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MEMORIAS DEL XIITT SIMPOSIO INTERNACIONAL SOBRE PENSAMIENTO FILOSOFICO LATINGAMERICANO YY MEMORIAS DEL XIII SIMPOSIO INTERNACIONAL SOBRE PENSAMIENTO FILOSOFICO LATINOAMERICANO (Celebrado en la Universidad Central «Marta Abreu» de las Villas, Santa Clara, Cuba, del 26 al 27 de junio de 2012) © Editorial Feijoo, Santa Clara, Universidad Central “Marta Abreu” de Las Villas, 2012 © Departamento de Filosofia, Universidad Central “Marta Abreu” de Las Villas ISBN 978-959-250-799-9 in 15.Von Werlhog, Claudia. Unidas como una banda de aguilas furiosas. Luchas femeninas y machismo en América. 1982. 2.5Direito e movimientos populares: insurgencia, dualidade de poderes e politica da libertagao no Brasil Ricardo Prestes Pazello Introdugao Esta reflexdéo tem por intuito estabelecer a conexéo entre o fenédmeno contemporaneo dos movimentos populares em sociedades capitalistas como a brasileira, em que um contexto de transformagao estrutural do modo de produzir a vida ainda nao esta colocado, e pratica da autogestao no interior deste mesmo fendmeno. Para dar conta tanto da critica da economia politica quando da organizacao politica de nossa sociedade, referida conexao encaminha-se para a apresentacao do conceit de “poder dual latente” como sendo aquele que permite visualizar, nas brechas da sociedade atual, a possibilidade do questionamento do estado de coisas. Assim, entre movimento populares, autogestdo e poder dual estabelece-se um circulo virtuoso em que se destaca a producdo material da vida, condigéo sem a qual nao possivel se pensar em qualquer modificagao total da realidade. 1. Movimentos populares Iniciemos nossa proposta analitica pela avaliagao do fenémeno contemporaneo dos movimentos populares, nao entendidos como meros movimentos sociais nem tampouco abdicando de seu Ambito de totalidade. Para tanto, é preciso compreender a relagao entre esta totalidade e a exterioridade ética deste sujeito histérico, bem como a implicagao no plano do método que isto representa 1.1.A dialética material totalidade-exterioridade © problema de como apreender a realidade continua tao vivo quanto as desigualdades que assolam nosso mundo. Se é certo que os filésofos ja o interpretaram de diversas maneiras e que cabe agora transforma-lo estruturalmente, to certo quanto @ que nem toda interpretagao nos leva a esta radical mudanca. Optar por 173 analisariinterpretar © fenémeno da autogestdo partindo da experiéncia histérica e conceitual dos movimentos populares exige um esforco de sintese que imprescinde de, no minimo, duas concepgGes: a totalidade e a exterioridade. Apreender a realidade como totalidade 6 um dos mais significativos legados da teoria politica marxista e implica varias importantes conseqiéncias para as interpretagdes acerca da realidade social. A totalidade, como pretensdo do método, aponta para o fato de que a abstragao 6 insuficiente assim como também o é 0 particular. Dessa forma, podemos estabelecer uma dialética que traduz, em termos de \6gica critica, o caminho “metédico” desde os pares particular-geral e concreto-abstrato. Longe de apelarmos para velhas dicotomias, aqui tomamos linguagem a complexidade do mundo real. Tomar a experiéncia como conceito ou tornar 0 conceito experiéncia, se reduzidas estas operagGes intelectuais a si mesmas, sao, ai sim, reducionismos dicotémicos. No entanto, perceber que ha miltiplas mediagdes que condicionam o desenvolvimento e a possibilidade de compreensao da realidade efetiva a capacidade de uma minima interpretagao da realidade comprometida com a sua transformagao. Isto nos impinge a dizer que é preciso ter no horizonte de analise da relagao entre movimentos populares e autogestdo o contexto nao sé de suas articulagdes internas mas também no Ambito da totalidade que integram. © modo de produgao capitalista condiciona plurimamente seus atores assim como suas escolhas organizativas. De toda forma, é disto que estamos falando aqui: a forga acachapante das relagdes sociais do capital poe em aceleragao as submissdes e resisténcias dentro do sistema que as englobam. O capitalismo, como soemos dizer, esculpe um modo de vida prevalente mas também, de maneira escatolégica, cinzela a possibilidade de se criar modos de vida em suas fendas. Esta alteridade 6 nodal para compreensao do método que, ao aprender a realidade, néo pode deixar de assumir um determinado ponto de vista. Assim 6 que faz sentido falarmos em exterioridade dialetizada pela totalidade. todo — pretensao de totalidade — no pode ser desconsiderado; assim também, o ponto de partida “ético” deve ser evidenciado. A critica ao capital nos demove para a afirmagao do trabalho, mas nao qualquer trabalho. Do mesmo jeito que a critica ao 174 capital adquire uma especificidade nos marcos histéricos do modo de produgao capitalista, também a afirmagao do trabalho tem de assumir a silhueta do trabalho nao alienado, nao assalariado, ou seja, ao trabalho “vivo Em um Ambito j4 nao mais puramente sociolégico (vale dizer, j4 nao mais meramente descritivo), 6 preciso considerar que a famosa tese de Marx ~ “os fildsofos se limitaram a interpretar 0 mundo diferentemente, cabe transformé-lo"' = significa explicar a realidade ao mesmo tempo que se constréi sua superagdo. Isto é a capacidade que deve possuir uma teoria critica, umbilicalmente ligada @ nocéo de praxis. Teoria e pratica andam juntas e devem se relacionar criticamente (no sentido de autoconsciéncia e libertagao que Ihes sobrevém). Eis que a reflexdo sobre a autogestao encaminha para seu contrério no atual modo de produgao (0 que poderiamos denominar de heterogestao da produgao da existéncia humana) assim como o encontro com novos sujeitos histéricos, os movimentos populares direciona para a critica a desumanizagao do trabalho, ou melhor, a exploragao do trabalho humano gerando o trabalho “morto’. Na nsia de interpretar a realidade para contribuir com sua transformagao 6 que buscaremos compreender, por ora, os movimentos populares como uma nogdo impulsionada pelo todo que pretende abranger assim como pela eticidade alternativa que permite entrever, para, depois, conjugé-lo com o problema politico-organizativo da autogestao. 1.2.Fenémeno organizativo total: movimentos sociais ou populares? Muita pena ja se gastou para a conceituagao do que sejam os chamados “novos movimentos sociais’. No Brasil, este foi um fenémeno amplamente ovacionado pela literatura sociolégica do final da década de 1970 em diante. No entanto, o que este conceito expressa? Parece haver consenso, entre seus principais intérpretes, de que se trata de um fendémeno que recoloca o problema da relagao capital-trabalho em termos de reivindicagdes populares e contestaco do modo de vida hegeménico. No entanto, esta MARX, Karl. * econdmico-floséficos e outros textos escolhidos. 2 ed. S eses contra Feuerbach”. Tradugo de José Arthur Giannotti. Em: Manuseritos Sto Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 53. 