Vous êtes sur la page 1sur 49
pour APRESENTACAO ESPIRITOS NA TV O programa Pinga-Fogo, da antiga TV Tupi, Canal 4, promoveu no 28 de julho de 1971 um evento inédito: a transmissao de uma sessio meditinica pela TV. O convidado da noite era o médium Francisco Candido Xavier, mais conhecido como Chico Xavier.'! Gravado ao vivo, © programa foi assistido por cerca de 500 pessoas. “Com seu jeito humilde e simples de sempre”, Chico Xavier entrou disctetamente no estudio, cumprimentou a platéia e “...foi logo se escondendo atras de uma mesa. [...] Ajeitou-se na poltrona, ajustou os culos ¢ engoliu em seca?” Iniciado as 23 horas, o programa se estendeu pela madrugada. Para entrevisti-lo, haviam sido convocados trés jornalistas da emissora (Hele Alves, Reale Jr. ¢ Saulo Gomes) ¢ trés convidados — um catélico (Joo Scantimburgo), um espirita (Herculano Pires) e um pastor pentecostal (Manoel de Mello, fundador da Igreja “Brasil para Cristo”). As perguntas dirigidas ao médium vieram de todos os lados: 1. Pasto a usar daqui adiante a forma pela qual o médium passou a ser popularmente conheeido. 2 Estes € os demais dados apresentatios relativos a esse programa televisivo foram registrados em liveo, Pinge-Fage com Chico Navier, publicagio de 1987 da Edicel, Dessa versio foram dados aqui mencionados. rados os 15) {spiritismo @ Brasileira da platéia, dos telespectadores e dos participantes do programa. Chico Xavier foi questionado por eles sobre os mais diversos temas: psicografia, mediunidade, reencarnagio, sexualidade, bebés de proveta, “Nova Era’, existéncia de vida em outros planetas, etc. Chico Xavier respondeu a todas as questées que lhe foram propostas dizendo-se assessorado nesse empreendimento por “Emmanuel”, seu guia-espiritual.> Uma senhora do auditério, que se dizia vidente, atestou a “presenca de espiritos” no estudio por meio de um bilhete. Afirmava ela neste ter observado a “presenga’’ de varias “entidades” ao lado de Chico Xavier. Dizi a4 iveis “ora jovens, ora velhas”. ¢, porém, intrigada com o fato daquelas se fazerem Decorridas 2 horas ¢ 45 minutos de entrevista, Almir Guimaries pediu a Chico Xavier que encerrasse 0 programa psicografando uma mensagem espiritual 4 luz das cameras. Ele assentiu dizendo: “Vamos tentar.” Fe c imediatamente siléncio na platéia. Uma miisica suave, colocada em ¢f, tomou conta do ambiente. Cotovelo na mesa, a mao esquerda apoiada na testa encobrindo parcialmente os olhos, o médium assumiu atitude de concentragio. Poucos minutos depois comecou a escreyer accleradamente. Terminada a “recepgio”, ajeitou-se na poltrona ¢ comecou a ler a mensagem psicografada. Era um soneto, em molde alexandrino, de Cyro Costa, “um ilustre desconhecido naquele inicio dos anos 70”. A surpresa, segundo consta, foi geral: esperava-se um Augusto do Anjos, um Castro Alves ou algum nome mais conhecido. O poema psicografado, “Segundo milénio”, no entanto, de acordo com os observadores, nao deixou de causar perplexidade: 0 improviso parecia inegavel, pois “resumia, em termos poéticos, os assuntos que ali haviam sido tratados”.° O sucesso de ptiblico desse programa foi registrado pelo Ibope. Apesar de ter-se prolongado pela madrugada, 0 Pinga-Fago conquistou [As respostas dacs por Chico Xavier freqiientemente comegavam com: “Esses fenémenos, diz Emmanuel que esti presente.."; ou “Emmanuel pede para meneionar..”; ou ainda, “4 ouvimos Emmanuel a esse respeito, Ele diz que.” Pinga-Fego core Chico Xavier. Sio Paulo: Edieel, 1987. p. 64. © comentirio é de Souto Maior (199: 175) 6. Phaga-Fage.: 79 € 80. we 16 Apresentagio os mais altos indices de audiéncia da noite. Gravado ao vivo, num periodo em que ainda nio havia ainda transmissio nacional, o programa foi assi stido por cerca de 500 pessoas. Logo em seguida, passou a ser requisitado pelas demais regides do pais, nas quais foi veiculado através da distribuicao do rideotape. Mesmo em Sio Paulo, onde foi realizado 0 programa, houve mais duas reapresentagGes em resposta 4 demanda do publico. A imprensa também divulgou 0 evento: 0 Diario da Noite publicou um resumo no dia seguinte. A procura nas bancas foi tal que 0 Didria de Sao Paulo deci publicar o programa na integra, num suplemento de domingo. Depois de circular por muitos anos em exemplares mimeografados, finalmente, em 1987, 0 programa foi transcrito em livro.” A estréia de Chico Xavier na televisio se deu nesse programa, 0 Pinga-Fogo. A época ele jd era um nome nacionalmente conhecido, Exercia a mediunidade ha 44 anos ¢ havia publicado mais de cem livros. A repercussio de publico alcangada pelo programa referenda sua autoridade, sinalizando, ao mesmo tempo, a interesse que o Espiritismo desperta no Brasil. O mesmo interesse e vitalidade que nao se verifica na Franca, onde © Espiritismo teve origem, mas comesou a desaparecer alguns anos depois da morte de Allan Kardec. Apesar disso, é ainda 4 sombra do modelo francés que se pensa a historia ¢ as caracterfsticas do Espiritismo no Brasil. As compatagdes habituais remetem 4s origens: quando surgiu, em meados do século XIX, a doutrina de Allan Kardec se definia como sendo “antes de tudo uma ciéncia, embora com conseqiiéncias morais”.* ‘Trasladado o Atlantico, passou a predominar a feigao mistica, conforme andlise dos autores que trataram do tema, como veremos adiante. Pinga-Fege... WN 8, Em suas obras, Allan Kardee freqientemente retomao tema da definigio da doutsina espirita, Em O que fo E questoes dogmiticas Donde acrescenta: “Seu verdadeiro cariter &, po (Kardec, [1859] 1983: 129 © 130) Mais tatde, Kardee retoma o tema, enfitizando o etriter cientifico de sua doutrina, porém, redefinindo-a como constituida por um triple aspecto: “Essa doutrina acha-se exposta de maneira completa no Livm dos espinitos, em sew aspecto filas6fico, no Livro dos midinns em sua parte pritica ¢ experimental ¢ no Erangedbo segundo o Espiitiomo em seu aspecia moral.” (Kardec, [1862] 1995: 24, grifo mew) iitisma, cle afirma: "O Espiritismo é, antes de tudo, uma ciéncia, mio cogita a ciéncia tem conseqiiéncias morais como todas as cigncias filoséfica ode uma cigneia, nio de uma religiio.” Espinitismo a Brasileira Inspirando-me em Geertz (1968) e Sahlins (1990), retomo essa questo, visando evidenciar como foram construidas as caracteristicas que fazem do Espiritismo uma doutrina com feig6es diversas, na Franga no Brasil. Entendendo serem essas diferengas resultado de interpretagdes claboradas contextualmente, proponho-me a investigar como foram consolidadas essas duas versGes locais, uma supostamente cientifica, outra predominantemente religiosa. E também objetivo desse livro apontat certas tendéncias contempo- rineas do movimento espirita no Brasil. Nao pretendo, contudo, realizar um trabalho de reconstrugio historica, Ha varios trabalhos produzidos nessa direcZio. A maioria se concentra no periodo compreendido entre os anos de 1860 a 1940, fase de i esp Ess tratar-se daquele em que ocorre o enfrentamento com o aparato talagao ¢ consolidagao da doutrina ita no Bra’ momento histérico tem s Jo privilegiado por repressor do Estado, Por sua vez, os trabalhos que retratam o desenvolvi- mento da doutrina nos periodos mais recentes se restringem, em larga medida, as décadas de 1960 ¢ 1970, periodo em que chama a atencio dos pesquisadores a proliferagao das religides populares no meio urbano, especialmente nas grandes metrpoles. Essa questiio da dindmica social das religides nas grandes cidades tem ocupado também os estudas mais recentes, envolvendo outros segmentos sociais, em especial as chamadas classes médias, quando se trata do movimento carismatico catdlico, do neopentecostalismo ¢ mesmo do candomblé ¢ da umbanda, sem que o mesmo, porém, se observe com relagio a0 Espiritismo, Com o objetivo de contribuir ao preenchimento dessa lacuna, apresento neste livro um estudo de caso, que considero relevante por apontar algumas das tendéncias do Espiritismo brasil ito na contemporaneidade. A intengio nao ¢ historiar esse percurso, mas pontuar como se deu a construgiio de certas caracteristicas assumidas pela doutrina espirita no Brasil. Realizo com esse fim cortes sincrénicos que tém como foco wrés personagens, cujas atividades e/ou historias de vida particularizam algumas das caracteristicas assumidas pelo Espiritismo na Franga e no Brasil. Allan Kardec, o primeiro deles, pareceu-me figura obrigatéria, uma vez que se trata do formulador das caracteristicas com que primeiro “18 Abpresentagao emerge a doutrina espirita em meados do século XIX. No Brasil considera-se o Dr. Bezerra de Meneses, fundador da Federagao Espirita Brasileira e um dos principais responsiveis pela seu presidente por duas gest6 institucionalizagio da énfase religiosa que o Espiritismo assumiu no P acreditamos teve um papel fundamental nesse processo. Refiro-me a Francisco Candido Xavier, o best-seller da literatura espirita no pais. s. Neste trabalho nos voltamos, porém, a outro personagem, que Como pretendemos demonstrar, sua importancia se estende para além da divulgacio da doutrina. Fazendo de sua vida pessoal ¢ religiosa um modelo de exemplaridade, ele contribuiu de forma decisiva para a consoli- dagio do modo religioso particular pelo qual se expressa o Espiritismo no Brasil. Esse modelo, arraigadamente catélico, consolidou-se por volta dos anos 50. Mantém-se ainda hegem6nico, mas vem sofrendo desde a década de 80 pressdes por parte de novos grupos ¢ liderangas que demandam mudangas. Entre estes tiltimos, destaco o grupo liderado pelo médium Luiz Antonio Gasparetto, conhecido inclusive internacionalmente pela pritica da pintura medidnica. Considerado pelos espiritas como dissidente, as idéias € praticas que ele hoje difunde questionam, sobre- tudo, o modelo de expressio da espiritualidade espirita personificado por Chico Xavier. A escolha desse médium nao se justifica, contudo, apenas pela radicalidade de suas criticas. Também foi considcrado o aleance social de suas atividades em decorréncia do intensivo uso dos recursos de multimidia (pratica pouco desenvolvida nesse meio confessional) e, também, pelo fato de suas idéias e praticas estarem comegando a servir de modelo para outros médiuns. Este é, portanto, um caso que ilustra um processo em curso, porém, em expansao. Dentre as suas caracteristicas, a interlocugao com as correntes da chamada “Nova Era” € 0 que marca a sua contemporaneidade, sendo a sintese particular proposta uma das alternativas possiveis de um leque mais amplo de possibilidades, que vém delineando mudancas significativas no contexto recente do movimento espirita brasileiro. Sao protagonistas deste trabalho, portanto, Allan Kardec e dois médiuns brasileiros: Francisco Candido Xavier e Luiz Antonio Gasparetto, Esses Ppersonagens sao aqui tratados como tipos ideais, uma vez que personificam, 19) Espiritisore i Brasileina através de sua historia pessoal, idéias e estilo de vida, determinadas caracteristicas que definem o perfil do Espiritismo em determinados Nes ( tipos metafSricos, pois sintetizam determinadas caracte momento: ¢/ou contextos sociai ¢ sentido, s sticas culturais assumidas pelo movimento espirita em diferentes contextos ¢ momentos histéricos, como os personagens descritos por Clifford Geertz, por exemplo, em Observando ed Islam ({1968] 1994: 97). Tal como no estudo realizado por esse autor, os personagens aqui considerados sao figuras paradigmaticas: suas idéias ¢ priticas introduzem novos modelos inte- lectuais ¢/ou de conduta, que passam a servir como referéncia num determinado contexto cultural ¢/ou de relagées socials, Nio configuram portanto, o “tipo médio” ou 0 “caso tipico”. Estes personagens, cada Nesse sentido, como um a seu modo, despontaram entre os demais. salienta Ginzburg, referindo-s Os seus contemporineos. Mas, como salienta 0 autor, mesmo aqueles que, aos olhos de seus contemporineos, se singularizam, expressam a “Menocchio”, singularizaram-se entre padroes da “cultura do seu tempo e de sua classe” (Ginzburg, 1987: 27). Esses padroes s € sua reinterpretacio — isto & sua “realizagio contingente”, como define Sahlins (1990) citando Geertz -, € 6 que cultura me intere s, destacar. , por meio del A conetetizagio desse projeto implicou o manuseio de dados de naturezas ¢ fontes diversas. A caracterizagio do Espiritismo de Allan Kardec ¢ de Chico Xavier respaldou-se na pesquisa de fontes secundatias: foram consultade 08 livros eseritos por eles ¢, também, no caso de Chico Xavier, obras escritas por terceiros sobre ele. Por ocasiao da pesquisa, este tiltimo encontrava-se muito doente. Durante quatro anos, deixou de participar de sessdes publicas e de receber visitas em sua casa. Portanto, somente vim a ter contato com ele pessoalmente um ano depois de defendida a tese de doutorado. As fontes secundarias constituem, no caso de Luiz Antonio Gasparetto, material comple- mentar da pesquisa etnografica, realizada entre os anos de 1995 ¢ 1996 com a finalidade de documentar suas atividades mais recentes. Os dados da pesquisa de campo foram complementados com dados estatisticos, de jomais, revistas, videos ¢ fitas cassete, alm da gravacio de programas 20 Apresentagiio radiofénicos, transmitidos diariamente pela Radio Mundial (AM) de Sao Paulo, entre os anos de 1996 ¢ 1997, Os capitulos que se seguem introduzem esses personagens em ordem cronolégica: o primciro apresenta a emergéncia do Espiriti mo na Franca, contextualizando, a principio, sua insereio no cendtio literétio da época Em seguida sio analisadas algumas das obras de