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O TREZENTOS Giotto A comparagio entre Dante e Giotto tem um fundamento histérico: Giotto, nasci- do perto de Florenca pelo ano de 1266, foi um coetneo, um concidadao e, segundo atradigao, igo de Dante, Comparagao nao significa paralelismo: foi justa- mente obser¥ado (Battisti) que, entre poeta e pintor, as divergéncias prevalecem sobre as. analogias. Mas exatamente porque operam em dominios ¢ com intengdes diversos, Dante e Giotto sao os dois grandes pilares de uma nova cultura, conscien- te das proprias raizes histéricas latinas. A obra de ambos tem o mesmo valor de summa, de sintese de grandes experiéncias culturais, de sistema. O sistema de Dante fem uma estrutura doutrinaria e teolégica modelada no pensamento de Sao Tomé: © sistema de Giotto tem uma estrutura ética derivada da outra fonte da vida reli- giosa do Duzentos, Sio Francisco. Os escritores do ‘Trezentos, comecando precisa- mente por Dante, reconhecem a enorme importancia de Giotto: nao é mais o sibi artesio que opera na linha de uma tradigio a servico dos supremos poderes rel giosos e politicos, mas 0 personagem histérico que muda a concep¢4o,0s modos, a finalidade da arte, exercendo uma profunda influéncia sobre a cultura de tempo. Nao se louva apenas a sua pericia na arte,mas o seu engenho inventivo,a sua inter- pretagao da natureza, da histéria, da vida. O préprio Dante, tao orgulhoso da sua dignidade de literato, reconhece em Giotto um igual, cuja posigao, com respeito aos mestres que o precederam, é semelhante & sua em relagao aos poetas do doce estilo novo. Petrarca, embora levado pelos préprios gostos literdrios a preferir os sienenses, diz que a beleza da arte de Giotto se capta mais com 9 intelecto do que com os olhos. Boccaccio, Sacchetti, Villani insistem, mais ou menos, no mesmo tema: Giotto fez renascer a pintura morta havia séculos, conferindo-lhe naturalida- dee nobreza. O periodo em quea arte esteve como morta é aquele em que fora do- minada pela influencia bizantina; libertando-a, Giotto religa-a a fonte classica, a O Trezentos 11 uma arte cujog contetidos essenciais eram a natureza ¢ a histéria. Para os homens do Medievo (E¥igdidade & 0 mundo da filosofia “natural”: a naturalidade de Giotto nao nasce da observacdo direta do verdadeiro, mas é recuperada do antigo por meio do proceso intelectual do pensamento histérico. Historicismo, naturali- dade, estatura intelectual so, na arte de Giotto, uma tinica qualidade. O modo de pensar histérica, que véy Ges determinadas por uma finalidade que as justifica, é modo antigo e cristao“para Giotto, o antigo ndoé sobrevivencta, evocacio nem modelo, mas experiéncia histérica para investir no presente. No fim do Trezentos, Cennino Cennini, pintor e tedrico, escreve que Giotto “traduziu aarte de pintar do grego pai im ea reconduziu ao moderno”-A tradi¢ao que recusa € bizantina (grega), a finguagem que instaura ¢ moderna (gética): por- tanto, Giotto adentra novamente o ambito europeu da cultura gética, mas elimina ‘© quanto esta conservava de bizantino e dela faz uma cultura fundada sobre o “Jatim”. Meio século depois, Ghiberti, escultor humanista, mas ainda ligado a tra- digao gotica, escteve que Giotto heenion dos gregos [...| produziu a arte natural a nobreza com ela, nao saindo d¥s medidas”.“Rudeza”, para Ghiberti, €a rigidez expressiva da arte bizantina:.a auséncia de pathas dos hieraticos icones, ‘© excesso de pathos do assim chamado expressionismo bizantino. Também no g6- tico francés e alemao oscila-se entre o estitico e o trigico: Giotto transforma a imobilidade icénica em imponéncia monumental, a tragédia em drama; a medi- daa qual se atém éa medida moral pela qual o sentimento nao se exaspera, mas se traduz em agdo. A catarse do drama esti na evidéncia mesma dos seus impulsos morais, na coeréncia da acio. Aarte do inefivel, Giotto opde uma arte que diz tudo,o divino eo humane: a clareza formal do discurso supera, conjuntamente, a imobilidade impassivel e a violéncia desumana do grito.ou do gesto. Segundo a tradic’o, Giotto foi discipulo de Cimabue,¢ logo o superou, ofus- cando o seu nome.O exérdio cimabuesco é seguro, mas jé as primeiras obras indis- cutiveis de Giotto demonstram o conhecimento do ambiente romano, de Cavallini, E esta uma fonte da sua cultura latina; a outra é a escultura pisana, especialmente de Arnolfo, que trabalha em Roma