita paixao Todas sas vidas jamais se partiss Malli me parti, Monde elles estaviio, Ou me leva Se n’esse caminho alguns me fallavao Bem sem propesito Ihes responiia. ‘io aquelles com que ta; GARCIA DE REZENDE. it Mnitos d’aquestes extremos fazia ; Em sé suspirar descanso tomava : Nao era tamanha a dor que mostrava, Como a grande que dentro sentia. Meus olhos mais agua que fontes langavio ; Mui grandes gemidos a yoltas sahiio ; Meus tristes sentidos jamais repousavio, Mas antes seus males dobrados sentiio. Prazer e descanso de mim se partido A contra @aquestes, comigo ficava : Se minha firmeza esp'ranca me dava Yossos desfavores matar-me queriio. A pena crescida maior se fazia, Por ver tio incerta minha esperanca : Menos mil vezes a morte temia Que nio a graveza de sua tardanca! A razio me da mui gra contianga De minhas tristezas haverem ja fin; Mas a ventura, que é contra nim, Jamais ndo me deixa haver seguranca. Resistir meu cuidado com pena queria, Buscando maneiras d’amor apartar-me Estonces mais preso, tomado me via, Quando buscava razdes de livrar-me. Se achava confortos alguns de salvar-me, Achava mil males, que me eondemnavido. ~ ry LIVRARIA CLASSICA, Assim que em lugar de fugir me levavao Meus grandes desejos a mais captivar-me. Assim como quando se sentem tomar As aves nos lagos, e redes armadas, Quando trabalhao por mais se soltar, Achao-se entio mui mais enlacadas. [Vesta maneira sinto tomadas Todas as forgas com todo poder, Que se me nao val quem ine péde valor Serio minhas déres por morte acabadas. Este desejo, sem mais dilatar, Porque se acabem meus tristes cuidados, Nao quer minha dita em tal outorgar, Porque os tenha, vivendo, dobrados. Serio meus sentidos por sempre penados; Pois contra mim o mal se concerta. A morte queria, pois é muito certa Folganga d'aquelles que sao tribulados. Impossivel serio as déres contadas, (Jue passci n’estes dias de grandes tormentos ! Fordo mal dormidas, e hem suspiradas As noites d’aquestes com mil pensamentos. Com a morte e vida Waqnestes tormentos Guerra rompida cruel padecia Co’a morte, senhora, que ndo me queria... sentimentos! E eu menos a vida com taes GARCIA DE REZENDE. _ a Ganhando mais males, perdendo a alegria, Fizerdo fim as tristes jornadas ; Mas nio as tris Que sempre me forio por vos ordenadas! Nem podein por tempo ser remediadas, Coino mil outras doengas, que vém, Porque 0 s6 remedio que tem E pela causa que fordo causadas. se grande agonia g f > E pois o poder é em vés de salvar-me, Querei haver ja de min compaixio ! Nao feveis gosto assim de matar-ine, Pois morro por vos cont tal devogio! flavei picdade de tal perdicao! Querei dar remedio a tio triste vida, Porque vos nao hajao por desconhecid alardio! E eu que nao morra Lio sem s ESPARSA A_UMA SENHORA QUE SE CHAMAVA DA COSTA. (96) Quem bem sabe navegar, Pela vida segurar A esperanga tem posta Dentro no pego do mar; Mas aqui por se salvar, Deve certo vir a costa, it LIVRARIA CLASSICA Porque posto que n'aquella De vivo se veja morto, Ganha-se tanto por vél-a, Que é melhor perder-se n’ella, Que salvar-se outro porto. FINGIMENTO DE AMORES a8) Erao da sombra da terra As nossas terras cobertas, Quando parecem desertas As habitacdes sem guerra. Ao tempo que repousdo Os cora s descansados, E 0s malfeitores ousdo Comnuctter mores peccados. Us nove mezes do anno Erao ja quasi passados Quando erie meus cuidados Crescidos por mais meu damno : E assim com mal tiv forte Mais crescendo minha fé, Vi passar além do pé As guardas do nosso norte, GARCIA DE REZENDE. 715 Se dormia nao sci certo, Se velava muito menos : Com meus males nao pequenos Nein durmo nem sao desperto ! Nao nVatrevo de turvade Dizel-o, nao sei se cale... Dalli me senti levado, E posto num fundo valle. Oh! divina sapiencia! De todos tio desejada, E de mim pouco gostada Por nao ter sulficiencia. Faze-me (io sabedor (Que possa dizer aqui, Com favor de teu favor, andes cousas que vi. Por este valle corria Uma tao funda ribeira, (Jue estando junto da beire Escassamente se via! Tanta tormenta soava Naquelle Jugar cterno, Que se ine representava Quanto dizem do inferno! De mui escnra neblina Era o ar todo coherto ; 16 LIVRARIA CLASSICA. Devia ser d'alli perto 0 lugar de Proserpina, 0 fogo sem se apaga O mal sem compara Podiaio bem demons‘ 0 dominio de Plutio, Nao vi camaras pintadas Com ricos patins de fundo, Dos ricos Waqueste mundo Por demasia buscadas. Nem vi suayes cantores Com vozes mimi accordadas, Mas mui discordes clamores Das almas atormentadas. mui suidosas, sm docemente ; Mas bradavao fortemente Serpentes riui espantosas. Alli prazer nao senti, Antes descontentamento ; Toda cousa que alli vi, Era pava dar tormento! D'alli quizera salvar-me, Do que via temeroso, das armas do medroso Juntamente proveilar-me : GARCIA DE REZENDE. Ti Mas achar mio pude via Para me poder salvar; Eutio mostrei valentia Para mais me condemnar. KE sem fazer a vontade, Nem esperar por saude, Quiz alli fazer virtude Da minha necessidade = E tambem por ser sem falha Esta verdade que digo, Que os que fogem na batalha Passio sempre mdr perigo. E como faz quem peleja, Vendo-se desesperado, Por honra tomar forgado A morte que ja deseja; Assim me fui juntamente Donde o fogo mais ardia, Por viver honradameute, Ou morrer como devia. Assim de todo mudado Alli junto me cheguei ; E weste modo fallei Assaz bem temorisado. Oh! gentes attribuladas! Porque razio de vés dé, LIVRARIA CLASSICA. Dizet a causa porque Sois assim atormentadas. Logo de todo ce: Daquelles grandes tumultos ; E com mui disformes vultos Para mim todos olliarao! £ logo se alevantou entre todas uma d’ellas, E sem culpar as estrellas {Vesta maneira fallow : « Este pranto tao doride, De tantas tribulacdes, Sio os justos galarddes Dos sequazes de Cupido ; Que por lhe sermos leaes Tantas mortes nos perseguem, Que nossas dores mortaes Sao mui mais das que se seguem, « Penamos pelas folgancas, Que vivendo procurainos ; Que é impossivel que hajamos Duas bemaventurancas. (Que seria grande historia, E juizo mui profuude, Levar li prazer no mundo, E nestoutre tuubem gloria! GARCIA DE REZENDE. 79 « Somos passados de trio Em grandissima quentura ; A vida nado tem segura Quem bebe d’aqueste rio. Que neste fogo penados Sejamos sem esperanga. Mala-nos mais a lembranga Dos prazeres ja passados! « Pelo qual, se tu quizeres Ser livre de nosso mal, Trabalha quanto puderes Por fugir caminho tal. Sempre te gnie razio ; Governe como cabega: A vontade Ihe obedega, Sem outra contradiccio. « E se quereis saber mais Porque deis conta de mi, Sao unt dos que descendi Nos abysmos infernaes ; E fui 1a com tal ventura Que quanto quiz acabei, Mas depois me condeimnei Por nao guardar a postura. « E por mais certos sigttaes D'Eurydice fui marido, au LIVRARIA CLASSICA. Por ella mesma perdido Nvestas penas innnortaes. Eu fui aquelle que ouvistes Que na musica soube tanto, Que fiz com meu doce canto Nao penar as alinas tristes. « Aqu’essas outras companhas Que pendo u’essas caveruas Antigas, tambem modernas, Sao de mil terras estranhas. (Que jamais se passa dia Que aqui nao sejio trazidos... E iui espacosa via A que seguein os perdidos. » Inda bem nao acabou De dizer estas razdes, Quando cou: lamentacées Longe de mim se apartou, Quizera ser informado D'aquella gente que vira, Mas d'alli fui relatado KE posto d’onde partira. A manha esclarecia Quando com cantos suaves Nossas domestieas aves Dao signaes de elaro dia. GARCIA DE KREZENDE. Nt Pelas cousas que alli vi, De que nada fui contente, O meu cuidado presente De deixal-o prometti. Mas fui tal d'alli passando Como homem que promettéra Mui grandes mastos de céra, Em fortuna navegando. (Que vendo-se d’aquella fora, Tornado ja em bonanca, Do que passou n’aquella hora Nao lhe fica mais lembranca. E como faz o doente, A morte vendo diante, Que promette Whi avante Viver muito continente; Mas, o medo ja passado, E do que vio esquecido, Assim me vejo perdido Mais agora... e namorado. E bem como tem o norte Firmeza, sem se mover, Espero firme de ser Na vida, tambem na morte. : Assim como cahe direito U dado quando se lauga, 82 LIVBARIA CLASSICA. im minha mal andanga aio me muda d’outro geito. E bem como a agua do mar Nao muda jamais a cor, Nem perde nunca o sabor Por quantas n’elle vao dar ; Assim eu, triste, nado posso, Com anil males d’estes taes, Deixar nunca de ser vosso, Emi que sejio muitos mais. E pois, com tanta verdade, Vos sirvo com {é, senhora, Havei, por Deos, algum’hora, De meus males piedade; Que se @este mal profundo, Eu nao sio remediado, Sao perdido n’este mundo E no que vi condemnado. A HENRIQUE DE SA SOBRE QUE CHEGANDO A UM MOSTEIRO, LHE VEIO UMA FREIRA BEIJAR A CAPA, SEM LHE OIZER OUTRA COUSA. Qi v. Sem vida fazer em lapa, As vo: sas anigas tanto! GARCIA DE REZENDE. 85 Me tém por homem tio santo Que me vém beijar a capa. Mas por mais minha saude Desejo saber em cabo Se m’a beijio por diabo, Se por homem de virtude. LIVRARIA CLASSICA. LUIZ HENRIQUES AO DUQUE DE BRAGANCA QUANDD TOMDU AZAMOR, EM QUE CONTA COMD FOI. (105 v.) A quinze d’Agosto de treze e quinhentos, Da éra de Christo nosso redemptor, Do que se passou estai mui attentos, No dia da madre do meso senhor. O duque excellente, nosso guiador, D. James da casa d’antiga Braganga, De gente levando mui grande pujanga, Geral capitiv, partio vencedor! Nao pego favor, que possa contar O que se passou na santa viagem, Nem menos ajuda me apraz de invocar As antigas imusas, nem sua linhagem. Mas s6 a senhora que ha feito menagem De virgem humilde por onde foi madre, Que ella me alcance a graca do padre, Pois que foi digna da summa mensagem. GARCIA DE REZENDE. oe Partio com a graca do que, triumphando, e Na arbor da cruz alcancou victoria, Por mando do rei, que vai imperando, Por gra vencimento de cterna memoria Os reis persianos, mui dignos de gloria, Da India, Arabia, tambem d’Ethiopia, E outros, que fazem,em summa gra copia, Lhe sao tributa s por fama noloria. ! : Cresce seu mando, seus reinos alarga, Por seus capilies; na gente infiel, () gra poderio dos mouros embarga Em gra quantidade por guerra cruel. Oh! mui serenissimo rei Manoel! A esphera que trazes sera triumphante, Se‘com tas gentes passares avante, Ganhando a casa que foi d’Israel. Volvamos a falla ao gra Godulré! ” IPaqueste gra Carlos direi sas faganhas! Nao menos o esforco do gra Jesué Em suas victorias, grandezas tamanhas! Nunca de Roma se vio nem Hespanhas Tao gra capilio, nem mais esforcado, De reis infinitos parente chegado, Dotado de grandes virtudes e manhas. No dia da festa da santa Assumpcio, Partio de Lishoa com toda sa frota ; 36 LIVRARTA GLASSICA Mui apontada em tal perfeigio Qnal outra nado vimos nem livros se nota, Ae~ Assim todos juntos seguirdo sa frota, Juntando-se em Farao a nobre companha Ne condes, lidalgos, mais uobres de Hespanha, Onde surgirdo toda alma devota ; Levando comsigo a bandeira real, Que nunca vencida se pdde dizer, Pois é invencivel aquelle signal Tomado das chagas que quiz padecer 0 summo bem nosso com muitos marteciros, Porque salvasse 0 mundo perdido ; Tambem significa os trinta dinheiros, Por eujo prego foi Christo vendido. Depois de chegados e todos surgidos, Quando vio tempo mais conveniente, Senhores, lidalgos, fordo requeridos Que a elle se fossem todos juntamente. Des que, congregados, coin elle presente, Lhes fez uma falla de tanto primor, Myo? Como aquelle que tem g oe Ajuda, subsidio do mais eloquente. i favor, Onde por elle Ihes foideclarado +P? * Toda a tengio d’el-rei seu senhor, Que foi envial-o sobre Azamor Pela maldade do erro passado : w GARCIA DE REZENDE. 87 Que a todos pedia que de amor e grado Quizessem, sem outra vontade nem zelo, Em sua tomada tio bem connnettel-o, Para que sempre thes fosse obrigado. Porque depois de ter esperanga Em Nosso Senhor, de lhe dar victoria, Em elles levava tanta confianca Para todo feito mais digno de gloria, Que lhes pedia que houvessem memoria Das cousas de Roma, quaudo prosperava, Em quanta maneira a lei se guardaya, Segundo se nota na sua historia. Com Remo ¢ Romulo tambem allegando De quando se aquella cidade fundou, A pena que houye, porque quebrantou A lei que foi posta em se comecando : Que lhes pedia que nunca desmando, A guerra durante, em elles houvesse ; Mas que obedecessem ao que elle quizesse : E que elle sempre seria a seu mando. Com doces’ palavras, forradas "amor, Com mui animoso desejo, e vontade, . Com mui cortezias, com grande favor, Com umas entranhas de pura verdade, Assim os provoca com tal imansidade Que todos respondem, dizendo : « Senhor! 