Allan Kardec, com 0 intuito de evidenciar como foi construida a feigao cientifica que se atribui a essa doutrina. O segundo capitulo trata do seu traslado para 0 Brasil, s m, contudo, ter a intengio de historiar esse processo. O que se analisa basicamente € o tratamento dado ao tema pela literatura académica, Os trés capitulos que se seguem sio dedicados a0 médium, Francisco Cindido Xavier: o terceiro, apresenta um roteiro de sua literatura; © quarto, sua histéria de vida; e, 0 quinto, a discussie do modelo ético que ele personifica. Por tiltimo, Luiz Antonio Gasparetto: 0 sexto capitulo os de sua descreve a pesquisa de campo realizada e analisa os percui trajetéria meditnica ¢ profissional; © sétimo discute o modelo ético que sustenta suas praticas mais recente: Acredito que essas histérias sejam exemplares, na medida em que contribuem para a discussio mais geral do tema da reinvengio das tradigdes. Questao que tem balizado a discussao recente dos estudos de religiio, os quais, no entanto, ndo tém atentado pata os modos parti- culares como nto processo vem se dando no contexto do movimi espirita. I. ADOUTRINA DOSESPiRITOS SEGUNDO ALLAN KARDEC A pedido de Maurice Lachatre, um livreiro de Barcelona, Allan Kardec despachou para aquela cidade, em outubro de 1861, varios exemplares d’O foro dos espiritos, VO livre dos médiuns, colegies da Revista Espirita e diversas outtas brochuras, num total de 300 volumes. A te- messa foi feita pelo correspondente do livreiro em Paris, obedecendo aos tramites legais. A chegada da encomenda deu-se 0 pagamento dos dircitos de importacio. Em seguida a alfindega submeteu a relago dos livros ¢ dois exemplares ao alvari do bispo de Barcelona, autoridade a quem competia, & época, a liberagio dos mesmos. Sob a alegagio de que estas obras eram contrarias 4 fé catdlica, razio pela qual o governo no deveria permitir sua entrada no pais, o bispo recomendou ao Santo Oficio o confisco da remessa € a queima, em praca publica, dos 300 volumes sobre o Espiritismo.' ‘O “auto-de-fé de Barcelona”, como ficou conhecido esse episodio, da a medida, pela sua violéncia, do clima de tensio ctiado pela rapida difusio que o Espiritismo vinha experimentando na Franga € em outros paises da Europa, desde 0 langamento, em 1857, do primeiro livro de 1. Esse episédio, contado pelo préprio Allan Kardee, eonsta do live Obrat péstumar (1890), coletines de textos publicada pouco depois de sua morte. O Eshiniimo de Jacques Lantier (1980) apresenta, porém, relato mais detalhado desse evento. Expiritismo a Brastleira Allan Kardec, O iivro dos espinitos. Jacques Lantier (1980) informa que a primeira edicao deste esgotou-se no mesmo ano de sua publicagio. A segunda saiu no ano seguinte ¢ mais trés se seguiram em menos de um ano, Pouco tempo depois, O firro dos espinitos ja circulava também nas principais linguas curopéias, O mesmo se verificou com a Rene Spirite, criada por Allan Kardee em janeiro de 1858. O publico leitor evoluiu rapidamente: em menos de um ano, a primeira revista espirita da Franca ja tinha assinantes em todos os continentes. Os primeiros niimeros, a pedido, tiveram que ser reeditados. De acordo com depoimento do prdprio Kardec, as colecées de 1858, 1859 ¢ 1860 foram reimpressas por duas vezes.? Em curto prazo, portanto, 0 periddico firmou po: no mercado.’ Respaldados nestes e em outros dados, Marion Aubreé e Francois Laplantine (1990) afirmam que Allan Kardec se tornara um best-seller da Franca do Segundo Império. Dizem eles que sua primeira obra, O fro dos espiritos, “eclipsou todos os outros livros que, 4 época, tratavam do tema da comunicagao entre vivos ¢ mortos” (1990; 30). Pode ser um exagero. Mas em 1862, em viagem pelo interior da Franga, numa excursio em que percorreu vinte cidades em sete semanas, Allan Kardec constatou um significativo aumento, desde 1860, no numero de adeptos da doutrina: Um tinico fato pode dar disso uma idéia. Quando de nossa primeira viagem a Lyon, em 1860, existiam ali, por alto, algumas centenas de adeptos. No ano culo te ¢ cinco a trinta sa dos cinco ou seis mil. Este ano o seguinte, estes aleangavam a tornou-se impossivel. Pode-se, entretanto, avalia-los em v mil. Em Bordeaux, no ano pa do, nao cheg: vam a mil. No espaco de um ano esse niimero foi decuplicado A profi das classes médias: io de adeptos dera-se principalmente entre os segmentos Por toda parte a idéia espirita comeca a ser difundida partindo das classes mais esclarecidas ou de mediana cultura. Em nenhum lugar ascende das classes Esses dados constam de Wantuil ¢ Thiesen, [1973] 1988: 24, Wantuil ¢ Thiesen: 24, Kardec, Allan. Viggen expiite em 1862. Sio Paul © Chari, s/a: 20, A Doutrina dos Espisitos Segrado Allan Kardec mais incultas. Da classe média ela se estende as mais altas ¢ mais baixas da escala social, Em muitas cidades os grupos de estudo sio constituidos quas que exclusivamente por membros dos tribunais, pela magistratura ¢ o funciona- lismo. A arist Pp cr simpatizantes ¢, na Franca pelo me- ‘0s, pouco se retinem. Grupos desse tipo sio mais comuns na Espanha, Russia, eracia fornece também seu contingente de adeptos mas até o inte cles tém se contentado em Austria e Polénia. Letrada, de classe média, a doutrina de Allan Kardec teve a sua difusiio promovida, em larga medida, pela curiosidade, pelo interesse particular que despertavam os seus principais temas: a vida pos-morte € a possibil duziam algo de inovacio, ao mesmo tempo que de continuidade em idade de comunicacio com os mortos. Estes temas intro- relagio a certas tradigGes que existiram na Europa. A possibilidade de contato com o mundo dos mortos, por exemplo, nao eta um tema novo no imaginario europeu. Até entao, contudo, a esse tema se associavam praticas magicas, de feitigaria, que teriam atravessado séculos de popula- res." O Espiritismo retoma esse tema de uma nova perspectiva: ao cristianizagao, como um substrato cultural préprio das cla passo que a magia curopéia tematiza a possibilidade da “viagem ao mundo dos mortos”,’ o Espiritismo pretende comprovar a presenga 5. Idem, ibidem: 21-22. Wantuil ¢ Thiesen (1988) recolhem, numa edigio de 1869 da Reewe Spin, outros dados que reafirmam © complementam os acima apresentados. Allan Kardec estima nessa edigio da revista que na Europa, em 1869, 0s espirtas somavam 1 milo de adeptos. Desse total, cerca de 700 mil eram franceses. No mundo, © scu volume estimad eta de 6 a7 milhdes de adeptos. Os paises da Europa onde a doutrina conquistara maior receptividade cram, em ordem decrescente, 08 seguintes: Franga, Itilia, Espanha, Rissia, Poldnia, Alemanha, Bélgica, Inglaterra, Holanda, Suécia, Dinamarea, Gréeia, Portugal ¢ Suiga. Quanto a0 perfil dos adeptos, Allan Kardee afirma que i époea havia mais homens (70%) do que mulheres. A maioria eram “pessoas instruidas”, de classe mi ‘embora nx Franga se registrasse também a adesio de membros da classe operiia (Wantuil © Thiesen, [1973] 1988: 5.46), 6. As origens ¢ os suportes eulturais da erenex européia ma magia tém sido objeto: de estudo de virios trabalhos recentes da historiogratia. Entre ox pesquisadores curopeus, Carlo Ginzburg (1987, 1990 © 1991) certamente se destaca pela macstria de suas anilises, Scus trabalhos recentes promoveram uma revisio na abordagem do tema, servindo, 20 mesmo tempo, como fonte de inspiracio para alguns trabalhos que vém sendo realiaados no Brasil, dentre outros, os de Laura de Mello € Souza (1986 € 1993). Usando como fonte documental os processos de Inquisigao, C lo Ginzburg desereve em Histéris notuma, com precisas pinceladas, os clementos que compdem 0 relato das priticas de feiticaria: “Bruxas ¢ feiticeicos reuniam-se 4 noite, geralmente cm lugeres solitirios, no campo ou na montanha, As vezes, chegavam voando, depols de ter untado o corpo com ungientos, 25 Espiritismo a Brasileira destes no mundo dos vivos. Outra diferenca é que se trata de uma. versio erudita: nao apenas pelo fato de ser letrada mas, principalmente, por ter sido formulada tendo como parimetro preceitos, idéias © proce- dimentos que se querem “cientificos”. Voltaremos a esse tema mais tarde. Ja a questio da reencarnacio nao encontra respaldo na tradicio religiosa européia. Trata-se, porém, de um tema que 4 época vinha sendo colocado em pauta por outras correntes do chamado Espiritua- lismo Moderno, movimento de cunho religioso ¢ intelectual que reu- nia de forma eclética, difusa, tradicdes e filosofias de origens as mais diversas (orientais, pré-cristis e/ou recentemente criadas, a exemplo da Teosofia, de Helena Blavatsky, e do Espititismo, de Kardec), tendo como perspectiva comum o enfrentamento dos valores da moderni- dade ¢ preceitos da ciéncia, de um lado, ¢ a critica a tradicao crista, de outro. José Jorge de Carvalho chama a aten¢io para esse aspecto do movimento, na medida em que qualifica 0 chamado “esoterismo mo- derno” como sendo “uma rea¢io muito particular 4 modernidade e suas conquistas materiais e filosGficas” (1990: 2). Segundo 0 autor, esse movi- mento articula grupos, magos e correntes de tradic¢’o iniciatica que exis- tiram no Ocidente em condigao de complementaridade ou confronto com © cristianismo, dentre os quais destaca: a cabala cristi, resultante da fusio da cabala judaica ¢ do cristianismo; a tradigo hermética; a Ordem Rosa Cruz, a maconaria, a tradi¢ao alquimica. Também se ve- rifica a influéncia das religies orientais, sobretudo as da India, que come- gam a despertar interesse a partir das primeiras décadas do século XIX. Espécie de contradiscurso & modemidade, segundo José Jorge de Carva- Iho, esse movimento se difundiu “num momento paradigmitico de nossa civilizagao: quando o discurso racional da filosofia ameacou prescindir montando bastdes ou cabos de vassoura; em outeas ocasides, apareeiam em garupas de animais ow entio transformados eles mesmos em bichos. Os que vinham pela primeira vez deviam renunciar 4 Fé cristi, profanar os sacramentos, render homenagem ao diabo, presente sob a forma humana ou (mais freqiiemtemente) como animal ou semi-animal, Amtes de voltar para casa, bruxas ¢ feiticeiros recebiam ungiientos maléficos, produzidos com gordura de criangas € outros ingredientes. Sio- estes os elementos fundamentals que se repetem na maior parte das descrigdes do sabi.” Em outra passagem, actescenta: “O niicleo & constituide pela riagem do mundo dos vives para @ mnende des monies, A esse niicleo mitico ligam-se também temas foleléricos, como 0 Véo noturno € as metamorfoses animaleseas.” (1991: 9 € 37; grifo meu) A Diuutrina dos Espiritos Segundo Allan Kardec de vez de um solo transcendent ¢ [a] ciéncia ameagou |...] desprezar de ensdes arcanas da realidade” (1990: 8). minadas por esse movimento circularam & época num ver quaisquer As idéias diss universo social mais amplo que o circulo restrito dos adeptos, tendo como principal veiculo a literatura. E 0 que sugere Helena Blavatsky, personagem simbolo desse movimento, num scu artigo escrito 4 época. Intitulado “Sinais dos tempos”, neste ela afirma o que segue: “E bas- tante interessante seguir, estagao apos estagao, a rapida evolugao ¢ mudanga do pensamento publico em dire¢ao ao misticisme. [...] Como Path, de Nova York, diz em seu fasciculo de setembro, quando ‘assuntos “Teosoficos ¢ outros do género [...] tornam-se assuntos de romances’ ¢, pode- mos acrescentar, [...] também ensaios ¢ brochures cientificos, donde ‘infere-se que o interesse por eles difundiu-se por todas as camadas sociais’.” (1977: 75) Comentério a0 qual acrescenta: “O leitor tem apenas de dat uma olhada retrospectiva nas publicagdes dos tiltimos anos para descobrir que assuntos como Misticismo, Magia, Feiticaria, Espiritualismo, ‘Teosofia, Mesmerismo, ou como é agora chamado, Hipnotismo — todos os varios ramos, em resumo, do lado Oculto da natureza — estio se tornando predominantes em toda espécie de literatura.” Em seguida arrola uma série de obras “basicas da literatura mistica e teosdfica” e adiante acrescenta: “Devemos assinalar o fato de que a Teosofia agora cruzou o Canal [da Manchal ¢ esti fazendo carreira na literatura fran- cesa.” (1977: 75 & 76) Mircea Eliade, estudioso de religi6es comparadas, endossa essa observacao no seu texto “O oculto ¢ 0 mundo moderno”’, quando afirma: “O que é significativo nesse interesse fin de siddle pelo oculto & © papel desempenhado pelos escritores franceses.” (1979: 59) Esse seu comentario se fundamenta num artigo, de 1890, escrito por Anatole France: swum certo conhecimento das Ciéncias Ocultas tornou-se necessdrio para a compreensao de muitas obras literirias deste periodo. A magia ocupou um lugar importante na imaginacao de nossos poetas ¢ romancistas. O fascinio pelo invisivel tomou conta deles, a idéia do desconhecido os persepuiu ¢ 0 tempo voltou a Apuleio ¢ Flegon de Trales. (Eliade, 1979: 59) vinitismo a Brasileira Mircea Eliade afirma que alguns escritores ingleses da época também se deixaram seduzir pelas priticas ocultas, Entre os frances s, porém, parece que a sua tepercussiio foi mais expressiva: os movimentos ocultistas [..] fascinaram, realmente, um grande nimero de escritores importantes, desde Baudelaire, Verlaine e Rimbaud até André Breton ¢ alguns autores pés-surrealistas, como René Daumal. [...] m suma, a influéncia do oculto representow para a vangwarda litenitia ¢ artistica francesa um dos meios mais eficaz s de critica € rejeicio dos valores culturais religiosos do Ocidente. (1979: 61) Jacques Lantier faz observaciio semelhante, especificamente com relagio ao