175 “recolocagao” desagua em uma importante dicotomizacao: ha velhos movimentos sociais que os novos suplantam. Aj esta 0 nd gérdio da questao. Que as relagdes sociais se reconfiguram a cada periodo histérico e que a critica de ontem ndo 6, conjunturalmente, igual 4 de hoje, quanto a isso parece ndo haver maiores discordancias. Elas existem, entretanto, quando o assunto é validade ou nao da interpretagao da sociedade dividida em classes e estas classes como timoneiras da transformagao ou manutengdo das estruturas sociais. Estamos de acordo com o fato de que os “movimentos sociais” sao um fendmeno qualitativamente novo no meado final do século XX. Novidade esta que se expressa na teoria da organizagao politica: debutava no paleo dos conflitos coletivos a forma “movimento” em contraposicao as formas classicas “partido”, “sindicato” ou mesmo “associagao” e “cooperativa’. Nao raro, porém, era 0 fato de tais movimentos sociais também aparecerem como novas associagées ou novos sindicatos. O entrelagamento entre as formas acabou sendo inevitavel, ainda que seus intérpretes privilegiados — em geral, alocados na academia mas nao s6 — nao o tenham enfatizado. Pois bem, esta dicotomizagao criou a impressao, localizada historicamente, de que os movimentos sociais eram um fenémeno inteiramente novo, quando nao foram. Todas as lutas das classes populares e trabalhadoras dos dois ultimos séculos, pelo menos, também se caracterizaram por forte mobilizaco social e, até certo ponto, espontaneidade organizativa, mesmo que nao se deva desconsiderar o significativo papel dos partidos, sindicatos, associagdes e cooperativas. A novidade, entdo, passou a ser justificada na esfera dos novos conteuidos reivindicados e nos novos modos de vida que baseavam as suas contestagdes. Mas desta justificagao passou-se, sutilmente, a uma excessiva particularizagao das “novas demandas’ e isto justamente acabou se tornando o resultado final de uma compreensao amplamente difundida acerca dos movimentos sociais, desde ento. Os movimentos sociais passaram a ser identificados apenas por sua estrutura organizativa, sendo em geral considerados na constancia de elementos como o do projeto pol da ideologia, dos inimigos, do tipo de aco e da diregao organizativa. 176 Dessa maneira, rapidamente o conceito passou a ser instrumental e péde servir de caracterizagdo de movimentos das classes dominantes. © estudo classico de, por exemplo, Daniel Camacho™ cedo ja teve de aportar a dimensdo popular que o conceito instrumentalizado deveria contemplar. corre que, no mesmo momento em que se determina a necessidade de adjetivagao do conceito — como “popular” -, a problematica do método que interpreta e transforma vem a tona. A particularizagao das demandas dos movimentos nao poderia resistir ao todo frente ao qual enfrentavam. © modo capitalista de produzir a vida nao cerra fileiras em instancias particulares, mas articula-se como um sistema geral. Ante esta constatagao, para que os movimentos sociais, agora populares, pudessem exercer forga transformadora com pretensao de totalidade — exigéncia da interpretagao do capitalismo como que movido por uma “luta de classes” — eles deveriam congregar reivindicagdes e contestacées, assentando-se na possibilidade de propositura de um(s) novo(s) modo(s) de vida. A tensdo entre reivindicar e contestar, portanto, nao poderia se reduzir nem a um plano apenas identitario assim como nao era sustentavel qualquer sorte de puro corporativismo ou “economicismo”. Os movimentos populares estabelecem-se, assim, como ado coletiva organizada, com projeto politico e ideologia comum, oriunda das classes populares com capacidade de articulagéo das mais diversas demandas, permitindo uma nova produgao da vida social. E certo, aqui, que a socializagao dos meios de produgao ainda se apresenta como um desafio, no entanto a comunitarizagéo da produgao da cexisténcia é um ponto de partida. 1.3.0 ponto de partida da exterioridade Justamente por se encontrar nas brechas do modo de produgdo da vida imperante, os movimentos populares carregam consigo a contradic de, por vezes, no se desvincularem dos limites de sua atuagao no plano das relacdes capitalistas. Tanto os movimentos camponeses por reforma agraria, quanto os movimentos urbanos por moradia e trabalho ou ainda os movimentos das comunidades tradicionais “* CAMACHO, Daniel. “Movimentos sociais: algumas discussdes cont KRISCHKE, Paulo J. Uma revolugao no cotidiano?: os novos movimentos sociais na América Lati Brasiliense, 1987, p. 214-245, jtuais”. Em: SCHERER-WARREN, Ilse; So Paulo: 7 povos das florestas na luta por seu territério e cultura, tém limites e obstaculos claros na consecugao de suas pautas. No obstante, permanecem como sujeitos capazes de reunir em seu seio o maximo da experiéncia coletiva de organizagéo politica, em especial se complementados por outras formas organizativas - como a politico-partidaria e cooperativa. Desde a perspectiva do método que adotamos, nao basta remetermos nossa discusso ao Ambito da necessidade objetiva de integracdo das reivindicagdes especificas dos movimentos sociais. E preciso, ainda, perceber a necessidade historica do desenvolvimento subjetivo dessa organizagao, na esfera popular. Quando reivindicamos pelo ‘popular’, salientemos, nao estamos aduzindo a uma aquiescéncia quanto a nao centralidade do corte de classes que estrutura nossa sociedade. O “popular” vem, aqui, englobar este corte estrutural a outros, em especial 0 de ragaletnia e género. A discusséo contemporanea havida na América Latina, por exemplo, a partir de uma teoria politica marxista, assim como de uma teoria socioeconémica da dependéncia e de uma filosofia da libertagao, tem erigido interpretacdes praticas bastante interessantes acerca desses cortes estruturais. De um lado, a reformulagdo do problema das classes sociais. Quando Ruy Mauro Marini‘ amplia 0 conceito de classe trabalhadora para além de o fenémeno fabril ou Ricardo Antunes" advoga pela caracterizacéo de uma classe-que-vive-do- trabalho, ja estéo sendo postas as mediagSes para a compreensao de tal discussao. Do mesmo modo, quando a filosofia latino-americana estipula ser 0 povo o bloco historico das classes oprimidas,'® em todas as suas dimensées, isto se completa. N&o queremos, com isso, revisar deficitariamente a interpretagao classista da sociedade, mas antes potencializé-la a partir do método que a constitui: a totalidade s6 poderd ter pretensdo transformadora se criar as mediagSes necessdrias para que o seu sujeito histérico tenha medradas as condigées objetivas e subjetivas de ser um ator ‘*€ Ver MARINI, Ruy Mauro. Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000, p. 243-253 88 Conferit ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmagdo & a negagdo do trabalho. 10 reimp. Sdo Paulo: Boitempo, 2009, em especial capitulo VL “ Verificar DUSSEL, Enrique Domingo. Evica comunitiria: liberta 0 pobre! Tradugio de Jaime Clasen. Petropolis: Vozes, 1986, capitulo VILL ‘0 coneeito de trabalho produtivo™. Em: Dialética da dependéncia. Pewopolis: 178 revoluciondrio, em pro! da radical mudanga da estrutura do modo de produzir a vida. Afora as conseqiiéncias politicas destas consideragées, 6 preciso ter em conta como organizativamente ela se opera. E 0 que elucidaremos a seguir. 2. Estado e direito na politica da libertagao Como preliidio de sua teoria politica, Dussel traz a piblico as “20 teses de politica’ nas quais condensa toda sua proposta para uma politica da libertagao. Um texto sintético em que apresenta a raiz de suas preocupagées politicas, as quais ainda hoje nao conheceram total publicidade."”” Assim como no tocante a ética da libertagao e sua arquiteténica, ocioso seria querer resumir as 20 teses dusselianas, mormente porque se apresentam em numero maior e profundidade idéntica aquela. Util, porém, é uma vez mais perceber suas principais tendéncias. Sem duvida alguma, a mais interessante esta alocada na interpretacao acerca da “ordem politica vigente’, a primeira parte de suas “20 teses’, e refere-se ao problema do poder. Para Dussel, o campo politico possui uma arquitetnica que o caracteriza e que JA anunciamos (ago politica, instituigdes e principios normativos, sendo que os dois Lltimos niveis sao perpassados pelos momentos material, formal e factivel). No entanto, @ 86 aqui que ele resolve, por definitivo, o problema do fundamento do politico: o exercicio do poder (que acompanha sua nogdo de politica e estado desde os escritos da década de 1970). O poder politico é, antes de mais, poder da comunidade politica. Logo, o poder no se toma, ja que é sempre, e positivamente (ou seja, sé secundariamente negatividade dominadora), a possibilidade de organizacéo e promogao da producao, reprodugao e desenvolvimento da vida humana coletiva. A isto - dimensao ontolégica do poder — chama de potentia. Por outro lado, 0 que se pode tomar é 0 exercicio do poder, a potestas. Apenas a potestas é corrompivel e por esta razao que existem duas formas de seu exercicio: 0 poder fetichizado (usurpado por uma parcela da comunidade em nome préprio) e © poder obediencial (em que a divisdo do trabalho em torno do exercicio do poder leva idéia de ‘mandar obedecendo’, como que em uma nogao de poder delegado que sempre deve prestar, democraticamente, contas de seus atos). Dai “© tereeito tomo dos trés dedicados A “Politica da libertagdo” ainda nao foi editado. 