no fim do Duzentos. De Roma, provavelmente, Giotto partiu para pintar na basilica superior de Assis, cuja decoragio foi promo- vida e encorajada pela Ciria romana. A Roma voltou mais vezes, sempre para tra balhos de grande responsabilidade: 0 afresco para 0 Jubileu de 1300-em San Gio- vyanni in Laterano,o mosaico-com a pequena nave e os afrescos com as Histérias de Cristo, respectivamente no dtrio e na tribuna de Sao Pedro; para o-altar-mor da ba- silica vaticana foi-lhe encomendado 0 poliptico Stefaneschi. Ja vimos como, durante os tltimos dois decénios do século, na decoragao da basflica assisense experimentaram-se, até ao extremo ponto de ruptura, as possi- bilidades intrinsecas da figuratividade bizantina; estendendo ao maximo a linha até tornd-la cortante lamina de luz, modelando a sua cor até fazé-la atingir uma condensacio plastica jamais vista antes. E incerto que ali participasse, pelo ano de 1290, também o jovem Giotto,a quem alguns criticos atribuem, na parte superior da nave, algumas Historias do Antigo e de Novo Testamento de uma qualidade muito elevada ¢ estilisticamente ligadas, por um lado, ao linearismo cimabuesco, € por outro, plistica de massas coloridas de Cavallini; ou que esses afrescos nao fossem, antes de tudo, tentativas paralelas mas precedentes & pesquisa giottesca. 22 HISTORIA DA ARTI TALIANA = DE GIOTTO A LEONARDO. Giotto é, de tado modo, 0 tinico protagonista do novo ciclo, na parte inferior da nave, iniciada logo depois de 1296 pela iniciativa desabusadamente moderna do novo Geral dos Franciscanos. Jé existiam, na basilica inferior, afrescos com histérias de Sao Francisco: o fato novo é que a série giottesca nado tem cardter bio- fico nem hagiografico, mas sim, mesmo respeitando as fontes histéricas, con- ceitual e demonstrative. O objetivo é delinear em sentido histérico, e nao lendario ou poético, a figura do santo “moderno”, criador de um movimento em triunfal expansao, cuja forca € impulso a renovagao da Igreja. A figura que se destaca nos afreseos de Giotto nao é certamente a do “pobrezinho” descrito por Tommaso da Celano ou do asceta sofredor retratado por Cimabue na basilica inferior, é uma pessoa cheia de dignidade ¢ autoridade moral, cujos atos, antes de milagres, sto feitos memoraveis, histéricos. Para Giotto, fato histérico € aquele que executa e revela um designio di como tal, nao € visi ;conteca em qualquer lugar e momento; ao cumptit- se, revela, com extrema ihtensidade e clareza, toda a realidade. Os fatos represen- tados sio muitos e diversos; referem-se & profissio de humildade e pobreza, ao apostolado do santo, 4 construgao da ordem, ao suporte dado a Igreja. Cada fato apresenta-se como uma estrutura distinta do espago mediante o deslocamento das massas compositivas; mas, ainda que sob diversas configuragbes, o espago se mostra sempre com um valor constante, absolute, universal. Nao ha, entre as his- térias, uma continuidade de narrativa; a unidade do ciclo é dada pela relagao constante entre o espago pict6rico das representacGes e a espacialidade arquitetd- nica da nave, Um enquadramento arquiteténico pintado, 8 maneira de Cosma (outra prova da familiaridade com o ambiente romano), estabelece a associago. Qespago de cada histéria, ligado ao espaco da nave pela breve perspectiva pinta- da, aparece como um espago préxime ¢ fortemente construido, mas de modo al- gum ilusdrio: pode-se considerd-lo como um cubo cuja face frontal coincide com o plano da parede e que, em profundidade, tem inclinagées, extensdes, estruturas determinadas pelas exigéncias da “histéria’, isto é, da narragdo. No segundo afresco da série, A doagdo do marto, Giotto parece fixar a formu- la da sua métrica espacial: com as linhas dos montes traga as diagonais do cubo e faz coincidir a cabega do santo com @ cruzamento delas. © espaco ¢ construido como um plano inclinado (note-se o deslizamento dos degraus de racha) que vai da linha de base (a fenda no primeiro plano) até a margem superior do requadro; sobre esse plano, como se ve pela posi¢ao dos pés, apdiam-se as figuras. Observe- mos agora que a cabega do santo. coincide, mas nao exatamente, com o encontro das diagonais, onde o triangulo azul do céu se encaixa entre os triangulos casta- nhos dos montes. O minimo desvio do esquema simétrico dé principio a agao. que se desenvalve como um movimento estendido a todo 0 espaco, até os limites do horizonte: