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Brasil: Um Espaço Híbrido. publicado em 1948. Na mesma época publica no jornal O Radical
uma crônica, que irá lhe direcionar para escrever seu primeiro
romance, Verdes Mares Bravios, que mais tarde será reeditado pela
Melhoramentos de São Paulo com o título de Aventura no Mar,
Jhonatas Geisteira de Moura Leite (UESPI)
adotado ainda hoje em diversas escolas para o público infanto-
juvenil.
O presente ensaio propõe a analisar o espaço geográfico na
obra de Assis Brasil, o contexto sócio-econômico, e os híbridos que Assis Brasil tem mais de 100 obras publicadas, dentre elas
influenciam um sistema de práticas. crônicas, ensaios e romances, como Beira rio Beira vida. Este
romance teve uma boa aceitação pela crítica, abrindo uma nova visão
1. O autor: vida e obra
para a literatura contemporânea brasileira, o qual em 1965 o mesmo
lhe rendera o prêmio nacional Walmap, que foi criado para suscitar o
Francisco de Assis Almeida Brasil, natural da cidade de
aparecimento de obras acima do nível comum.
Parnaíba-Pi, é escritor, cronista, crítico literário, ensaísta e jornalista.
Mesmo bem aceito pela crítica, Beira Rio Beira Vida não
Membro da academia piauiense e parnaibana de letras, o piauiense,
foi bem aceito pelas castas burguesas parnaibanas, pelo seu caráter de
cujas suas obras assina como Assis Brasil, logo se destacou por
denúncia, e por colidir com os comerciantes de Parnaíba, mostrando a
retratar a vida nordestina, misturando arte com vida.
outra face de uma sociedade ainda desconhecida, capitalista e
Desde cedo foi familiarizado com a música e a leitura, tendo
oportunista.
como influência o apego que a mãe tinha pela arte e o hábito de
Beira Rio Beira Vida é um romance pós-modernista, que na
leitura do primo, estudante de direito, Ivan1, que o conhece quando
época foi visto como um romance de província, por ter o seu enredo
vai a Fortaleza-CE terminar o científico.
desenvolvido no cais do Parnaíba. Mais tarde com a crítica
Aos 15 anos Assis escreve seu primeiro texto literário,
contemporânea, o romance será classificado como “romance de
1 Notas extraídas em entrevista com Assis Brasil, autor da obra, em entrevista periferia”, por abordar os problemas sociais da margem que Parnaíba
feita em Teresina-PI no ano 2009.
se encontrava. entrelinhas a situação econômica no início da década de 40, quando
Com narração de cunho regionalista e histórico, Beira rio Parnaíba tinha linha, dentre outras localidades, com Floriano, Balsas
Beira vida desenvolve um importante papel dentro da literatura e e Tutóia, relatando o ápice e o declínio das embarcações a vapor
história piauiense, por recriar e resgatar cultura e momentos da “gaiolas”, utilizadas para escoar as opulências do Piauí, conforme o
historia do Piauí, fazendo uma descrição minuciosa do cotidiano. trecho a seguir;
2. O cais de Assis Brasil: vida, inspirações A noite a mãe contou a outro tipo de farda: veja só uma coisa,
ganhei tudo isso aqui com meu santo suor, mas de que adiantou?