179 seu entendimento: “si la potentia es el poder en-si, la potestas es el poder fuera-de-si (no necesariamente todavia en para-si, como retorno)’."©® Dessa maneira, a ordem vigente € descrita de um modo fundante para que possa fazer sentido toda uma proposta de transformagao critica do direito, a partir da aplicagdo dos momentos éticos aos niveis do campo politico. Aqui, apesar de termos encontrado uma tendéncia de perceber o estado proeminentemente no momento da factibilidade, ele passa a ganhar novo vigor ja que as instituigdes politicas podem ser vistas, explicitamente, a partir dos outros momentos (material e formal), permitindo criticamente a afirmagao dos principios da solidariedade, alteridade e libertagao (a iberdade). Em nossa analise aproximativa, ainda que pouco conclusiva, cabe assinalar invés da triade politica ocidental classica, fraternidade-igualdade- algumas questées sobre o estado e o direito na sua “Politica da libertagao", a partir de seus dois volumes até aqui publicados. Gostariamos de indicar que Dussel volta a dedicar todo um volume de sua “Politica” para resgatar a simbélica histérica dos povos marginais da contemporaneidade e criticar, cada vez mais autoconscientemente, o helenocenttrismo, 0 ocidentalismo e 0 eurocentrismo das interpretagdes histéricas, e junto a tudo isto a periodizagao etnocéntrica, © secularismo, 0 colonialismo tedrico ¢ 0 modernismo das concepgées de mundo. Tudo isto ele ja indica em seu “Prélogo""®* ao volume primeiro. A partir deste intento ¢ que Dussel aprofunda sua arquiteténica, agora politica. E apés retomar categorias como “estado ampliado’, “sociedade civil’ e “sociedade politica’, da tradigéo gramsciana, para caracterizar o estado modemo, na esfera da factibilidade sistémico-institucional, dedica-se a esfera formal da legitimidade, na qual se encontra inteiramente 0 “direito”. Considerando que, no plano ontolégico, “el poder legislativo es el lugar institucional donde se genera el ‘sistema del derecho”,"”’ Dussel consolida sua visao legal-normativista do juridico. Mesmo que este aspecto da politica (um seu subsistema) tenha de se aglutinar legalidade e legitimidade (diversamente do que o consideram as * DUSSEL, E. D. 20 esis de politica [2006]. México, D.F- Siglo Veintiuno Editores; CREFAL, 2006, p. 29. “ Ver DUSSEL, E. D. Politica de la liberacin: historia mundial y ertica [2007]. Madrid: Trotta, vol. 1, 2007, p. 11 « sezuintes " DUSSEL, E. D. Politica de la liberacién: arquiteetonica [2009]. Madrid: Trotta, vol. 11,2008, p. 297, 180 teorias do estado e do direito tradicionais) e que seu fundamento seja o “consenso pratico legitimo"'”* 0 sistema do direito permanece essencialmente formal. Ainda que o direito inclua em seu interior normas ou direitos das demais esferas, como a material e a de factibilidade, continua sendo norma (forma juridica) sobre a materialidade e o factivel, e nao materialidade e factibilidade em si. Mesmo 0 estado sendo instituicao necesséria para concretizagao da politica 0 direito sua conseqiéncia mais direta, haveremos, agora, de considerar, apés termos analisado © papel que representam os movimentos populares, sua posigao no plano de uma politica de libertagao cuja sensibilidade remonta a um poder obediencial, apoiado na materialidade da vida concreta e que se percebe factivel desde experiéncias praticas como a de movimentos populares brasileiros, exemplarmente o MST. 2.1.Autogest Os movimentos populares, como organizagao da classe-que-vive-do-trabalho : principio organizativo da politica de libertacao capaz de aglutinar em seu interior a totalidade das relagdes revolucionarias de produgao da vida, costumam ser foco de interpretagdes do pensamento critico latino- americano. Assim, é possivel visualizar que sua nogao nao se reduz ao plano das reivindicacées particulares, tal predomina na literatura sociolégica especifica. Um exemplo @ encontrado na recente produgdo tedrica dos fautores do giro descolonial da teoria politica na América Latina. O ja citado Dussel pode ser, aqui, paradigmatico. Em suas “20 teses de politica’, cujo propésito é adiantar resumidamente sua proposta de “Politica da libertacao”, Dussel evidencia o carater democratico dos “novos movimentos sociais”. Sem duivida, o problema da democracia anda passo a passo com © da autogestao. Em especial, a partir dos movimentos sociais e populares, a questo ressignifica-se. No entanto, para nés e aqui, mais do que sinalizarmos para a necessidade de uma nova teoria da democracia - que supere a “razéo democratica’ dos antigos e dos modernos -, faz-se importante precisar que as praticas democraticas, que podem redundar em uma organizaco autogestionéria, tém limites intemos e externos quando temos por referéncia os movimentos populares. E 0 plano externo é o " DUSSEL, E. D. Politica dela liberacién, p. 308, 181 da totalidade das relacdes sociais. No ambito interno, ao qual mais nos dedicaremos, a questao também é complexa, mas ja se podem notar avangos substanciais. Segundo Dussel, a autogestéo comunitaria’”* precisa ser concebida como forma organizativa social, resgatando as experiéncias dos movimentos populares ja existentes, tanto do campo, quanto das florestas quanto nas cidades. Ainda que nao aprofunde a questao particular da autogesto, o autor tece suas conjecturas a partir da nogéo de poder obediencial extraida dos zapatistas insurgentes chiapanecos. O Exército Zapatista de Libertagao Nacional (EZLN), no México, procurou reunir as massas indigenas espoliadas e resgatar dos ensinamentos de seus ancestrais mais. Dentre estes ensinamentos a idéia de que “os que mandam devem mandar obedecendo’, ou seja, “o poder obediencial seria, assim, o exercicio delegado do poder 73 toda autoridade que cumpre com a pretensdo politica de justiga’"”® em favor de toda a comunidade. 0 filésofo concebe uma arquiteténica para a politica da libertagao na qual 0 “poder obediencial” exerce funcao gravitacional. Trata-se de conceber o politico como um campo em que, em ultima andlise, se exercita o poder. E este possui duas dimensées: a do poder ontolégico do povo (pontentia) e a do poder institucional (potestas). O extremo oposto ao mencionado poder obediencial é exatamente o poder fetichizado, mas esta fetichizagao s6 pode ocorrer na esfera das instituigdes. O poder nunca deixa de ser originariamente popular, mas ele pode ser apropriado como se nao fosse. E isto ja indica para 0 fato de que o campo politico atravessado por alguns niveis praticos de organizagéo e Dussel nos reporta a trés ordens deles: a agao estratégica, as instituigdes e os principios normativos. A partir da potentia, agao dos atores e sua consolidacdo em instituigses nos permite ver que existem principios normativos a guiar a politica “do” poder obediencial, ja que a vida em comunidade, a democracia e a factibilidade da organizagao politica legitima seriam justamente estes principios. DUSSEL, E. D. 20 teses de politica. Traduedo de Rodrigo Rodrigues. Buenos Aires: CLACSO; Sto Paulo Expresso Popular, 2007, p. 61 (ese 20.27). “DUSSEL, E. D. 20 ses de politica, p. 39 e 40 (tese 4.2. 