Espiritismo. Segundo ele, “...as obras de Allan Kardec tive- ram enorme repercussao durante a segunda metade do século XIX. O romantismo tinha se apoderado do assunto ¢ a literatura estava toda imptegnada de mistérios espititas.” (1971: 69) Acesséria na veiculagio das idéias, praticas ¢ valores difundidos pelas wiirias correntes que compunham o chamado Espiritualismo Moderno, a produgio literdria se tornou um importante suporte 4 difusiio do movimento. Infelizmente nio hi como dimensionar o volume total dessa producio, nem o do circulo de leitores. No entanto, as sucessivas edig6es, realizadas em curto espaco de tempo, de algumas das obras publicadas por propagadores destas doutrinas, a exemplo do que menciona Jacques Lantier com relacio a primeira obra de Allan Kardec, podem ser consideradas um indicador de que a literatura filos6fico-religiosa vinha conquistando um certo espago no mercado 4 época. Allan Kardec nao tepresentaria, portanto, um caso isolado. E 0 que sugerem alguns dados sobre a produgio de Helena Blavatsky, por exemplo. Ela langou 0 seu primeito livro, Isis sem én, em setembro de 1877. Segundo consta, a primeira edigao, de mil cdpias, foi vendida em apenas dez dias (Claret, 1991: 88). O segundo titulo publicado por Blavatsky, A douirina secreta, tido como sua obra fundamental, foi publicado em outubro de 1888, “simultaneamente em Londres ¢ Nova York” (Claret, 1991; 11). A primeira cdicio inglesa, de 500 exemplares, “esgotou-se antes mesmo do dia de sua publicagio” (Claret, 1991: 11). Poucos meses depois, 28 A Doutrina dos Espinitos Segrmdo Allan Kardec portanto, Al dowtrina secreta ja circulava naquele pais em segunda edigio (Claret, 1991; 91). Nesse interim, as obras de Allan Kardee continuaram sendo reeditadas. Segundo Jacques Lantier, desde o seu langamento em 1857 até a morte do autor em 1869, O Jiro dos espinitos teve quinze reedicSes na Franca. Embora fragmentirios, esses dados parecem ser significativos se considerarmos que algumas dessas edigdes se aproximam do que constituia a média editorial do periodo. O livro de Charles Darwin, Sobre a origem das espécies por meio da selegao natural (1859), um inquestionavel best-seller da época, saiu em primeira edicio com 1.250 exemplares. Isis sem vén (1877), de Helena Blavatsky, teve uma primeira edicio de porte seme- Ihante: saiu com 1.000 exemplares. O livro de Darwin esgotou-se no dia do langamento. O mesmo ocorreu com A dautrina secreta (1888) de Helena Blavatsky na Inglaterra, numa edigio, porém, menor, E Jo permitem afirmar que os livros de Allan Kardec e Helena Blavatsky, dentre outros, tenham tido a mesma identemente esses dados inserco que as obras de Charles Darwin no mercado editorial. Os livros mencionados podem ter tido edicdes de volume semelhante, além de uma ripida vendagem quando do seu langamento. O ritmo e volume das reimpressdes das obras de Darwin foi, porém, desde o inicio, incomparavelmente maior Fato que parece confirmar a tendéncia observada pelos recentes estudos sobre a histéria do consumo literario. Segundo estes, a partir de meados do século XVIII a literatura religiosa, & Numa das biografias mais completas j4 produzidas sobre Charles Danwin, Adrian Desmond & James Moore (1995) permitem que o Icitor acompanhe de perto 0 desenvolvimento da pesquisa «¢ das idgias de Darwin, bem como detalhes do sew sucesso editorial, Dizem cles a esse respeito: “Esgotado no dia do seu langamento, A oniem das espicies mio apenas rompeu ‘amarras académi- cas” O livro “encontrou seu caminho nas salas de visitas © nas rus” (p. 498 ¢ 499). Contam ainda ‘que ts edlitoras dla América tentaram piratcar o Tivro, Mas em 1860 saiu a primeira edigao oficial, com 2.500 eépias (p. 512). Logo em seguida vieram as tradugGes: para @ alemio, 0 holandés ¢ 0 francés (p. 530); depois o italiano (p. $39). Até 1868 essa obra ji havia sido teaduzida em seis linguas (p. 573). Darwin langou nese mesmo ano © seu segundo livro, Animals and plants ueder domustcation, “Murray subestimow a demanda, As 1.500 c6pias desapareceram em uma semana, A demanda cra to alu que em onze dias as miquinas estavam reimprimindo” (p. 570). Alguns anos mais tarde, Darwin publicou Plants énscttorons, urn eatilogo de 450 piginas que desereve seus experimentos com plantas. “Quem poderia imaginar que [..| fosse vender mais ripido que 0 original Origeor das espécies? |..J Q.nome “Darwin’ se tornara uma recomendagio, nio importando quio estranho fosse o assunto.” (p. 636) 29 Espiritismo a Brastleira devocional (em particular a leitura da Biblia, da histéria dos santos e dos livros de oragGes) comecou a perder terreno para outros géneros literdtios. Nessa época, além dos romances que se tornaram os grandes best-sellers do. periodo, os livros de viajantes, que apresentavam aos leitores lugares distantes ¢ povos exdticos, bem como os de histéria natural, comecaram gradativamente a conquistar a preferéncia do ptiblico.’ Essa tendéncia foi observada tanto na Franca como na Inglaterra e na Alemanha. Os dados estatisticos coletados por diversos autores convergem nesse sentido: todos apontam para uma “queda significativa da Icitura religiosa durante o século XVIII”, afirma Darnton (1990: 151). “Em pouco m havia se transformado. [...] A ascensio do romance contrabalangava s de duzentos anos”, diz ele, “o mundo da leitura um declinio na literatura religiosa, e em quase todos os casos poder-se-ia situar a virada da segunda metade do século XVIII [como marco do} triunfo de uma nova sensibilidade literaria, [...] do advento de um novo publico leitor, simultaneo a morte [da] cultura crista tradicional” (Darnton, 1990: 151-152). Tendéncia que se confirma com dados do final século XIX: um levantamento sobre os empréstimos de livros que foram feitos em bibliotecas alemis, inglesas ¢ norte-americanas revela que nesse periodo 70 a 80% dos livros retirados pertenciam a categoria fico leve (basicamente romances); 10% correspondiam 4 historia, biografias e viagens ¢ menos de 1% pertencia 4 religito (Darnton, 1990: 151). Confrontando estes dados, “apesar de todas as suas variedades ¢ contradigdes ocasionais”, Robert Darnton conclui que os estudos estatisticos relativos ao desenvolvimento dos habitos éculos XVII ¢ XIX “sugerem algo parecido com 0 ‘desencantamento do mundo’ de Max Weber” (1990: 152). Ha outros dados que permitem ao autor reiterar essa imagem. A literarios entre os leitura praticada como “exercicio espiritual” foi uma tendéncia que predominou nos séculos XVI e XVIL Realizada no ambito familiar, em voz alta, esta se concentrava num reduzido numero de obras, com 2% Sobre a historia da produsio ¢ do consumo literirio, veja-se artigos de Roger Chartier (1994, 1995 e 1996) ¢ Robest Darnton (1991), dentre outros A Doutrina dos Espirites Segundo Allan Kardec especial predominancia da Biblia, Esse era, portanto, um tipo de Ieitura que “para grande parte das pessoas |...) [configurava] uma atividade sagrada” (Darnton, 1990: 160). Afirma Chartier, outro estudioso do tema, que esse “antigo estilo de leitura” declinou nas sociedades euro- péias ¢ na Nova Inglaterra a partir da segunda metade do século XVIII (1996: 85). O autor atribui essa tendéncia, de um lado, a diversificagao dos objetos de leitura e a mudangas das preferéncias do publico; de outro, 4 emancipagao do ato de ler “das celebragGes religiosas, eclesiasticas ¢/ou familiares” (Chartier, 1996; 86). Como Darnton, portanto, Chartier enfatiza como caracteristica desse periodo a laicizagao dos habitos de Icitura. Contexto em que tanto o livro quanto a Ieitura assamem novas fungées: os livros perderam a sua aura sagrada, 40 passo que Os textos deixaram de ser, como antigamente, “mestres da vida” (Chartier, 1996: 86). Argumento que Robert Darnton endossa ao afirmar que a partir de entio a leitura assume cariter essencialmente instrumental, cumprindo diferentes fungdes: além de ler “para salvar suas almas”, as pessoas passaram a recorrer aos livros “para refinar suas maneiras, consertar méquinas, seduzir namorados, informar-se sobre as atualidades [ou] simplesmente para se entreter” (1990; 155). Acredita-se que essas mudangas se consolidaram por etapas. E 0 que sugere Darnton ao afirmar que “no século XVII as pessoas passa- ram através dos livros a tentar decodificar finalmente a partir de meados do século XVIII passaram, através .] a matureza até que, destes, a ler a si mesmas” (1990: 171). Nao se pode afirmar, contudo, que esta seja uma trajetoria linear. Ou mesmo sem conflitos, Fato que reconhece o prdéprio Darnton ao sugetir que “a leitura nao evoluiu numa unica diregao” (1990: 155). Essa observagao do autor se presta especialmente 4 anilise do século XIX, periodo a que os estudos mencionados pouco se dedicam. Este se apresenta, porém, como um momento particularmente interessante no contexto dessa discussio, visto que a literatura religiosa, de canho espititualista, conquista 0 interesse de uma patcela do puiblico leitor da época, © que lhe permite consolidar um certo espago no mercado editorial, Este é, portanto, um momento em que © campo literdrio se 31 Exspinitismo a Brasileira caracteriza por uma maior complexidade, para a qual os estudos menciona- dos nio tém atentado. Resumidamente, talvez se pudesse afirmar que entre meados ¢ o final do século XIX se confrontam duas tendéncias: de um lado, perdura o declinio da leitura biblica ¢ outros textos cristios face A concorréncia dos novos géneros literirios; de outro, 0 proceso de laicizagio da leitura passa a se defrontar com o surgimento de novos movimentos, grupos ¢ correntes religiosas, cujas idéias ¢ priticas sio difundidas por meio de livros. Considerando os dados apresentados com relacao ao scu consumo, parece plausivel supor que entre meados ¢ 0 final do século XIX os interesses literarios do publico voltaram-se n&o apenas aos novos géneros; também se diversificaram no que diz respeito 4 prépria literatura religiosa. Prentincio ou precedente, talvez, do que se assistiu na passagem deste ultimo século, que também é de milénio. ENTRE A CIENCIA E A RELIGIAO Dificil de apreender, o ato de leitura tem sido objeto de questio- namento da historiografia recente. Raros so os casos, porém, em que as fontes historiogrificas permitem 0 acesso 4 experiéncia de leitura dos chamados “leitores comuns”."" © mesmo niio se observa com rela- Gio aos “Ieitores cruditos”, especialmente quando estes sao, também, autores; sua peregrinacao litcraria esta inscrita no proprio texto. 10. Essa perspeetiva de anilise constitui um dos achados do. historiador Carlo Ginzburg. No curso ide suas pesquisas com os processos de Inquisigio, cle acabou tendo acesso 4 histéria de vida de tum moleiro friulano, cujas confissdes revelam nio apenas os livras que havia lide mas, também, como a partir da Ieitura destes passou a rcinterpretar certas passagens biblicas, comando-o, aos colhos da Igreja, um herege. Essa documentagio deu origem a0 conhecido livro O guejo ¢ 0s wermes (Ginzburg, 1989). Outros autores descrevem, em textos menores, as experiéncias de leitura «le persanagens que viveram em outras épocas, por exemplo, a de um comerciante burgués da Franga do século XVII, retratada por Damton (1986); ha também uma curiosa histéria, do século XVIII, de um camponés analfabeto, autodidata, cujo trajeto pela “cultura escrita” segue rumo inverso ao. de pechio”, protagonista do mencionado live de Ginzburg. Jamerey-Duval, 20 ccontririo daquele, se distancia a tal ponto da “cultura popular” que termina como “professor de histéria e antiguidades" no ducado de Lorena (Hébrard, 1996) A Dontrina dos Espiritos Segemdo Allan Kardec Reler dessa perspectiva a producio espiritualista e/ou esotérica da modernidade permite reavaliar as fontes ¢ as estratégias textuais utili- zadas na tentativa de legitimar visGes de mundo concorrentes. Tome- mos como exemplo a produgio de Allan Kardec ¢ Helena Blavatsky, nomes 20s quais esto associados © Espiritismo ¢ a Teosofia, respecti- vamente. Essas duas doutrinas, surgidas na Europa em meados do século XIX, remetem alguns dos seus fundamentos doutrinarios 4s filoso- fias do Oriente, em particular o hinduismo e o budismo. A postura adota- da com relagao as idéias postuladas por estas, porém, nao ¢ a mesma. Allan Kardec, por exemplo, atualiza certos preceitos — especialmente as teses da imortalidade da alma ¢ a reencamagio — recorrendo ao depoimento “dos espiritos”, aos quais teve acesso por meio de varios médiuns." Blavatsky, a0 contritio, ancora a Teosofia na tradicao: para legitimar as teses que postula em suas obras, recorre a documentos antigos, ha séculos guardados em mosteiros do Oriente, aos quais afirma ter tido acesso, por vezes, através da meditagao. A autoridade conferida as fontes decorre, nestes casos, da submissio destas a expedientes diversos de vali- daciio: num caso, foram confrontadas com a experiéncia contemporinea “dos espiritos”; noutro, comparadas aos ensinamentos registrados em documentos antigos, cujos mistérios se encontravam resguardados pelo uso de uma linguagem simbolica. De preceitos semelhantes surgitam, portanto, duas doutrinas. Chama, porém, atengio © fato de esses autores recorrerem jis mesmas referencias como estratégia de argumentacio. Dentre elas, destaca-se 0 confronto com a tradicio biblica, de um lado; a discuss’o das idéias postuladas por correntes diversas do pensamento cientifico da época, de outro. O uso dessas referéncias, nao apenas como citagao, mas como estra- tégia argumentativa, evidencia que a época as relagGes entre ciéncia ¢ religido (o mais adequado seria usar os dois termos no plural) se 11, Numa obra de divulgagio “popular”, Allan Kardee afirma a esse respeito: “A [..J doutrina que os Egpiritos ensinam hoje nada tem de nova. [.