As barcas não podem passar para Tutóia, os navios cobram uma
fortuna e muitos encalham também – esse rio seco, esse rio
Certamente os fatores que levaram Assis Brasil a miserável. Fiz sacrifício, economizei, queria ser uma industrial,
como eles dizem lá na cidade.4
adotar o cais como espaço foram a sua vivência no município de
Parnaíba, o contexto sócio-econômico, marcado pela fome, miséria, 3. O espaço humano de Beira Rio Beira Vida
luto e a percepção da forma fria como os escritores estrangeiros
descreviam o ser humano, ausentando dele a sensibilidade e a Emergindo no campo do espaço geográfico, tema em pauta, nos
emoção. deteremos ao conceito de espaço humano proposto por Salvatore para
Assis toma como fonte inspiradora para produzir sua analisar a geografia escolhida por Assis Brasil em Beira rio Beira
obra fatos reais, como a vida da lavadeira de roupas de sua mãe, vida, conforme denota o seguinte trecho:
Luiza do cais2, que se prostituía para garantir a sua sobrevivência e a
da filha deficiente, assim também como o menino Jessé3 e demais (…) O cais repleto de marinheiros, os marinheiros d'água doce
mais felizes – contavam de outros portos num dia daquele, um
personagens que se manifestam na obra, como um misto de ficção e passara no estrangeiro, debaixo de neve e frio – como vieram
encostar em Parnaíba? Dera para beber por causa da friagem -
realidade. “isso é desculpa furada. Macedo seu cachaceiro - na hora do
Assis também teve a preocupação de narrar em suas embarque não sabia onde estava, aquela língua esquisita deles,
ninguém explicava direito, perdeu o cargueiro, passou fome – e
bebendo, bebendo mode o frio – pegou outro navio como
2 Notas extraídas em entrevista com Assis Brasil, autor da obra, em entrevista taifeiro e desembarcou em Tutóia. Lhe mostraram o rio, nunca
feita em Teresina-PI no ano 2009.
3 Ibid. 4 BRASIL, Assis. Beira rio Beira vida. Teresina: Fundapi, 2008, p.32
tinha viajado em rio, queria conhecer outras terras.5 estivesse presa naquele rio. Em contrapartida, o referido rio era tido
Podemos ver que o narrador (ora Luiza que dialoga com a como um campo de terror, de medo, como um rio assassino e cruel,
filha Mundoca, cujo dialogo se realiza em forma de escuta pela filha, místico, berço de lendas e histórias contadas por embarcadiços e
por que esta permanece em toda a narrativa de forma silenciosa e canoeiros, além de ser ele o motivo da prostituição por ser a principal
quando responde, é de forma breve e objetiva, não demonstrando via de acesso a cidade de Parnaíba e ponto de confluência das mais
muito interesse pelo que a mãe fala, ora Cremilda que conversa com diversas camadas sociais.
espaço atópico na narrativa: tomá-lo como cenário de aventuras amorosas, palco de lembranças e
vivências de romances, descrevendo as experiências de uma profissão
A barca parecia um fogareiro sobre as águas. O saco mais prazerosa, mas ao mesmo tempo sofrida e humilhante.
enegrecido, a fumaça preta envolvendo os homens que gemiam
por cima dos fardos chamuscados. O cheiro de carne assada, o Dentro deste espaço tópico irá se desenvolver a temática do
grito dos que estavam morrendo, o grito dos que salvavam –
sinal-da-cruz no peito dos marinheiros que sabiam o fim – a enredo, que é a prostituição, que será abordada pelo autor como um
cabeça descoberta cheias de respeito – os gritos, os gemidos,
nem os gemidos do Cabeça-de-Cuia nas noites enluaradas.7
ciclo (dinastia), uma maldição, que deu início com Cremilda que
amaldiçoou a filha, Luiza, ainda no seu ventre. Essa maldição foi
O autor descreve de forma explícita o “velho monge” como
quebrada com a neta Mundoca, por vários motivos, dentre eles
sendo a fonte de renda parnaibana, e como se a vida piauiense
citaremos os seguintes:
5 BRASIL, Assis. Beira rio Beira vida. Teresina: Fundapi, 2008, p. 109
6 Salvatore D'Onofrio, em Teoria do texto I, nos mostra que este espaço tópico é 1°) A filha Mundoca não se enquadrava dentro dos padrões de
um espaço conhecido, seguro, que admite uma escala de intimidade, cuja
intensidade segue uma linha ascendente: pais, cidade, bairro, rua, casa, quarto, beleza esperados pelos marinheiros. Propositalmente, Mundoca, em
cama, útero; porem o atópico é um espaço hostil, marcado pela aventura e
misticismo, pelo mistério, que atrai a luta e o sofrimento. certos momentos demonstrava não se preocupar com a aparência, por
7 Ibid, p. 81
perceber a esperança que a mãe depositava nela para que através dela finalmente foi transferida para o armazém nos fundos da loja –
se quebrasse a sequência de prostituição naquela família, conforme a conferia as peças da fazenda, outras mercadorias, arrumava as
prateleiras, espanava, ou ficava apenas a olhar os ratinhos que
seguinte fala da personagem Cremilda, “ - É um traste essa tua filha,
saíam dos buracos, assustados, procurando migalhas, ou
Luiza. Imagina que nem o rabo ela limpa direito, anda fedendo pelo
apenas passava o dia resmungando lá no fundo, chorando, de
meio da casa” (BR. 93)
quando em quando dava um grito. […] era a mulher, a mulher
que gostava de espalhar para todo mundo o que eles faziam, o
2°) Com o declínio das embarcações, foi se desfazendo o que ela sozinha, resolvia fazer. E ninguém ligava para os seus
aglomerado de homens no cais, abrindo uma nova perspectiva de motivos, bem íntimos, de pessoa cristã e civilizada. 9