182 A nosso ver, esta tangenciada a problematica da autogestdo dos movimentos populares, mormente porque factivel e evidentemente expressa na nogao de poder obediencial 2.2.Modo de produgao material da vida Ao extremo, entretanto, esta visdo obediencial da democracia nos leva para uma visdo de totalidade (das relagdes sociais dentro do modo de produgao capitalista) a partir da exterioridade (os movimentos populares). De pouco adianta a idealizacao de um sistema politico legitimo e democratico se a pedra de toque do problema nao for incomodada. Sem embargo, uma concepgao obediencial de poder s6 faz sentido se a principiologia autogestiondria que ela carrega trouxer a baila o problema da produgao material da vida. Assim, 0 poder politico nao fica alheio ao “poder” econémico. Nos marcos de uma politica da libertagao, ndo se pode descurar do momento eminentemente material do politico. A materialidade da vida envolve 0 ecolégico e 0 cultural, assim também o econémico. Expressa-se Dussel dizendo que o principio econémico politico critico normativo deveria indicar algo como: devemos imaginar novas instituigdes e sistemas econémicos que permitam a reprodugao e o crescimento da vida humana, e nao do capital! Essas alternativas deverdo criar-se em todos os niveis institucionais e com a ajuda de todo o povo. Devem-se fixar os olhos nas novas experiéncias populares de economia social alternativa.'”* A critica ao capital nao pode nunca deixar de haver. A teoria do valor desenvolvida por Marx merece nossa reiterada preocupacao. Conjugada 4 critica da economia politica, entrementes, deve estar a interpretagao das novas mediagées que o tempo presente nos tem oferecido. Dormitando nas sombras de um projeto socialista de sociedade, estao experiéncias populares de organizagao politica e econémica da vida material. Em paises como o Brasil, isto se destaca considerando-se, especialmente, os movimentos populares. Justamente porque sdo os movimentos populares aqueles movimentos sociais que esto atrelados ao protagonismo do povo e das classes trabalhadores e que dao corpo a suas lutas a partir também das relagdes de produgao (e sua dialética * DUSSEL, ED. 20 eses de politica, p. 107 (tese 13.33). 183 com as forcas produtivas), justamente por isso, que colocamos o acento em sua organizagao pratica, no intuito de compreendermos, minimamente, seu potencial (lembrando da etimologia da palavra “potentia") de transformagao radical da nossa realidade. Distintamente de paises que conseguiram preservar um modelo socialista de organizagao do estado e da sociedade, em paises premidos, de maneira esmagadora, pelo modo de produgao capitalista, sdo os movimentos populares o sujeito histérico capaz de conduzir, desde bases materiais, a uma concretizacao da transformagao social, a qual ainda precisara se aperfeigoar no plano partidario. Em todo caso, em que pese tais contramarchas atinentes ao descompasso socializador dos movimentos populares dentro de sociedades heterogestionarias, algumas de suas experiéncias nao podem ser desperdicadas. E 0 caso do “sistema cooperativista dos assentados” do MST. 2.3.Experiéncia concreta: o SCA do MST Assim como ocorre quanto aos movimentos sociais, hé muita literatura consolidada sobre autogestao, ainda que isto nao seja tao evidente no que toca a sua relagdo em especifico com os movimentos populares Partamos, aqui, de uma nogo minima (porque voltada para as unidades de produgao, ainda que isso nao implique descomprometimento com a possibilidade de uma concepgao de sociedade autogestionaria) sobre o que seja autogestao a autogestao na unidade produtiva é definida como o exercicio do controle pleno @ efetivo sobre 0 processo de produgao por uma organizacao democraticamente gerida pelo conjunto dos trabalhadores, que distribuem o resultado observando o trabalho aplicado na produgdo e sem remuneracao do capital.'”° Esta conceituagao nos permite apontar para trés grandes problemas que a forma autogestionaria procura superar: a heterogestéo absoluta, a partir de uma gestao democratica; a alienagao, a partir do controle da produgao; e 0 modo de produgao capitalista, a partir da distribuigéo econémica de acordo com o par necessidades- capacidade. ® FARIA, José Ricardo Vargas de. “Autogestio". Em: GEDIEL, José Antonio Peres (org). Estudos de direto cooperative cidadania. Curitiba: Programa de Pés-Graduagio em Direito da UFPR, 2008, p. 121 184 A tensao entre a impossibilidade de uma autogestao social (ja que insertos no modo de produgao capitalista) e a possibilidade limitada de uma autogestao no interior das unidades produtivas pode receber uma mediagao suprassuntiva: os movimentos populares. A suprassungo dialética reside no fato de que os movimentos populares apresentam-se como sujeitos coletivos que permitem extrapolar as preocupagdes excessivamente particularistas, mesmo que permaneca o impasse quanto a viabilidade de uma transformagao estrutural, a qual remanesce como potencial. No relato dos primérdios da experiéncia, por exemplo, do assentamento de Nova Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, entrevemos esta questéo. Nos idos da década de 1980, pequenos agricultores acamparam em terras subaproveitadas e construiram uma proposta coletiva de produgdo e comercializagao da produgao. Sem financiamento e premidos pelo mercado, assim como inseridos na tendéncia de proletarizacao das populagdes do campo, os agricultores acabaram pro construir uma saida socializante para superar os problemas imediatos de sua sobrevivéncia material. Conforme uma interpretagao académica da época: ainda que permanecendo limitados pelas condigdes de crédito bancario e da comercializaco, 0 trabalho coletivo e a sua coesdo social Ines ampliaram a margem de agées realizaveis, garantindo-Ihes ndo apenas a permanéncia sobre a terra, mas também o gradativo progresso de sua situacdo material.'”° Ai estdo colocados justamente os pélos da tensao acima mencionada. Como dissemos, uma sua possivel superagao seria a “invengao” de um novo importante ator. Para leva-lo a cabo, porém, a histéria recente brasileira teve de se basear em formas organizativas coletivas que passassem do micro ao macro, quer dizer, das experiéncias individuadas 4s dos movimentos populares. E 0 fio condutor desta passagem, a nosso a. ver, foi a pratica autogestion: Esta pratica, em uma primeira insténcia ou nivel, da-se em conformidade com a aplicagao da organizagao autogestionario no Ambito especificamente local. Uma “nova relagdo entre divisdo do trabalho e apropriagao de seus resultados’, redundando na * REGO, Nelson. “A experiéncia de autogestio dos trabalhadores aprrios de Nova Ronda Alta o seu significado para 0 Movimento dos Sem-Terra". Em: Terra livre. S20 Paulo: AGB; Marco Zero, n. 4 julho de 1988, p. 69 185 “fusdo dos momentos de decisdes e execugao, do saber com 0 trabalho’,"”” apresenta- se como 0 seu mais saudavel sinal Um segundo nivel, porém, se faz necessdrio e, inclusive, se constituiu historicamente. Trata-se da organizagao ampliada desta autogestdo, no sentido do aumento de numero de familias (Nova Ronda Alta tinha 10 familias em 1986), na articulagéo com experiéncias microrregionais, estaduais e nacionais, quando nao internacionais mesmo. A noticia desta histéria tem relevo para demonstrar a passagem do micro a macro @, desse jeito, percebemos como se emoldurou o “sistema cooperativista dos assentados” (SCA) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Muito jd se tem escrito sobre 0 MST e seu sistema cooperativista. Sem divida alguma, as maiores fontes de estudos sao as proprias experiéncias locais e articuladas do movimento mas também os documentos por ele langado no intuito de servir de material de formagao para seus militantes (0 grande exemplo @ 0 Cademo de Cooperagao Agricola n° 5 que trata exatamente do SCA). Nao @ nosso objetivo apresentar o histrico do movimento como um todo'”® ou descrever o proprio sistema cooperativista.'”” Nosso objetivo, isto sim, é assinalar aquilo que se destaca como sendo conjunto de elementos autogestionarios em sua proposta. Interessante notarmos que a expressdo “autogestéo” nado costuma ser muito difundida ou disputada dentro dos estudos e dos préprios documentos do MST. Quiga isto se dé pelo fato de que a adogdo desta nomenclatura implique posi ionamentos politico-ideolégicos que acabem desgastando o objetivo ultimo de sua organizagao politica e econémica (a titulo de ilustragao, 0 termo 6 associado a correntes socialistas anarquistas ou conselhistas, para ficar com dois exemplos apenas). O fato é que o MST preferiu a idéia de “cooperagao” — a qual, reconhecamos, também tem suas implicages politico-ideolégicas. REGO, N.