-] O que vem, pois, fazer o Espititismo? Vee tazer novas confimgies, demonsrar, através de fatos, verdades desconheidas on mal compreendidas.” 12 adiante, acrescenta: “Nao € alguma coisa provar de mancira patente, irrefutdvel, a existéncia da alma, sua sobrevivéncia a0 corpo, sua individualidade pés-morte, sua imortalidade, as penas e recompensas (Kardee, [1862] 1995; 26; gifs meu). Espiritismo a Brasileira haviam complexificado, nao se podendo reduzi-las 4 simples oposi¢io. c/ou exclusio, Houve influéncias ¢ cooptagGes mmituas. Sabe-se, embora seja pouco divulgado, que nao foram apenas os literatos que se deixa- rios cientista ram seduzir pela “onda ocultista” da epoca. V: ingleses, do citculo de telagdes de Darwin por exemplo, aderiram a vertente anglo-saxdnica do movimento espiritualista, motivando em alguns casos a revisiio de suas idgias com relagio 4 evolugdio — tema ¢ conceito em auge no debate cientifico da época. Adrian Desmond ¢ James Moore descrevem esse fendmeno com um certo sarcasmo: Ser espiritista tinha se tornado moda nos anos de 1860. Nenhuma “ciéncin”, nem mesmo a frenologia, eta mais popular — ou mais diretamente acessivel. Robert Chambers foi conquistado ¢ comegou a revisar [a sua obra] [estiges sob uma luz mais espiritual. [...] O anti-socialista Robert Owen também foi conquistado e até John Frost [...]. As probabilidades evolucionirias de Huxley tinham agora de competir com as conviccées espirituais nos Institutos de Mecinica, [...] Wallace [...] ficou a distincia. Frenologista, hipnotizador € socialista antigo, |... ele sistiu 4 sua primeira sesso espirita com a Sra. Marshall, a médium mais famosa da Inglaterra, em 1865, Hensleigh, prima de Darw , soube disso © em poucos anos todos também ficaram sabendo quando Wallace reconheceu uma realidade espiritual mais elevada, [..J) Ele imprimiu um pantleto, The Scientific Aspect of the Supernatural, ¢ comecou a ‘a remendando a 8) lace esta (1995: 557 ¢ incomodar, .] Mas © pior estava por v evolucio por conta daqueles espititos invis O movimento inverso também se observa, com maior impacto. Algumas das doutrinas religiosas surgidas na Europa 4 época passaram a reivindicar 0 estatuto de ciéncia. Dentre elas, o Espiritismo ea Teosofia. Ambos se autodefiniram como sendo, ao mesmo tempo, ciéncia, filosofia e doutrina, Nessa ordem de precedéncia. Varios foram os expedientes adotados com o fim de legitimat a teivindicagdo desse estatuto. A centralidade conferida ao tema da evolucio foi um deles, visto ser essa a questéo em pauta na produgio cientifica da época. No campo religioso, no entanto, o tema nao eta novo, uma vez que se trata de tese corrente nas filosofias orientais nas quais essas doutrinas se inspiram. Mas © tratamento que lhe foi dado assumiu novas feigGes: apresentado como 34 Al Doutrina dos Espiritos Segundo Allan Kardec argumento ¢ nio como dogma, o tema da evolugao emerge nas obras dos propagadores dessas doutrinas como uma hipétese a ser compro- vada, Evidéncias empiricas ¢ fontes documentais, como ja mencionado, constituem os princip: se observa na produgao cientifica. A forma de exposigio dos temas instrumentos manipulados, a exemplo do que doutrinarios segue, no entanto, por vezes, © modelo religioso. Varios livros de Kardec ¢ alguns de Blavatsky adotam o esquema de perguntas € respostas como estratégia textual, reproduzindo um modelo consignado nos livros de catecismo, por exemplo. No entanto, esse expediente sc reveste de “ares de modernidade”. O formato é o da entrevista, real ou ficticia, com interlocutores diversos: os “espiritos”, um padre, um jornalista, um Icitor etc. Mas nem todas as obras desses autores ado- tam esse formato, Ha algumas de cariter discursivo, nas quais, porém, se preserva a dialogicidade: os mitos da Antiguidade, as idéias biblicas € as teorias cientificas figuram como interlocutores privilegiados. Espelhando-se, portanto, nos modelos da prit a cientifica, as doutrinas em questio construitam os seus argumentos por meio do confronto de interpretagées. Essas so apenas algumas indicagdes que permitem vislumbrar as aliangas, tensdes, ambigiiidades ¢ conflitos que permeiam a interlocucio estabelecida entre religiio e ciéncia na modernidade. A investigacio da literatura produzida 4 época parece set um instrumento adequado para se relativizar a tendéncia, de certo modo consolidada, de tratar religido ¢ ciéncia como campos de conhecimento auténomos ¢/ou excludentes. Os exemplos aqui considerados evidenciam que estes siste- mas de conhecimento mantém relagées intensas que sio, ao mesmo tempo, de aproximagio e distanciamento; de confronto e influéncia miituas; de apropriagao ¢ reinterpretagcs inesperadas. Colocada dessa forma abrangente, porém, a discussio do tema foge aos limites desse trabalho. O que s camente da producio literaria de Allan Kardee, objeto de analise mais gue é um recorte que faz do Espiritismo, e especifi detalhada. A intent ) € evidenciar, nas su principais obras, como foram construidas as relagSes entre a doutrina espirita ¢ a ciénc spiritismo a Brasileira O IMAGINARIO DA EVOLUGAO: VERSOES DE UMA MESMA TEORIA Para designar coisas novas sio precisos termos novos. [.. Os termos espiniiual, |.0 espiritualismo é 0 oposto do materialismo; quem quer que acredite haver espiritualista e espiritualismo tém uma significagao bem definida; |. em si mesmo alguma coisa além da matéria € espiritualista; mas dai que ereia na existéncia dos espiritos ou em suas comunicacdes com 0 mundo visivel. ] Diremos, pois, que a doutrina espirita ou o Espiritismo tem por principio as relagdes do mundo material com os espititos ou do mundo invisivel. (Allan Kardec = O limo dos espiritos) O ato semantico de abertura do primeito livro de Allan Kardec, O livro dos espiritos, estabelece os termos da insercio do Espiritismo no contexto teligioso da modernidade. “Como especialidade, O ive dos espiritas contém a doutrina espirita; como generalidade, prende-se, A doutrina espiritualista, uma de cujas fases representa.”'? Nao se trata, contudo, de uma doutrina que inaugura idéias novas. Allan Kardec 0 admite ao afirmar que “a doutrina que os espiritos ensinam [..] nao é uma descoberta moderna”, podendo ser “encontrada, em fragmentos, na maioria dos filésofos da India, do Egito e da Grécia”."* O mesmo se observa com relacao as suas praticas: moda trazida dos Estados Unidos em meados do século XIX, 0 fendmeno da comunicacio com s mortos por meio de objetos, mesas ¢/ou médiuns j4 ha alguns anos se difundira na Europa. O proprio Allan Kardec teve o seu primeiro contato com “o fenémeno” dessa forma. A convite de um amigo, em maio de 1855, compareceu 4 casa da Sra. Pleinemaison para assistir a uma sessio: “Ali, pela primeira vez, fui testemunha do fendmeno das mesas que giram, saltam e correm, [..] Vi, também, alguns ensaios, muito imperfeitos, da escrita meditinica em um ardésia, com o auxilio 12. Kardec, Allan. O iro dor espnites. Rio de Jancito: FEB, [1860] 1997: 13. 13, Kardee, Allan, O Espiritismo em sua mais simples eapressio. In: __. Iniigsdo epirta, Sobradinho- DF: Edicel, 1995: 26, 36 Al Doutrina dos Espiritos Segenda Allan Kardec de uma cesta.”"* Retornando ao local outras vezes, das sess6es assis- tidas, Kardec comenta 0 que segue: “Os assuntos tratados eram geral- mente frivolos; ocupavam-se principalmente de coisas da vida materi- al; nada verdadeiramente sério, sendo a curiosidade e 0 passatempo o ptincipal movel dos assistentes.” (Kardec, [1890] 1995: 202) Apesar dessa sua avaliacao inicial, Kardec acabou se interessando pelo “fendmeno”, Passou em seguida a freqiientar com certa regulari- dade a casa daquela senhora, transformando, por fim, as sess6es a que assistia em atividade de pesquisa. A respeito, comenta 0 que segue: “as sessdes na casa da Sra, Baudin nunca tinham tido um fim determinado. fia, psi- isivel. Em cada sessio apresentava uma Procurei nelas resolver problemas que me am sobre filos tere cologia ¢ a natureza do mundo in rie de perguntas preparadas [antecipadamente]. [..] As reunides tomaram, entio, outro carter... (Kardec, [1890] 1995: 205) Quase um ano depois, pouco restava do declarado ceticismo inicial. A adogio do nome Allan Kardec, que se acredita ser de origem celta, marca ritualmente a sua adesio. Justifica-se ele por ter sido este o seu nome numa encarnagio anterior, conforme informacio abtida por meio da comunicagio de um “espirito”."5 Ritual préprio do meio teligioso que acompanha processos de redefinicao de sfatns, a mudanga de nome demarca a assuncio de uma nova identidade social. Allan Kardec, como passou a ser conhecido, era o pseuddnimo do pedagogo francés Léon- Hippolyte Denizard Rivail, nascido em Lion em 1804, que ja tinha a época inclusive alguns livros publicados.'* Distanciando-se, porém, dessa sua pratica, com o tempo a formulacio e¢ divulgacio da doutrina espirita se tornaram sua principal ocupacao. 14. A inieiagio de Allan Kardce no Espiritismo, deserita em cariter autobiogrifico, foi publicada apés a sua morte. Consta da segunda parte de Obrat péstumas, editaclo em 1890, Deste documento foi cxtraido © depoimento citado (Kardec, [1890] 1995: 202), 15. Numa nota biogtifiea que introduz o liveo de Allan Kardee O gue é 0 Espintisme, Henri Sausse informa que foi durante uma sessio particular assistida por cle que o set “espitito protetor” informou “té-lo conhecido em uma cxisténcia precedente, a0 tempo dos Druidas, quando viviam juntos na Gilia”, De acordo com este “espirito”, o sew nome 4 época teria sido Allan Kardec (Kardee, (1859] 1983: 18) 16. Para maiores detalhes sobre a biografia de Allan Kardec, consulte-se, dentre outros: Kardee ((1859] 1983), Wantuil ¢ Thicsen (1988), Aubrée ¢ Laplantine (1990) ¢ Damasio (1994). No livro 37 initismo & Brasileira Decorrido um ano de pesquisa, Allan Kardec decidiu ampliar 0 uni- verso de suas observacées. Passou entio a freqiientar reunides promo- vidas por outros médiuns: “...sempre que se me oferecia ocasiio, apro- veitava para propor perguntas que me pareciam espinhosas. Foi assim que mais de dez médiuns prestaram a sua assisténcia ao trabalho.” (Kardec, [1890] 1995; 204) Quanto ao método de investigagio adota- do, explica: “Procedi com os espiritos como teria feito com os homens: [J observar, comparar, julgar, essa foi a regra invaridvel que me impus.” (Kardec, [1890] 1995; 205) Procedimento que explicita com mais énfase ¢ detalhes quando afirma: “Apliquei [..] 0 método experimental, ndo accitando teorias preconcebidas. Observava atentamente, comparava ¢ deduvia as conseqiiéncias, dos efeitos, procurava clevar-me as causas, pela dedugio ¢ encadeamento dos fatos. [..] Foi assim que procedi, [como] em meus trabalhos anteriores.” (Kardec, [1890] 1995: 204) Ao final de dois anos, 0 material coletado jé assumira a proporgio de um livro.'” Sistematizado e organizado por temas, sob a forma de perguntas ¢ respostas, O firro dos espinitos foi publicado em 1857. Uma nova versio deste, revista e bastante ampliada, foi apresentada em 1860, sendo entao difundida no mundo todo.'* Allan Kardec alega em ambas as vers6es d’O tro dos espiritos que sua participacio neste se resume a apresentacio formal dos dados: “..foi da comparacio ¢ da fusio de todas as respostas, coordenadas e¢ classificadas [por temas], Obras pastumar, publicado em primeira edi¢io em 1890, encontra-se relato autobiogrifico de fos que antecederam sua iniciaglo no Allan Kardice, Neste, alm do registeo de alguns cpisé Espiritismo, encontra-se a transerisio de comunicasoes meditinicas, comet difusio do Espiritismo ete. (Kardec, [1890] 1995) 17. Além dos dados colhidos diretamente, por meio da participagio pessoal de sessdes meditinicas, Kardec fez uso de material transcrito em 50 cadernos, que contém o fegisteo de cinco anos de “comunicasdes diversas”, Esse material Ihe foi entregue por freqaentadores de sessoes ios a respeito da mediiinicas para que se promovesse a sistematizacio das informagics. Este foi, segundo Henri Sausce, 0 ponto de partida de suas pesquisas junto “sos espisitos” (Kardec, [1859] 1983: 18) 18. Os argumentos aqui apresentados se fundamentam na anilise dessa segunda versio d'O fire dos opinion, que segundo © proprio Kardec pode “ser considerado um trabalho novo, embora os principios no hajam sofrido nenhuma alteragiol” (Nota do Tradutor). Agradego aos membros do. CEPEDOC (Centro Espirita de Pesquiss ¢ Documentagio) a observacaa a esse respite € indicagdo de fontes de consulta, especialmente Abreu (1957) e primeitos volumes da Rerista Epirite 38 A Doutrina dos Espiritos Segundo Adlan Kardec que surgiu 0 formato dessa publicagio” ({1890] 1995: 206). Na introdugio deste seu primeiro livro, desereve detalhes: “Nada contém [esse livro] que nfo seja a expresso do pen: ‘s¢ © procedimento adotado com mais mento [dos espiritos} e que nao tenha por eles sido examinado. $6 a ordem e a distribuigio metédica das matérias, assim como as notas € a forma de algumas partes da redacio” constituem criacio sua. (Kardec, [1860] 1997: 49) Nao é, porém, o que se constata relendo suas principais obras. Estas evidenciam que sua participagio na claboragio da doutrina espirita foi muito mais extensa e significativa. A abertura d’O sirro dos espiritos, citada como epigrafe dessa parte do trabalho, deixa claro, por exemplo, que o nome Espiritiswo é uma escolha sua. Esse ato semantico nio apenas normatiza relagdes preexistentes. A nomenclatura adotada inscreve a doutrina em questo no contexto do Expirttwalismo moderno, dele porém se diferenciando, sem constituir um movimento independente. Dessa forma, pode-se, de um lado, reivindicar parceria; de outro, resguarda-se-lhe o direito a uma identidade propria. Como ja observado anteriormente, o Espiritismo é caracterizado como uma ciéncia, uma filosofia ¢ uma doutrina. Esse perfil, no entanto, nao lhe foi atribuido “pelos espiritos” ¢, sim, por Allan Kardec. E 0 que deixa transparecer a leitura dos livros que compéem a base doutrinaria do Espiritismo.”” Nestes, 0 que se observa é que as mensagens atribui- das “aos espiritos” nio conformam, por si mesmas, um corpus douttinatio, isto é, um sistema articulado de pensamento. Isso se deve, em larga medida, a0 modo como a doutrina foi constituida. Como salienta o proprio Kardec, as informagoes por cle coligidas provém de espiritos diversos, as quais lhe foram repassadas por intermédio de varios médiuns. 