um fato que manifeste uma causa divina interessa necessariamente a toda a realidade, mas nao a ultrapassa, e 0 seu significado transcendente revela~ se inteiramente no visivel, Por isso, o pathos nae se exprime em gestos concitados, que parecam dever seguir além da figura e do espaco que a cantém: esta inserido na ordem moral da agao humana, como, nos classicos, pertencia a ordem natural. Clissica, efetivamente, e nao por imitagao das formas antigas, é a arte de Giotto: pela concepgio total da realidade (ainda que seja entendida como relagio entre hu- mano ¢ divino) que se da no equilibrio das massas fechadas, pela id¢ia universal ino: © Trezentos 23 da histéria que se exprime em cada fato representado, pela plenitude com que a forma visivel tudo realiza, sem sugestOes ou alusdes. Por essa classicidade quase miraculosamente renascida, ¢ que por certo nao é classicismo, o S40 Francisco de Giotto reencontra aqui, nos volumes regulares do corpo e da cabega, uma pureza formal que nao tem comparagdo a nao ser, A distancia de tantos séculos, com o Auriga de Delfos. "Todos os requadros executados ou planejados por Giotto (aque- les da parede direita e alguns da esquerda) tém uma construgio perspéctica; mas, sendo o fato representaco o que a determina, nao é jamaisa mesma, nao tem dimen- sdes e proporcées constantes, nao depende de uma geometria do espago. A figura do ambiente muda como os rostos, os gestos, as arquiteturas; mas a medida, o equilibrio, a gravidade dos valores permanecem inalterados. Na Remincia dos bens estio, de um lado, os parentes furiosos, do outro, o santo com o bispo e os pa dres; as estruturas arquitetOnicas que estio acima dos dois grupos reforgam a contraste dos sentimentos, porque, 4 esquerda, estdo as casas da rica burguesia, a direita, um conjunto de ediculas que, mesmo sem repetir a forma de uma igreja, tém claramente um sentido de estruturas arquitetonicas sacras. No Milagre da _fonte os perfis ¢ os planos das rochas correspondem, exatamente, aos grupos das figuras: os frades com o jumento, o santo em oragiio, o sedento. Parecem quase es- culpidas na pedra drida do monte; 0 espaco ¢ bloqueado pelos penhascos ingre- mes entre os quais se insere,confirmando, 0 azul do céu. Na Pregagdo aos pééssaros, a cubagem sintética do espago vazio ¢ obtida simplesmente oponda a leve curva- tura do horigonte a vertical apenas inclinada do tronco e isolando no azul de céu as massas compactas da folhagem das arvores. Na Aparigdo ao Concilio de Arles,a arquitetura fortemente articulada esta a indicar a estabilidade da ordem francis- cana, ¢ 9s bragos abertos do santo contrapéem-se, com evidente fun¢ao arquite~ ténica, portante, aos arcos ogivais do fundo, -se também no modo pelo qual Giotto organiza o trabalho que, pata ele, a invengao da histéria figurada ¢ a estrutura do espago sao uma coisa 86. E cercado. por auxiliares a quem confia, algumas vezes, a maior parte da variante pictérica, reservando naturalmente para si as partes mais importantes e dificeis. Nem sem- pre estas so, como pareceria légico, as figuras ou as cabegas dos protagonistas; freqitentemente sio pormenores aparentemente secundarios que, porém, olhando- se bem, se revelam pontos-chaves da construcie espacial. No Presépio de Greccio so da mao de Giotto-os elementos perspécticos: essen- s, porque todo 0 significado est na justaposicao de duas entidades espaciais ¢ de dois momentos da “historia”. Aquém do plano luminoso da iconésta rigos os notdveis entoam hosanas ao milagre que se cumpre; maisalém, se infere anave apinhada de fi¢is que esperam. A perspectiva do cibério e do atril mede o espago anterior; o ambom € o crucifixo, projetados para a nave que nao se vé, su- gerem a sua profundidade, Nao € apenas porque sao perspecticamente diticeis que Giotto pinta ele proprio esses elementos, deixando aos outros a maior parte das figuras: estes devem nao tanto sugerir quanto concretamente manifestar um espago que nao se vé e o estado de espirito da multidao que o preenche. Na cons- trugio do espago pictorico, a perspectiva daqueles elementos tem a mesma im- portancia predominante que pode ter, em arquitetura, uma fungao estrutural que determina um espago, ainda que sejam menos vistosos do que uma parede, uma pilastra, um arco. as clé- 24 HISTORIA DA ARTE ITALIANA - DE GIOTTO A LEONARDO FIG.1 FIG,2 FIG.3 Duas sao, na tradi¢ao figurativa medieval, as