88 LIVRARIA CLASSICA. Nosso desejo é muito maior Do que nos pedis em gr quantidade! » Quyindo palavras tao bem razoadas, Ficou de contente a tao satisfeito De sa senhioria a tio estimadas, Que o por fazer estimou por feito; Dizendo que sempre seria sujeito, Fazendo por todos, como bem veriaio, Que Whi em diante elles conheceriio As suas palavras ficar em effeito. Erao quatrocentas as velas da armada Sobre cincoenta, sem mma faltar, Foi uma das cousas mais para notar Que vimos, nem vio a gente passada. Tao posta em ponto, tio apparelhada De todas as cousas, que se requeriio, FE da artilharia tao bem compassada, Que nada faltava, segundo diz’ Partimos em ponto, sem mais esperar, Depois d’esta falla assim acabada, E em poucos dias pudemos chegar— - A hoca do rio da cidade honrada. E porque a barra estava cerrada, E era um pouco perigoso de entrar, Ilouve conselho com’ determinar Que em Mazaga fosse a terra lomada. GARCIA DE REZENDE By Achamos 0 porto quieto, seguro, A frota mui junta se poz bem em terra, Mui bem concertada no auto da guerra Com grande recado, conselho maduro. No dia seguinte, depois do escuro Ser ja passado, e sol ja sahido, Sahio toda a gente mais forte que muro, De esforge guarnida, sem nada fingido. Com muita prudencia, esforco, cuidado, () duque ordena sentar arraial, Mais trabalhando do que Annibal Quando houve os Alpes de todo passado. P6z suas estancias com tanto recado E seus capities em tanto concerto, Que nunca entr’elles houve desconcerto Nem cousa que fosse escontra seu grado, Onde tres dias Ihe aprouve d’estar, Ainda que a toda Mourama pesasse, Porque de todos se cresse ¢ notasse Que nao era gente de mais estimar. Que com seu esforco podia domar Mais que perdeu el-rei D. Rodrigo, E mais que levava tal gente comsiga Com que podia gra terra ganhar. Veio de Tite a lhe obedecer 0 principal mouro que 1elle havia, wo LIVRARIA €LASSECA. Pedindo que paz Ihe aprouvesse fazer Com toda a gente que n’elle vivia. Foi a resposta de sa senhoria Que a elle sé sua casa segura! O mouro, em vendo resposta tio dura, Ficou tao cortado que mais nao podia. Pelo qual logo, sem mais dar vag: 0 gentil de Tite foi despovoado, De medo cortados leixéraio higar Té serem por pazes a elle tornado. Ca virio seu feito ir Lao mal parado Seria Mafoma bem pouco louvado, Pois Welle soccorro se nio pode achar. Foi entre os mouros tamanho encanto, Por ver 0 que nunca cuidarao de ver, Que nenhuns christios podiio fazer, Entr’elles demora de tanto quebranto. Forao cortados com tanto espanto Segundo por obra foi notificado, Sas foreas, esforco de todo quebrado, Que de seu desmaio nao sei dizer tanto. Em o quarto dia, o duque mandou Sessenta navies com artilharia; Qne entrassemt no rio thes encommendou, Porque clle partia em 0 mesmo dia. GARCIA DE REZENDE. ab Qs quaes Deos aprouye levarem tal via Que todos entrarao sem contradi Queimando apparelhos, que Muleiziio Com mil cannigadas por Gao, queria. Ei o dia mesmo que era primeiro D'este Setembro da éra presente, Partio o gra Cesar com toda sa gente, Levando concerto de gentil guerreiro : Ordena hatalhas, andando fragueiro Correndo-as tedas mil vezes Wum ponto, Mostrando-se a todos ser mais companhciro Que principe grande, como é, ¢ vos conto, Chegamios ja tarde aquella cidade, Porque nio pode ser Woutra mancira: A qual achiunos, fallande verdade, De muros e torres nmi forte e guerre Sahiraéo uns mouros 4 porta primeira Co’uns poucos dos nossos escaramucar, De volta com elles Ihes forao matar Alguns cavalleiros de sua bandeira. Isto acahado, 4 noite na mio, Sentou-se arraial ao longo do rio, Estancias postas ja bem de serio, Escuitas lancadas sem outro desvio. 0 duque, provendo em seu senhorio, Como quem tanto no caso lhe ia, 0. LEVRARIA CLASSICA. A todas as partes mui rijo provia, Como quem corre de noite seu fio, Aquella noite ninguem a dormio Com grande trabalho, sem mais repousar; O somno, preguica de todos fugio; Artilhavia se péz no lugar [onde combate se havia de dar, No tempo e hora que fosse ordenado; Seria do dia o meio passado, E além uma hora depois doze dar. Dhi a pedaco, nio muito tardou, Que logo ao duque recado nao veio, Que estava o campo de mouros tio cheio, Que dos de cavallo dez mil se apodou : i N'aquelle momento que se isto conto, Ordena o duque, sem outro debate, Que uns comegassem de dal-o combate, E elle co’os mais aos mouros passou. Comecou-se a cidade tio bem combater, Com muito esforco, com tal pressa dar, Que em pouca de hora se pode bem crer Dos mouros de dentro seu grande pezar. A artilharia comeca a jogar ; As mantas e bancos nao mito tardavio As gentes das portas, que os muros picavao, (jue uns aos outros nio davio vagar, GARCIA DE REZENDE. 95 Deu-se v combate, mui duro, mui forte, Gastando-se 0 muro por tiros mui grossos, Tanto que os mouros se tinhao nos mossos, Julgando que tinhao d'alli peior sorte. Cid Almanzor alli prendeu morte, Entr’elles prezado, e senhor de langas : Virdo os mouros perder esperancas, Sem haver entre elles tal que os conforte. Por morte d’aquelle a todos quebrirdo Scus coragdes, sua fortaleza ; E logo em ponto se determinarao Leixar a cidade, de muita fraqueza. U duque, esforcado, com grande ardideza Comega sa gente mui hem @ordenar ; Como aquelle que espera de dar Fim a seu feito com muita proeza. Fordo batalhas mui bem concertadas, Assim de cavallo, como as de ordenanga : Ja tarde partirao, sas forcas quebradas, Os mouros, que virdo aquella mostranca, Fizerio na volta com muita triganga, Us quaes grande inedo levarem se creia : Ficdmos no campo té noite ser meia, Sem os do combate fazerem mudanga. Os mouros de dentro, que virdo erescer Seu imal e seu damno, sem bem esperar, 4 LIVRARTA CLASSICA, Com grande temor de vidas perder, Leixarao cidade, por vidas salvar, Fugindo sem tento, com tal pressa dar, Que ao sahir da porta muitos se matavao : Us pais pelos filhos se nado esperavao, Mulher por marido podia aguardar! Apoés meia noite (tres horas serido, Quando a cidade foi toda vazia) ; E un dos judéos que nella vivia Por corda do muro abaixo deseia : Ao senhor duque a nova trazia Para os d'essa lei seguro pedindo : Foithe outorgado, as novas ouvindo, Com outro alvitre, qne preco valia. Sabbado seguinte, oito horas do dia, Na grande cidade 0 duque entrou, Com grande victoria, que mais nio podia. Deos seja louvado, que assim o guiou! Por toda a terra sa fama soou; E poz tal espanto com grande terror, Por onde Almedina, com muito temor, De toda sa gente se despovoou. Foi celebrado o officio divino Com gra eflicacia e gra devocio; Dando-lhe gragas com tal contrigio, Qual merecia o verbo divino. GARCIA DE REZENDE. 95 Oh! summo bem! oh! um Leos, e trino! Tu que por morte salvar-nos quizeste, Concede victoria a quem esta deste De imigos humanos esp'rito malino. TIVRARIA CLASSICA. JOAO RODRIGUES DE CASTELLO-BRANCO CANTIGA PARTINDO-SE. 107 v.) Senhora, partem tao tristes Meus olhos por vés, meu bem, (Que nunca tio tristes vistes Outros nenhuns por nmguem! Tao tristes, tio saudosos, Tao doentes da partida, Tao cansados, tao chorosos ; Da morte mais desejosos Cem mil vezes que da vida! Partem tio tristes os tristes, Tao fora d’esperar bem, Que nunca to tristes vistes Outros nenluns por ninguem! GARCIA DE REZENDE. a7 RUI GONGALVES DE CASTELLO-BRANCO CANTIGA 108.) Que de meus olhos partais, Em qualquer parte qt Em meu coragio ficais, E nelle vos converteis. Este é v vosso lugar, Em que mais Porque nio quer meu desejo Que vos Whi possais mudar! erla vos Yejo ; E por isso que partais Em qualquer pat te que esteis, Em meu coragi Pois Welle vos converteis. LIVRARIA GLASSICA. DR. FRANCISCO DE SA CANTIGA 109 wv.) Comigo me desavin : Vejo-me em grande perigo! Nao posso viver comigo, Nem: posso fugir de min! Antes que este mal tivesse Da outra gente fugia : Agora ja fugiria De mim, se de mim pudesse ! Que cabo espero, ou que fim D'este cuidado, que sigo, Pois trago a mim comigo, Tamanho imigo de mim! GARCIA DE REZENDE, 99 CANTIGA (109 ¥.) Coitado, quem me dara Novas de mim, onde estou: Pois dizeis que nao sou la; E ca comigo nao vou! Todo este tempo, senhora, Sempre por yds perguutei ; Mas que farei, que ja agora De vés, nem de mim nao sei? Olhe vossa merce Ha Se me tem; se nie matou; Porque cu vos juro que ca Morto, nem vive. nie vou! 100 LIVRARTA CLASSICA. LUIZ DA SILVEIRA CANTIGA (128 v.) Tudo se pode perder ; - Nada nao pode durar : E quem rristo bem cuidar, Nem folgara com prazer, Nem sentira o pezar. Se fortuna alguem cententa _ Com hem, ou mal, que the ordena, - Faz-Th'o, porque depois senta mudanca maior pena! Faz o mal pelo fazer: Faz o bem para o tirar, E consente no ganhar Pelo perder ! CARGIA DE REZENDE. 101 CANTIGA (A8S v.) A taes novidades vim Que cu mesmo me niio conheco ; Porque ja vi mal sem fim, Mas nunca o vi sem comeco ! E pois este, que me yeio, Comeco, nem fim uio tem ; Mal esperarei tambem Que tenha meio! Este mal sé veiu a mim! Eu tambem s6 0 merego! Os outros husedo-lhe fim, E eu busco-lhe comeco! 102 GREGORIO AFFONSU CRIVNO DO EISPO D'EvORA, ARRENEGOS (57 ve) Arrenego de ti, Mafoma, E de quantos crém em ti. Arrenego de quem toma 0 alheio para si. Renego de quantos vi De quem forado esquecidos. Arrenego dos perdidos Por cousas nao mui honestas. Renego tambem das fe: Que trazem pouco proyeito, Arrenego do direito (Que se vende por dinheiro. Arrenego do palreiro, E de quem em elle eré. Arrencgo da mercé, Mais pedida de uma vez. GARCIA DE REZENDE. 105 Arrenego de quem fez Oruim do bom senhor. Renego do julgador Que julga por affeigao. Renego da semraziio, E de quem por clla usa. Reneyo de quem refusa Fazer bem a quem merece, Renego do que padece Sem querer ser confessado, Arrenego do easado, Mandado pela mulher, Arrenego de quem der A ruins e choearreiros. Arrenego dos dinheiros, E thesonros suterrados. Renego dos letterados Que nio usio do que lém. Arrenego dos que crém Nas riqnezas deste mundo. Arrenego do segundo, Que viveu com outro homem, Arrenego dos que comem 0 alheio sem pagar. Arrenego do palrar E fallar muito sobejo. Arrenego de quem yejo Usar sempre do que quer. Renego de quem disser Que ha hi algnm amigo. 104 LIVYRARIA GLASSICA. Renego de quem comsigo Nao despende do que tem. Renego tambem de quem Favorece o ruim. Renego tambem de mim Se creio em vaidades. Renego das puridades, Deseobertas mais que a um. Arrenego de jejum Que se faz por nao ter pio. Arrenego da paixio Sem nenhuma esperanea. Arrenego do que dansa, Sem ouvir tanger nem som. Renego tambem do bom, Que usa de ruins manhas. Arrenego das faeanhas Feitas por quem pouco val. Arrenego do casal Que nunea esta em paz. Arrenego do rapaz Que semnre serve chorando. Vou tambem arrenegando De mil cousas que nao fallo. Arrenego porque calo Cousas mais substanciosas. Arrenego das formosas, Cujas obras sio mui feias. Arrenego das candeias Qne nao (dao miu claro lume, GARCIA DE REZENDE. 1 Renego de quem presume, E mostra mais do que 6. Renego tambem da fe Dos que nao siio baptisados. Renego dos namorados, Que tendo tempo nao pegio. Arrenego dos que negao Parentes e natureza. Arrencgo da riqueza Avara e mal sada. Arrenego da casada Que deseja ser soltcira. Arrenego da bandeiva A quem segue pouca gente. Renego de quem consente Posturas em sua casa. Arrenego de quem casa Com mulher muito garrida. Renego tambem da vida Enyvolta em muitos vicios. Renego dos beneficios Iavidos com simonia. Renego da zombaria Que logo da na verdade. Arrenego da cidade Regida pelos tyrannos. Renego dos mui mundanos Depois que ja sio dos trinta. Arrenego da infinta, Nao vivendo doure trapo, © 106 LIVRARTA CLASSICA, Arrenego do mao papo De ruins mexeriqueiros, Renego dos lisonjeiros, E tambem dos mentirosos. Renego dos cubicosos, E dos ricos avarentos. Arrenego de quinhentos, On de todos os judé Arrenego dos sandéos Que levi sisudos. Arrenego dos,... Dos que sabem que 0 sao, Renego do capitio Que sabe pouco da guerra. Arrenego de quem erra, E jamais nao se emenda, Renego tambem da renda, Que é menos que o gasto. Renego tambem do pasto Em que nao entra bom vinho. Arrenego do vizinho lnvejoso e sandéo. Renego tambem do meu Amigo por interesse. Arrenego se quiz Entender, nem ver mil eousas. as dos eC Renego de quantas lousas Quantas arma o diabo, Renego do grande rabo Sem outros alguns honores. GARCIA DE REZENDE. 107 Arrenego dos favores Com que se pagiio servigos. Arrenego dos chourices, E comer feite sem sal. Renego do official Que muito folga com peit Renego da que se enfeita, Tendo o marido cego. Arrenego tambem do prego Que é mais brando que o pio. Renego tambem do vao Como cheya a orelha. Arrenego da conselha Ne mocos, e poneo lidos. Renego dos arruidos, do homem revoltoso. Renego de perfioso Que nio sabe o que diz. Arrenego da pevdiz Depois que passa dos dez. Renego tambem de Fez Com toda a sua moutisma. Arrenego d’esta scisma, E revolta da igreja. Renego de quem peleja E vai contra 0 padre santo. Renego de trajo tanto Quanto vejo deshanesto. Renego de tanto gesto Quanto se ora contrafaz, 108 LIVRARIA CLASSICA, Renego de quem mio traz O siso em seu Ingar. Arrenego do fallar Soberbo e descortez. Renego de quem em tres Pagas paga o que deve. Renego de quem ja teve, E depois vem a pedir. Renego do muito rir. E de quem chora de cote. Renego do sacerdate Que vive como o lego. Renego tambem do incigo, E do homem mui fagueiro. Renego do cavalleiro Que nao tem bem de comer. Arrenego do fazer A lenha em ruin matto. Arrenego do barato (Que depois se torna caro. Arrenego do avaro Que jamais munea se farla. Renego do que se aparta De cumprir a lei divina. Arrenego da doutrina De quem é mal doutrinado. Arrenego do julgado Que se da a quem o pede. Arrenego do que mede Maos ¢ bons de uma mancira. GARCIA DE REZENDE. tog Renego da alcoviteira, E de quem sem causa mente. Renego de quem nao sente O bem e mal que the fazem. Renego dos que the aprazem Os ruins mais que os bons. Renego tambem dos tons Que sio falsos, ou siio muitos. Renego tambem dos fruitos Que provém da doudice. Renego da bebedice E dos que sio de mil leis. Renego tambem dos reis Pelos tyrannos mandados. Renego tambem dos dados, E jogar tanto corrupto. Renego tambem do..... Que em mulher nunca entende. Arrenego de quem vende A ruin cousa por boa. Arrenego da pessoa Que se nao lembra da morte. Renego tamhem do forte, Que quando enmpre é fraco. Arrenego do velhaco, E do peco cortezio. Renego de homem vao, E dos mui presumptuosos Renego dos preciosos, E dos cheios de perfumes. 