“A experiéncia de autogestdo dos trabalhadoresagrivios de Nova Ronda Alta o seu significado para {Movimento dos Sem-Terra", p. 710.71 "Tris livos, com objetivos e matrizes tedricasdistintas, podem ser indicados: BRANFORD. Rompendo a cerca: a hstéria do MST. Tradugdo de Rubens Galves Merino. Sao Paulo: Casa Amarela, 2004, LISBOA, Teresa Kleba. lata dos senvierra no oeste catarinense. Flosianépolis: UFSC; Sto Paulo: MST, 1988; ¢ GOMES, Iria Zanoni. Terra e subjetividade: a recriagdo da vida no limite do caos. Curitiba: Crar EdigBes, 2001 Ver GRADE, Marlene. MST: luz e esperanga de uma sociedade igualitriae socalista. Floriandpolis: Programa dle Pés-Graduagio (Mestrado) em Economia da Universidade Federal de Santa Catarina, 1999. Sue; ROCHA, Jan 186 © que importa, entretanto, ¢ percebermos que a nogao por nés inicialmente sublinhada encontra-se no cere da preocupagao organizativa do movimento. O cooperativismo alternativo do MST, em oposicao a uma versao oficial, estandardizada e nao autogestionaria, propée-se anticapitalista e assentado na “democracia de base” — nogao muito préxima 4 democracia desde os debaixo do poder obediencial. © sistema possui nivel nacional, estadual e local, com confederacao (a Confederagéo das Cooperativas da Reforma Agraria - CONCRAB), cooperativas centrais, cooperativas singulares e atividades de cooperagao nao formais. No interior de todo este sistema, os nuicleos de base sao a célula de uma proposta maior, de organizacao de massa. Os valores humanistas e socialistas permeiam o sistema e a cooperagao, como decorréncia da divisdo social do trabalho, 6 concebida como um processo. E esse processo, podemos assim nos referir, liga-se a construgao dos niveis de autogestao do MST, uma vez que “o SCA, como cada cooperativa, deve ter, ao mesmo tempo, um carAter politico e um carater de empresa econémica”,"*° ou seja, avanga para um nivel organizativo da politica da libertagao, a partir da critica estrutural da sociedade capitalista. Nessa medida, instaura a possibilidade de uma disputa pela organizacao mesma da sociedade. 3. Critica juridica Para os fins de nossa proposta, 0 didlogo entre o pensamento descolonial © 0 direito como expresso de uma organizacao politica ndo pode se fazer sem a importante mediagao tedrica do conjunto de criticas ao direito. E estas criticas, para fins didaticos, serdo observadas por nés sob dois grandes critérios, ainda que tenhamos claro que esta categorizagao nao prejudica as complexificagdes necessérias a andlises mais aprofundadas de cada uma das correntes e autores citados. Assim 6, portanto, que aparecerao para nés as criticas provenientes de Marx e de seus intérpretes, notadamente aqueles que dedicaram sua reflexdo sobre a juridicidade moderna, por um lado; e a critica “geral”, que assim designamos na falta de expresso melhor, cuja caracterizagao se afasta da andlise marxista em sentido estrita, “" CERIOLI, Paulo; MARTINS CONCRAB, 1998, p. 11 Adalberto (org.). Sistema cooperativista dos assentados. 2 ed. Sao Paulo: 187 ainda que possa com ela dialogar, perfazendo o itinerario das chamadas teorias criticas do direito, por outro lado. 34. A cri A partir da obra de Marx — a qual metodicamente procura estabelecer-se como a marxista e a critica geral uma visdo total da realidade, ainda que isso nao implique um totalitarismo tedrico, jd que, tendo como referéncia a obra de um unico autor, ndo podemos nunca ter uma pretensao conereta de descrever toda a realidade, mas sim uma pretensdo real- pensada - um vasto campo de reflexdes e interpretagdes se inaugura com o desiderato Ultimo de criticar a sociedade regida pelo modo de produgdo capitalista. Muito se discutiu, e ainda se discute, sobre a existéncia ou nao de uma teoria politica ou juridica No conjunto de seus escritos (para nés, ambas esto imbricadas) e varias impressdes se tira desse debate. Concordando que nao ha uma sistematizacdo da teoria do direito ‘em Marx, nao podemos avalizar o entendimento de que sua reflexdo nao contribua para ela, tanto assim é que varios autores posteriores a ele se debrugariam sobre o tema, inspirados por seu método e sugestdes, dando vez a auspiciosas andlises politico- juridicas Talvez a mais conhecida das criticas de Marx ao direito se encontre em seu famoso texto sobre “A questo judaica’,'*' no qual aprofunda um destringamento do que seriam os direitos humanos proclamados no pés-revolugao francesa. Sua ferina concepgao do direito, ai, faz-nos pensar que nao resta outro destino ao problema juridico em seu pensamento sendo a rejeigdo completa. Entretanto, tal compreensao reducionista ndo resiste a uma mais acurada mirada por toda sua obra. Em pelo menos dois outros grandes momentos de sua produgao teérica, 0 direito ganha alguma relevancia, tornando mais profunda sua interpretagdo. E 0 que ocorre em sua obra maxima, “O capital”,"®? a partir da qual pode se inferir, nado sem muitos cuidados, um sentido tatico e histérico para as conquistas politico-juridicas. Ainda que sempre apontando para os limites do direito em sua positivacao e ideologia burguesas, Marx permite uma aproximagao mais organizacional a ele. E, por fim, caberia ressaltar 0 Conferir MARX, Karl. d questo judaica. Tradugio de Silvio Donizete Chagas. S ed. Sto Paulo: Centauro, 2005. " Buscar o capitulo VIII ~ “A jomada de trabalho” de MARX, K. O capital: rtica da economia politica ~ © processo de produgdo do capital. Tradugd0 de Regis Barbosa e Flavio R. Kothe. Sto Paulo: Abril Cultural, vol. 1, tomo 1, 1983, p. 187 e seguintes. 188 famoso texto da “Critica ao Programa de Gotha”,"®* no qual o revolucionario alemao propde, ao mesmo tempo e para alguns intérpretes,"®* uma critica ao direito burgués e uma possibilidade de uma teoria da justi¢a que resgate o sentido histérico do direito mesmo. Muita divergéncia ha sobre a posigao de Marx acerca do direito, mas talvez 0 que mais importa de sua obra para a analise do fendmeno pulitico- ridico seja justamente seu método materialista histérico cujo primado se encontra na visdo da totalidade (como postulam seus mais autorizados intérpretes, tais quais Lukacs, Bloch e Kosik) ainda que amparado por uma descoberta ética, a exterioridade do sistema (segundo a interpretagao de Dussel). De todo modo, fica a possibilidade de uma interpretago sobre a relacao entre Marx @ 0 direito como que sendo guiada por uma nao resposta ao problema de sua necessidade. Avaliamos esta dualidade entre o direito ¢ 0 ndo-direito em Marx como uma tensao congénita ao préprio fenémeno juridico-politico, captada — ainda que assistematicamente — pelo eminente filésofo da praxis. E justamente nessa linha de raciocinio & que nos foi possivel, em outro lugar, avangar para o problema do poder, ja que direito € espécie de organizacao politica, a qual, sob 0 modo de producdo capitalista, erigiu-se a partir do estado como pretensa fonte unica de produgao do direito. Trata-se de uma autoproclamacao da ideologia monista e estatal acerca do fenémeno juridico-politico, o qual, entretanto, nao se verifica na pratica das formas e modos de vida para além de 0 aceito como normal pelo capitalismo. Assim é que, se ha uma necessidade deontolégica da monocultura do juridico, hé, ao mesmo tempo, uma impossibilidade de sua persisténcia, sendo que a pluralidade vige e se destaca em qualquer observagao sociolégica. corre que esta discussao tem de transcender a mera observagao das fontes ‘outras de produgdo de organizagao politica que nao o estado, j4 que as interpretagdes do pluralismo juridico sao insuficientes para explicar a pluralidade a qual enfatizam. Dai langar mao, ainda que com uma dosagem metaférica mesmo que nao s6, da nogao de Ver MARX, K. “Critica ao Programa de Gotha". Em: __ ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. Sao Paulo: Alfa-Omega, vol. 2,8. dp. 203-225, * Conforme LYRA FILHO, Roberto. Karl, mew amigo: didlogo com Marx sobre 0 diteito, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, Instituto dos Advogados do RS, 1983. 