19, Dentre 08 wirios livros eseritos por Allan Kardec, se destacam cinco obras, tidas como a base da doutrina espirita, Sio elas: O livre dor espiritor (1857/1860), que introduz os temas basicos da doutrina; O Live dos médias (1861), que descreve, classifica ¢ normatiza a pritica mediénica; O Enargeibe guide 0 Espinticma (1864) retoma os Evangelhos visando fundamentar temas doutrinarios O Cin ¢ 0 Informe (1865) discute as nogies evistis do destino pis-morte € apresenta depoimentos “dos esplritas” como a tese da imortalidade da al ual ete da reencamnagio, da evalugio es sobre © “momento de passagem” ¢ a vida na “etraticidade”; 1 Génere (1868) retoma 0 tema das origens do Universo, da ‘Terra ¢ clo homem ¢ 03 analisa & luz da doutrina espirita, 39 Espiriticono 3 Brasileiva Esse cons6rcio de varios personagens, vivos e mortos, com vistas 4 producio de um consenso com relacio a certos temas, funda os pre- ceitos doutrindrios do Espiritismo na experiéncia individual. Mas esta é sempre fragmentiria, As estratégias adotadas por Allan Kardec, seja na compilagio dos dados, seja na apresentacao textual destes, tém o intuito de dar-thes unidade. Como ele proprio declara, “..inawybe ao observador formar 0 conjunto, colecionando e conferindo [...] documentos que tenha recolhido” (Kardee, [1890] 1995: 205; grifo meu). A leitura mais istemitica de suas obras revela, porém, que a comparacao, compi- lagio ¢ organizacao tematica das informagées coletadas nao resume © seu trabalho, como cle préprio sugere. Essas foram estratégias adotadas no tratamento dos dados. Mas 6 que efetivamente confere organicidade aos textos € a discussio que se faz dos dados fragmentariamente apre- sentados. E esta nao é realizada “pelos espiritos” ¢, sim, por Kardec. N’O fiero dos espiritos, por exemplo, a0 final de certos capitulos, ele insere algumas paginas que sintetizam as idéias apresentadas, Consti- tuindo quase um texto a parte, Allan Kardec retoma os temas propos- tos, discutindo-os a partir daqueles que eram os referenciais do debate da época: a tradicio biblica, de um lado; as descobertas cientificas da época, de outro. N’O litro dos espiritos, sua obra inaugural, a idéia de Deus ¢ a forma- cao do Universo si 0 os temas de abertura, Ao contririo, porém, de outr $s cosmogonias descritas em livros religiosos, o que se 1é n’O dire trata dos espiritos no é 0 relato de um mito de otigem. Também niio s de uma “revelacio” divina a um mensageiro qualificado, eja ele um messias ou um profeta.”” Ja as primeiras paginas o leitor se defronta com uma seqtiéncia de perguntas ¢ respostas. “Que ¢ Deus?”, solicita a primeira. Resposta: “Deus é a inteligéncia suprema, causa priméria de todas as coisas.” Pergunta 4: “Onde se pode encontrar a prova de sua ex sténcia?” Resposta: “Num axioma que aplicas as vossas ciéncias. 20, Allan Kardee afirma em cf Géese que as comunicagies “dos espiritos” ecorreram “com permis: sio divina’’. Razio pela qual considera a doutrina espirita como “divina na origem", embora “de inieiativa dos espititas” ((1868] 1982: 20) 40 A Dontrina dos Espiritos Segundo Allan Kardec Nao ha efeito sem causa. Procurai a causa de tudo o que nao é obra do homem e vossa razio responderd.” Pergunta 37: “O Universo foi cria- do, ou existe de toda a eternidade, como Deus?” Resposta: “E fora de davida que ele nao pode ter feito a si mesmo, Se existisse, como Deus, de toda a eternidade, nao seria obra de Deus.” Pergunta 38: “Como Deus criou 0 Universo?” Resposta: “...pela sua Vontade. Nada carac- teriza melhor essa vontade onipotente do que estas belas palavras do Génesis — “Deus disse: Faca-se a luz ¢ a luz foi feita’.” Pergunta 43: “Quando a Terra comegou a ser povoada?”’ Resposta: “No comeco tudo era caos; os elementos estavam em confusao. Pouco a pouco cada coisa tomou o seu lugar. Apareceram entio os seres vivos apropriados a0 estado do globo.” Pergunta 50: “A espécie humana comecou por um Gnico homem?” Resposta: “Nao, aquele a quem chamais de Adio nio foi o primeiro, nem o tnico na Terra.” Pergunta 53; “O homem surgi em muitos pontos do globo?” Resposta: “Sim e em épocas virias, o que também constitui uma das causas da diversidade das racgas. De- pois, dispersando-se os homens por climas diversos ¢ aliando-se os de uma a outras ragas, novos tipos se formaram.” Continuagao da mesma pergunta: “Estas diferengas constituem espécies distintas?” Resposta: “Certamente que no; sao todos de uma mesma familia. Porventura as miultiplas variedades de um mesmo fruto sao motivo para que deixem 51, 52, 64, 65, de formar uma mesma espécie?” (Kardec, [1860] 199: 67 © 68) O modo formal ¢ “objetive” de formulagio das perguntas, bem como a impessoalizagio ¢ generalizagio das respostas, no deixa dividas quanto 4 inspiracio de Allan Kardec nos moldes positivistas da pritica cientifica da époea. Esta, potém, serviu-lhe mais do que como modelo de investigacio. As teorias, ou melhor, certas correntes do pensamento cientifico da época, foram por ele apropriadas como critério de validacio das informagées “dos espiritos”. Um dos melhores exemplos é um texto de sua autoria, de trés paginas, inserido ao final do terceiro capitulo °O irre dos expinitos, com o seguinte titulo: “Consideragdes ¢ concordancias ‘u comentario, Allan Kardec biblicas concernentes A criagao”. Neste si discute o mito de Adio ¢ Eva, respaldado nas descobertas recentes da 41 Exspiritisoro @ Brasileira Geologia ¢ da Arqueologia, duas disciplinas entio recém-criadas, que revolucionaram os conhecimentos da época com relagao 4 historia da humanidade. Allan Kardee se manifesta a propésito do tema nos se- guintes termos: Diz. a Biblia que © mundo foi criado em seis dias e [define] criagio ha quatro mil anos, mais ou menos, antes da era erista. [..J a ciéneia época de s [..] prova 0 contririo. A historia da formagio do globo terriqueo esti escrita em caracteres irrecusiveis no mundo fossil, achando-se provado que os seis muitas. dias da criagdo indicam tantos outros periodos, cada um de, talv centenas de milhares de anos. [..] Dever-se-ia dai concluir que a Biblia é um mM ao erro? Nao. A conelusio a tirar-se € que os homens se equivoc: interpretacla. [..] em vez de executada milagrosamente por Deus em algu- mas horas, se realizou, sempre pela sua vontade, mas [conforme] as leis da Natureza, em alguns milhdes de anos. ([1860] 1997; 70-71) © confronto da tradigao biblica com as recentes descobertas cientifi- cas & uma perspectiva de reflexfio que define o cendrio cultural da época. A citagZio acima evidencia o engajamento de Allan Kardec no contexto desse debate. A sua posicio difere tadicalmente, porém, da postura assumida entio pela Igreja Catélica. Ao contrario desta, Allan Kardec nao refuta as descobertas cientificas: Contra a evidéncia nao ha raciocinios possiveis. Pode dar-se que, de um momento para outro, se adquira a certeza material da anterioridade da raga humana. desde que se achem vestigios da existéncia do homem antes da grande eatistrofe [o Dikivio], provado ficai ou que Adio nio foi o primeiro homem, ou que sua criagio se perde na noite dos tempos. [..] Forcoso sera aceitar-se esse fato, como se [aceitou] 0 do movimento da Terra... (Kardec, [1860] 1997: 72) Allan Kardec nao desearta a idéia da criagio, sustentada pela tradi- cio biblica. Mas busca uma posicio conciliateria, que pode ser resu- ele mantém a idéia da criacio divina do homem, mida da seguinte forma: porém, incorporando a possibilidade de se repensar a datacio de sua origem. Postura que, como ele préprio explicita, nio implica o questionamento da autoridade da Biblia e, sim, de sua interpretacio. Ou seja, no que se refere as origens do universo ¢ da humanidade, o 42 Al Dontrina dos Espiritos Segundo Allan Kardec texto biblico, segundo ele, deve ser lido como metifora. Argumenta nesse sentido: “Muitas descobertas ja fizeram surgir diivida sa tal respcito. Pode dar-se que, de um momento para outro, se adquira a certeza ma- terial da anterioridade da raca humana ¢ entao se reconhecera, a esse proposito, [..] [que] @ texto biblico encerra uma figura.” Ou seja, “os seis dias da Criagio indicam [...] perfados, cada um de, talvez, muitas centenas de milhares de anos” (Kardee, [1860] 1997: 71-72). A publicagao d’O Jivra dos espiritos (1857) antecede em dois anos o lancamento da obra que vitia consolidar o novo paradigma cientifico da época, A onigen das espécies, de Darwin, Portanto, nesse primeira livro de Allan Kardec, a idéia de uma origem comum a todas as ragas e coloca. A hipdote- humanas, tese defendida pelos monogenistas, nao se soava absurda: 1.0 exame fisiolégico demonstra haver, entre certas ragas, diferengas consti- tucionais mais profundas do que as que o clima é capaz de determinar. cruzamento das ragas da ofigem aos tipos intermediirios [...] mas nio os cria; apenas produz variedades. Ora, para que tenha havido cruzamento de racas, preciso era que houvesse racas distintas. Como, porém, se explicaré a existéncia delas, atribuindo-se-lhes uma origem comum e, sobretudo, tio pouco afastada? Como ha de se admitir que, em poucos séculos, alguns descendentes de Noé se tenham transformado a ponto de produzirem a raca etiope, por exemplo? Tampouco admissivel é semelhante metamorfose, como a hipétese de uma origem comum para o lobo ¢ 0 cordeito, [...] Tudo, a0 invés, se explica, admitindo-se: que a existéncia do homem é anterior época em que [..] se pretende que ela comegou; que diversas so as suas origens... (Kardee, [1860] 1995: 72 ¢ 73) O argumento de Kardec reproduz a visio cientifica dominante a época. Entre 1850 ¢ 1870, a poligenia era a tese que predominava nos circulos cientificos da Europa e América (Leach, 1982: 68). Essa corrente do pensamento evolucionista do século XIX reunia os pensadores que, ficis A versio biblica, acreditavam que a humanidade tinha se originado de uma fonte comum. Dai a possibilidade de se pensd-la como una. 21. Esse mesmo argumento ¢ reiterado num liveo posterior, 4 Géuse (cap. XI). 43 E ppiritismo a Brasileira Porém, as diferencas fisicas existentes entre as racas humanas, adaptadas a climas e meio ambientes diversos, cram tidas como indicio de criagio independente. Por permanecer fortemente arraigada a verso biblica, a concepgio poligenista nio teve tantos detratores, tendo sido incorporada inclusive por algumas doutrinas religiosas da modernidade, dentre elas o Espi- ritismo. Endosso que se justifica pela possibilidade que essa teoria oferecia de se conciliar a idéia da Criagio com o tema da evolucao, entio em pauta. N’O disro dos espinitos, como ja sinalizado, essa tese é apresentada nos primeiros capitulos da obra. Mas nfo apenas nestes. Quase ao final do livro, a pergunta 690 retoma o tema: “Do ponto de vista fisico so de criagao especial os corpos da raga atual, ou procedem de corpos primitivos, mediante a reprodugao?” Resposta: “A otigem das ragas se perde na noite dos tempos. Mas como todas pertencem 4 unidade da familia humana, qualquer que tenha sido 0 tronco de cada uma, elas puderam aliar-se entre si ¢ produzir tipos novos” (p. 333; grifo meu). A publicacio do livro de Darwin, A origem das especies (1859), veio consolidar a tese oposta, a monogenia, concepgao que postula nao apenas a unidade da espécie, mas, também, a origem comum de todas as racas humanas. “O impacto da publicagao dessa obra foi tal que a teoria de Darwin passou a constituir uma espécie de paradigma da época, diluindo antigas disputas”, afirma Schwarcz (1993: 54). Refere-se a autora ao campo cientifico. No campo religioso, a adogao das novas id¢ias também ocorreu, porém implicando cm diferentes modos de acomodacio. No Espiritismo, por exemplo, se observam algumas mu- dangas na postura de Allan Kardec com relagio ao tema. N’O sero dos espiritos, como se viu acima, a idéia da humanidade como criagio divi- na é reafirmada, porém a idéia de uma origem comum das racas apre- senta-se-Ihe como inconcebivel. Em A Génese (1868), volume publi- cado nove anos depois do lancamento de A origem das espéties, Katdec retoma a discussao sobre 0 tema, reproduzindo em parte a estrutura temiatica de seu primeiro livro, Neste ultimo, contudo, dedica maior espaco a apresentagao das recentes informagées cientificas relativas 4s origens do Universo e da humanidade. Diante destas, modifica-se a 44 A Dontrina dos Espiritos Segundo Allan Kardec sua posicio pessoal com relagio a certas idéias sustentadas no