funcgées que a operagao pictori- ca devia absorver: a apresentagao da imagem sacra e a demonstragao da sacrali- dade da imagem mesma, A essas duas fungdes correspondem duas categorias de imagens: 0 fcone que se apresenta aos fiéis como objeto de veneragao e de medi- tagao e a exposicao dos fatos aos quais se atribui um valor edificante ou exemplar, que sirva & educagao religiosa e moral dos fidis. Nao quer dizer que a essas duas categorias diversas de imagem correspendam duas técnicas diferentes: a Nossa Senhora com Menino ou 0 Santo nos painéis, o Pantocrator nas calotas absidais, em afresco ou em mosaico, tendem igualmente a um maximo de icenicidade ea um minimo de #arratividade; as pequenas histérias laterais dos painéis, as histé- rias do Antigo e do Novo Testamento, as vidas dos santos nas paredes das naves, a um minimo de iconicidade ¢ a um maximo de narratividade. Nao ha duvida de que a imagem com um coeficiente maximo de representatividade, para a cultura do Duzentos na Itilia central, seja a imagem do Crucifixo: isolada de qualquer his- toria, repropoe A meditagao ea piedade dos fiéis o espetaculo, tragico e eterno, de Cristo, Deus-homem que sofre para resgatar os pecados da humanidade. As figu- ras dos aflitos, isoladas nas extremidades do brago transversal da cruz, completam essa maquina de dor, amplificando o tormento ¢ personificando a dor dos figis que nelas se identificam. O Crucifixo florentino de Cimabue, que também deveria colocar-se como exemplar para o jovem Giotto, nao se afasta dessa tradigao: acen- tas, fazendo arquear sobremaneira o corpo de Cristo, afilando as pregas metélicas das vestes de S30 Joao: mas, de todo mado, permanece a apresentagdo de uma imagem. Assim co- mo-em Assis, onde ndo narra a vida do santo, mas demonstra conceitualmente a sua autoridade moral, transformando o espaco da nave em um palco onde se de senvolve a histéria exemplar de Francisco, no Crucifixo de Santa Maria Novella ~ pintado no fim do século x11 ou nos primeiros anos do Trezentos -, Giotto, com um ato revoluciondrio, reduz a zero o grau de iconicidade da imagem. Represen- tando as maos em escorco, insere o-corpo de Cristo ~ um corpo pesado, que nao se dobra gritando, mas que se abaixa sob o préprio peso - em nosso espacoe tempo: o ser da imagem é um set-em-relagao com 0 observador, a apresentagae icdnica torna-se representagae histdrica, Depais dos afrescos em Assis, que sdo terminados por seus discipulos, Giotto échamado a Roma por Bonificio vim para 0 afresco do Jubileu (do qual resta um fragmento em San Giovanni in Laterano); poucos anos depois, em Padua, pinta afrescos (perdidos) na basilica franciscana de Sant’ Antonio ¢, entre 1304 ¢ 1306 (segundo outros entre 309 e 1310), recobre as paredes da capeta dos Scrovegnicom as Historias de Nossa Senhora e de Cristo. A capela é um vao retangular coberto com abdbada de bergo; as paredes sto nuas, despojadas de clementos estrutur arquiteténicos. A definigio do espaco é, pois, inteiramente confiada a pintura. Mais do que em Assis, onde existia uma estrutura arquiteténica, teria havido mo- tivo para enquadrar as figuragdes em arquiteturas pintadas; mas, ao contrario, si0 emolduradas por um friso plano, monocromitico, com pequenos medalhées co- loridos, como se a parede fosse uma grande pagina com iluminuras. Nao condicionada por compartimentos arquiteténicos, a sucessao das histé- rias no tem mais a ordem quase ritual sancionada pelas tradigdes iconograficas; as cenas, coordenadas mas independentes, sucedem-se como os cantos de um poema tua alguns dos seus elementos, sublinhando os aspectos pie O Trezentos 25 (Gnudi)..0 ciclo comega com a Expulsao de Joaquim do templo, um episédio biblico correlato ao nascimento da Virgem; continua com as Histdrias de Nossa Senhora e de Crista e termina com o Pentecosies, isto ¢, com a solenidade hebraico-crista que alude a difusdo da doutrina por intermédio da Igreja. A continuidade ideolégica entre o Antigo e o Novo Testamento € expressa na histéria da relagao afetiva e hu- mana entre Nossa Senhora ¢ Cristo. E também, para Giotto, o ponto culminante & crucial da histéria da humanidade, a qual a presenga real de Cristo oferece com ex- trema clareza a alternativa moral do bem e do mal. Sob as histérias, efetivamente, seestende um alto friso monacromatico com figuras alegdricas das Virtudes e dos Vicios correspondentes. Acima de tudo domina, na