110 LIVRARIA CLASSICA, Renego de mil costunes, E de mim, se me contentao. Renego dos que se assentio Onde ao devem estar. ~ Renego do passear De continuo pela pi Arrenego da ma wa. E de quem nao tem vergonha. Arrenego de quem sonha Senipre elm) cousas niundanas. Arrenego das ufanas, E das que siv mui golosas. Renego das ociosas Criadas em initos vicos. Renego de seus feiticos, E das que tém ruim fama, Renego da gentil dama Que quer bem a homem vil. Arrenego da subtil E aguda em maldades. Renego das ruindades, Quantas sabem ordenar. Renego de quem gastar Sua vida apdés ellas. Renego tambem d’aquellas Que tomao muitos amores. Arrenego dos pastores Que nao otha por seu gado. Arrenego do + ra estado, Ea renda quasi nada. GARCIA DE REZENDE. ul Arrenego da pousada Em que ha mui pouea roupa. Renego tambem da pouca Devogiio que vejo aqui. Renego se nunca ji Boas coplas portuguezas. Arrenego das defesas, Que, provada Renego dos que revolve nio abselvem. Criados com seus senhores. Renego dos servidores Que nado sio muito fieis. Renego dos menestreis Que nio sio bem concertados, Arrenego dos privados Que conselhaio mal seu rer. Renego tambem da lei Nao usada commmunnnente, Arrenego do presente (Que suja ambas as indos. Arrenego dos irmios Que nunca sio bem avindos. Arrenego dos mui lindos, E dos homens mulherigos. Arrene dos imigos Que jamais nunca amea Renego dos que apragio, E conversao eoul ruins. Arrenego dos malsins, Nem se ha hi ji verdade. 12 LIVRARIA CLASSICA. Arrenego da bondade Que traz danmo para s Arrenego se ha hi Nenhuma regra nem ordem. Renego da gra desordem (ue ha nos ecclesiasticos. Arrenego dos fantasticos E dos fracos regedores. Renego dos prégadores (Que mui rijo nao reprendem. Renego dos que defendem (Que se nao faga justica. Arrenego da preguiga, E da grande agudeza. Renego da geuntileza Onde ha vil condi¢ Renego se acharad Official que nao roube. Renego se sei nem soube Julgador sem duas tachas. Arrencgo das borrachas Que bebem mais do que fido. 0. Renego dos que perfiio Em cousas que nao entendem, Renego se os que prendem Nao devidio de ser presos. Renego dos mui aeesos Nestes amorinhos vaos. Arrenego dos vilios Postos ent alyuma honra. _u GARCIA DE REZENDE 13 Arrenego da deshoura Que, vingada, nao descansa. Renego da muito mansa, E tambem da muito brava. Arrenego da que lava E enxagua quando chove. Reuego se ha hi prove, Nem bom homem estimado. Renego do mui inchado, E do cheio de vangloria. Arrenego da memoria, Nao do bom, mas ruim feito. Renego de quem traz preito, Com p..... ou poderoso. Reneyo do mui iroso, E de homem muito manso. Renego se ha deseanso ste mundo de miseria. Arrenego da imateria Vos que serve ao demo, Renego se nao me temo De dizerem que pragucjo. Pelo que com este pejo, De muitos vutrus desisto, Crendo bem na fé de Christo. i LIVRAREA CLASSICA. JUAO RODRIGUES DE LUCENA A SENHORA D. JOANNA DE MENDONCA PORQUE LHE MANDOU A AAINHA QUE NAO SAHISSE UNS DIAS DA POUSADA. {139.) Senhora, vivei contente! Nao vos dé nada paixio! Porque nao é sem razio Que quem prende tanta gente, Saiba que cousa é prisao. Porque sabendo a certeza Do mal que a tantus faz ‘Nao ercio que querereis Usar de tanta crueza Co’os captives que prendeis. Mas cuido que differente Sois d’esta minha tencao 5” E que sendo solta enti Prendeveis muita mais gente... E em anais esquiva prisio! GARCIA DE REZENDE. WS RESPOSTA D'ULYSSES A PENELOPE TIRADA DD SABINO, DE LATIM EM LINGUAGEM. (159 v,) Tua carta bem notada, Com piedosas palavras, A teu Ulysses foi dada, Assim como desejavas. E wella bem conheci Tua mao, e entendi Teu mui fiel coragio; E foi-me consolagiu Dos iongos males que Keprendes-me que tardei! Eu antes queria estar Contando-te 0 que passei Que havel-o de passar. A Grecia nao me lancou Neste lugar onde estou, Com o fingido furor Que fingi, quando o amor Em tua terra me achou. Porque entio 0 nao querer Partir-ne de ti tao tr 116 LIVRARIA CLASSICA. Eva causa de deter Minhas velas, como viste. Que nio cure de eserever Me escreves, mas de fazer, Por mais asinha chegar, E os ventos, por m’estorvar, Fazem todo seu poder. Ja na Troya aborrecida Ibe vos outras nao estou; Porque ja é destruida, E em cinza se tornou. Deiphobo, Asio e Heitor, Que te punhao em temor, Ja 6 tudo sepultado... E eu ando desterrado, Sofirendo tio grande dor! Ne Rheso, por mim estruide , Rei de Thracia, escapei; E trouxe Welle vencido Us cavallos, que tomei : E tambem ua torre entret De Pallas, d'onde roubei O fatal paladiao, Por oude a destruicado De toda Troya causei. Nem menos cu fora estava Do cavallo de madeira, GARCIA DE REZENDE. 47 Quando Cassandra bradava : Qeime-se em toda mancira ; Porque dentro elle estio Muitos Gregos, que darao Morte a todos os Troyiios ; E com suas erueis mios Cruel guerra lhe farao. Achilles, que sepultado Nao era como devia, Em meus hombros foi tornado A Thetis, como cumpria. Os Gregos nunca mie derio O louvor que elles devérao A anim que tanto acabei; Porém as armas levei D’Achilles que alli perdério, Mas a mim, que me aproveita Que no mar sito subvertidas, A frota toda desfeita, Minhas companhas perdidas ! Tudo me fica no mar ; Mas o amor grande, sem par, Que te tenho, me seguio : Emquanto passei se vio Sem unvhora me deixar. Nunca a Niseia virgen, Com seus cies mui cubicosos, 118 LIVRARIA CLASSICA Nunca Charybdis tambem, Com seus mares fortunosos, 0 puderao quebrantar ; Nem Antiphates mudar ; Nem Parthenope enganosa, Inda que mui desejosa, Foi de me fazer ficar. Nem aquella que tentou Por magica me deter ; Nem a deosa, que cuidou Ricas camas me vencer ; Ainda que ime promettiao, Ambas ellas, que fariiio Que nao pudesse morrer, Se eu quizesse fazer O que me ellas commettiio. E porém eu, desprezando Tal mercé, vou para ti, Tanta fortuna passando, Quanta por chegar soffri : FE tu por ventura medrosa, T’outra muther receiosa, K nao mui segura, lés Aquesta carta, que vés Eseripta tio saudosa. Tambem por ventura crés Que a causa de me deter GARCIA DE REZENDE. 419 Seja Calypso ou Cireés, E isto te faz temer? Ca amim me da tal paixio Quando Antinoo e Medao, Polyho leio tambem, Que o sangue todo se vem No corpo ao coracao. 7 Triste de mim! que crerei? Que estas tu entr’essa gente, Em convites ! en... que sei Se te has tu castamente ! Mas tua presenca airosa, Se a sempre vém chorosa, Como se namorio della, E com tao justa querella o deixas de ser formosa? FE hei gra temor tambem Que estas ja para casar, Se a teia, que te detem, Antes que eu va, se acabar, Inda que a noite desteces Quanto todo o dia teces, Essa arte te ha de fazer Acabares de tecer A teia, se te adormeces. E se isto se acertar, Nao me fora a mii mais sia 120 LIVRARIA CLASSICA. Polyphemo me matar Na cova com sua mio? Nao fora eu melhor vencido, E morto e sepelido De cavalleiroe mui forte Ne Thracia, quando por sorte Era em Tsmaro detido ? Nao fora melhor ficar No inferno, onde me achei, Para Ditis contentar, Que eseapar, como escapei Onde cn embalde vi A mai que, quando parti, Deixei viva, a qual, finada, Me disse, sem faltar nada, Quanto em tua carta li? FE disse-me os embaracos De minha casa... € fugio! EF tendo-a entre meus bracos, e me expedio. 0 vi estar, Tres vezes Protes Que quiz antes comecar A guerra, que nao temer Sobre Troya alli morrer, Podendo-o bem eseusar ! Estava bem aventurado Alli com sua mulher, GARCIA DE REZENDE. tat Que nio quiz elle finado Mais n’esta vida viver : E posto que sua vida Nao era toda cumprida, Quiz morrer com seu marido, Que morreu de mui ardido, F ella de mal soffrida. Vi Agamemnon o forte, Que ime fez muito chorar, Disforme com nova morte, Cousa bem para espantar ! E posto que nao ficou Na gra guerra, em que se achou Junto co’os muros de Troya, Nem nos mares de Enboya, Que a seu salvo passou : Foi poréim assim morrer De mito cruas feridas, Depois de offerecer As offertas promettidas : A qual morte Clitemnestra Tao cruamente lhe adestra, Estranhos vardes seguindo, Nova capa Ihe vestinda, Feita com sua mao destra. Mas que me aproveita ver A mulher d’Heitor, e irm 122 LIVRARIA CLASSICA. Ajuntadas alli ser Entre as captivas lroyas? Pois entre ellas escolhi A Heeuba, porque vi Que era ja velha feita, Por perderes a suspeita D'outra mulher, e de mim. A qual Hecuba agourou Minhas naos, e as fez tremer; E em cadella se tornou, Que a todos ia morder ; Fa triste, assim, ladrando, Suas desditas queixando, Acabou sua querella, ita raviosa cadella, Nos desertos hahitando. E Thetis, por tal signal, ( manso mar me negou ; FE Eolo, por me fazer mal, Todos seus ventos solton ! E assim ando desterrado, Por todo o mundo lancado, Por onde me quer levar () vento e o bravo mar, Que me trazem destrocado. Mas se Tiresias fora Ha morte tal agoureiro, GARCIA DE REZENDE. 125 Como o eu acho agora Em meus males verdadeiro, Que tudo o que me fingia Que eu de passar havia Pela terra e pelo mar, 7 Ja o acho, sem faltar Nada do que me dizia!... Pallas se me ajuntou Sa sei em que ribeira : E Walli sempre me guiou Com’a boa companheira, Esta vez foi a primeira, Que a vi com’ estrangeira Depois de Troya estruida, Aira diminuida, Tornada ja prazenteira. Porque, no que commetten Diomedes, cu pequei; sua ira se estenden A tod'los*Gregos, que eu séi. Nem & ti nko perdoou Diomedes, mas causou Que tu andasses errando, Ainda que pelejando Contra Troya te ajudou. Nem o Teucro que Telamon Touve da troya roubada: 124 LIVRARIA CL SSICA. Nem o forte Agamemnon, Capitao da grande armada ; Nem tu, bemaventurado Menclio, que foste achado Com tua mulher no mar, Sem te poder estorvar Nenhuma sorte, nem fado. Porque entio, inda que os ventos, FE os mares vos detinhao, Vossos amores iscntos Nenhum damuo recebiio : Que os ventos nao estorvavio Vossos beijos, nem cessaviio Vossos bracos d’abracar, Inda que no bravo mar ‘)s fortes ventos sopravao, E se eu assim estiver Sempre comtigo no mar, Tua presenga fizera Tudo sem pena passar. + Mi Leves em meu coracdo, Porque sei que eu, sendo ausente, FE Telemaeo presente Comtigo, pois eu nao sio. ji mens males esi Do qual me queixo porque Foi a Pilo e a Sparta, GARCIA DE REZENDE 125 Por mares que certo é, Como vi por tua carta, Nio consinto em piedade, (Que com tanta crueldade De perigos se sustem. Porque certo nio foi bem Fial-o da tempestade. Ainda me eu hei de achar, Porque um propheta m’o disse, Entre seus bracos estar... Mas isto, quem no ja visse E entio, quando eu chegar Tu sé me has de abracar, £ sé me has de conhecer : Aquelle grande prazer Sabe-o dissimular. Porque a mim nao me convem Guerrear laes cavalleiros 5 Elle no disse tambem, Que assim dizem seus loureiros ; Mas por ventura em comendo, Vu em estando bebendo De supito chegarei. E chegando vingarei 0 que elles andao fazendo. E serio muito espantados Da nao esperada ida 126 LIVRARIA CLASSICA. D'Ulysses ; e rogo aos fados Que venha cedo este dia; O qual fara renovar O amor, grande, sem par, Da autiga cama amada; E entio tu, ja casada, Comegar-me-has a lograr. CARTA DE ENONE A PARIS TRASLADADA DD OVIDIO, EM CDPLAS. (140 ¥.) Sendo Paris ja crescido, Andando na matta Ida, Por prove pastor havido, Enoue foi sem sentido Por elle d’amor perdida ; E pelo pomo dourado, Que 4 deosa Venus julgou, D'ella Ihe foi outorgado Que havia de ser casado Com Helena, que roubou. E para haver de cobrar Q que the era promettide, Comegou-se a apparelhar, : “ Para em Grecia navegar, GARCIA DE REZENDE. 127 Depois de ser conhecido : E foi mui bem hospedado Ne el-rei Menelao, que ordena, Por lhe fazer gasalhado, De Ihe mostrar seu estado, E a formosa rainha Helena. E logo se namorou Da tio formosa rainha, E com ella concertou Como d'alli a levou Para Troya, onde a tinha : Mas Enone, mui sentida De ver-se assim desprezada, Lhe escreve por despedida Esta carta tio dorida, Quasi ja desesperada. ENONE A PARIS Se acabas tu de ler Esta carta que te mando! Ou se a nova mulher T’o nao consente fazer, Ja de mim se arreceando! E porém sem affeicdo A lei que nella veras, Que nao tem nem lettra nao Escripta com grega mio, Com que tu nao folgaras. 