primeiro livro, Ocorre, portanto, uma atualizagio de certos pressupostos da doutrina espirita em razio da incorporacao de idéias que traduziam o pensamento das novas correntes que vinham conquistando hegemonia no campo cientifico, Esse trabalho de revisio da doutrina é de Allan Kardec: é ele quem acompanha de perto 0 debate em tomo das descobertas cientificas da época, no intuito de promover a atualizacio da doutrina “dos espiritos”. Posic&io que defende de forma explicita na medida em que constantemente, nas suas obras, afirma ter a pretensio de manter o Espiritismo aberto 4s novas descobertas cientificas. Nesse livro, Ai Génese, sua manifestacio nesse sentido é das mais enfaticas: “Cami- nhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais sera ultrapassa- do”, diz ele, “porque se novas descobertas Ihe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, cle a accitara” ({1868] 1982: 44-45). ‘A acomodagio 20 novo paradigma nao se afigurava, porém, tao facil. As novas teorias da evolucio exigiam a rentincia a idéia da ori- gem divina do Universo, bem como ao lugar especial que se atribuia ao homem na Criagio. Segundo o novo paradigma, a humanidade, como as demais espécies animais, tinha as suas origens € evolugio regida pelas leis da Natureza. Allan Kardec apresenta sucintamente essa idéia as primeiras paginas desse seu livro, A Génese: “..a Ciéncia moderna”, diz ele, “de observacio em observacao, chegou 4 concepsao de um 56 elemento gerador de todas as transformagées da matéria” (1868) 1982: 22; grifo no original). Essa idéia aparece com mais énfase num capitulo dedicado especificamente ao tema das origens da humanidade. Neste, lé-se 0 que segue: “...dcompanhando-se passo a passo a série dos seres, dir-se-ia que cada espécie é um aperfeicoamento, wma transformagao da espécie imediatamente inferior. Visto que so idénticas 4s dos outros corpos as condigGes do corpo do homem, quimica ¢ constitucionalmente; visto que ele nasce, vive ¢ morre da mesma maneira [que aqueles], também nas mesmas condigées que os outros se hi ele de ter formado.” ({1868] 1982: 204; grifo no original). Espiritismo @ Brasileira Sua reticéncia ao novo paradigma se explicita algumas paginas adiante. Referindo-se 4 hip6tese da origem animal do homem, Allan Kardec afirma: “Da semelhanca que ha, de formas exteriores entre 0 corpo do homem ¢ do macaco, concluiram alguns fisiologistas que o primeiro é apenas uma transformacio do segundo. Nada hé ai de impossivel [.... Fique bem entendido [contudo] que aqui se trata unicamente de uma hipotese.” ([1868] 1982: 212) Kardec investe na plausibilidade dessa hipétese. Em A Génese, re- pensa a historia da humanidade descartando, finalmente, a idéia da Criagio. O surgimento do homem na Terra, como pretendiam as cor- rentes evolucionistas hegemOnicas 4 época, aparece neste livro descri- to como um “fendmeno natural”: “..tem o homem de se resignar a nao ver no seu corpo material mais do que o wkimo anel da animalidade na Terra. Ai esta o inex ravel argumento dos fatos, contra o qual seria indtil protestar.” ([1868] 1982: 204; grifo no original) Mas nao sao todos os pressupostos das novas teorias evolucionistas que Allan Kardec endossa, Sua reticéncia se manifesta explicitamente com relagio 4 questio da origem das ragas humanas. Como explicitam as citagdes acima, da versio monogenista, ele endossa a hipstese de que a humanidade possa ter tido uma “origem natural”. Mas, no tinica, O seu comentirio é explicito nesse sentido: “Do ponto de vista fisio- ldgico, algumas ragas apresentam caracteristicos tipos peculiar que nao permitem se hes assinale uma origem comum. Ha diferengas que evidentemente nao sio simples efeitos do clima, pois que os brancos que se reproduzem nos paises dos negros nao se tornam negros ¢ [vice- versal...” ({1868] 1982: 227). Donde conclui: Hi-se, pois, de considerar que as ragas negras, mongdlicas, caucisicas como tendo origem prdpria, como tendo nascido simultinea ow sucessivamente em diversas partes do globo. Os caracteres fisioldgicos das racas primiti- vas constituem indicio evidente de que elas procedem de tipos especiais. As mesmas consideracées se aplicam, por conseguinte, assim aos homens como aos animais, no que concerne 4 pluralidade dos troncos. ({1868] 1982: 227) 46 Al Doutrina dos Espiritos Segundo Allan Kardec Essa idéia de uma origem diferencial das ragas humanas é propria da versio poligenista. Portanto, o que Allan Kardec sustenta é uma combinagio de idéias que se sedimentam em versdes concorrentes do evolucionismo: de um lado, defende a tese corrente entre os mono- genistas de que a humanidade teria uma origem Gnica (a principio divi- na, depois natural); de outro, mantém o argumento dos poligenistas, quanto 4 pluralidade de origem das ragas que conformam o género humano, ¢ produzida por Allan Kardec particulariza a versio espirita do tema, it erindo-o, de forma particular, no contexto do debate da época. Essa discussao, no entanto, é, no conjunto da doutrina, acessoria. Mas serve como parametro para se problematizar, nos mesmos moldes, aorigem ca evolucio dos espiritos, questées que introduzem a tematica doutrinaria propriamente dita: o destino pés -morte, a reencarnagao ¢ a vida “na erraticidade’’. Sao esses os temas tratados nos demais capitulos d’O fivro dos espiritos. Apresentados da mesma forma, por meio de perguntas e respostas, em torno destes temas Allan Kardec também tece consideragdes, nem sempre pontuais. Em textos curtos, inseridos ao final de alguns capitulos, comenta e contrap6e as idéias apresenta- das “pelos espiritos” 4 tradigao biblica ¢ outros sistemas religiosos (a Teosofia, a Magia, o Xamanismo, etc). O didlogo com a ciéncia nestes também é uma constante. Da perspectiva temitica, a questio comum que se apresenta é a evolucio. O Espiritismo entende o “progresso espiritual” como condicao inerente 4 natureza humana: “Deus criow todos 0s espiritos simples ¢ ignorantes [..J [a fim] de os fazer chegar progressivamente perfeicia”” Definigéo que remete a idgia de destino comum, Em A Génese, a formulagio nesse sentido é clara: “...todas ON (as almas) tém o mesmo destino e alcancario a mesma meta... obre os temas propriamente doutrinarios, encontram-se ao longo de todo O litre dor espiritas comentarios pontuais do autor, No final de alguns capitulos, porém, hi textos mais longos, de sua autoria, Dentre cles, destacam-se: “Hicrarquizagio dos espiritos”; “Materialismo”; “Conside- rages sobre a pluralidade das existéncias”: » *Resu. mo te6rico do sonambulisma, do éxtase, da dupla vista” ¢ 0 “Resumo tesrico do mével das agdes humanas” (Kardec, [1860] 1997), 28. Kardec, Allan. O Fire das egpinios: 98. 24, Kardee, Allan. A Ginese: 29, “Ensaio tedico da sensagio nos espirites Exspiritismo a Brasileira linearidade é, portanto, outra de suas caracteristicas: ““..todos se tornario perfeitos”, dado que “...a marcha dos espiritos é [sempre] progressiva, jamais retrograda.’”** Essa concepcao do processo de evolugio como uma lei remete 4 formulagao das ciéneias naturais. No entanto, o Espi- ritismo se distancia destas na medida em que sujeita o funcionamento » homem se do processo da evolucio 20 exercicio do livre-arbitrio: desenvalve por si mesmo, naturalmente. Mas nem todos progridem simultaneamente ¢ do mesmo modo?” A tensao entre essas duas forcas é, portanto, o que define a concepcio espirita da evolugio — um pro- ce » tinico, porém, desigual —, idéia que reproduz, apesar do modo particular de construcgao, a visao que postulavam as correntes domi- nantes do pensamento cientifico da época. O que singulariza 0 Espiritismo nesse momento, portanto, é 0 modo. como se produziu a acomodagio das informagdes “dos espiritos” a idéias, modelos ¢ principios que tém origem em outro campo — o da ciéncia. Essa articulagio foi sendo construida por Allan Kardec em meio ao processo de coleta das informagGes “dos espiritos” ¢ do desenro- lar do embate entre correntes diversas do pensamento cientifico. Esse movimento, essa construtividade da doutrina que aflora de uma Ieitura comparativa das obras mencionadas, evidencia que a partici- pacdo de Allan Kardec na constituic¢ao da doutrina do que cle préprio sugere. Nao dirfamos, portanto, como é de senso muito mais extensa comum, que cle € apenas o codificador da doutrina. O estatuto de ciéncia que se atribui ao Espiritismo € uma criagao sua. Portanto, uma interpretagao pessoal. Essa sua interpretagao, porém, foi assumida como inerente 4 manifestacio “dos espiritos”, dando origem ao mito de que o Espiritismo seria, na sua versio original, efetivamente cientifico. 25, Kardec, Allan. O fire dor esprtor: 131 26, ene, ibden: 363. “48, Il. ESPIRITISMO A BRASILEIRA O Espiritismo que leva a assinatura de Allan Kardec tem no Brasil uma historia de quase 150 anos, Acredita-se que imigrantes, leitores de jornais europeus, foram os primeiros a reproduzir aqui, em meados do século passado, o que j4 era moda na Europa: a realizagio de experiéncias de comunicagio com os mortos por meio das “mesas girantes”.! Esse divertimento de salio, depois de se popularizar rapidamente pelo pais, deu lugar 4 constituigéio de grupos voltados ao estudo ¢ 4 divulgagio da doutrina espirita. O Rio de Janeiro, em 1865, e Salvador, em 1873, sediaram os dois primeiros grupos kardecistas constituidos no Brasil. Deles fizeram parte membros da col6nia francesa instalada na Corte, além de integrantes 1. Ficou conhecido como fendmeno das “mesas girantes e falant entre vivos € mortos inaugurado pelas irmas Fox, em 1848, em Hydesville, vilarejo do entio estado de Nova York. Segundo relato de Conan Doyle, elas haviam se mudado. para uma easa tida como “malassombrada”. Os ruidos noturnos, a principio esparsos, comecaram a aumentar em riimero € volume. Uma noite “Kate desafiou a forga invisivel a repetir as batidas que ela dava » proceso de comunicagio com os dedos. [Seu desafio] foi imediatamente respondido. Cada pedido era respondido por um golpe” (s/c: 75). Outras experiéncias do mesmo tipo foram realizadas pelos demais membros da familia, depois também com a presenga de vizinhos. Por esse método de comunicagio, descobriu-se que um crime havia sido cometido naquela cata, encontrando-se 0 corpo da vitima snterrado proximo @ adega, Comprovada a dentincia, o caso difum principal meio de comunicacio da época, a imprensa. Imediatamente, comecouse 4 ter noticias de experiéncias do mesmo tipo realizadas em diferentes pontos do pais. Atravessando 0 Atkinticn, as noticias chegam & Europa, onde 4 realizagio desse tipo de experimento se torna moda, um divertimento de salio, Por fim, « partir da Pranga € que 4 noticia desses experimentos chega 20 Brasil. Sobre a historia desse movimento na Europa, © documento mais sistemitico € 0 de Conan Doyle (3/d). Sobre as saas origens no Brastl, veja-se, dentre outros: Machado, 1983; Aubtée ¢ Laplantine, 1990; ¢ Damazio, 1994. se rapidamente através do E ppintismo @ Brasileira das elites e classes médias locai , dentre os quais se destacavam inte- lectuais, médicos, engenheiros ¢€ militares. Fazendo da literatura, ou melhor, da escrita, o principal instrumento de divulgagio da doutrina de Allan Kardec, estes dois grupos foram responsiveis pela edi¢io do primeiro periddico espirita brasileiro, Echos em 1860, ita cditado no Brasil. Este, langado no Rio de de Além-Tiimulo, angado na Bahia em. 1865, € pela publicacio, do primeira livro esp! Janeiro, trazia a marea da lingua culta do pais: foi publicado em francés. Denominado Les temps sont arrinés, foi escrito por Casemir Lieutaud, diretor do Colégio Francés, entio o mais renomado da Corte. as primeiras publicagées bras ocorreram quando Allan Kardec ainda escrevia alguns dos seus principais titulos doutrinitios, Traduzidos para 0 portugues, estes comegaram a circular no pais logo ria Garnier, principal casa editorial do Rio de Janeiro na época, langou o primeiro titulo, O tra dos espty Ubiratan Machado (1983), a reagdo da imprensa local foi de absoluto em seguida. A Liv ifs, em 1875, Segundo reptidio, No entanto, afirma o autor: “Se nossos intelectuais eram. racionalistas ¢ céticos, 0 povo, avido de solugées magicas, esgotou rapidamente @ livro. A prova esti no fato de Garnier, que nunca joga- va para perder, langar (no mesmo) ano [...] mais duas obras de Katdec, O fivro dos médinns © O Céu e 0 Inferno.” (1983: 117) Esse investimento no campo editorial colocou imed: sil em posi¢io de destaque no cenario internacional. O conhecido jor- nalista Joao do Rio, testemunha de época, suspreendeu-se com 0 fato. tamente o Bra- Segundo seu depoimento, por volta de 1900 circulavam no mundo 96 jornais ¢ revistas espiritas; 56 deles eram editados em toda a Europa € 19 somente no Brasil.? Essa posicio de destaque foi mantida pelo pais a0 longo de todo o século XX, especialmente depois do “fendmeno Chico Xavier”. Conforme um levantamento recente realizado pela Fe- deragao Espirita Brasileira, “ultrapassam de 1.600 os titulos espiritas 2. Jodo do Rio (1951: 190). 