contrafachada, o Juizo Final. ‘Sem diivida Giotto procurou uma harmonia cromatica de conjunto: indepen- dentemente das histérias singulares, ha uma imagem espacial unitiria determina- da pela recorrente nota dominante do azul nos fundos sem contraste na abébada; sobre o azul, como uma varia¢do melédica em uma tonalidade de fundo, modu- lam-se as gamas claras, luminosas das outras cores. Nas histarias de Assis havia os. protagonistas e algumas vezes 0 coro, grandes figuras de uma plasticidade ainda arnolfiana; em Padua, as figuras sio menores e numerosas, agrupadas. Os gestos sao ainda mais contidos nos limites das massas coloridas: formam apenas breves saliéncias, vértices para os quais convergem as linhas de tensdo que modelam as. massas em planos de cor mais densa ou gradualmente clareada. Em vez da firmeza histérica dos g tem-se, assim, uma tensdo patética que se acumula e cresce dentro das ma: r¢ando os limites, até tocar as notas mais altas no dardeja- mento de um olhar, no vinco de uma boca, no frémito de uma mao. No Lamento so- bre o Cristo morto a figura de Sao Joao é uma massa fechada da qual saem apenas a cabeca e as mios; as pregas em tensio do manto revelam, sem descrevé-lo, 0 gesto desesperado dos bragos abertos, jogados para tras: 0 gesto de dor e de resignagio tem o seu vértice no semblante projetado a frente, no olhar fixo. A intengio de re- presentar o pathos como uma realidade em si eticamente valida, e no apenas co- mo motor de agGes morais, demonstra quea busca de Giotto esta agora, mais fre- qientemente, voltada a valores poéticos ou liricos do que a historia; ¢,uma vez que em Padua a visao giottesca ¢ inteiramente confiada 4 cor, isto ¢,a um meio expres- sivo tipicamente pictérico, deduz-se que a identidade pintura-histéria transfor- mou-se na identidade pintura-poesia. E é significativo que esse desenvolvimento da poética giottesca coincida com o momento da maior afinidade com Dante. Em Assis, a determinagao do espaco estava relacionada com a invengao da his- toria figurada eo espaco era definido pelo deslocamento das massas € pelos ges- tos das figuras. Em Padua, os contornos que fecham as massas impedem que os gestos se estendam além das figuras; e precisamente porque nao estabelecem uma relagdo entre figura e espaco, ndo exprimem uma acdo, que é sempre movimento no espaco, mas um sentimento, que ¢ movimento interior. Os contornosexprimem, assim, a elevagao do pathos até o horizonte do real; e 0 espace externo é anulado pela extensio uniforme do fundo azul. Nao pode, portanto, haver uma luz que int daa partir de fora: as suas variagdes acontecem no interior das figuras, como modu- lagao de claro-escuro da cor que passa de uma figura a outra, transcorrendo sobre todas as tintas. Essa construcao, obtida com as quantidades luminosas¢ as quali- dades das cores, jA contém em si uma construgao tonal; Giotto nao pensa, enfim, a cor como a superficie das massas, mas come volumes plasmados em cor. 26 HISTORIA DA ARTE ITALIANA = DE GIOTTO A LEONARDO. FIG. 5 FIG. 6 FIG.8 Pode ter acontecido que a temporada no Véneto tenha mitigado a aversao de Giotto pela arte bizantina, da qual parecem descender certas tonalidades e veladu- ras mais delicadas dos afrescos paduanos. Em todo caso, € significativo que a nova postica giottesca,da cor ou da pintura“pura’, se delineie propriamente no Véneto, conde era mais persistente a cultura bizantina ¢ onde, nos séculos sucessivos, se de- senvolverd uma pintura intencionalmente “pura”, fundada sobre as relagoes tonais de cor ¢ luz, B também de notar-se que uma construgao tonal implica uma pes- quisa proporcional, entendida como relacdo equilibrada entre as cores; é esse um. aspecto essencial da pulcrituee intelectual celebrada por Petrarca e da justa medida louvada por Ghiberti na pintura de Giotto. A procura de uma proporcionalidade formal e cromatica nao atenua,ao con- tndrio,a intensidade ea dimensdo do pathos, ainda que este possua um acento mais lirico que dramético ¢ se exprima no ritmo das linhas e das cores mais do que na dinamica dos gestos. A pintura ndo mais narra com figuras coisas que poderiam ser ditas com palavras; ¢ a revelagaio de uma ordem de valores intelectuais e mo- rais que nao poderiam ser expressos de outra maneira seniio naquelas ponderadas estruturas de volumes ede cores.Como nao se pode afirmar que a Divina comédia seja a exposigao em tercetos