189 poder dual latente — ou poder dual/plural — seja imperativo para compreensdo de realidades que se opSem ndo s6 a monocultura do direito como também a sua possibilidade de existéncia no seio mesmo do capitalismo. Se é assim, voltamos a Marx @ incorremos na tensdo congénita entre a necessidade do direito e a necessidade igual de um ndo-direito.'° Esta mesma tensdo, captada por e a partir de Marx, subsistira no debate pratico acerca do direito por ocasiao da realizagao da revolugao russa. Os teéricos do direito soviéticos, entrementes, apesar de procurarem todos anunciar a extinguibilidade do direito no longo prazo, nem sempre concordaram com as conseqiiéncias do nao-direito no curtissimo prazo. Dai a famosa polémica entre Stucka e Pachukanis, em que o primeiro entendia 0 direito como “um sistema (ou ordenamento) de relagdes sociais correspondente aos interesses da classe e tutelado pela forga organizada desta classe”,"®° enquanto que, para o segundo, a inversao do carater de classe do direito seria impossivel, j4 que “o fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo juridico”."°’ Dessa forma, ainda que ambos entendam o direito como relagdes sociais, Pachukanis 0 entende como um momento das relagdes econémicas, mas com sua especificidade histérica, qual seja, apresentar-se como forma legitimadora das relages sociais burguesas. debate entre os juristas soviéticos restou inconcluso e adormeceu na alvorada estaliniana. Viria a ser relembrado no reascenso das teorias criticas do direito, a partir da década de 1970, quando voltam a fazer sentido as criticas marxistas ao direito desde a perspectiva marxista. Referidas teorias criticas, teriam vez na Europa e na América Latina.’ Esbogariam, no caso europeu e a titulo de exemplo, panoramas epistemolégicos "5 Em resumo, foi 0 que propusemos em nossos estudos de mestrado, para o qual indicamos nossa dissertagao: PAZELLO, Ricardo Prestes. produedo da vida e o poder dual do pluralismo juridico insurgente: ensaio para uma teoria de libertago dos movimentos populares no choro-cangao latino-americano. Florianépolis: Curso de Pés- ‘Graduagio (Mestrado) em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2010, p. 107 e seguintes. ™ STUCKA, Petr Ivanovich. Direito e luta de classes: teoria geral do dircito. Tradugao de Silvio Donizete Chagas, $40 Paulo: Aeadémica, 1988, p. 16. ” PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. Teoria geral do direito e marsismo. Traduglo de Silvio Donizete ‘Chagas. Sa0 Paulo: Académica, 1988, p. 75. * Conferie: WOLKMER, Antonio Carlos. Inrodugdo ao pensamento juridico eritico. 7 ed. Sao Paulo: Saraiva, 2008. 190 diferenciados, como em Michel Miaille,""° ou mesmo praticas _incisivamente contestadoras, como entre os cultores do chamado “uso altemativo do direito’, em especial oriundos das magistraturas italiana e espanhola. Jé na América Latina, estas influéncias se desdobrariam em continuidades mas também comi inovag6es, sendo que obras importantes como as do chileno Eduardo Novoa Monreal,'® do argentino Carlos 191 Maria Carcova'”' ou dos mexicanos Oscar Correas’” e Jesus Antonio de la Torre 198 Rangel'* seriam representativas de um pensamento autéctone e extremamente criativo, para uma realidade sufocante e marcada pelo colonialismo intelectual. No Brasil, por sua vez, as teorias criticas do direito também fariam grande estrépito, desde seus pioneiros, notadamente Roberto Lyra Filho," Luis Alberto Warat"® @ Luiz Femando Coelho,'® até as fecundas correntes inseridas no movimento de direito alternative. Assim é que teriam vez varias posigées teéricas de corte critico, cabendo ressaltar, porém, trés delas: o direito alternativo estritamente, 0 pluralismo juridico e o direito insurgente."”” Aqui, portanto, um manancial muito extenso, como fonte para se pensar a descolonialidade e © direito, passando pelas criticas juridicas. As tributérias do ° Ver MIAILLE, Michel. Introdugdo critica ao direito. Tradugio de Ana Prata, 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1989 Por toda a obra, consultar MONREAL, Eduardo Novoa. O direito como obstéculo 4 transformagéio social. “Tradugao de Gerson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988 ™'uscar CARCOVA, Carlos Matia. La opacidad del derecho. Madrid: Trott, 1998 Ver CORREAS, Oscar. Introduccién a la critica del derecho moderno (esboz0). 2 ed. Puebla: Universidad ‘Auiénoma de Puebla, 1986. ** Da produgdo do autor, destaque para RANGEL, Jestis Antonio de la Torte. El derecho que nace del pueblo. Bogotd: FICA; ILSA, 2004. * Ver o clissico de LYRA FILHO, Roberto. O que é direito, S40 Paulo: Nova Cultural’ Brasiliense, 1985. °* Obra inspiradora para varias geragdes de juristas criticas, destaquemos de WARAT, Luis Alberto. 4 ciéncia jrdica e seus dois maridos. Santa Crz do Sul: aculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985 '% Conferir uma das primeiras grandes tentativas de sistematizagdo da teoria critica do direito: COELHO, Luiz Fernando. Teoria critica do direto. 2 ed, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991 Sobre o assunto, hd frondosa literatura, da qual destacamos as mais significativas produgdes: CORREAS, ©. “Derecho alterativo: elements para una definicion”. En: ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de (org). Ligdes de diveito alternaivo do trabalho. Sto Paulo: Académica, 1993, p. 15-28; CARVALHO, Amilton Bueno de Magistratura e dreito alternative. Sto Paulo: Académica, 1992; ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de. “Direito allemativo: notas sobre as condigdes de possibilidade”. Em: (org). Ligdes de direito alternativo. Sto Paulo: ‘Académica, 1991, p. 71-98; PRESSBURGER, T. Miguel. "Dieito, a altemativa”. Em: OAB-RI. Perspectivas socioligicas do direto: dz anos de pesquisa. Rio de Janeiro: OAB-RJ; Universidade Esticio de Si, 1995, p. 21-35; ARRUDA JUNIOR, EL. de. “Direto alterativo no Brasil: alguns informes e balangos preliminares”. Em: (org). Ligdes de direito alternativ, Sto Paulo: Académica, vol. 2, 1992, p. 159-177, CARVALHO, A. B. de “Direitoaltemativo: uma revista conceitual”. Em: Revista de cultura vozes. Petropolis: Vozes, ano 96, vol. XCVI, 3, maio-junho de 2002, p. 18-31; e LUDWIG, Celso Luiz. Para uma flosofia juridica da libertagdo: paradigmas da Filosofia, filosofa da libertago e direto alternative. Flriandpolis: Conceito Editorial, 2006, ist marxismo, certamente, aparecem como as mais pujantes, pela sua radicalidade teérica @ pratica, ja que levam a insurgéncia e a uma postura revolucionaria para com relacdo ao direito. Vejamos, a seguir e sucintamente, quais os pontos de partida para esse didlogo. 