50 E-spiritismo a Brasileira publicados no pais, o que significa que o Brasil detém a maior parte da literatura espirita produzida no mundo”. Nao foi essa, porém, a unica estratégia adotada pelos espiritas na divulgacao da doutrina kardecista. Outras atividades contribuiram para a consolidagao de sua presenga no cenirio nacional, processo que, segundo a maioria dos autores, implicou rompimento da barreira de classe; religiio de elite a principio, o Espiritismo se disseminou rapi- damente entre os segmentos populares, Para isso contribuiu a constituigio de “centros” espiritas, que hoje se encontram espalhados pot todo o pais, ¢ 0 desenvolvimento da atividade doutrinaria associada a praticas de cunho assistencial, como a distribuigio de roupas ¢ alimentos entre familias que vive em favelas ¢ nas ruas. Através destes deu-se também agé Principalmente ao atendimento a doentes, idosos e criangas. Os espiritas es esto voltadas a criagao de intimeras instituigdes filantropicas, cuja também se destacaram na prittica de cura. Além dos “passes” ¢ da ativi- dade receitista,* as chamadas “cirurgias espirituais” constituem uma das formas mais conhecidas de divulgagio doutrinaria. Por meio desse rol de atividades, acabaram se tornando nacional- mente conhecidos varios médiuns espiritas — dentre eles Francisco Candido Xavier, “Zé Arigs”, Dr. Queiroz, Geraldo de Padua, Divaldo . contribuindo, cada um a sua mancira, para que a doutri- Franco etc. na de Allan Kardec viesse a figurar neste século como a terceira opcio religiosa do pais’ 3. Essa informagio consta da nota introdutdria do recente catilogo geral das publicagies da > Espirita Brasileira, apresentado sob 0 titulo O fire epinits na FEB (1994: 19) 4, A pnitica receitista, muito combatida no Brasil nas primeiras déeadas do século XX, consiste numa modalidade mediinica: as receitas sio “ditadas” an médium por um “espirito”™ cuja biografia normalmente o habilita para tal, visto que freqientemente este se apresenta como tendo sido médico numa vida anterior. No Brasil, 0 panteio desses espititos abarea nomes que haviam se tornado nacionalmente eonhecidos no exerefcio dessa profissio, caso por exemplo do “Dr Bezerra de Meneses” ¢, também, alguns estrangeiros que se tornaram famasos como curadores, de um médico alemio a0 qual se associa o nome de vatios médiuns, 0 mais recente denire cles o médium Henrique Jr. Solbte esse tema das “curas e cirurgias espirituais”, veja-se Greenfield, 1999. 5. Desde 1940, segundo dadas dos Censos Demogrificas, o Espiritismo ocupa essa posi¢io. Antes disso, nio hi informagio a respeito, por exemple o “Dr, Fritz”, conhecide popularmente como “esp Espiritismo a Brastleira Hoje, de acordo com estatisticas oficiais e outras estimativas, os espiritas somam no Brasil 3.a 4 milhdes de adeptos. Nao se trata de volume significativo, vis to que se declara espitita apenas 1,5% da popu- lacio brasileira. Essa porcentagem é inexpressiva quando se considera que mais de 70% da populacio do pais se diz eatdlica. Esses dados nio refletem, contudo, a disseminacio das idéias espiritas no imaginério brasileiro. Duas pesquisas de opiniio publica, relativa- mente recentes, apresentam indicadores importantes nesse sentido, Uma delas, realizada pelo Instituto Gallup em 1988, concluiu que 45,9% dos catélicos “praticantes”, ou seja, quase a metade daqueles que sema- nalmente freqiientam a missa e outros servigos religiosos, “acreditam ou dizem acreditar em reencarnacio”.’ Esse dado é surpreendente, pois se trata de um tema proscrito pela tradigao cristé. Apesar disso, feapareceu numa pesquisa recente realizada pelo Instituto Vox Populi de Belo Horizonte. Nesta, 69% dos entrevistados disseram acreditar em vida apds a morte, sendo que 22% desse total — a maioria de classe média ¢ escolaridade superior —, afirmou acreditar que “a jornada até as esferas superiores passa por outras encarnagdes ¢ diferentes planos de existéncia”.” Diante desses dados, nio ha como deixar de endossar 0 argumento de Gilberto Velho, para quem “o fundamental nao é saber quantas pessoas se identificam publicamente como umbandistas, espiritas, etc., mas ser capaz de perceber o significado de se conjunto de crengas € sua importincia para construcies sociais da realidade em nossa cultura” (1991: 124). José Jorge de Carvalho (1994) faz observagio semelhante. A revelia dos ntimeros, afirma que “em muitos aspectos a cosmovisio espirita se tomou constitutiva do eos nacional, tanto quanto o catolicismo €, mais recentemente, 0 protestantismo” (1994: 74). Apesar dessas ressalvas, observ: se que © tema nio suseitou maior interesse no meio académico. Dentre as religides ditas “brasileiras”, 0 6. Os dados dessa pesquisa realizada pelo Instituto Gallup, analisidos por Leandro Carneiso ¢ Luiz Soares, constam do livro organizado por Maria Clara Bingemer — 0) injacio da eudernidade sobre a reliie. So Paulo: Loyola, 1992. Pesquisa publicada pela revista Via em 2 de abril de 1997. Eduardo Espinitismo @ Brasileira Espiritismo tem sido das menos estudadas. E o que também constata Emerson Giumbelli: “..0 que se escreveu sobre o Espiritismo até agora”, cle, “no apresenta nem a densidade da literatura que versa sobre que se convencionou chamar de ‘religides afro-brasileiras’, nem a abundancia que a preocupagio com grupos pentecostais tem gerado, nem a continuidade das abordagens sobre a historia € a atualidade das instituigdes catélicas.” (1997: 16) Os titulos existentes, pouco mais de uma dezena, foram produzidos nos tltimos trinta anos. Os primeiros trabalhos, assinados por Cindido Procépio Camargo* ¢ Roger Bastide,’ datam dos anos 60, periodo em que, a despeito da consolidagio do processo de “modernizacio” da sociedade, observa-se nos grandes centros urbanos acentuado processo de propagacio das religides populares, dentre as quais despontam o pentecostalismo, © espiritismo e as religides afro-brasileiras. Preocu- pados em entender o papel da religiao num cendrio que deveria ser marcado pelo processo de “desencantamento do mundo”, estes autores inauguraram a discussio sobre esses temas. Nao apenas por seu pioneirismo, mas, principalmente, pelas diferencas de abordagem, suas obras tornaram-se referéncia para toda uma produgio subseqiiente, seja ela histética, socioldgica ou antropoldgica. No que diz respeito especificamente ao Espiritismo, esses autores consolidaram a idéia de que, embora essa doutrina tenha sido definida por Allan Kardec como sendo, ao mesmo tempo, uma filosofia, uma doutrina e uma ciéncia, na Franga, onde teve origem, prevaleceu a énfase na dimensio cientifica, a0 passo que no Brasil predominou a feigio mistica, religiosa. Candido Procépio Camargo, por exemplo, sustenta essa idéia ja as primeiras paginas do seu livro Kardeaismo e Umbanda. “A énfase no aspecto religioso da obra de Kardee”, diz ele, “constitui [...] 0 trago distintivo do E piritismo brasileiro ¢, talvez, seja a causa de seu sucesso entre A. Refito.me ao primeito titulo de Cindido Procéipio Camargo — Kardectimo ¢ Umbanda, Sit Paulo: Pioneira, 1960, 9. Roger Bastide escreveu 4 época um artigo, “Spiritism au Brésil”, publieado em Archives des Sciences Sociales des Retgions, n. 24, juil-dec. 1967. As idgias bisicas deste foram depois reapresentachas num capitulo de Als relgies aficanas no Brosid. Sio Paulo: Pioneira, [1960] 1985, Espiritismo a Brasileira nds” (1960: 4). Afirmagao que reitera quando declara: “Tanto a doutrina, como especialmente a pritica espitita, ganharam no Brasil novo alento, desenvolvendo conotagdes ¢ énfases especiais que as adaptaram A teal dade brasileira. A historia dessa adaptago é um aspecto [...] da consti- tuigio de uma religido original entre nds,” (1960; 8) Alguas nos mais tarde, o autor reafirma essa idéia em s 1 NOVO livro, Catélicos, espiritas e protestantes. Nesse estudo comparativo, Candido Proedpio Camargo postula que a doutrina kardecista “nao sofreu modi- ficagdes essenciais quando transplantada para a sociedade brasileira, embora a adaptaco a uma situacio social nova tenha gerado algumas caracteristicas speciais”, Entre essas, destaca 0 fato de que “no Brasil o aspecto religioso torna-se preponderante, em contraposi¢io ao filoséfico ¢ cientifico” (1973: 162). O autor atribui essa mudanca na énfase doutrinaria 4 “tradi¢ao cultu- ral brasileira”, caracterizada por ele como “impregnada de um estilo sacral de compreender a realidade” (1961: 112). Dai afirmar que esta € uma sociedade “moderna”, porém, contraditoria: “...embora a cultura brasileira seja naturalmente complexa” ¢, portanto, se oriente “também por valores estritamente racionais ¢ profanos”, diz Camargo, “cremos nio ser exagerado afirmar que solucéo sacral para a vida assume, entre nés, inportincia considerivel” (1961: 112; grifo meu). Esse aporte cultural serve de argumento, mais tarde, para outros autores, Entre eles, por exemplo, Ubiratan Machado. No seu livro Os Untelectuais eo Espinitismo, afirma: “A maioria dos nossos espiritas preferia realcar 0 aspecto religioso”, portanto “abrasileirando-se, o Espiritismo perdia o cardter rigidamente experimentalista ¢ cientifico de sua origem” (1983: 114 e 151). O mesmo sugere Renato Ortiz, quando postula que “ja na sua origem, [o Espiritismo] toma uma forma que se distancia de certo modo do pensamento racionalista de Kardec” ([1978] 1991: 40). Essa versio é endossada inclusive por autores que vém do outro lado do Adantico, como Marion Aubrée ¢ Francois Laplantine, autores de La table, les livres et Fesprits, Nesse livro, que bas icamente compila sistematiza os dados apresentados nos estudos de seus predecessores, os autores concluem que no Brasil o Espiritismo floresceu seguindo 34 E spinitiono @ Brasileira por “caminhos auténomos”. A especificidade do Espiritismo brasileiro, dizem cles, advém do fato de a douttina de Allan Katdee ter aqui sido reduzida a uma tcligiio, sendo os scus procedimentos rituais tipicamente cristaos: “os centros espiritas brasileiros constituem uma espécie de igreja”, dizem os autores (1990: 174), E. acrescentam: 0 modo como os brasileiros se relacionam com os “espititas” nfo faz mais que “pro- longar, ampliar ¢ sistematizar 0 que se poderia chamar de cultura brasileira dos espiritos”, cujo principal traco seria a “intimidade com os santos, eguns ¢ orixas”. Concluem, portanto, Aubrée ¢ Laplantine que no Brasil © Espiritismo “jamais teve o cardter experimental reivindicado pelos spiritas franceses” (1990; 185). Essa interpretagao consolidou-s maioria dos autores, a pritica espirita no Brasil se diferencia do “original” ¢ também por outta via, Segundo a em francés na medida em que aqui se enfatizou a pratica terapéutica, Esse argumento tem num tnico artigo de Roger Bastide sobre o tema a principal fonte inspiradora. Neste, 0 autor sugere que o Espiritismo brasileiro assumiu feigdes diversas segundo as categorias sociais. Entre as classes mais altas, portanto, intelectualizadas, observa-se énfase nas experiéncias de tipo cientifico, embora o autor identifique como moti- io, a inquietacio da alma em busca vacio destas “o gosto pelo mi: de uma religiio”. O espiritismo de classe média, praticado nos “centros”, apresenta, segundo esse autor, cunho acentuadamente religioso. Porém, a énfase de suas praticas é terapéutica: “antes de tudo o Espiritismo responde a um desejo de satide fisica ¢ espiritual”, Ja entre as classes baixas de cor, segundo Bastide, 0 aspecto taumatirgico assume feigdes miagicas ([1960] 1985: 433 ¢ 434). A énfase terapéutica, que ocorte especialmente entre os segmentos populares, para Bastide diferencia a pratica espirita brasileira, sendo caracteristica desta o acentuado viés magico: “Em suma, 0 espiritismo foi transformado pelo meio brasileiro”, diz ele, “meio mais confiante no “curandeiro” que no médico ¢ que nio separa o sobrenatural da za” ({1960] 1985: 433-434). Esse argumento se tornou consensual entre certo numero de autores. nature: Renato Ortiz, discipulo de Bastide, em A morte branca do feiticeiro negro, 35 Exspiritismo & Brasileira afirma taxativamente: “...0 piritismo kardecista toma desde seus primérdios no Brasil uma dimensio mais terapéutica que cientifica.” ({1978] 1991; 46) O mesmo sugere Damasio, para quem o aspecto taumatttgico diferencia o Espiritismo francés ¢ brasileito: “...a pratica de tratamento da sade dos vivos pelas entidades desencarnadas nao ocorreu na Franga com a intensidade que ocorreu no Brasil”, diz ela. “Talvez 0 aspecto taumatirgico de que se revestiu o Espiritismo po- pular tenha feito a diferenca.” (1994: 152 Ha quem considere, como Donald Warren, que essa caracteristica local resulta de uma “inclinagao mental dos brasileitos” (1986: 56). Outros atribuem 4 familiaridade da populacio brasileira com as priticas meditinicas, especialmente as de origem africana, a énfase dada pelo Espiritismo ao aspecto taumatirgico. E 0 caso de Silvia Damasio, quando afirma que “é compreensivel que a medicina meditinica obtivesse su- cesso nesse ambiente tradicionalmente impregnado pela crenga nos poderes psiquicos ¢/ou sobrenaturais de cura”, O que a leva a coneluir que “o principal fator da expansio do Espiritismo [...] foi a prittica da sileira’” (1994: 132 e 153). Outros autores partilham desse mesmo pressuposto ¢ insistem na idéia, medicina magica, arraigada na cultura bra formulada por Bastide, de que a reinterpretacio magica da doutrina de Allan Kardec consiste numa pritica especifica de certas classes sociais, E 0 que sugere, por es emplo, Renato Ortiz, quando afirma que “a penetracao do Espiritismo nas classes baixas brasileiras se da ja nos fins do século XIX, mas [entre estas] esse género de pritica religiosa toma imediatamente uma configuragio magica” ({1978] 1991: 34). Ubiratan Machado também endossa essa tese, quando afirma que “germi- nando, ¢m seu inicio, entre as classes mais cultas da sociedade, em particular os intelectuais, [o Espiritismo] logo se difundiu entre o povo”. No entanto, diz ele, “..a passagem de um segmento social a outro niio se