rimados da doutrina tomista, também nao se pode dizer que a pintura de Giotto ilustre uma histéria religiasa: a doutrina de Giotto esti inteiramente na pintura,como a doutrina de Dante esté toda na poesia. E, por- tanto, na estrutura profunda do fato pictérico que se deve procurar o sentido dos novos valores intelectuais e morais que Giotto descobriu e revelou. Uma das mais patéticas figuragoes de Padua ¢ 0 Lamento sobre a Cristo morto. O vértice do pathos esta nas cabegas encostadas de Nossa Senhora ¢ de Cristo, situadas embaixo, em uma extremidade, de modo que em sua diregdo gravitem, declinando progressivamente, as massas das figuras & direita e, com repentino aprumo, aquelas da esquerda. © declive rochoso acompanha a cadéncia do pri- meiro grupo e acentua a verticalidade do segundo, E um ritmo assimetrico, uma seqiiéncia de notas graves as quais sucede, no ponto de maxima intensidade paté- tica, um repentino irromper de agudos, O azul dense do céu, sulcado por anjos plangentes, pesa sobre as massas e impede, além do monte, toda expansao do es- pao. Esse ritmo de massas cadentes traduz-se, porém, em um ritmo de ascensao pela qualidade das cores @ dos seus acordes. O manto da mulher acocorada & es- querda, em primeiro plano, éde um amarelo claro e luminoso, transparente: e dai parte uma progressdo de tons salientes, que o dorso iluminado da rocha une, além da pauisa do eéu,as vivazes notas cromadticas dos anjas. Ao centro, 0 gesto des bra- 08 de Sao Joao, conjugado linha obliqua da rocha, unifica os dois grandes temas da dor na Terra e da dor no céu, Nao ha chivida de que existe um motivo histérico- dramitico: o lamento de Nossa Senhora, das mulheres piedosas, de Sao Joao sobre © Cristo morto. Mas, em um nivel mais profundo, o duplo sentido de queda e de ascensao do ritmo exprime, em valores puramente visuais, um conceito mais vasto: a dor, que toca o fundo do desespero humane, s¢ eleva na moralidade mais alta da resignacio e da esperanga. Entre as obras sobre painel de madeira, a Nossa Senhora de Todos as Santos (c.1310) ¢ a mais préxima dos afrescos de Padua: desenvolve nas trés dimensdes, seja com a perspectiva do trono, seja com a projesdo em profundidade dos anjos e dossantos, o motivo tradicional da Virgem no trono, visando sobretudo apresentar O Trezentos 27 a figura como uma massa cromatica expandida e estruturada. A ténue estrutura arquitetonica do trono, enquanto ressalta a compacta massa azul do manto, en- volve-o.com a luminosidade do fundo de ouro transmitida pelas auréolas doura- das ¢ pelas cores claras das vestes dos anjos. O perfodo tardio da atividade de Giotto é 0 mais obscure, também por causa do ambito cada vez mais vasto dos seus encargos: trabalha em Roma, em Assis, em Verona, em Napoles, em Milao. De todo modo, centre permanece em Florenca, onde dirige uma grande ofi- cina em que trabalham, com os aprendizes, discipulos jé ancidos e reconhecidas & onde recebe encargos de responsabilidade como arquiteto (o prosseguimento da construgdo da catedral, a construe do campanario). As grandes obras desse pe- riodo sao os afrescos pintados, com a sua escola, nas capelas Peruzzi e Bardi da igreja franciscana de Santa Croce. Raramente, nas histérias de Péidua, a arquitetura era concebida como espago ambiente; mais freqiientemente, como na Oragdo pelo florescimento dos ramos, compensa e dissolve o peso das massas das figuras com a ascensao das linhas ver- ticais, os nitidos planos da cor, a métrica dividida das propargées. Era uma forma abstrata, quase metafisica, que transpunha o evento a uma dimensio sobrenatural. Nas histérias da capela Peruzzi, ao contririo, a arquitetura é dominante: vastas formas, cavidades envolventes em torno das figuras ou planos de fundo variada- mente expostes a luz, que acompanham o movimento dos grupos humanos. Na Imposigao do nome ao Batista as figuras so recolhidas em amplos vaos, nos quais Juz ¢ penumbra se difundem uniformemente; na Ressurreigao de Drusiana, atris das figuras distende-se o fundo de um muro que segue, com planos salientes € reentrantes, a distribuicao dos grupos. Em ambos 0s casos as cores esto em rela- co com uma tonalidade de fundo ou de base, que serve como denominador co mum. F essa relagdo que determina a profundidade do espago eo desenvelvimento plistico das massas. Referindo-se todas a uma tonalidade de fundo, as cores nao se apresentam como tintas