128 LIVRARIA CLASSICA. Enoue, nympha honrada Nas troyas mattas e serras, Se queixa, de ti agyravada, Porque era a triste casada Comtigo, se tu quizeras. I. qual Deos contrariou A nosso volo e querer? Ou que peccado peccou none, porque cessou De ser ja tua mulher 7 Porque bom 6 de softrer Mal qne merecido vem; Mas pena, sem merecer, si E inuito para doer A quem naseim causa tem. Inda tu nao eras nada, Nem somente conhecido, Quando eu, nympha gerada Do gra rio, era pagada De ter-te a ti por marido. EK tu, que agora és tide Por filho d’el-rei Prianw, Por rvo cras havido, E servo eras marido De mim, nympha, porque te amo. Bem sabe Muilas vezes entre o gado, > Cobertos com verdes ramos, ut GARCIA DE REZENDE. rs E que juntos nos: deitimos Por aquelle verde prado. E quantas vez Em alta cama de feno, Ein baixa casa vivendo, Nos cobrio neve; e sendo rs. jazendo Maquisto lembrada peno! Dize-me, quem te mostrava Os hoseos para cacar? E em que lugar criava Seus filhos a besta brava, Que tu logo ias matar? Quantas vezes ime ja achei Por mattos comtigo, armando, E quantas vezes andei Com os cies que eu crici, Junta comtigo cagando! Nos Meu nome escripto e notado, E inda se n’elles lera : — Enone! — nome que esta Com tua fouce cortado. 5 freixos inda estara De um alamo sou acordada, Que esti a par de uma ribeira, Em o qual esta notada Uma lettra bem lembrada De mim ji na derradeira. 150 LIVRARIA CLASSICA. E assim como vio crescendo Sens troncos grandes, erguidos, Bem assim o vao fazendo Meus nomes. I-vos erguendo, Km meus titules crescidos. Alamo, que assentado Estas u‘aquella ribeira, Vive, pois que tens Em teu tronco euverrugado notado Um verso desta maneira! — Quando Paris ja viver Sem Enone que recebeu, Entéo veremos correr 0 rio Xantho, e volver Para a fonte onde nasceu! Xantho, volta, velta ja, Correi aguas por detras, Paris vive, ¢ vivera Sem Enoue, que chorara Como tu, rio, veras! Aquelle dia, cortada Me trouxe bent mao fadario! Naquelle fui eu trocada ! Naquelle me foi mudada Minha sorte ao contrario. Quando as tres deosas vierao, Juno, Venus e Minerva, GARCIA DER ENDE. 151 KE por juiz te escolhérao, Grandes dons te promettério Todas tres nuas na herv: E entio tu, espantado, Todo te transliguraste, De temor todo cercado, Tremendo, mui demudado. Lembra-te, que m’o contaste! Eu, nio menos espantada, Logo me aconselhei; E é cousa mui provada Que me foi resposta dada Com que mui pouco folguei; Porque com fayas cortadas Guarneceste grossa armada; Eas naos ja acabadas . Fordo depressa langadas Na brava onda trigada! Eu te vi, certo, chorar, Quando te de min part Para que é isto ni (Jue mais te deve pesar Do amor que tu li viste. Choraste, ¢ viste che Meus olhos tristes, sentidos ; E ambos lagrimejando omos assim suspirando Para sempre despedidos, 132 LIVRARIA CLASSICA, Em teus bragos fui tomada : E incu pescoco apertado ; Que a vide que esti atada, E nos olmeiros empada, Nao esta mais a recado. Quantas vezes te queixavas, Que os ventos te detinhao Com contrarias ondas bravas Mas os teus nao enganavas, Porque 0 contrario sabiio! E tantas vezes tornaste Aine beijar n’aquella hora. Que escassamente escuitaste 0 que beijando estorvaste, Que foi o ir-vos embora ; E logo feste embareado ; E as velas todas aleadas ; E com vento arrebatado ; E com o remo apressado As aguas braneas tornadas. Os meus olhos te seguiio.... Emquanto te pude ver! As lagrimas, que corride, A Lerra toda cobriio, Cousa para se nao erer! Com Ss quites triste, coitada, As verdes deosas do mar, Rogava pela tornada, GARCIA DE REZENDE, 135, Para vir em tua armada Quem me faz desesperar. Pelos rogos que eu roguei, Tornaste.... e nao para mim! Triste de mim, que farei, Que 0 rogo em que andei Foi pela comboca emfim! E estando um dia assentada Em um monte, que esti a par Donde bate a onda, que brada, Nuina serra-bem alcada Wonde se vé todo 6 mar : 0 que eu primeiro vi Fordo velas que chegavao; Pois primeiro as conheci : Quizera-me ir para ti, Mas as ondas me estorvaviio : E estando-te assi aguardando, Na préa de ta nao vi Que luze de quando em quando Purpura, que em na olhando, Logo ine della temi. Que tu nio acostumavas Aquelles trajos trazer ; E quanto mais te chegavas, Tanto mais claro mostravas Que alli vinha mulher, 134 LIVRARIA CLASSICA, Nao abastou isto ser; Mas aguardei um pedago, Que nao eri, até nao ver A adultera jazer, Eneostada em teu regaco. Entao, chorando, rompi Todas minhas vestiduras ; Em meus peitos me feri; Todo meu rosto carpi Com tamanhas amarguras ; E coos gritos, que alli dei, Toda a matta fiz tremer ; As lagrimas que chorei A minha casa as levei, Para cont ellas viver. a eu Helena, Ja de ti desamparada, Queixar-se com tanta pena, Que a que me ella ordena, Em ella a veja dobrada! E agora dizem que vem Por mar tao bravo e crescido A que diz que te quer bem, E deixa ki o que tem Por leg:timo marido! nada, F quando nao tinh: E eras prove pastor, GARCIA DE REZENDE. 153 Enone era casada Comtigo, e de ti amada Assim prove lavrador. Nao que me espantem agora Tuas riquezas.... mas amo! Nem por ser grande senhora, Nem por ser chamada nora, Uma das Wel-rei Priamo. Que elle deve de folgar Co’uma nora tal como eu Deve-se Hecuba de honrar De me poder nomear Por inulher de um filho seu. Digna sao de ser mulher D’um poderoso vario; E desejo de o ser; E tambem saberci ter Um seeptro na ininha mio, Nem porque ime eu deilava Comtigo, por esse prado, Nao me desprezes... que amava! Que eu mais digna me achava Para um leito dourado : E emfim o meu amor Mais seguro ha de ser, Porque nenhum vingador Te puzera no temor (Que te poe essa mulher. 156 LIVRARTA CLASSICA, Que p'ra se Helena eobrar Arma-se mui grossa 3 Isto foste fa busear ; Este dote te hao de dar Com essa nova casada; A Heitor, que é leu irmao, Deves tu de perguntar, Oua Deiphebo, que sao 9s que te aconselha Se Ih’a deves de tornar. vada ; E Priamo, e Antenor, Olha o que te divao ; Que por idade maior, FE seu conselho melhor Que o que te est’outres dario. Que é cousa mui perigosa Tua terra aventurar : Tua causa é vergonhos Seu maride tem formosa Razio para batalhar. FE tu euidas que has de ter Fiel amiga em Helena, (ne assim, sem te conhecer, Se deixou logo vencer De ti, cuja morte ordena: E deixou a seu maride, O menor filho d'Atreu, Que se queixa, mui sentida, GARCIA DE REZENDE. 137 Da mulher despossuido, Porque pousaia te deu? Mas se no mundo ha verdade, Assim te has de tu queixar ; Porque como a castidade Se quebra, logo a bondade Nao se pode mais cobrar ; Que o bem que te agora quer, Ja o quiz a Menelao ; KE agora o faz jazer So na Cana; porque crer Kin Helena Ihe foi mao. Oh! tu, bemaventurada Andromacha, que te tem Teu marido bem casada ! Porém eu, triste, coitada, Devéra-o de ser tambem! Mas tu mais mudayel és (ue as folhas seecas co’o vento : Alga rijo d’entre os pés ; E lugo n’outro revez As abaixa n’um momento, Es muito menos pesado (Jue uma mui seeca aresta, Que com sol amiudado * Se secea sobre um telhado, Na metade de uma sesta! LIVRARTA CLASSICA. Lembra-me que tua irma Noutro tempo me bradava Na grande matta troya ; E que, com palavra Assim me prophetisava : . — Que fazes, Enone, que! Porque semeias na aréa! Porque lavras, € tens {é Eni campo que cerlo é Que nem colheris avéa! Porque uma bezerra vem Grega, que nos perdera, (Que a si, ea quem na tem, 2 ad nossa terra tambem Tudo nos destru Oh! Deoses ! com vossa mio Alagai aquella nao ! Fazei que nao venha, nao. Oh! quanto sangue troyio (Jue traz n’ella aquelle mao! Isto dito com furor, Suas damas a tomirao ; Foi tao grande minha dor, Que os cabellos com temor Todos se me arripiario. Oh! proplieta! n’esta serra Quo verdadeira te achei ! GARCIA DE REZENDE. 139 Vede V'a grega bezerra! Em meus paseigos e terra; Dentro 1elles a topei ; Que é adultera provada, Inda que formosa seja, De seu hospede roubada, Sacrifica, e poe obrada Aos deoses que deseja. Ja outra vez a roubou De sua terra Theseu ; Certo Theseu a levon, Se 6 nome nado me enganou, Co’o geito que lhe ella deu. De um tal mancebo crerei - Que assim virgem a tornou? Por Deos ! nado o jurarei! Se perguntas como o sei? Amar-te m’o revelou. e com nome de forcada A tu queres desculpar, E desculpa mal cuidada : Tantas vezes foi roubada Ella se deixa roubar; E Euone sem sentido Ficara viuva emfim Do enganoso marido. 0’ Paivis, que escarnecido Bem puderas ser de mint! LIVRARTA CLASSICA. Porque um dia eu estava Nestas inatlas escondida, E gra companha passay De satyros, que me buses Por toda a montanha de Ida; EFauno, que vinha armado Co’ mui agudo pinheiro, Na cabeca coroado Com grandes cornes, alcado Entre os outros 0 prineiro. a Eu the respondi porém : O gra cereador de Trova Fichnente me quiz bem : K dias ha ja que tem Demin a mais rica joia: E luitando o arrepelei, Porque me as Suas faces arranhei Porém nunca o apartei No desejo que trazia. im persegn Nem por prego do peceado Nao pedi pedras, nem ouro ; Porque malayenturado E 0 corpo que é mercado, Nem yendido por thesoura : Mas colle, por me pagar 0 que assim de mim tmnou, Prouye-lhe de me mostrar GARCIA DE REZENDE. 14 As artes para curar Que elle primeiro inventou. E todas as hervas sabidas As que podem aproveitar Emi todo 0 mundo nascidas, essa hora me sao trazi Sem nenliwna me presta Ai mesquinha ! que o amor Com as hervas nio se eura: Porque a mim, que era a maior aquest arte, a esta dor (Que farei, que inda me dura? re E Apollo, que esta arte achou, Nao dizem que foi queimado Do mesino fogo que eu sou, KE que as vaceas guardou Nel-rei Admetes no prado? Bem sei que Deos nem a terra, Com quantas hervas eriar, Nao podem matal-a guerra, (ue minha vida desterra E tu pédel-a matar ! Tu pédes.... ¢ eu merego Que hajas de mim paixio ; Porque cu nado te impeco Com gregas armas, nem peco Do que te dei galardao ! 142 LIVRARTA CLASSICA, : Mas pois por tua me dou, E comtigo até aqui Minha vida se gastou, Te peco que, emyuanto sou Viva, te lembres de mis! GARCIA DE REZENDE. 1S D. RODRIGO DE WONSANTO AO CONDE PRIOR PORQUE ACHARAO N'UM CAMINHO UM SEU MOCO OE ESPORAS, COM UMA TROUXA DE VESTIDOS AS COSTAS. 166 v.) A vinte e tres dias do mez de Janciro, Uma sexta-feiva, Aquem das Cabritas, além da Landeira, Topamos trotewo. Topario trotciro, com cousa tio pouca, Tao pouca, tio leve, que quem a levava, Diz que tio leve com ella se achava, (Que dava taes saltos, tio alto pulava, alto que Saide, bailando com touca. Senhor D. Joao, o vosso troteiro Chegou ao Barreiro, ¢ logo embarcou : A barca com elle tio leve se achou, Por onde o barqueiro levar-lhe escusou a trouxa dinheiro. Sem vela, sem remo, parlio derradeira. E chegou primeir 1h LIVBARIA CLASSIC - Porque a trouxa de vosso trot A fez mais veleira. TESTAMENTO DO MACHO RUCO DE LUj2_—sEIRE ESTANDD PARA MORRER. 5 167.) Pois que vejo que Deos quer este mundo me levar, Quero bem eneaminhar A minha ala.... se puder! Emquanto estou em meu siso. A morte dando-me guerra, Mando a alina ao paraiso, De sio corpo a terra. E mando logo primeiro, Eimquanto vivo me sento, Que deste meu testamento Soja ime testamenteiro Meu irmao, o de Barrocas, Que cu mais que todos amo, Por sempre fugir a Lrocas, KE servir mui bem sen amo. Q qual me f Com mui gi ‘i solemnidade GARCIA DE REZENDE tia Ao rocio da Trindade, UW me mando enterrar ; Pois me d’alli governei Gra parte de minha vida, A carne, que levarei, Alli deve ser comida. E vao cantando diante A de Bravia ed’ Affonso Um tio solemne responso, Que todo o mundo se espante. A estes ambos ajude O macho de Gomes Borges, O qual leve o atadde, A bitalha, e os alforges. Royo aos cortezios, Quanto lhes posso rogar, Que todos me vito honrar Com seus cirios nas miavs : E pois erdo espantados De passar vida tio forte, Devem ser de mim lembrados, Dando-me honra na morte. Item, me levem de offerta Nous ou tres cestos de palha, Que pois custa nem migalha Nao deve de haver referta. 1 6 LIVRARIA CLASSICA. Tambent me levem um alqueire De farelos ou cevada; Pois na vida Luiz Freire Visto nunca me deu nada. Intindos perddes pedi As pousadas & pousei, Dalguidares que quebrei, E gamellas que roi : E nao me devem culpar De lhe fazer tantos damnos: Pois que de palha fartar Nunea me pude em vinte annos. Item, pego as verceiras Muitos.... infindos perddes: E tambem aos horteldes, Dos damnos das salgadeiras ; Que a bofé! se me soltava, Fome tal me combatia, Que qualquer cousa que achava, Tudo mui bem me solia. FE que meu amo aggravos Me désse com amarguras, Deixo-lhe tres ferraduras, Que nio tém mais de dous craves ! E pero delle me queixo De males que me tem dados, GARCIA DE REZENDE. 147 Dous ou tres dentes Ihe leixo, Que mande fazer em dados. Nao the posso mais leixar, Que elle nunca mais me deu : Rogo a Alvaro d’Abreu Que 0 queira acompanhar. Rogo tanto que se doa D'elle tanto meu irmio, Que o ponha em Lishoa A redor de 8. Giio. Sobre minha sepultura, Depois de ser enterrado, Se ponha este dictado Por se ver minha ventura . — Aqui jas o mais leal Macho rugo que nasceu! Aqui jas quem nao comer A seu dono um sé real! 148 LIVRARIA CLASSICA, ANONY MO ESTES SAO OS PORQUES QUE FORAO ACHADOS NO PAGO EM SETUBAL, NO TEMPO D’EL-REI D. JoAo SEM SE SABER QUEM OS FEZ. Tv) Pois que vemos tantos modes De homens, es quaes nio sabemos, Razaio é que perguntemos O porque o fazem todos. Porque nao Villa-real Come gallinha nem pato? Porque o prior do Crato Apanha tanto enxoval? E porgne tio bem guardado Tem Abranches seu dinheiro? Porque o wor camareiro S6 trocar é seu cuidado? GARCIA DE REZENDE 149 Porque ousio de ir ao serao Saldanha, ¢ Jorge de Mello? Porqne é Affonso Tello Tao amigo de melio? E porque tem seu irmio Emparedada a mulher? Porque tio mal D. Joio e cantar, a meu ver? Porque traz de cavalleiro D. Gonealo presuimpedo? Porque Abranches D. Joao Se embrida como gaiteiro? Porque ha por asselado Lopo da Cunha o que diz? Porque falla Joao Moniz Como homem que anda pasmado” E porque tio oceupado na caca D. Rodrigo? Porque o Lobo, Alvito nado, Nao Ihe sabemos amigo? E porque vida tio va Fazem Corréa e Pereira? Porque anda Jodo Caldewa Tao ealvo pela manhi? 