3.2. Pontos de apoio para o resgate das criticas juridicas Para efeitos de sintese tedrica, necessaria devido a impossibilidade de continuarmos nos estendendo sobre o assunto aqui, vale ressaltar quatro grandes criticas ao direito, em suas especificidades, as quais nos levardo para uma intersecgao entre a descolonialidade, a critica ao direito e aos direitos humanos e os movimentos populares. Sendo vejamos: a) a historicidade do direito: a partir do referencial marxiano e marxista, podemos compreender nao ha como advogar por um direito universal, esculpido em uma forma atemporal, resistente ao tempo e a histéria. Mesmo que, desde Marx, visualizemos a necessidade tatico-estratégica do direito para assegurar conquistas, oriundas das lutas dos movimentos operarios e populares, néo nos dao elas a presungao de sua universalidade, uma vez que o ndo-direito também se desenha a partir da necessidade de sua superaco, Como pode restar claro, para além de o problema terminolégico (saber se podemos chamar de direito todo fenémeno de organizacao social ou nao), compele-nos a critica marxista a verificar 0 que nao esté-ai. O ndo-direito é o lado oculto da preocupagao politica que pode mobilizar os povos, alavancados por seus sujeitos coletivos histéricos da transformagao social. Dessa forma, aperfeigoado pelo modo de produgao capitalista, sua subsisténcia para as utopicas (quer dizer, os nao- lugares-ainda) formagdes sociais s6 se poderé de tal modo que aquilo que hoje soemos chamar direito néo mais fard sentido, a despeito de isso nao implicar falta de organizagao politica da sociedade (mesmo porque o direito é uma sua espécie apenas). b) direito como espécie do género organizagao politica: exato corolario da critica anterior, esta formulagao devolve a “dignidade politica ao direito’ (para usar a expressdo de Lyra Filho), devolugo esta ensejada por uma reformulagao da divisdo social do trabalho intelectual que nao pode optar pela neutralidade, pois ai ja se conformaria uma contradigao performatica. E justamente isto que todas as perspectivas criticas do direito, quase que em unissono, reverberam, no sentido de demonstrar que 192 neutralidade e apoliticidade juridicas so discursos e ideologias que se ressentem de aplicabilidade na produgao do conhecimento. Mais do que isso, porém, a devolugao da dignidade politica ao direito, além de coloca-lo na roda da histéria, permite uma disputa por seu funcionamento, na tatica espaco-temporal dos movimentos de massa. ) superagao da forma juridica: sendo o direito relagao social, expressdo que suprassume dialeticamente as tradicionais verificagdes do que seja o ser do direito (dentre as mais entoadas, 0 normativismo positivista e 0 jusnaturalismo), faz-se necessdrio superar sua forma histérica, 0 que também nao deixa de ser conseqliéncia das teses anteriores. Certamente, este @ 0 grande contributo do debate histérico realizado entre Stucka e Pachukanis. Para ambos, como ja dito, 0 direito conformava relagdes sociais. Em especifico, para Stucka, 0 direito apresentava-se em trés dimensées, trés formas juridicas: uma concreta (as relagdes econémicas) e duas abstratas (a lei e a ideologia). Mesmo que prevalecendo a conereta, subsiste a forma na transigao socialista, 0 que na obra primeira de Pachukanis ja nao se constata, pois leva s Ultimas conseqiiéncias sua critica ao direito: 0 antinormativismo, em todos os Ambitos (econémico, positive e ideolégico), deveria guiar a supressdo do direito rumo a uma nova forma de organizagao politica, ainda que isto nao implique aceitagao da metafora edilicia infra e superetrutura para caracterizar o direito no ambito da segunda. Ao contrario, para os dois classicos soviéticos, nao ha reducionismo da forma juridica a um dos pélos da metéfora, ainda que se possa discutir acerca de um modelo privatista para a inquirigao sobre o direito. d) necessidade de afirmagao histérica de um direito insurgente: dentro do quadro das criticas juridicas, contudo, subsiste 0 problema do fenémeno juridico-politico em realidade que nao experimentaram a revolugao socialista ou que nao podem leva-la aos Uiltimos impetos que uma transformagao revolucionaria comporta. A transigao politica também 6 juridica e, desde logo, alerta-nos para um poder dual que se gesta nos desvaos da ordem posta. Dai que o direito insurgente’®® ganha vez como delineamento ° Direito insurgente é expresso que inspirou varios assessores juridicos populares, cabendo destacar: BALDEZ, Miguel Lanzelloti. Sobre o papel do direito na sociedade capitalisia ~ Ocupagdes coletivas: direito insurgente Petrdpolis: Centro de Defesa dos Direitos Humanos, 1989; PRESSBURGER, T. M. “Direito insurgente: 0 direito dos oprimidos”. Em: ___; RECH, Daniel; ROCHA, Osvaldo Alencar, RANGEL, Jesis Antonio de la Torre. Direito insurgente: 0 diteito dos oprimidos. Rio de Janeiro: IAJUP; FASE, 1990, p. 6-12; e ALFONSIN, Jacques Tavora. “Negros e indios: exemplos de um diteito popular de desobedigncia, hoje refletidos nas ‘invasdes* de terra”. Em: 193 critica que absorve a positividade de combate (das regras postas) assim como 0 uso alternativo do direito (com interpretagées nao canénicas das regras estabelecidas). Mas nao se resumindo a isto, o direito insurgente consegue encontrar na realidade de resisténcia das classes populares uma outra forma de se produzir 0 direito e, no limite, 0 nao-direito. Por isso, a necessidade de renovar constantemente o estatuto tedrico dos movimentos populares com relagao ao direito posto, teorizado e mesmo o deposto, a fim de que ganhe vida, na legitimidade da dialética entre contestacao e reivindicagao, uma nova ordem social. 4, Poder dual latente Ao cabo de nossa preocupagao, tera de aparecer uma mediagao a um s6 tempo sociolégica (com lastro histérico) e normativa, qual seja, 0 poder dual latente que se instaura a partir do encontro total entre movimentos populares e autogestao da produgao material da vida. Para tanto, 0 esforgo aqui seré o de apresentar, sucintamente, as interpretagdes e reinterpretagdes da nogao de dualidade de poderes, assim como seus impactos na hermenéutica dos movimentos populares. 4.1.Sobre a dualidade de poderes: interpretacao e reinterpretagao A expresso “dualidade de poderes” se origina das interpretagées, inspiradas em Marx, de Lénin e Trétsqui acerca do desenvolvimento da revolugao russa de 1917. Ja a locugao “poder dual latente” é uma reinterpretagao feita por Boaventura de Sousa Santos, inspirado naqueles, para descrever situacdes de pluralidade de poder ou poder insurgente ainda nao manifesto. Quando Lénin, em suas famosas “Teses de abril’, se refere a uma disputa pelo controle do poder revolucionario na Russia insurgente pés-czarista, abre interessantes novas possibilidades para a interpretacao da teoria politica marxista. Dizia ele: a caracteristica principal de nossa revolugdo, caracteristica que mais imperiosamente requer uma reflexao atenciosa, 6 a duplicidade de poderes, surgida imediatamente apés o triunfo da revolugao. Esta duplicidade de poderes manifesta-se na existéncia de dois governos: 0 governo principal, auténtico e efetivo da burguesia, 0 “Governo Provisério” de Lvov e __; SOUZA Filho, Carlos Frederico Marés; ROCHA, Osvaldo de Alencar Rio de Janeiro: AJUP; FASE, 1989, p. 17-37. -gros e indios no eativeiro da terra 194 Cia, que tem nas maos todos os érgaos do poder; e um governo suplementar, secundario, de “controle”, representado pelo Soviete de deputados operarios e soldados de Petrogrado, que nao tem nas maos os érgaos do poder de Estado, mas se apéia diretamente na incontestavel e absoluta maioria do povo, nos operarios e soldados armados. "°° Esta 6 a descrigao da situagao revoluciondria russa em 1917. A par da polémica que Tréstsqui instauraria tempos depois sobre a universalidade da dualidade de poderes em situagdes revolucionarias, o mais interessante 6 perceber que ela sé se torna possivel a partir de modificagdes estruturais nas relagbes de produgao de uma sociedade e tendem a se resolver em uma nova unidade de forgas. Esta interpretagao havida no seio de um contexto eminentemente revolucionaria foi reapropriada, por Boaventura de Sousa Santos, na década de 1970, para tentar oferecer novos instrumentos analiticos para as situagdes distintas dessa nova época, ao menos no plano epifenoménico. Analisado duas situagdes de pluralidade juridico-politica — a revolugao portuguesa e os conflitos de movimentos sociais no Brasil - 0 autor chega a conclusao seguinte: “um poder dual complementar ou paralelo é a pré-histéria de um poder dual confrontacional"?"