puras ou qualidades absolutas, mas entram em uma escala de valores que vai da minima a maxima luminosidade. As tintas sao mode- radas, mas as massas dilatadas dao pauisa As graduacées de claro-escuro que se embebem de luz difusa, fluindo de tinta a tinta, Afirmando-se cada vez mais co- mo visdo cromatica, a composicao torna-se maior ¢ mais espacada; a épica de As- sis e @ lirica de Padua segue a harmoniosa unidade dos afrescos de Santa Croce. A mesma fusdo tonal das massas modifica o valor da linha, que nao ¢ mais fecha- mento, mas limite sensivel e jun¢ao de zonas tonais. Quanto mais as massas se di- latam no claro-escuro rarefeito, tanto mais a linha se afina, demoraa registrar nos semblantes as minimas esfumaduras, os mais inapreensiveis movimentos do sen- timento. Na onda harménica do coro, alta e potente, distinguem-se por uma stibi- ta flexdo do trago ou por uma vibragao mais rapida da luz as vozes individuais; e toda a composigao se tece no entrelagamento de infinitas notas carregadas de uma tocante verdade humana. As Historias de Sao Francisco na capela Bardi, onde os velhos temas de Assis sio reformulados com métrica mais lenta, estao entre as obras mais comoventes que Giotto pintara. Com elas, pintura, até aquele momento absorvida na contempla- gao do divino, entra finalmente em contato com a substancia viva do humano. A arquitetura se distancia, torna-se fundo e moldura, margem e horizonte de um espaco que somente a realidade dos sentimentos humanos preenche. Decrescem as 28 HISTORIA DA ARTE ITALIANA = DE GIOTTO A LEQNARDO. FIG. 9: FIG.10 FIG. cacléncias ritmicas, as divisGes proporcionais: por uma maior flexibilidade e cone- xao do diseurso, Giotto renuncia as métricas determinadas da poesia, instaura corajosamente uma prosa pictérica que, com todos os outros contetidos, tem, no entanto, a intensidade, a flexibilidade, a riqueza verbal da prosa de Boccaccio. Giotto nao inventou novas técnicas para pintar afrescos ou painéis de madei- 14, mas transformou profundamente o processo de realizago artistica, O valor da arte nao esta mais, para ele, na perfeigio téenica da execugdo, mas na forga ena novidade da idealizagio. Nao raramente se limita a fornecer o desenho e aexecu- tar algumas partes, deixando 0 resto aos aprendizes; hd inclusive obras que trazem a sua assinatura apesar de terem sido quase inteiramente executadas pelos estu- dantes, A invencdo ou a concepgio tem a sua primeira e direta expressio no dese- nito, que pode considerar-se 0 projeto da obra e, portanto, a premissa ea guia da execugio subseqiiente, E precisamente a partir de Giotto que o desenho, como concep go, é considerado a premissa necessdria de toda operagao artistica. Os procedimentos instaurados por Giotto em sua escola foram teorizados por Cennino Cennini, um pintor que descende de Giotto através da escola de Taddeo ¢ Agnolo Gaddi. Os preceitos de Cennini referem-se principalmente a técnica, como operacao manual ¢ mental, O desenio, além de projeto € primeito ato do pintor, é também exercicie fundamental para a sua formagio, pois lhe permite in- terpretar a fundo a obra dos mestres: a invencao de novas formas funda-se, por- tanto, sobre a experiéncia da hist6ria, Falando das cores, Cennini nao se limita a ensinar como devem ser mofdas, dilufdas e aplicadas,a fim de que se tornem pu- ras e transparentes, mas explica como se constréi a forma com as cores, segundo o modo do “grande mestre”, Consiste, brevemente, em assumir como base a cor luz, o branco. pura e clared-la aos poucos, nas saliéncias, até a ma: OQ carter intelectual da pesquisa de Giotto explica 0 seu interesse pelas outras artes; éa partir desse momento, e em conexao significativa com a instauragao do desenho como processo planificador, isto é, projetual da obra de arte, que comega a delinear-se o conceito da universalidade da arte, fundamental para o Renasci- mento. A relagdo entre as artes nao se funda mais, como no passado, na solidar dade do trabalho no canteiro e na continuidade, em arquitetura, entre estrutura decoragao, Para Giotto, a relagao entre as artes se justifica com a idéia de alguns valores - a pulcritude, a proporgao - que pairam sobre todas as artes ¢ que cada uma realiza com auxilio das préprias técnicas, Perfila-se, assim, a idéia nova de uma arte que, como valor espiritual comum, supera todas as outras artes, como profissées distintas. Em 1334, sucedendo