150 LIVRARTA CLASSICA Porque Tinoco Fernio D'Inglaterra tao asinha? Porque Bucar D. Jodo Tanto olha pela sobrinha? E porque todo Miranda Pende & banda dos maiores? Porque D. Henrique anda Tio redondo nos amores? Porque da nenhuma cousa Marialva a Castelhanos? Porque sobre noventa annos ¥) mundanal Ruy de Souza? Porque seu fitho primeiro No invyerno traz. safoes? Porque com tantos hotoes Vem D. Duarte ao terreiro? Porque Nicolao, seu ponto Traz em se vender a gente? Porque louvao tio sem conto Almeidas qualquer parente? Porque falla tanto 4 mesa Lopo Soares na guerra? Porque tem tio boa presa Viseu, no 6dre que aferra? GARCIA DE REZENDE. 151 Porque Diogo da Silveira Requere ser do conselhto? Porque traz Nuno Pereira Cabelleira, sobre velho? Porque tanta hypocrisia Ila em Saldanha Diego? Porque parece morcego D. Luiz ao meio-dia? Porque é D. Luiz Coutinho Tao leve que anda nel ayre? Porque tantas filhas pare A mulher de D, Martinho? Porque Pero de Baiaio Diz mal d’Antao de Faria? Porque Pedro Homem trazia Tanta cilada em gihio? Porque nao péde a demanda 0 Tavares acabar? Porque Vasco de Miranda Nunca leixou de furtar? Porque Jam Lopes Sequeira Cuida que é tao resabido? Porque a Francisco Silveira Nunca se rompeu vestido? 1 LIVRARIA CLASSICA. Porque se mostra feroz Masearenhas capitio? Porque Lima 1). Joio Nunca uma hora come arroz? Porque o coudel-mor fez Tanta ma trova escrever? Porque Affonso d'Albuquer Da parias a cl-rei de Fez? Porque Henriques 1), Henrique f mais ventoso que Maio? Porque no campo d’Ourique Nunca nasceu papagaio? Porque munca da uehai Ruy Lobo nada dar que Porque traz rabularia Alvar Lopes de saber? Porque o Barrocas anda Ite tantos lares corrido? Perque Ayres de Miranda Cada mez langa um pedido? Porque tanto casamento D. Philippa ja vio? Porque de tanto unguento Teixeira 0 rosto cobrio? GARCIA DE REZENDE. 155 Porque 1), Branca mais Presume, do que é formosa? Porque se vem a da Rosa Ao serio e outras taes? Porque 6 Fraucigca de Souza Tao cheia de autovidade? Porque sahe em tanta cousa I). Urraca ao padre? Porque tanto arrebique Isabel Cardosa traz? Porque é tio mado rapaz BD. Margarida Henriqne? Porque falla todo 0 dia Por todos Brites Pereira? Porque traz D, Maria Sos bragos tal raposeira? Porque D, Guimareta Nunca tem o rosto quedo? Porque nao dio co'uma setta A Jacome de Azevedo? Co’os porques deveis folgar, Pois que a ninguem empece : E via quem se alegrar, E quem nio, va-se beijar Onde the a pelle fallece, LIVRARIA CLASSICA. DIOGO DE MELLO VINDO D’AZAMOR ACHANDO SUA OAMA CASAOA. (183.) Bem te conhego, ventura, Que me quizeste mostrar O prazer quao pouco dura “Quando o queres desviar! F pois isto has de ter Mio te quero agradecer Algum bem, se m’o fizeste, Pois havias de fazer No fim tudo 0 que quizeste. Tu quebras as esperangas, E desfazes fundamento : Toda és feita em mudancas Sem deixar contentamento. Mas quem ventura conhece, E seus males lhe offerece, E em seu poder se vé, g GARCIA DE REZENDE. 15: Isto, e muito mais, merece, Quem por ventura se eré. Coragio, se me deixaras No tempo, que eu quizera, Nao tiveras, nem tivera Cousas com que me mataras. Defendes-me, e nio te queixas, Que nio diga que me deixas Tantos males sem razio : A quem contarei mi’s quei Coracgaéo, meu coragio! Trago 0 tempo occupado Em me ver de tudo fora; Mas triste 6 aquella hora Quando me lembra o passado. Lembra-me minha verdade; FE quao pouca lealdade Amostrou em se casar! Casada sem piedade, Yosso amor me ha de matar. D’este tempo tio mudado io me fica em poder Mais que um triste prazer Se w’clle tinha passado. Tenho esperanga perdida Do que a tinha servida, Que jaa niio posso cobrar : 16 LIVRARTA CLASSICA. Direi mal 4 minha vida Cada vez que me alembrar. Quando me quero langar, Tenho-a na fantasia; E de noite vou sonhar Com ella que lhe dizia : Pois fizestes tal mudanca, Sem terdes de mim lembranea, Acabai-me, minha vida, Pois nao tenho esperanca De jamais ver-vos vencida. Sempre lhe veja prazer Como a hora que casou; E veja nunca Ihe ver Mais que quanto me deixou; Pois tio triste me deixaste Com a vida que tomaste, Emquanto vida tiveres, Royo a Deos, pois que casaste, Que chorando desesperes. GARCIA DE KRELENDE. 137 DOGO VELIO DA CHANCELLARIA DA CACA QUE SE CACA EM PORTUGAL FEITA NO ANNO DE CHRISTO OE 1516. (201.) Oh! que caga tio real, Que se caga em Portugal! Rica caga, mui real, Que nunca deve morrer, P’ra folgar de lhe correr Toda a gente natural. Linda caca mui subida Se descobre em nossa vida, A qual nunca foi sabida, Nem seu precu quanto val. U da gra matta Lishoa, Unde toda caga va! Arabia, Persia, Goa, Tudo cabe em seu curral. LIVRARIA CLASSICA. Calecut, e Cananor, Malaca, Tauris menor, Adem, Jafo interior, Todos vém por um portal. Talhamar da gra riqueza, Damasco com fortaleza, Troyano, Cayro com sa grandeza Nao domarao nunca tal. O mui sabio Salomao, (ue fez o grande montao, Teve parte e quinhio, Mas nao todo o cabedal. Mida Anglia com norte! E Alexandre tio forte Nao conservou esta sorte Nem o seu vidro crystal. Priamo, Juba, Assuciro, Membrot, Pompéo guerreiro, Nenhum foi tio sobranceiro, Nem tao pouco Annibal. Carina navegador Navegon com muita dor; Nunca foi descobridor D’este tio rico canal. GARCIA DE REZENDE. a9 Hereules, Cesar, corredores, Tamnbem forao cacadores, E nao fordo achadores D'este sceptro tio real. Cyro, Porsena fronteiro, Afrons, Jupiter herdeiro, enum foi tio verdadeiro, Nem Saturno paternal. Enéas, Ulysses caminheiro, Tolomeu, Prinio mensa, Nino, Remulo primeiro, Gemérao, sabendo tal. Machabéo, co’os doze pares, Com seus deoses e altares, Nao tiverdo taes lugares, Nem tal graca especial, Ouro, alfojar, pedraria, Gomnas e especiaria, Toda outra drogaria Se recolhe em Portugal. Ongas, ledes, aliphantes, Monstros e aves fallantes, Porcellanas, diamantes, E ja tudo mui geral. 160 LIVRARIA CLASSICA. Gentes novas, escondidas Que nunca fordo sabida: Sio a nds tio conhecidas Como qualquer natural. Jacobitas, abassynos, Catayos, ultramarinos, Buseao godos e latinos Esta porta principal. U evangelho de Christo, Cinco mil leguas visto, E se eré ja 1a por isto O mysterio divinal. O das grandes carapugas , Long Phariséos, suas agucas, Nem o Chinches austerial. s pernas, grandes ch Amaro e 0 ermitio Em sua contemplagio Leixarao revelacado Veste horto terreal. Em o anno de quinhentos E com anil primeiro tentos Deseobriraio os elementos Esta caca tio real. GARCIA DE REZENDE. ol Em este segre cintel Reina el-rei D. Manoel, Que recolhe em seu annel Sua divisa e seu signal. Porque é mui virtuoso, Excellente e justicgoso, Deos 0 fez tio podcroso Rei de sceptro imperial. Sua santa pargaria, Rainha D. Maria, Estas maravilltas lia Por esp’rito divinal. Esta é gentil a Andiaa Para cantar com Amina, Safim, Zamor, Almedina, Tambem é de Portugal. Tazdo é que nao nos fique A ala do infante Henrique, E que por clla se supplique Ao nosso deos celestial. Porque foi desejador, E 0 primeiro achador Douro, servos e odor, E da parte oriental. a il 162 LIVRARIA CLASSIC\ 0 pod'roso rei segundo Joao, perfeito, jocundo, (ue seguio este profundo Caminho tao divinal, 0 cabo de Boa Esp'ranga Descobrio com temperanca, Por signal e de mostranga D'este hem que tanto val. A madre consolador De muito bem sustedor, im virtudes fundador, Sua parte fem igual. Tel-rei D. Jofio parceira D. Lyanor herdeira, Natural e verdadeira Rainha de Portugal. Emanuel sobrepujante, Rei perfeito roboante, Subjugou mais por diante Toda a parie oriental. Nunca sejiio esquecidos Seus nomes sempre sabidos, E de gloria cumpridos Para sempre eternal. GARCIA DE REZENDE 163, Aquelle grande prudente Prophetisou do ponente E de toda sua gente Cagar caga tio real. OU gra rei D. Manoel, Ajebusseu e Ismael, Tomara e fara fiel A lei toda universal. Ja os veis do oriente A este rei tao excellente Pagio parias e presente A sen estado triumphal. Pela grande confianca Que em Deos tem e esperanca E-Ihe dada gra possanca De memoria immortal. U dos mui lindos buscantes, Rasteiros ¢ tao voantes 7 Cagadores rastejantes Que cagiio caga real. Sao conhecidos de cujos; Sao estes lindos sabujos ; E bem criar-Ihe os andujos Para casta natural. 16k LIVRARFA CLASSICA. Eo tempo achegado Para Christo ser louvado 5 Cada um tome cuidado Deste bem que tanto val. As novas cousas presenles 2x , a . ri Sio a nds tio evidentes Como nunca outras gentes Jamais virdio mundo tal. E ja tudo descoberto, O mui longe nos é perto ; Os vindouros tém ja certo O thesouro terreal. GARCIA DE REZENDE, 165 HENRIQUE DA MOTTA GLOSA A ESTE MOTE QUE FEZ EM QUE NAO ESTAO MAIS NEM MENOS LETTRAS DO QUE AS DO NOME DE ANTONIA VIEIRA JA VICTORIA NAO E. (202) Matar um homem vencido, Preso sobre sua fé... Ja victoria nao é. Matardes-me vés, senhora, Pelo meu, nao me da nada; Mas'por vos que sois culpada Em matar quem vos adora. E que me matais agora, Pois nado matais minha f¢é, Ja victoria nao é. Que victoria levareis Matar um vosso captivo, Pois confesso que nao vivo 166 LIVRARIA CLASSICA. Senio quanto vés quere E posto que me mateis, Sem vos lembrar minha fé, Ja victoria nio 6, A UM CLERIGO SOBRE UMA PIPA DE VINHO QUE SE LHE FOI PELO CHAO, E LAMENTAVA-O O’ESTA MANEIRA. (205.) Ai! ail ail ai! que farei! Ai que dores me cercdrio! Ai que novas ine chegario! Ai de mim, onde me irei! Que farci, triste, mesquinho, Com paixio! Tudo leva mao caminho, Pois que.vai todo meu vinho Pelo chao! 0 vinho! quem te perdéra Primeiro que te comprara! Oh! quem nunca te provara, Ou, provando-te, morréra! Oh! quem nunea fora nado Neste mundo! Pois vejo tio mallograde Um tal bem tio estimado, Tao profundo! GARCIA DE REZENDE. 167 0 meu bem, tao escolhido, Que farei em vossa ausencia! Nao posso ter paciencia Por vos ver assim perdido. Oh! pipa tio mal fundada Nesditosa, De fogo sejas queimada, Por teres tio mal guardada Esta rosa. 0 arcos, porque chuxastes! 0 vimes de maldicio, Porque nao tivestes mao Assim como me ficastes? 0 mio, vilio tanociro lesalmado, Tu tens a culpa primeiro, Pois levaste o meu dinheiro Mal levado. FALLA COM A SUA NEGRA — 0 perra de Manicongo, Tu entornaste este vinho : Uma posta de toucinho Te hei de gastar n’esse lomho. — A mim! nunca, nunca, mim Entornar! Mim andar augua jardim; A mim nunca sar ruim Porque bradar. 168 LIVRARIA CLASSICA, — Se nao fosse por alguem, Perra, eu te certifico Bradar com almexerico Alvaro Lopo tambem. — Vos logo todos chamar, Vos beher, Vés pipo nunca tapar. Vos a mim quero pinguar Mim morrer! — Ora, perra, cal’te ja, Sendo matar-te-hei agora. — Aqui sar juiz no fora A mim logo vai té 1a. Mim tambein fallar mourinho Sacrivao : Mim na medo no toucinho : Guardar na ser mais que vinho Creligiio. — Ora te don ao diabo! Rogo-te ji que te cales, Que hem me abastao meus males Que me vém de cada cabo... Olhai a perra o que diz Que fara! Ira dizer ao juiz O que fiz, e 0 que nao fiz, E crél-a-ha! GARCIA DE REZENDE. 169 E pois ella é tio ruim, Bem sera que me perceba; Dira que 6 minha maneeba Para se vingar de mim. Entado em provas, ndo provas, Gastaret ; Irao dar de mim mas novas, E fardo sobre mim trovas... Que farei? U siso sera calar Para nio buscar desenlpa; Pois a negra nado tem culpa, Para que lh’a quero dar? Eu sio aqui o culpado E outrem nao; Eu siio o damnilicado : E cu sio 0 magoado, Eu o sao. Que negra entrada de Mareo Se todo vai por est’arte! Kas tercas doutra parte ilio-me de dar um camarco. O vés outros que passais Pelas vinhas, Respondei! (assim vivais), Se vistes déres iguaes Co‘as minhas, 170 LIVRARTA CLASSICA. Pois nao tenho aqui parentes, Saltem vos, amici mei, Chorareis come chorei. Chorareis a minha pipa; Chorareis 0 anno caro ; Chorareis 0 desamparo Do meu bem de Caparica : E pois tanta dér me fica, Saltem vos, amici mei, Chorarei como chorei. FALLA COM O VIGARIO 0 gordo padre vigario, Vos que sabeis que dér ¢, Ajudai por vossa [é A chorar este fadario; Se perdéra 0 breviario, Nem a capa que comprei, Nio chordra o que chorei. RESPONDE 0 VIGARIO 0 irmio! muito perdeste, , segundo em mim sento, Nao tivera atrevimento Ne soffrer o que soffreste. § um Lio grande mal este Que, com dé que de ti hei, Para sempre chorarei. GARCIA DE REZENDE. 174 FALLA COM ALVARO LOPES O Alvaro, irmao amigo, Vel-o jaz aqui no chao! Pois perdeste teu quinhao, Vem e choraras comigo. Cerlamente eu te digo Que quando morreu el-rei, Por Deos, tanto nao chor RESPOSTA D'ALVARO LOPES Melhor ine fora perder Nez mil vezes meu officio, Ou un grande beneficio, (Que tanta pena soffrer. Pois nio temos que beber, 0 irmao, onde w'irei? Pois que choras, chorarei. FALLA COM O ALMOXARIFE O almoxarife irmao! Leyantemos esta pipa, FE. veremos se the fica Ainda algum.membro sao. Mas eu tenho tal paixao Io triste, que nao logrei, (Que por sempre chorarei. 