10 SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo, razão e emoção. 3° edição. São Paulo: Hucitec, 1999, p.76.
moedas...”” (Milton Santos, 1999, p.77).
Assis Brasil denota em sua obra de forma clara o seguinte
Esse mundo da matéria, juntamente com o capitalismo momento histórico do desenvolvimento da economia parnaibana,
exacerbado que cresceu de forma acelerada no cais, devido ao conforme segue o trecho:
declínio das embarcações, favoreceu apenas a algumas camadas
sociais na época, desenvolvendo assim o comércio local. O silencio vinha do rio.
−Parnaíba está crescendo.
Com este desenvolvimento, as camadas mais pobres que se −Só cresce lá pra cima, na parte mais plana. Estão até
construindo uma nova Parnaíba.
situavam no cais, ficaram desfavorecidas, marginalizadas, pois a
−Daqui a alguns anos como será tudo isso?
principal fonte de renda da população ribeirinha vinha da −Eu queria ver, eu queria ver.
−Eu também.
navegabilidade no rio, que exportava dentre outros extratos vegetais, Nuno não voltou para ver a mudança – o desprezo pelo cais
velho, lugar de perdição, cheio de rapariga. 11
milho, algodão, charque e a cera da carnaúba.
Tal fenômeno pode ser comprovado através da visualização da
Podemos conferir e entender, através do trecho supracitado o
planta da cidade, que tem como ponto de origem das principais
mundo da matéria na Parnaíba de Assis Brasil. Um mundo dominado
avenidas o cais parnaibano. O gráfico seguir confere o citado
pelo capital.
argumento:
3.2.2 Mundo do Significado Humano
Parnaíba
Para não cometer o equívoco que Milton Santos nos alerta,
continuaremos a analisar a problemática, através do outro pólo do
híbrido, o mundo do significado humano, simultaneamente com o já
Cais (periferia) Centro
Prostituição, miséria, (Burguesia) trabalhado, mundo da matéria.
marginalidade. Caridade, Com o novo contexto histórico o qual Parnaíba estava
nome.
inserida, podemos perceber a desvalorização da mão-de-obra no
município, a miséria no cais, e a significação que era aplicada a estas
11 BRASIL, Assis. Beira rio Beira vida. Teresina: Fundapi, 2008, p. 110, 111.
pessoas. Para o teórico, os mesmos objetos que compõem o espaço,
ao longo do tempo, tendem a serem valorizados ou desvalorizados. Os Morais não queriam sujeira na frente do seu armazém –
apontavam para o outro cais com desprezo, “ a parte velha que
Tal argumento pode ser comprovado na obra de Assis Brasil: envergonha a cidade, só tem rapariga”, as casas caindo, o
prefeito não via aquela desmoralização bem na cara das
famílias de respeito. 13
Os Morais trouxeram a novidade – o algodão era chupado por
uma máquina barulhenta, não preparavam mais os fardos. Os
trabalhadores ficavam sem emprego e os pombos se mudaram Assim, podemos perceber o significado que era aplicado às
por falta de comida. A demora dos marinheiros encurtara, mulheres do cais, eram tratadas com desprezo, descaso, sem nenhum
voltavam sem nenhuma noite passada no cais. 12
valor social para a classe dominante, incluindo o clero local:
O tempo e os novos caminhos econômicos que Parnaíba
trilhava, contribuíram de forma significativa, para a marginalização e Vou dizer para você uma coisa Mundoca: já vi tanta gente se
interessando pela miséria do cais que fico besta. Depois nada.
o desemprego. Até um padre andou olhando a gente, perguntando, e
perguntou se alguém tinha ajuda, recebia ajuda. Ninguém
O cais, por sua vez, sentiria o impacto da nova Parnaíba.
soube a que ele se referia. Era um padre bem novinho.