a Arnelio di Cambio, morte nos primeiros anos do Tre- zentos, Giotto foi nomeado arquiteto da construcao de Santa Maria del Fiore: é 0 reconhecimento da absoluta supremacia do pintor no ambiente florentino. Nao intervém no projeto arnolfiano, preferindo ligar o seu nome a uma obra original, 0 campandrio. Concebe uma alta torre quadrada, sustentada nos eantos por fo- bustos contrafortes de reforgo &s.abdbadas internas e, 4 medida que sobe, pouco a pouco aliviada por duplas de biforas ¢, no tiltimo plano, por uma enorme trifora. Comenta o tema delineade por Arnolfo, a relagao entre © longo eixo longitudinal da nave e a expansao do corpo trilobado, antecipando, ao lado da fachada, a jun- ¢ao vertical da ctipula; e nao se poderia imaginar um contraste mais evidente en- tre a fachada arnolfiana, povoada de esculturas, e as superficies do campandrio OTrezentos 29 qualificadas cromaticamente pelos entalhes marméreos, que revestem do mesmo modo paredes e contrafortes. Giotto morreu quando a obra apenas se iniciava, e 0 campanério foi depois terminado por Francesco Talenti, que elevou os tiltimos trés planos, modificando o projeto giottesco; mas sabemos que, “dignissimo ainda na arte estatudria”, o pintor dera “provimentos com sua mao” para os paingis es- culpidos para o campandrio por Andrea da Pontedera, chamado Andrea Pisano (1295-1349). [gnoramos qual tenha sido a natureza desses “provimentos”, se se riam desenhos ou modelos, mas a relacdo com Giotto é indubitavel; demonstra-o o confronto com a porta brénzea que o mesmo Andrea, entre 1329 ¢ 1336, esculpi- ra para batistério. Elimina os requadros géticos, de losangos lobados, que ditam ritmos fluentes e cadéncias preciosas; assim como Giotto constréi, com poucas li- nhas, um espago pictérico, Andrea escava os hexégonos em profundidade para construiro espaco da representacdo em que os volumes se condensam no interior, bloqueadas por uma linha que resume tudo, ¢ recortados em um fundo colorido, agora perdido. No Remar bastam duas tinicas indicag6es espaciais, a linha hori- zontal da 4gua e a linha vertical do remo; do redemoinho que este faz ao afundar nasce toda a composicao. O angulo agudo atrai para baixo os remadores e - em medida menor porque maior ¢ a distancia - o timoneiro: o peso da fadiga nas ca- vilhas faz defletir as duas linhas, de outro modo paralelas & 4gua, que formam o bordo da barca. Imaginemos, por um momento, que o remo se endireite, formando um angulo reto com a linha horizontal; e eis que a barca readquiriria por inteiro.a sua altura, e os remadores se endireitariam também, alinhando-se um ao outro ¢ dliminando a profundidade do espago. A cubagem do espago nasce, pois, do an- gulo formado pelo cruzamento das duas linhas. J4 vimos algo do género: lem- bram-se do Sao Francisco pregando aos pdssaros, na basilica de Assis? Quem quer que seja o escultor desse painel, é certo que aprendeu de Giotto nao apenas a es- sencialidade da composicao-¢ a plasticidade da imagem, mas, sobretudo, o.que de Giotto éa maxima contribuigdo para a fundagdo do humanismo figurado: a cria- gao de um espaco da representacdo. Simone Martini Aristocratica e gibelina, Siena reafirmara em 1311, com a Majestade de Duccio, a propria fé no caréter dulico da cultura figurativa bizantina, alcangada nas fontes mais puras. No gético francés sente, sobretudo, o acento dulico e 0 aceita como conseqiiéncia e desenvolvimento da tradicdo bizantina. Quando, em 1315, Simone Martini pinta a Majestade na sala do Conselho do Paldcio Publico, retoma 0 tema de Duccio eo desenvolve em uma ritmica gética, quase a demonstrar como a raiz daquela linguagem “moderna” era grega e nao latina, Tendo nascido pelo ano de 1284, em 1315 Simone tinha trinta anos: em 1317 estd a servign de Roberto d’Anjou, rei de Napoles; de 1319 € 0 poliptico de Pisa, pouco posterior ao poliptico de Orvieto, de 1320. Trabalha depois, novamente, em Siena ¢ pinta, na igreja inferior de Assis, 08 aftescos da capela de So Martinho. Em 1340 est na corte papal de Avignon, on- de morre em 1344. Para Petrarca, seu amigo, pintou um retrato de Laura e iluminow 0 frontispicio de um cédice de Virgilio. Quase em antitese a Giotto, intérprete de um ethos coletivo e popular, Simone € 0 artista dulico, o intérprete refinado e até 30 HISTORIA DA ARTE ITALIANA ~ DE GIOTTO A LEONARDO FIG. 12 FIG. 13

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