72 72 LIVRARIA CLASSICA. RESPONDE O ALMOXARIFE Pois que nao tem alma ja, Para que é a levantada? Mas muito peior sera Que dizem que ficara Esta casa violada. A confraria é damnada! 0 irmio, que te farei? Se chorares, chorarei. FALLA COM O JUIZ DOS ORPHAGS Vos, que tendes jurdicio Naquelles que ndo tém pai, Vinde, vinde aqui, chorai, Que eu tambem orphio sao. KE que vossa condicgao Seja d’agua, como sei, Chorareis, como chorei. RESPOSTA DO JUIZ DOS ORPHAOS isforgai! nao vos mateis! Perto é Vaqui a Agosto, A negra fica comvosco, Com que vos confortareis. Do perdido naio eureis, Nem chameis aqui d'el-rei, E eu vos consol OL. GARCIA DE REZENDE 175 FIM DA LAMENTAGAO DO CLERIGO Todo o genero honrado, Em que virtude consisle, Ajudai chorar o triste, (Que jaz aqui entornado! E pois eu, por meu peceado, Para tanto mal fiquei, Para sempre chorarei. TROVAS A UMA MULA MUITO MAGRA E VELHA QUE VIO ESTAR NO BOMBARRAL, A PORTA DE D. DIOGO, FILHO DO MARQUEZ, E ERA DE D. HENRIQUE, SEU IRMAO, QUE IA EM ROMARIA A NOSSA SENHORA DA NAZARETH; LEVAVA NELLA UM SEU AMO. (206 v.) D’onde sois, senhora mmla, (Jue assi stais desmazelada? Vos no peceado da gula \io deveis de ser culpada. Segundo estais delicada Juraria (Que sereis acostuunada A comer pouca cevada Cada dia! Vos por Vossa gra Iagrena Nao deveis ter dor de baco : Vid LIVRARIA CLASSICA, Ja deveis deixar o pago, Pois vos dao tao ma conteira. Que cu nao sino quem vos queira; Porém sei Quando foi da alfarrobeira, Que andaveis na dianteira Co’os d’el-rei. Lessa vossa guarnicao Bem sei que vos contentais; D’outra parte é razao Pois que tem tantos metaes : Ouro, prata, estanho, e mais Tem verniz : Latao, cobre, nao deixais; Pareceis hi onde estais Uina boiz. Se lordes i Nazaré Alli é vosso fartar : Oh! que gra dogura é Aréa e agua do mar! Se vos Deos bem ajudar Nesta jornada, {Quero-vos prophetisar Que haveis li de ficar Estirada. Vos pareceis wa diabo Sendo quanto sois mais feia : GARCIA DE REZENDE. 175 Por mais que bulais co’o rabe Ilaveis de ter bem ma céa. Tendes feigdo de lampréa Na longura : Da barriga pouco cheia, 0 Jest, que ma estreia! Que tristura! A MULA A bofé, bem yos metteis Sem saber com quem fal E de mais, se vés cuidais Que fallais com quem soci: Vos de mim zombar quere Assaz de mal, Que fui do senhor marquez ; E ja reis vi morrer tres Em Portugal. — U que dizeis 6 assi? Dizei; assim vos Deos farte! — No tempo d’el-rei Duarte Vos affirmo que nasci ; E ja quatro reis servi Portuguezes ; E com quanto mal soltri, Nunca de casa sahi Dos marquezes. 116 LIVRARIA CLASSICA — Pois com quem vivei Que vos tem tio mal tratada? — Traz-ne um homem emprestada De quem seja cedo fora. —Nao me direis onde mora? — Se ousasse... Mas traz uma tal espora, Qwiria la na ma hora, Se fallasse. — No tempo dos caramelos, Que comeis? — Que Deos vos valha! Uma quarta de farelos, Uma joeira de palha. do comeis outra hitalha? — Assi gosedes ! Nao como mais ni migalha. — Dar-vos-ha fome batalha! — Vora vedes. — Ura bem, ¢ no beber Assim vos pac provisio? — Quanto a d’isso fartagae, Nao ha hi al que dizer. Se me dessem de comer D'essa maneira, Bem podia gorda ser, Nao me veria morrer De laseira. * aw GARCIA DE REZENDE. — Tende-los ossos mui altos, E a carne mui sumida, Andais bem fora dos saltos, Sois de quadris bem fornida. — Por hi vereis vés a vida Que eu passo, E por ser mais destruida, Vou com um homem n'esta ida Mui escasso. — Ora bem, esse vosso amo Nao direi§ como se chama? —Eoamo que cu desamo, Que a mim bem pouco ama. Nao hei de ealar sa fama, Que ine esfole! Mas se ayora houvesse lama, Se Ihe cu nao fizesse a cama Na mais molle! 2 1 178 LIVRARTA CLASSICA GARCIA DE REZENDE TROVAS A MORTE DE D. IGNEZ DE CASTRO QUE EL-REI D. AFFONSD 0 QUARTO, OE PORTUGAL, MATOU EM COIMBRA, POR © PRINCIPE D. PEDRO, SEU FILHO, A TER COMO MULHER, E, PELO BEM QUE LHE QUERIA, NAO QUERIA CASAR. ENDEREGADAS AS DAMAS Senhoras, se algum senhor Vos quizer bem, ou servir, Quem tomar tal servidor, Ku Ihe quero descobrir O galardao do amor. Por sua mercé saber 0 que deve de fazer, Veja o que fez esta dama (Que de si vos dara fama, Se estas trovas quereis ler. FALLA D. IGNEZ (Qual sera 0 coragio Taio ert e sem piedade, GARCIA DE REZENDE. 179 Que Ihe nao cause paixio Uma tio gra crueldade, E morte tio sem razio! Triste de mim, innocente, ‘Que por ter muito fervente Lealdade, {é, amor Ao principe, meu senhor, Me matirao cruamente. A minha desaventura, Nao contente de acabar-me, Por ine dar maior tristura, Me foi por em tauta altura, Para d’alto derribar-me. Que se me matara alguem, Antes de ter tanto bem, Em taes chammas nao ardéra : Pai, filhos nao conhecéra, Nem me chorara ninguem. Eu era moca, menina, Por nome D. Ignez De Castro, e de tal doutrma E virtudes, que era dina De meu mal ser ao revez. Vivia sem me lembrar, Que paixado podia dar, Nem dal-a ninguem a mim. Foi-me o principe olhar, Por seu nojo e minha fin. 180 LIVRARIA CLASSICA. Comegou-me a desejar; Trabalhou por me servir ; Fortuna foi ordenar Dous coragdes conformar A una vontade vir. Conheceu-me! conheci-o! Quiz-me bem! ¢ eu a ell Perdeu-me! tambem perdi-o! Nunca té morte foi frio O bem que, triste, puz n’elle. Dei-lhe minha liberdade; Nio senti perda de fama; Puz n’elle minha verdade ; Quiz fazer sua vontade, Sendo mui formosa dama. Por me estas obras pagar, Nunca jamais quiz casar; Pelo qual acousclhado Foi el-rei, que era forgado, Pelo seu de me matar. Estava mui acatada ; Como princeza servida ; Em meus pacos mui honrada ; De tudo mui abastada; De meu senhor mui querida. Estando mui devagar, Bem fora de tal cuidar, Em Coimbra d’asecégo, GARCIA DE REZENDE. 181 Pelos campos do Mondego Cavalleiros vi somar. Como as cousas que hao de ser Logo dio no coracao, Comecei entristecer FE comigo s6 dizer : Estes homens d’onde irao! E tanto que perguutei, Soube logo que era el-rei. Quando o vi tio apressado, Meu coracao trespassado Foi, que nunca mais fallei. E quando vi que descia, Sali 4 porta da sala, Divinhando 0 que queria, Com gra choro e cortezia Lhe fiz uma triste falla. Meus filhos puz de redor le mim, com gra humildade, Mui cortada de temor Lhe disse : « Havei, senhor, Ivesta triste piedade! « Nao possa mais a paixio (Que o que deveis fazer! Mettei n’isso bem a mao, Que é de fraco coracao Sem porque matar mulher, 182 LEIVRARIA CLASSICA Quanto mais a mim, que dao Culpa, nao sendo razio, Por ser mai dos innocentes, Que ante vés estio presentes, Os quaes vossos netos s; 10. « E tém tio pouca idade, Que se nao forem criados De mim,s6-com saudade E sua gra orphandade, Morrerad desamparados. Olhai bem quanta crueza Fara n‘isto vossa alteza; E tambem, senhior, olhai, Pois do principe sois pai, Nio lhe deis tanta tristeza. « Lembre-vos o grande amor, Que me vosso filho tem, E que sentira gra dor Morrer-lhe tal servidor, Por Ihe querer grande hem ; Que se algum erro fizera Fora bem que padecéra, E que estes filhos ficdrao Orphiaos tristes, e buscirao Quem d’elles paixiio houvera. « Mas pois en nunca errei, E sempre mereci mais, GARCIA DE REZENDE. 183 Deveis, poderoso rei, Nao quebrantar vossa lei, Que, se morro, quebrantais. 2 Usai mais de piedade Que de rigor nem vontade! Navei dé, senlior, de mim, Nao me deis tao triste fim, Pois que nunca fiz maldade. » El-rei, vendo como estava, Houve de mim compaixio; E vio, 0 que nao olhava, Que eu a elle nao errava, Nem fizera traicao. E, vendo quao de verdade ve amor e lealdade Ao principe, cuja sio, Pode mais a piedade Que a determinagio. Que se me elle defendéra, Que a seu filho nao amasse, E lhe eu nao obedecéra, Entao com razdo pudera Dar-me a morte, que ordenassc. Mas, vendo que nenhuina hora Dés que nasei até agora, Nanea u'isso me fallou, Quando se d'isto lembrou Foi-se pela porta fora, 184 LEVRARIA CLASSICA, Com seu rosto lagrimoso, Co’o proposito mudado, Muito triste, mui cuidoso, Como rei mui piedozo, Mui christio, e esforcado. Um d’aquelles que trazia Comsigo na companhia, Cavalleiro desalmado, Detras d'elle, mui irado, Estas palavras dizia : « Senhor, vossa piedade F digna de reprender, Pois que, sem necessidade, Mudarao vossa vontade Lagrimas de uma mulher. E quereis que abarregado, Com filhos, como casado, Esté, senhor, vosso filho? De vés mais me maravilho, (Que d’elle que 6 namorado, « Sea logo niéo matais, Nao sereis nunca temido, Nem farao 0 que mandais, Pois tio cedo vos mudais Do conselho que era havido. Olhai quao justa querella Tendes pois por amor (ella! Vosso filho quer estar GARCIA DE REZENDE 185, Sem easar, e nos quer dar Muita guerra com Castella. « Com sua morte escusareis Muitas mortes, muitos damnos; Vos, senhor, descansareis, E a vés e a nds darcis Paz para duzentos annos. () principe casara, Filhos de bengio tera, Sera fora de peceado ; Que agora seja anojado Amanha lhe esquecera. » E ouvindo seu dizer El-rei ficou mui turvado, Por se em taes extremos ver, K que havia de fazer On um, on outro... forcado. Desejava dar-me vida Por lhe nio ter merecida A morte nem nenhum mal; Sentia pena mortal Por ter feito tal partida E vendo que se lhe dava A elle toda esta culpa, £, que tanto o apertava, Disse Aquelle que bradava : « Minha tencdo me desculpa : 186 LIVRARIA CLASSICA. Se o vés quereis fazer, Fazei-o sem m‘o dizer, Que eu n’isso nao mando nada. Nem vejo essa coitada Porque deva de morrer. » Dons cavalleiros irosos, Que taes palavras lhe ouvi Mui ertis e niio piedosos, Perversos, desamorosos, Contra mim rijo se virao! Com as espadas na mao Me atravessio 0 coracaéo! A confissio me tolhérao! Este é 0 galardio Que meus amores me derao. A RUY DE FIGUEIREDO ESTANDO OETERMINAOO PARA SE METTER FRAOE. (224) Pois troeais a liberdade Por viver sempre sujeito, Sem haverdes saudade Dos amigos de verdade Vossos sem nenhum respcito, Se estais, senhor, de partida Para entrar em nova vida, Tomai isto que vos digo GARCIA DE REZENDE. 187 Como de um vosso amigo Grande e fora de medida. Se determinais vestir Habito, com seu cordio, Nao haveis nunca de rir No mosteiro, nem bolir, Que é signal de devio. Diurnal e breviario, Contas pretas e rosario, Trazei de cote na mio, Sem rezardes oracio A santo do calendario. Shi houver disciplinar T com grande devocio, E depois da casa estar As escuras, acoular Rijo, mas seja no chao, A mindo suspirar, Que todos possao cuidar Que é de muito marteirado ; Assim estareis poupado, Sem vos da regra tirar. Haveis sempre de mostrar Que andais mui mal disposto, Por do coro escapar, Que é gra trabalho rezar A quem isso nao tem gosto; 488 LIVRARIA CLASSICA, E a mesa jejuar, Que facais todos pasmar ; Mas tereis cm vossa cella Mantimento sempre n’ella, Com que possais jarrear. Tereis, de sob o colchao, (ribao e calgas de malha, Casco, Invas, burquelao, Punhal e espadarrao, Chuca e uma navalha, Fseada de corda hoa, Que suba e desga a pessoa, Segura de nao quebrar: | Cabelleira nao errar Para cobrir a coréa. Como sea Jua puzer Sahireis d’esse fadario, Vestide como faz inister, Porque entio haveis de ler 7 Pelo vosso calendario. Por segurar o caminho Séde amigo do meirmho, F do aleaide tambem, Que nao queirio por ninguem Tomar-vos no vosso ninho. Pobreza ¢ castidade, E tambem obediencia GARCIA DE REZENDE. 189 Dareis 4 communidade; Mas nao tercis caridade, Verdade nem paciencia. Trabalhai muito por ir De casa em casa pedir, Co’os ollios postos por terra, Porque assim se faz a guerra Melhor que com bom servir. Para miclhor vos salvar, Séde mui mexeriqueiro ; De uns e de outros murmurar, E o guardiao louvar En tudo mui por inteiro, Fallai manso e devagar, E se houverdes de rezar, Seja alto e de ma mente; E fazei-vos mui sciente, Por mulheres confessar. Se vos miandaren cavar, Aguar arvores ou varrer, Ser forneiro ou coziuhar, Ou os habitos lavar, Comegai logo gemer, E dizci: « Padre, eu sio De tao fraca compleicao, Que nio digo trabalhar, Mas se wi pouco me abaixar, Cahirei morto no chao. » 190 LIVRARIA CLASSICA Isto podercis fazer ; Mas o bom que a vida tem Nao o haveis vés de soffrer : + Por isso antes de ser Frade, conselhai-vos bem ; Porque quanto bem merece, Pela vida que padece, O bom frade virtuoso, Tanto o mao religioso Torna alras ¢ desmerece. QUARENTA E OITO TROVAS, POR MANDADO D'EL-RE! NOSSO SENHOR PARA UM JOGO DE CARTAS SE JOGAR, NO SERAO, O'ESTA MANEIRA: Em cada carta, sua trova escripta, e sio vine c quatro de damas e vinte e quatro de homens; doze de louvor e doze de deslouvor ; ¢, baralh todas, hao de tirar uma carta, em nome de Fuad ou Fuao, ¢ entio allo; ¢ quem acertar 0 Jouvor, iré hem, e quem toma a de mal, rirad delle, Comegao logo os louvores das damas, os quacs fez todos 4 Sra. D. Joanua de Mendonga, (Ultima.) : DE LOUVOR AS DAMAS Nao sei que possa dizer Por vos, que seja louvor! Que se tio ousado for, Perderei o entender, Quando quero comegar cousa que nao tem cabo : Antes me quero calar Que cuidarem que vos gabo. GARCIA DE REZENDE. 