° Importa dizer, uma situagéo de conflito manifesto, em termos politicos, sé se origina a partir da laténcia deste conflito. E referido poder latente (poténcia) equivale a uma assimetria de poderes, em especial quando confrontado com © estado e com o capital nacional e internacional. Contudo, mesmo com esta assimetria, ganha relevo um novo sujeito histérico — nem tao novo assim — que so as classes populares organizadas em movimentos. Esta organizagao sé se torna potencialmente revolucionaria no sentido da totalidade requerida por qualquer revolugao (ou seja, nunca reduzida apenas a problemas especificos, como os de classe, raca/etnia e género, mas sim a todos estes problemas) quando claramente fixada na base material (econémica, ecolégica, cultural) da LENIN, V. 1. “As tarefas do proletariado em nossa revoluglo (Projeto de plataforma do partido proletirio)”. Em: Teses dle abril: sobte as tarefas do proletariado na presente revolug2o. Tradugdo de J. A. Cardoso, So Paulo: ‘eadémica, 1987, p. 18. “ SANTOS, Boaventura de Sousa. “Justica popular, dualidade de poderes e estratégia socialista”. Tradugdo de José Reinaldo de Lima Lopes e José Eduardo Faria, Em: FARIA, José Eduardo (org.). Direto ¢ justia: a funglo social do judicidrio. Sa0 Paulo: Atiea, 1989, p. 202. 195 produgao da vida e quando 6 capaz de tomar sua forma democratica factivel. Dai 0 encontro entre movimentos populares e autogestao nos ser tao caro. 4.2.0 encontro entre movimentos populares e autogestao gera um poder latente Se € certo que a dualidade de poderes leniniana nao se faz tao presente no caso dos moviementos populares brasileiros (¢ latino-americanos, em geral) neste inicio de milénio, to certo quanto 6 que a utopia (0 ndo-lugar-ainda) revoluciondria nao desapareceu. Os movimentos populares apresentam-se, em muitos sentidos, como o tipo de organizagao que hoje, na conjuntura atual, ainda conservam elementos desta capacidade confrontacional. Ao dizermos isso, nao queremos messianizar suas praticas, mesmo porque sao elas realmente limitadas estruturalmente. Todavia, enquanto nao se torna possivel um contexto em que estes limites se mitiguem, continuam servindo de exemplo pedagégico para o inconformismo. Atualmente, os movimentos populares estdo mais em posigao de resisténcia que de experimentalizacao, 0 que nao importa, porém, perda de seu potencial. O MST, por nés aqui aventado, por exemplo, desde a década de 1990 teve de se construir na dialética entre uma organizagao de contestagdo da ordem e, ao mesmo tempo, de reivindicago de algumas de suas possibilidades paliativas. Mesmo assim conseguiu erigir agdes diretas nao sé defensivas, mas também ofensivas (em especial, na esfera da ago politica e educativa). Quanto ao aspecto econémico, seu sistema cooperativista consegui consolidar assentamento de cerca de 250 mil familias até o inicio dos anos 2000. E, neste conjunto de realizagbes, houve um realce todo especial para o regime coletivista de produgao agropecuaria, caracterizado pelas “cooperativas de produgao agropecuaria’ (CPA). A CPA, inspirada em um tipo de cooperativa cubana, foi constituida como uma forma de resisténcia politica e, ao mesmo tempo, de ensaio para a superagdo do individualismo econémico. Foram conseqéncia de dois fatores conjunturais, ainda que contraditérios: a forte repressdo econémica, politica, ideolégica e policial desencadeada contra 0 MST durante 0 periodo do govemno Collor de Mello (1990-1992), periodo em que 0 MST sofreu a mais forte perseguigao politica e policial, e exigiu recuos defensivos 196 na luta pela terra para evitar seu exterminio. Um desses tipos de refiigio criados foi a CPA. O outro fator foi a necessidade de enfrentar politicamente, através de uma forma de organizagéo social da produgéo mais complexa, a situagao oligopolista e oligopsénica dos mercados de insumos e produtos agropecuarios, tendo em vista a completa liberalizagao dos mercados pela eliminagéo de mecanismos como as aquisigdes do governo federal e os estoques reguladores, imposta a populagdo a partir do governo Collor. As CPAs e, posteriormente, as CPSs [cooperativas de prestagao de servigos] foram respostas a situagdes concretas vividas pelos trabalhadores rurais sem terra assentados.*”! Pois bem, esta concretitude da luta espraiou-se por toda a organizagao do MST @ a longa citagao acima, fruto da polémica iniciada por académicos que imputam ao movimento elementos antidemocraticos, evidencia justamente o teor basal e democratizando da proposta cooperativa. Na verdade, uma proposta assentada no desenvolvimento de um movimento de massas e que, no plano da organizacao econémica, assume principios autogestionarios de produgdo da vida. Como seu postulado de fundo é que politica e economia nao se podem dissociar, podemos argulir sobre a possibilidade de a autogestdo ser uma transversalidade na experiéncia deste tipo de movimento popular cuja significagao 6 inquestionavel no que tange a forja necessaria de uma instancia nacional de articulagao de coletivos setoriais, como o afirma o proprio Horacio Martins de Carvalho (autor da citagao anterior).”°* Enfim, do encontro dos movimentos populares (fenémeno organizativo das classes trabalhadoras contemporaéneo) com a autogestéo (compreendida como totalidade material) é que paises sem contextos revolucionarios instaurados, como o Brasil, conseguem lobrigar situagéo de um poder dual latente, gestando-se para se insurgir quando da maturidade das relagdes objetivas e subjetivas do povo para a modificagao radical e estrutural do modo de produzir a vida tal e qual nés o concebemos. "! CARVALHO, Horicio Martins de. “A emancipagio do movimento no movimento de emancipagio social ccontinuada (resposta a Zander Navarro)”. Boaventura de Sousa (org.). Produzir para viver: os ¢gaminhos da produgi0 nao capitalist. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizagio Brasileira, 2005, p. 251-252. ™° CARVALHO, Horicio Martins de. “A emancipago do movimento no movimento de emancipaglo social ccontinuada (resposta a Zander Navarro)", p. 246 197 Consideragées finais: os desafios da insurgéncia Como reiterado nesta reflexao, os movimentos populares apresentam-se como a organizagao potencialmente apta, diante das circunstancias presentes, para germinar 0 novo no modo de produzir a vida. Mas esta novidade nao se aprisiona no simbolismo cultural e antes coloca-se na pratica de uma nova produgao econémica. Para fazé-lo, insta praticas autogestionarias de divis4o cooperativa do trabalho e permite, com isso, alentar os céticos com relacéo ao atual modo de existéncia. Nesse passo, as experiéncias histéricas de movimentos populares como o MST aparecem como um testemunho de que a histéria nao acabou e, ao contrario, ainda engatinha. Instaurar_ um poder dual confrontacional, como aquele de periodos revolucionarios, exige, no minimo, sdlida construgéo da insurgéncia. Se hoje presenciamos praticas insurgentes de todos os tipos nas mais diversas experiéncias de movimentos populares, o desafio de nosso tempo é a unidade de todas elas em pro! de uma nova sociedade. As eternas crises pelas quais atravessa 0 modo de produgao capitalista bem 0 demonstram, ainda que ndo signifiquem a sua espontanea desaparigao. A febre é sinal de anormalidade no interior de um corpo sao; do mesmo modo, as crises do capital. Os movimentos populares, em sua resisténcia e ataque, tém de construir uma simetria de poderes e isto passa pelo alcance da socializagao dos meios de produgo, a fim de atender as necessidades econémicas e culturais das classes trabalhadoras. Este é 0 desafio coeténeo da insurgéncia e do poder dual latente. 26 Praxis y reconocimiento. Ir contra-y-mas-alla del capital desde los movimientos sociales latinoamericanos Hugo Alejandro Cabello Rios Introduc n Hablar de praxis y reconocimiento nos supone ubicar sobre la mesa de discusin la posibilidad del reconocimiento*® (incluso como una lucha por) y en su ejercicio ® Categoria filosifica construida desde los planteamientos de Hegel, entendida como una “lucha por el reconocimiento” es decir, la confiontacién de dos sujetos en igualdad de condiciones, quien venza, seri reconocido,

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