Consequentemente, a degradação local se acentuaria, pois com a O padre Gonçalo, esse nunca apareceu no cais que eu
saiba. Fica lá nos batizados dos ricos, nos banquetes,
defasagem da mão-de-obra, contribuiria ainda mais para a
nos casamentos. 14
discriminação e o preconceito das prostitutas do cais, que já se
encontravam bastante desvalorizadas. Como podemos perceber, o espaço e o momento histórico
Milton Santos (1999, p.77) afirma que “reconhecemos a vida eram propícios a prostituição. A pobreza, a falta de oportunidade e os
específica de um objeto a partir da natureza de sua relação com o preconceitos abriram um campo de trabalho marginalizado,
evento que o situa”. Podemos ter noção e visualizar a vida que as periférico, para as mulheres, devido a aglutinação e a concentração
prostitutas tinham, pois a burguesia não as aceitavam, o cais era tido dos mais diversos tipos de pessoas no cais.
como uma afronta as famílias, uma desmoralização, conforme o Assis dá vida às personagens, mostrando a real situação que
trecho: leva o ser humano a tomar as suas decisões, não como um fato
13 Ibid, p. 49
12 BRASIL, Assis. Beira rio Beira vida. Teresina: Fundapi, 2008, p. 111. 14 BRASIL, Assis. Beira rio Beira vida. Teresina: Fundapi, 2008, p. 49
meramente isolado, mas procurando mostrar todo o evento que as ruas, o cais, os navios, os barracões, quanto na parte interna (os
preconceitos, discriminação, hipocrisia, etc.).
levam a se degradarem.
Assis Brasil teve grande êxito com Beira rio Beira vida, por
O escritor também dá uma dimensão humana as personagens, conseguir trazer em suas obras uma reflexão da versão do outro lado
da sociedade, o marginal, por conseguir, de certa forma, mudar o
não poupa em tocar e abordar os nomes das castas sociais, trazer à
comportamento de seus leitores.
tona o oculto, mostrar as prostitutas como um ser sensível e passível
de angústias e aflições. A poetisa parnaibana Luísa Amélia, descreve
em seu poema o drama sofrido por essas mulheres; conforme segue o
Referências
soneto:
BRASIL, Assis. Tetralogia Piauiense – Beira rio Beira vida, 2ª
Um Retrato edição Teresina: fundapi, 2008
D'estatura elegante, porte airoso, SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: espaço e tempo, razão e
e a tez levemente amorenada, emoção, 3ª edição. São paulo:Hucitec, 1999.
e a boca não pequena, e nacarada
O olhar meigo, triste e langoroso D'ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: Prolegômenos e teoria
narrativa. São Paulo: Ática, 1995.
A cabelo corrido, mas lustroso
Moldurando-lhe a face descorada
O nariz regular – fronte levantada, CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo:Editora Nacional,
prometendo um gênio grandioso. 1985.
Amando com paixão, sem ser querida, NETO, Adrião. Geografia e Historia do Piauí para Estudantes – da
Um homem que seus dons não aprecia, Pré-História à atualidade, 5ª edição. Teresina: Edições Geração 70,
E capaz por ele dar a vida! 2006.
Eis a triste mulher qu' a sorte impia
Para cum'los de males, atrevida
ALMANAQUE DA PARNAÍBA. Edição comemorativa dos 150
Deu-lhes vasta e ardente fantasia. anos da cidade de Parnaíba e 232 anos da vila de são João da
Parnaíba, N°61. Teresina: Editora Gráfica da UFPI, 1994.
Candido (1985) afirma que a arte tanto é influenciada pela ALMANAQUE DA PARNAÍBA. O que é feito do velho Monge –
sociedade quanto a influencia. Como podemos perceber, a influencia Mano Velho, canoeiro do rio Parnaíba, Ano LIX. Fortaleza: Gráfica
da sociedade na obra, que tanto aparece na parte externa do texto (as Editorial Cearense, 1982.
BRASIL, Assis. Beira rio Beira vida. Teresina, Livraria Nova
Aliança, 2009. (Comunicação oral).