191 Formosura tio sobeja Vos deu Deos, ca entre nos, Que nao sei quem vos bem veja, (Que se nao perca por vos. (ne nos deis sempre cuidado, Que nos mateis cada hora, Antes de vés desamado (Que amado de outra senhora. Pois sois sem comparacio De todas quantas nascérao, Os que por vas se perdério Bem se perdem com razio. E pois nunca vimos tal, Nem creio que vio ninguem Que fagais a todos mal... Eu digo que fazeis bem. Tendes tanta gentileza, Tanto ar na falla e rir, Que quem vos, senhora, vir, Nunca sentira tristeza. Fostes no mundo nascida Com gragas tio escolhidas, Que sé por vos ter servida Daria duas mil vidas. Vossas grandes perfeicdes, Manhas, e desenvolturas, 192 LIVRARIA CLASSICA. Tirdo todas as tristuras, Que achio nos coracdes. Vossas penas sao praz Vossos cuidados victo Vosso mal ¢ bemfazer, E vosso esquecer memoria. Quem: vos nao vio nado tem vida; Quem vos servio, senhora, Pode contar por perdida Toda sa vida tégora ; E quem vir tal formosura, Seja certo que ha de ter, Emquanto viver, tristura, Juntos pezar e prazer. Do que vés tendes de mais Podeis dar a todas parte, E cm vos ficar que farte, Sem fallecer o que dais. Que todas queirio tomar Manhas, graga e parecer De vés, nio pode minguar Quanto n’ellas mais crescer. Dama de tal formosura, Dama de tal inerever, O que vive sem vos ver Nao teve hoa ventura. ut. GARCIA DE REZENDE. 195, Para que é vida sem vos? Nem se pode chamar vida; E se nao foreis nascida, Porque nasceramos nds? Quem vio nunca tal senhora? Quem vio nunca tal mulher, Que pode dar, se quizer, . A morte e vida n’uma hora! Certo nao dira ninguem, Que se vio tal creatura, Nem que tal desenvoltura Donzella teve, nem tem. Sois tio linda, tao airosa, Que muitos matais por faina ; Ante vés nenhuma dama Nao se chamara formosa, Porque quantas damas sao Juntas sé numa figura,” Nio tera comparagi io Ante vossa formosura. Se no mundo se perdesse Quanto se péde cuidar, Tudo vés pudereis dar, Sem que nada fallecesse ; Porque o que em vés sobeja E tanto, que abastaria 194% LIVRARIA CLASSICA. A mil mundos, e teria Cada wma o que deseja. Em saher e disericaio, Em virtudes e bondade, E em toda perfeigao, Tendes primor na verdade. Sois tambem mui picdosa, Amiga ‘de todo o bem, Sobretudo a mais formosa Do que ouvio nem vio ninguem. DE DESLOUVOR DAS DAMAS Vés no sois muito manhosa, Nem matais niuguem de amores : Sois mais feia que formosa, Tendes poucos servidores ; E 0 que tio enganado For, que Ihe paregais bem, Hla mister desenganado De vos mesma, ou d’alguem. Na dansa sois mui atada, No baile pouco geitosa, Em passear desairosa, Em fallar desengracada. Sois um pouco j4 taluda De tempo para casar, E nao sois muito aguda Kin escrever nem fallar. GARCIA DE REZENDE 193 Pois que por galantaria Nunca haveis de ser condessa, U meu conselho seria Trabalhar por abbadessa. Servireis Nosso Senhor, Tereis certo de comer ; Se quizerdes servidor Nao ha la de fallecer. Pareceis mal ém janella, Em serao muito peior; Sois mais fria e semsabor Do que nunca vi donzella. Vos fareis bem de ensinar As damas mogas a ler, Nao a vestir nem fallar, Pois 0 nao sabeis fazer. Vés nao sois para senhora, Nem menos para terceira ; Se me crerdes desde agora Pareceis ja mal, solteira. E pois manhas para dama Nao tendes, nem parecer, Casai-vos, e pode ser Que ainda sereis ama. Se de alguem, por amizade, Vos fosseis desenganada, 196 LIVRARIA CLASSICA. E vos fallasse a verdade, Estaricis na pousada. Para vés nao é serao, Dansa nem baile mourisco : Em feia, pondes 0 risco Mais alta que quantas sao. Em fallar sois enxabida, E em rir desengragada ; Sois mui pouco entremettida, Em responder mui pejada. Sois tambem desensoada Para dansar turdiao; Quiga se foreis vesada, Bailareis baile vilao. Nao vos acho nenhum geito Para nos matar d’amores : O corpo nao é bem feito, As manhas so semsabores. Nao sois das mais estimadas, Nem menos das mais sabidas, Que muitas sao as chamadas, E poucas as escolhidas! Nos, senhora, perdoai Se mal digo, se mal fago Em dizer que vosso pai Fez mal trazer-vos ao paco : GARCIA DE REZENDE. 197 Antes fora bom conselho Metter-vos no Salvador, Ou casar-vos co’um doutor, Ainda que fora velho. Fallais com pedras na mao Como que foreis formosa ! E sois mui presumptuosa, Sobre ter ma condicao ! Nao sois muito bem disposta, Nem pareceis muito bem: Se comvosco falla alguem A todos dais ma resposta. Senhora, de meu conselhio, Por viverdes descansada, Guardai-vos de ter espello, Nem vos entre na pousada ; Que se virdes 0 que vemos Direis que temos razdo De rirmos, e de dizermos Que tendes mui ma feigao. Sois muito ma de servir, E sois sempre rayinhosa ; Nao quereis ver nem ouvir ; ‘ Tambem tocais de raivosa. Sois soberba, sois infinta; Sois muito forte mulher: LIVRARIA CLASSICA, Se eu tomar papel e tinta, Muito mais hei de escrever. LOUVOR DOS HOMENS Sao tav gentil cortezio, Que se as cas me nio vierao, As damas todas souberiio Que dou mate a quantos sao. Nao curo de vaidade, Pico-me de gracioso ; Tambem de fallar verdade As vezes sio comichoso. Sido mui negociador ; Fallo sempre 4 puridade; Tenho muita gravidade ; Logo parecgo senhor. Sao sisudo e avisado, E sao gra visitador I’ofliciaes, ou privado Tambem de qualquer doutor. Sao mui brando e temperado ; E por meus amigos fago : ~ Ando mui acompanhado Da pousada até ao paco. A todos respondo hem; Sao grande motejador ; F esta-me bem hedem, Nao sendo cavalgador. GARCIA DE REZENDE. 199 Entre todos cortezaos : Me hao de enxergar, e ouvir : Sei bem as damas servir ; Bulo sempre com as miios. Sao subtil, brando, e delgado, Mais universal que todos ; E sobre isso tao honrado Que dou tres figas aos godos. Sao mui solto no fallar; Fallo tudo quanto quero; me da nada de dar Mis respostas, e ser fero. Son na dansa mui airoso, E bom imusico tantbem ; E tambem sio gracioso Mas ¢ 4 custa d’alguem. Que me vés vejais ealar, Eu trago muito bom jogo; Ando tao perto do fogo, Que me hei n’elle de queimar; E por ser muito discreto Me fazem tantos favores : Vai-me sempre bem d’amores, Porque me tém por secrelo. Eu sao muito entremettido Com as damas e senhores; 200 LIVRARIA CLASSICA. E com todos mui valido. E ando sempre d’amores ; Trago as damas em revolta; Nao me sabem entender; E a que é mais desenvolta, A essa dou mais que fazer. Eu sio mui gentil galante, De idade para o conselho, E que seja um pouco velho Sio nos amores constante ; E sao mui bom cacader De toda sorte de caca: Sei bem rir a uma graca; Sobre isso bom dansador. Sao bem disposto, e formoso; E que seja um pouco frio, Sao em tudo mui manhoso, E em mim muito confio. Sao das damas servidor; Em muitas cousas sabido : Danso bem, sao trovador, E mais sio muito provido. Eu prezo-me d’escrever, E dar conselhos n’uns motos : Sei bem cantar, e tanger : Alguns sio em mim devoios; GARCIA DE REZENDE 201 E sio prezado das damas, Estimado dos senhores ; E com todos meus favores Nao Ihes tiro suas famas. En sao muito d'estimar, E assim siio estimado, Porque sei bem apodar, & tambem ser apodado. Ku sio muito gracioso, Despejado no terreiro; Quero-me fazer pomposo, Nunca fallo em escudeiro. Eu sei hem fallar trocado, E dar d'olho aos de redor: Presumo de andar dobrado, Fallo cousas de primor : Sao d’est’arte zombador, E nao me acode ninguem ; Sao longe de semsabor, Folgo de parecer hem. DE DESLOUVOR Vos nio no tomais por vés; Mas vés sois tao desairoso, Que fareis qualquer de nés De semsabor gracioso. De mula, e de cavallo No terreiro, e no serao, 202 LIVRARIA CLASSICA, Sois tio fora de feicdo, Que eu ja nado posso calal-o. Vos me entendeis bem, senhor, Quando vestis a Inbeta, Que parcceis provisor, Cavalgador da gineta. Sois um pouco desasado, E nao muito desenvolto: Em manhas nio muito solto: Em dar que rir avesado. s dias ja passirao, Logo 0 pareceis passado : Sois das damas engeitado, E nunca vos engeitarao. Sois mais pai que servidor, Sois mais avé que galante, Por isso dés hoje avante Deixai as damas, senhor. Vos andais arrepiado : Nem sabemos se é de frio; E sois ja tao engelhado Que as damas fazeis fastio. Se o causa Almeirim, Ou estes frios d’agora, Por mercé, crede-me a mim, Nao enfadcis a senhora. GARCIA DE REZENDE. 205 Que mostreis ser confiado Nos outros sabemos bem : O que ha de ter, ou que tem O galante namorado. Sois um pouco repinchado; Bom para ver em gibao, E par’ceis fradegao, Se estais desataviado. Galante brafamador, Tendes feicio de varrao : Tao longe de semsabor, Como perto de malhao. Quem isto tomar por si, Ha de ser homem de paco; E ja eu vejo d’aqui Alguem posto em embaraco. Porque vindes ao serio, Porque vos mettcis na dansa, Pois que para cortezio Andais mui longe de Franca? Sois mui frio e semsabor, E sabeis-vos mal vestir : Entdo quereis presumir De galante e dansador! Vés sois longo e destripado, Bem para folgar de ver : 204 LIVRARIA CLASSICA Pareceis grou espantado, Bode morto por comer. Se vos vier ter 4 mao Esta carta por acerto, Quer esteis longe, quer perto, Todos vos conhecerad. Galante sem se vestir, Namorado sem ter dama, Desavir, tornar a avir, Elle se ama e desama! Sem ninguem luita comsigo : Elle cahe, elle se alca! Quem olhar isto que digo Vera de que pé se calga. Que vos eu parega assi Nao vou la, nem faco mingua; Que nao solte muito a lingua, Outros peiores ha aqui. Eu nado sei porque No paco muito valido, Pois que sou curto é corrido, E tenho gra presumpgio. sio is muito enfadonho, E fallais sempre de E amostrais-vos medonho, Por nos tolherdes 0 riso. GARCIA DE REZENDE. 205 Mando-vos eu metter medo; Mando-vos arenguiar, Que haveis de haver, tarde ou cedo, Que cousa é desgravisar. Vos andais amarlotado, (Que sejais muito sabido ; E que andeis ataviado, Andais sempre entanguido! Maveis mister enxugado Ao sol, e muito quente, Ou muito bem apodado Por dardes prazer a gente. FIM DO CANCIONEIKO. BREVE MEMORIAL DOS PECCADOS' ANTES DE ENTRAR NOS MANDAMENTOS, VEREI ESTAS SETE COUSAS, QUE E MUI NECESSARIO O SACERDOTE SABER: Primeiramente, quein sio eo estado em que vivo. Se n’elle uso, como devo e é razio; principalmente os que tém cura d’almas; 0 cuidado e diligencia que tém em ensinar ec corrigir seus subditos, e olhar pelas cousas da igreja, e como despendem os bens della. E por que maneira houverdo os beneticios que tem. E os que tém mando jurdicgio, se olliiio pelo povo e proveito commum, como devem de fazer; ou se the dio oppressdes e os apremao muito, e se servem d’elles, ou se lhe tomao o seu. 4 Sobre um precioso exemplar de pergaminho, que finda assim : « Acabou-se 0 confessionario em linguagem portuzueza; feito por Garcia de Rezende, ¢ imprimido por mandado do muito alto ¢ muito poderoso rei D. Manoel, nosso senhor. Em a muito nobre cidade de Lisboa, por Germao Gaillardo, imprimidor, a 25 dias de Fevereiro de 1521, » As folhas no sio numeradas. 208 LIVRARIA CLASSICS. Eos da justiga, se a fazem verdadeiramente como devem, ou se a deixio de fazer, por amor, ou odio, ou temor, ou cobica, ou piedade; ou se com ira e rigor dao mais asperas sentencas do que o caso o requer, € sea fazem por igual, assim aos grandes como aos pe- quenos. E assim officiaes do rei, que tém mando em sua casa, ou fazenda, e quaesquer outros officiaes do reine, sc’ fazem o que s&o obrigados a seus officios. E os fidalgos, cavalleiros ¢ commendadores, como cumprem ¢ guardao o que devem, € suas regras e consti- tuicdes d'ellas : e tambem os religiosos, ecclesiasticos, casados, viuyos, solleiros, e officiaes d'officios mecani- cos, cada um veja o estado em que vive; se nelle faz 0 que deve e é obrigado, e sendo diga sua culpa em todas aquellas cousas em que fez 0 contrario. Segunda, se estou ou incorri em alguma excommu- nhao, e por que causa, e quanto Lempy ha? Terceira, se f verdadeiramente a conlissio pa: com estas quinze condigdes. que a boa confissio ha de ter; scilicet : Ha de ser simples, humildosa, pura, fiel, verdadeira, miuda, viva, discreta, por vontade, inteiva, secreta, ver- gonhosa, forte, accusante, chorosa. E assim, se cuidei bem em meus peccados, para me lembrarem todos, e me nado esquecer uenhum : ou se fiz a confissio fingida, e deixei, por vergonha ou outra cousa, algum peceado por dizer. E tambem se busquei bom confessor, que me soubesse bem escoldrinhar minha consciencia; ou se fui buscar GARCIA DE REZENDE, 209 alyuut inorante, que nao soubesse ou nio Livesse poder para me absolver, e me confessei a elle; porque en: tacs casos, nao fico confessado, e sao obrigado a tornar a confessar os peccados de novo. ORAGAO PARA DIZER DEPOIS DA CONFISSAO ACABADA Sao, Senhor, maravilhado de minha vida, porque, sendo por mim examinada, acho que toda é maldade ¢ peceados, e sem nenhum fructo. E se algum parece wella, é fingido ou nao acabado, ou corrupto, de ma- neira que sdo certo que os meus peccados merecem damnagiv: ¢ que a minha pendenga nao a hasta a sa- tisfazer. E tambem que a tua misericordia sobeja por toda a offensa. Lembre-te, Senhor, que me creaste e que padeceste por mim, ¢ que perdoaste a David, ea Pedro, ¢ Paulo, ¢ Mattheus, e a Magdalena, e ao ladrao na cruz. Pela tua piedade, perdéa a mim, peecador; porque © meu merecimento 6 nenhuw, se néo for a tua pa e¢ grande misericordia, Senhor Deos! Amen! FIM DO MEMORIAL DOS PEUCADOS. aL 14 MISCELLANEA’ Vimos cadeéas, collares, Ricos tecidos, espadas, Cintos, e cintas lavradas, Punhaes, borlas, alamares Muitas cousas esmaltada Arreios quanto lustravio, Duravao muito, e honravao ; S86 com vestidos frisados, Com taes pegas arraiados Us galantes muito andavio. Agora vemos capinhas, Muito curtos pellotinhos, 1 Miscellanea de (Garcia de Rezende, e variedade de historias, cos- tumes, casos, € cousas que em seu tempo acontecério. — Eviigdo de Lis- boa, officina de Manoel da Silva, 1752. Anda annexa 4 Chronica de D. Joao 1. © que aqui extractamos vem de fol. 115 até o fim. 22 LIVRARIA CLASSICA, Golpinhos, e sapatinhos, Fundas pequenas, mullinhas, Gibdeszinhos, barretinhos : Estreitas eabecadinhas, Pequenas nominaszinhas, Estreitinhas guarnicdes, FE muito mas invencdes, Pois que tudo sio cousinhas. E vimos en nossos dias A lettra de forma achada, Com que a cada passada Crescein tantas livrarias, Ka sciencia é augmentada. Tem a Allemauhia louvor, Por della ser o autor D'aquesta cousa tio dina! Outros affirmio na China () primeiro inventador. Outro mundo nove vines Por nossa gente se achar, E 0 nosso navegar Tao grande, que descobrimos Cinco mil leguas por mar : E vimos iuinas reaes IYouro, ¢ de outros metaes No reino se descobrir! Mais que nunca vi saber Engenho de officiaes. GARCIA DE REZENDE 215 Vimos rir, vimos folgar, Vimos cousas de prazer, * Vimos zomlbar, apodar, Motejar, vimos trovar Trovas, que erio para ler : Vimos homens estimados. Por manhas avantajados Vimos damas mui formosas, Mui discretas e manhosas, E galantes afamados. 7 2 E depois vimos cuidados, Paixdes, descontentamentos, Muitos malenconisados, Muitos sem causa ageravados, Sobejos requerimentos : Vunos desagradecidos, Vimos outros esquecidos, Que devido de lembrar, Vimos muito pouco dar Pelos desfavorecidos. Vimos tambem ordenar A misericordia santa ; Cousa tanto de louvar, Que nao sei quem nio se espanta De mais cedo nao se achar : Soccorre a encarcerados, E conforta os justigados, A pobres da de comer, LPIVRARTA CLASSICA Muitos ajuda a soster, Os mortos sio suterrados. Musica vimos chegar A mais alta perfeicao, Sarzedo, Fonte cantar, Francisquilho assi juntar, Tanger, cantar, sem razio : Arriaga, que tanger! 0 eégo que gra saber Nos orgiios! e o Vaena! Badajoz! outros que a penna Neixa agora d’escrever! Pintores, luminadores Agora no cue estio, Ourivises, esculptores Sio mais subtis, e melhores, Que quantos passados sio : Vimos o gra Michael, Alberto, ¢ Raphael, E em Portugal ha taes, grandes, ¢ naturaes, Que vém quasi ao olivel. FE vimos singularmente Fazer representacies D’estylo mui eloquente, De inui novas invencées, E feitas por Gil Vieente GARCIA DE REZENDE 2s Elle foi o que inventou Isto ca, € 0 usou Com mais graga, e mais doutrina, Posto que Joao del Enzina O pastoril comegou. Lisboa vimos crescer Em povos, ¢ em grandeza, E muito se nobrecer Em edificios, riqueza, Em armas, e em poder : Porto, e trato nao ha tal, A terra nao tem igual Nas frutas, nos mantimentos ; Governo, bons regimentos, Lhe fallece, e nao al. Os mais dos governadores, Que a India foro mandados, Vi mortos, ou accusados ; Cavalleiros, sabedores Nio vi d'estas escapados: Os mais sao 1a suterrados, E os vindos demandados, Sequestradas as fazendas, Uns presos, a outros contendas, E libellos processados. = Pie Vimos muito espalhar Portuguezes no viver, 216 LIVRARIA CLASSICA. . Brasil, ilhas povoar, K as Indias ir morar, Natureza lhe esquecer : Vemos no reino metter Tantos captivos, crescer, E irem-se os naturaes, Que se assim for, serio mais Elles que nds, a men ver. E yimos communicar El-rei com o preste Joao, Embaixadas se mandar, Cousa que u'ella fallar Parecia admiracao : Vimos ca vir elephantes, Outras Lestas semelhantes Trazer da India por mar. Por mar as vimos mandar A Roma mui triumphantes. E vimos monstros na terra, E no céo grandes signaes, Cousas sobrenaturaes, Grandes prodigios de guerra, Fomes, pestes, cousas taes Dizem que em Chypre foi visto Mui grande numero d'isto, Roma, Milio, outras partes : Vins nigromantes aries, Que remedio Anti-Christo. GARCIA DE REZENDE, MT Vimos grandes sabedores Mui pouco tempo viver, Sem thes valer seu saber. Mirandula seus primores Nao acabou de escrever : E alguns reliziosos Em doutrina copiosos Vimos, e de autoridade; Mas solapou a vaidade Edificios tio pomposos. Para que se algum cavide Ne vangloria, se a tem, Lembre-lhe que vimos bem A frei Jodo d’Athayde Mais humilde que ninguem : (Que viveu tio santamente, Que era julgado da gente, Sendo cortezao, por santo : Fez-se frade, foi-o tanto, (ue fez milagre evidente, Deixou conde d'Atouguia, K nao quiz ser regedor; Deisou rendas, fidalguia, Honras, privanea, valia, Por servir Nosso Senhor : E quem bem quizer olhar, E muito pouco deixar Por Deos, quanto ca se aleanca, 8 LIVRARIA CLASSICA, Pois a bemaventuranca Com isso pode aleangar. E£ vimos em a christandade Mover grandissimas guerras, Muito grande mortandade, Destruidas muitas terras Com mui grande crueldade : E tal batalha passou, Que segundo se alfirmou, Quarenta mil perecérao; Os homens alli morrérao, E 0 odio vivo ficou. Vimos os bons descahidos, E os maos mui levantados, Virtuosos desvalidos, Os sem virtudes cabidos Por meios falsiticados : A pradencia eseondida, A vergonha subinettida, O mentir mui desfacado, () saber desestimado, A falsidade crescida. A cobiga mui lembrada, Nobreza bem esquecida, Manhas nao valerem nada, Devogao desbaratada, Caridade destruida : GARCIA DE REZENDE. 29 Os sisudos mal julgados, Sandéos desenvergonhados Yaler com seus artifi 3 Estrangeiros com oflicios, E senhores enganados. Vimos honrar lisongeiros, E folgar com murmurar, E caber mexeriqueiros, Os mentirosos inedrar, Tesmedrar os verdadeiros : Vimos tambem vilania Preceder a fidalguia, A raziio, e a vontade, A franqueza, e liberdade, Sujeitas da tyrannia. Vimos miogos governar, E velhos desgovernados, e E vimos muitos mandar, Que deviaio ser mandados Vinnos os hens eslorvados, Os males accrescentados, Vimos clerigos viverem Com mulher, e os filhos serem Dos heneficios herdados. ein arnias fallar, Outras simonias calo, : Grandes trocas, e partidos, 220 LIVRARIA CLASSICA. E beneficios vendidos A taes, que de sé fallal-o Eseandalisa os ouvidos : Mosteiros mui hourados De mitra, e bago ordenados Para ter abbades bentos ; Vimos livres, € isentos, Dados a homens casados. Vimos ricos adquirir Riquezas mal ajuntadas Com mal comer, mal vestir, Sem pagar, restituir, KE com vidas mui cansadas : Trabalhao por ajuntar 0 que ha ea de fiear Por ventura a maos herdeiros, E thesouros verdadeiros Nao querem enthesourar. Vimos esterilidades, Pestes, e ares nie saos, Usuras, e crueldades Vinos comprar novidades, E revendél-as ehristaos : Ha ahi de Deos pouca lembranea, Pouca fé, umita esperanea, EF nma va presmncio, GARCIA DE REZENDE,. 221 Bons costumes mortos sao, dJustiga posta em balanga. B vimos miios pagadores Dever, sein querer pagar A quem sao devedores ; Nem comer, vestir, calear, Sento de alheios senhores : E os mais endividados Folgao, dormem descansados, i vivem sem ter dever Com pagar, uem con morrer, Nein satisfazer criados. ‘adores KE vimos ja | Pagar seus dizimos bem, Pagar bem a scus senhores ; ar-lhes Deos annos melhores: Dos que Ihes agora vém : lrigo, cevada, centeio, Furtio quasi de permeio, I deitio terra no pio: Sido tio mavs os que inios sio, Que de Deos nao tém receio. Vemos em ladrdes fallar; Se os ha, nao sao achados, Ou nao os queren catar; Vimos ja officios dar : A homens nao bem julgados 222 LIVRARIA CLASSICA. Poucas vezes vi huscarem flomens bons para Ih’os darein: Vimos com muitos ofticios {lomens de erros e vicios, Vimos as partes chamarem. Um sé mao official, Que ha em uma cidade, Destrue a commiunidade ; Véde bem, se fario mal Muitos d’esta qualidade! Deos ¢ el-rei nio sao servidos, Os povos sio destruidos, A policia damnada : A republica roubada, E os poves opprimidos. Vi grandes perdas no mar, Mas novidades na terra, Muitas mudancas no ar, Nos veraos, no inverr: Vemos ja tambem que erra : Pao, carnes, frutas, e vinhos, E os pescados marinhos, Azeites, e todo o al, Se nos vai de Portugal, E nao sei por que caminhos. imos os mui comedidos do lembrarem se nascérav, GARCIA DE REZENDE. 225, E os mui entremettidos Vimos em cousas mettidos, Que elles nunca merecério : Vimos muito mais valer, Mais medrar, mais ricos ser Os mui importinadores, Que os grandes servidores, Que acertio vergonha ter. Vemos poucas amizades, Se as ha, sido com respeitos ; Vemos odios, imizades : Vemos parcialidades Secretas por seus proveitos : Officiaes ¢ privados Vemos ser mui aguardados, Mil amigos na honanga; Se lhes fallece a privanca, Logo sio desamparados. Vimus os escrupulosos Poucas vezes acertar, E os muito rigorosos Serem pouco piedosos, E mui méos de conversar : Vimos bebados, gulosos, Talues e luxuriosos, Nao olhar mais que 0 presente, Acabarem pobremente Entrevadus e gotosos. 224 LIVRARIA CLASSICA. Vimos ingratos negar Beneficios recehidos, Cousa para castigar, E cousa para chorar Nao serem os taes punidos : Quando Roma prosperava, Por gr: Em juizo ingratidio, E como gra traigdo Se punia e castigava. crime se accusava Vimos os mui contiados Contiarem pouco n’elles, E vimos descontiados Brigosos, apassionados, Enfadonhos os mais elles: Vimos os peccos fallar Féra de tempo e lugar, Os sisudos e sabidos Nao fallar, mui comedidos, Cheios de ouvir e calar. Vimos muitos ociosos, Sem querer nada fazer, Deixar o tempo perder, E dos bous e virtuosos Mio Ihes minguar que dizer : Pelas pragas, pelas ruas, Sem verem as vidas suas, Andao vagamundeando, m GARCIA DE REZENDE, w y o V tempo mui mal gastando, E as aos e linguas cruas. Vimos os inui suspeitosos Viver sempre com paixio; E vimos os inyejosos Soturnos, presumptupsos, De perversa e ma nacilo : Inveja vein de torpeza... Pois que vive com tristeza, Por ver aos outros bein, E nenhum descanso tem, Tem pezar, dér e vileza. Glosadores, maldizentes, Desfazedores de quem Os faz viver descontentes; Com amigos, nem parentes 0 tém lei, nem com ninguem : Vi fracos de coracio, Asperos, sem criacdo, Trabalhar por ter imigos, E deixar perder amigos Por sua ia condigao. Vimos os muito ciosos Nao viver, nem descansar, Pensativos e cuidosos, Orgulhosos, comichosos, Pelo vento e ar olhiar : 15 226 LIVRARIA CLASSICA. Vimios outros descuidados, Folgazdes, desenfadados, Comecos nio atalhar, Depois virem acabar Eni deshonrados cuidados. Em medos e adversidades Vernos propositos ter De emendar e corriger As mas vidas e maldades A honesto e bom viver : Mas como passa o temor, Torna tudo a ser peior : Porque nés a nds tornamos, E de novo comecaimos Ter ao mundo mais amor. Gastos nui demasiados Vemos nas donas casadas Em joias, prata, lavrados, - Perfumes e destiados, Tapegarias dobradas : As couservas, 0 comer, Vestidos, donzellas ter, As camas ¢ os estrados ; Vimos por vinte cruzados Luvas de couro vender. As Portugezas honradas Vimos por deshonra haver GARCIA DE REZENDE. 27 No rosto e face poer, E trazer averdugadas, E tambem vinho beber : Por deshonestas haviao As que taes cousas faziio, Depois forio tao usadas Todas, que hao que as passadas Nem sabi dy. NENT Viv Us Portuguezes sviio Ser nas arias Mollicias ter nao sabiao ; Qs homens mui delicados Por homens fracos haviio : Nao lhes lembrava tratar, Nem muito negociar : Ero com pouco contentes, Com amigos e parentes nut destrados . Costumavao de fulgar. Vepois fordo tio polidos, Tio ricos, tio atilados, Tio duces e fio luzidos, E tao cheios d’esmaltados, Cabelleiras e tingidos, E em gastar desordenados, E tantos trajos mudados, Tanto mudar de viver, Tanto tratar, revolver, Tanto ser negociados | 228 LIVRARIA CLASSICA. Vemos mui anticipadas As vidas d’agora todas, Mogos com capas, espadas Mogas com mocos casadas, Auite tempo fazer vodas : Quem deve ser ensinado, Reprehendido, castigado, Muito mal péde eusinar, Casa e filhos goveruar, Se deve ser governado. Vi soberba nos vilios, E baixeza nos honrados ; Vi cobiga nos prelados, Descuido nos ancidos, E desordens nos Estados : Vimos mortes apressadas, Ki vidas mui encurtadas, Doeneas nao conhecidas, Muilas canseiras nas vidas, Poucas vidas descapsadas. Os reis, por accrescentar As pessoas ein valia, Por lhe servigos pagar, Vimos a uns o dom dar, E a outros fidalguia : Ja se os reis nao hao mister, Pois toma dom quem o quer, E as armas uobres tambem GARCIA DE REZENDE. 2 Toma quem armas nao tem, E da o dom a mulher. Vi muitos mattos romper, Grandes paules abertos, Muitas herdades fazer Em terras, mattos, desertos ; Vemos o pio mais valer : Vemos tudo levantar, Mantimentos mdaos de achar, Officiaes, mercadores, Logreiros, alugadores, Tudo mui caro custar. Vimos em Evora valer Os moios de pio iguaes Quinze, vinte mil reaes: Agora os vemos vender Asetenta mil, e mais : Anno vi tao abastado, Que a oifo reaes comprados Foi 0 alqueive de pio; Outro vimos em que nado Se achava por um cruzado. Vimos os campos coalhados De aves, e cacadores, O mar cheio de pescados Muito bons, muito prezados, E de muitos pescadores :

Vous aimerez peut-être aussi