deu, logicamente, sem profundas distorcdes. Os valores do homem que se alimentava de feijio, arroz ¢ angu, semi-alfabetizado, morando em taperas ou humildes sobrados, sempre atento ao sobrenatural, eram muito diversos [de quem lia] Victor Hugo, Spencer, livros de Dircito ¢ era mais fascinado pelo que ocorria na Europa que ao seu redor.” (198 56 E spinitismo & Brasileira Esses dois aportes bisicos identificados na literatura sao num aspecto s diversas que a doutrina convergentes: sugerem a partit de perspecti de Allan Kardec passou no Brasil por um processo de reinterpretacio. Originalmente pensada como ciéncia, filosofia e doutrina, aqui adquiriu nova énfase — religiosa, segundo alguns, terapéutica e magica, segundo outros, Por estabelecerem certas continuidades com o que se entende ser a “tradigao religiosa brasileira”, essas caracteristicas siio apontadas como a principal razio de sua répida disseminagio no pais. Passado, portanto, um século de sua introdugio no Brasil, a doutrina de Allan Kardec deixa de set, 20 mesmo tempo, uma religiio estrangeira (Ma- chado, 1983) e de clite (Bastide, 1960; Ortiz, 1978; Machado, 1983; Damasio, 1994; dentre outros). FRONTEIRAS A histéria do Espiritismo no Brasil tem sido construida de uma perspectiva comparativa ¢ relacional, que se consolida por dois angulos: de um lado, 0 que define o Espiritismo “A brasileira” sao diferengas que se observam na sua pritica, em contraposi¢io aquelas que vigora- ram inicialmente na Franca; de outro, singulariza-o a forma como veio a se inserir no campo religioso local, dialogando mais proximamente, conforme assinala a maioria dos autores, com as religides de tradicgao afro. Versio corrente tanto entre os espiritas como no meio académico, a primeira perspectiva consolida a imagem de que no Brasil a doutrina kardecista sofreu uma “distorcfio”, visto que assumiu um caréter mais “mistico”, mais “religioso”, ao passo que na Franga teria énfase mais “racional’, ou seja, “cientifica”’, Pensar o deslocamento da énfase dou- trinaria nesses termos — como “distor¢io” ou “‘adulteracgio” de um modelo original — remete 4 idéia de que 0 pensamento religioso ¢ 0 pensamento cientifico sio regidos por légicas excludentes. Ha muito criticada, particularmente pelo seu viés evolucionista, essa pressuposi¢Ao Exspiritismo 6 Brasileira obscurece 0 fato de que toda versio é sempre um ato criativo. Sablins, em seu livro Ihas de historia, chama a atengio para essa perspectiva, a0 afirmar que a ordem cultural nao ¢ estatica mas alterada na agio, ou seja, sujcita a riscos empiricos, Isso porque “..agindo a partir de perspecti- rsos para a objetivagio de vas diferentes € com poderes sociais di sua interpretagdes, as pe s chegam a diferentes concluses © as sorie- dades elaboram os consensos, cada qual & sua maneira. A comunicacio social é [portanto] um risco. [..] E os efeitos desses riscas podem ser inavagies radi- cais.” (Sahlins, 1990; 10; grifo meu) Hsse modo de tratar a experiéncia do confronto cultural, mais pecificamente a diversidade de respostas locais ao sistema mundial, es fornece uma pista para se pensar de uma nova perspectiva as gu: mentando com Sahlins (1990), é possivel afirmar que o privilegiamento especificidades assumidas pelo Espiritismo no Brasil. Ou seja, 2 de determinadas praticas, bem como o deslocamento da énfase de certos preceitos doutrinarios, traduz um ato criativo, Trata-se, portanto, de uma reinterpretacio, de uma particularizagao cultural e histérica de idéias ¢ praticas concebidas com pretensio de universalidade. Nesse sentido, o Espiritismo “a brasileira” seria uma versio original ¢ nao um produto “menor”, “adulterado” ou desviante. Quanto a sua insergio no campo religioso local, torneu-se corrente 0 uso do contraponto em relagao as religides afto-brasileiras, Em totno dessa perspectiva se consolidaram duas vertentes: ha autores que situam 0 Espiritismo num continu = isto 6, concebem-no como uma vatiagio empitica de um mesmo principio de estruturacio cosmolégica ¢ de produ- cao da experiéncia rcligiosa (Camargo, 1963 ¢ 1973; Birman, 1995, espe- cialmente). Outros balizam as suas relagdes no campo meditinico em termos de simples oposicio; contrapondo-se as religides de tradicao afro, © Eppiritismo é definido como uma espécie de espelho invertido destas, seja quanto as suas caracteristicas sociais e étnicas, seja quanto 4 estrutura ritual ¢ doutrinéria (Brown, 1974; Maggie, 1975; Ortiz, 1978; e outros). se enfoque, que faz dos cultos de possessio uma unidade, seja pelo principio da afinidade, seja pelo principio da oposigio, é, sem dtvida, pertinente. No entanto, tende a ocultar, ou pelo menos a relegar 58 Exspinitisno a Brasileira a um segundo plano, as relagdes mantidas pelo Espiritismo com aquela que ainda hoje é a religito hegeménica no pais, 0 Catolicismo. Fo caso do estudo de Maria Laura Cavalcanti (1983), para quem a questo sequer se coloca, Qutros minimizam a sua importincia. Eo caso de Candido Procépio Camargo, quando, de passagem, afirma que “o Espiritismo se apresenta como um sistema filos6fico-religioso diver- so do pensamento catélico tradicional € relativamente cocrente com o estilo de pensamento cientifico” (1973: 163). O mesmo vale pata Renato Ortiz, para quem essas relagGes sao tidas como dadas: “Consideramos a influéncia do catolicismo como sendo implicita” ([1978] 1991: 34). Noutro texto, Candido Procépio Camargo retoma a questio sem, contudo, problematizi-la: “..no kardecismo predomina a formulagio ética de inspiragio cristi”, diz ele, sem qualificar, porém, 0 modo como esta foi apropriada ¢/ou reinterpretada pelo Espiritismo. Uma das lacunas dessa literatura consiste justamente no fato de no se dimensionar como o imagindrio e as priticas catélicas impactaram © Espiritismo, influenciando de forma significativa 0 modo de sua expresso no Brasil. Essa questo nos remete a problematizacio da reinterpretagao cultural: considerar a especificidade local do Espiritismo como resultado de uma suposta predisposicio “mistica’” ¢/ou “miigica” do povo brasileiro significa nio levar em consideracio a complexidade das relagdes que caracterizam © campo religioso, as quais envolvem necessariamente conflito, concorréncia e disputas por hegemonia e sobrevivéncia, seja entre agentes religiosos, seja entre instituigdes. Essas relagdes se expressam de modos diversos em diferentes contextos histéticos e/ou culturais, produzindo modos particulares de expressio das religides universais. PERCURSOS DA INVESTIGAGAO Num de seus trabalhos menos conhecidos, Obserrando el Islawt (1968), Clifford Geertz oferece uma pista para se pensar essa questio. Nesse Espiritisore Brasileira livro, 0 autor se propde a realizar uma andlise comparativa sobre 0 desenvolvimento de uma mesma religiao — 0 Islamismo — cm duas civilizagGes: no Marrocos e na Indonésia. Religiao hegemGnica nessas duas sociedades,'” diz Geertz que a partilha da mesma fé constitui tanto um fator de identificagao como de distincao entre ambas. Isso porque, nessas duas socicdades, o Islamismo se desenvolveu de forma absolutamente diversa, resultando em estilos opostos de expressiio religiosa. No Marrocos, onde a difusao do Islamismo se confunde com © processo de construciio nacional, caracteriza a religiosidade local um “tigoros ismo intransigente”. Ou seja, por meio de um “fundamen- talismo agressivo”, nesse pais, assim como no norte da Africa e Asia, 0 Islamismo tende a “impor a ortodoxia a toda a populagio” (p. 33). Dai apresentar-se nessas tegides como um “credo exclusivo, austero ¢ enfitico”, imposto por meio de uma “pritica ativista, rigorosa e dogmatica” (p. 38). Jana Indonésia, onde se difundiu mais tarde € se mesclou com correntes diversas do Hinduismo, suas caracteristicas so outras. Especialmente em Java, onde se concentra a populagio mugulmana, o Islamismo assumiu “um matiz. perceptivelmente teoséfico”, © que significa que nessa loca- lidade se expressa por meio de praticas de cunho “quictista, iluminacio- nista, cerimonialista” etc. (p. 33) Como hipétese, Geertz sugere que as diferencas no modo de se praticar uma mesma religiio decorrem de uma tensao que é inerente ao processo de universalizagio das religides. Esse process egundo, Geertz, envolve sempre dois movimentos antagénicos, ambivalente: de um lado, para difundir-se um sistema universal de crenga e ritual este precisa se adaptar a realidades locais; de outro, luta pela manutengio de suas diretrizes especificas, isto é, pela preservacao de seus principios, o que garante a sua identidade como religiio (p. 32). Uma vez que variam as estratégias sociais mobilizadas pata lidar com esse dilema, variam também os resultados produzidos. E o que ilustra Geertz no estudo de caso em questa. Da leitura de seu trabalho se deduz, portanto, que as 10, Segundo Geertz, 90% dla populagio nesses dois paises se declara mugulmana ({1968] 1994: 31). 60 spiritisnra : Brasileira chamadas “distorcdes” religiosas (doutrinarias, rituais ¢/ou cos- molégicas) nio configuram efetivamente um desvio ou mesmo uma excegao. A produgio da diferenca é propria da logica da universaliza- sao das religides. Essa hipétese nos parece sugestiva para pensar as especificidades mani- festas pelo Espiritismo brasileiro. Como o Islamismo na Indonésia, o Espiri- tismo é uma religiao importada, que se difunde no pais confrontando-se com uma cultura religiosa ja consolidada, hegemonica e, portanto, conformadora do etfas nacional. Sua difusio, como postulam certos autotes, foi em parte favorecida pelo fato das priticas meditinicas estarem socialmente disseminadas, de longa data, no ambito das religides de tradicao afro. No entanto, em contraposi¢io a estas, o Espiritismo define a sua identidade, elegendo como sinais diacriticos elementos do universo catdlico. Deste, porém, niio endossa apenas, como sugerem Aubrée ¢ Laplantine (1990), certas praticas rituais. O Espiritismo bra- sileiro assume um “matiz perceptivelmente catdlico” na medida em que incorpora 4 sua pratica um dos valores centrais da cultura religiosa ocidental : a nogio crista de santidade. Sustento essa hipotese neste trabalho sem ter, contudo, a intencao de reescrever a historia do Espiritismo no Brasil.'' A exemplo do pro- cedimento adotado por Geertz (1968), proponho como estratégia de investigacio a anilise de relatos biogrificos de personagens cujas his- tOrias de vida ¢ carreiras religiosas sao representativas de momentos especificos da hist6ria do Espiritismo no Brasil. E. 0 caso de Chico Xavier, um dos personagens-simbolo do Espiritismo brasileiro. Co- nhecido internacionalmente inclusive, ele ganhou notoriedade em fungio de sua producio literiria: ao longo dos quase setenta anos em que se dedicou a atividade meditinica, produziu quase 400 livros, Varios deles traduzidos para outras linguas. O porte de sua producio o tornou conhecido como “o maior escritor meditnico do século”. Essa, po- rém, como pretendemos demonstrar, nao foi a sua tnica contribuigio 11. Dentre os autores que trabatharam espeeificamente dessa perspeetiva, destacam-se Machado (1983), Aubrée ¢ Laplantine (19%), Damazio (1994) © Giumbelli (1997), OV Espinitiomo a Brasileira a difusio das idéias ¢ priticas espiritas no pais. O modo como conduziu a sua carreira religiosa e, principalmente, como a tem rememorado, sugere a construgao de um modelo de expressio religiosa que acabou se tornando paradigmatico, exemplar do “estilo brasileiro” de ser espirita, Consolidado por volta dos anos 50, esse modo de expressio da espiritualidade espirita vem recentemente sofrendo criticas por parte de varias liderancas do movimento. Por ser difuso, descentralizado, é dificil o seu mapeamento. No entanto, certas tendéncias podem ser caracterizadas por meio do estudo de casos particulares. Destaco com essa finalidade a trajetoria de um personagem, cuja historia pessoal ¢ carreira religiosa permite delinear alguma Refiro-me ao médium Luiz Antonio Gasparetto. Também internacio- nalmente conhccido, cle se destacou no exercicio da “psicopictogratia”, denominagio espirita para a pintura meditinica. Fazendo hoje novo uso dessa pritica, ele vem ganhando notoriedade em outro campo, 0 da “auto-ajuda”. © modo como articula a pratica mediunica a esse tendéncias desse movimento. outro sistema de idéias aponta para caracteristicas que definem € re- metem a um outro momento da histéria do Espiritismo no pais. Ensaio uma proposta de anélise do Espiritismo brasileiro usando esses dois personagens como elementos em contraponto. A exemplo do que sugere Geert, encaro-os como tipos-ideais, isto é, como figuras metaféricas: “a imagem do que foram, fizeram ou fazem estes perso- nagens” sugere avedos diversos, no tempo, de pensar ¢ expressar 0 que se acredita ser @ “verdadeira espiritualidade” (1968: 42; grifo meu). Este é, portanto, um trabalho que busea nas trajetérias pessoais clementos para se pensar a questao da reinterpretagio das tradigdes. Nos capitulos que se scguem, introduzo o leitor a estes persona- gens. Obedecendo nfo apenas 4 ordem cronolégica mas, também, a uma certa hierarquia,” comego com aquele dentre os dois médiuns que desfruta de maior popularidade no pais, * 12, Como observa Maria Laura iroe Cavalcanti, “hd entre os médiuns uma hierarquia de sacralidade”” (1983: 122) ¢, nesta, Chico Xavier ocupa 0 status miximo, 62 Ill. “ESTAR LA, ESCREVER AQUI”:' CHICO XAVIER E OS ESCRITORES DO ALEM Foi com alarde que a imprensa brasileira noticiou, em julho de 1944, a decisio da vitiva do escritor Humberto de Campos de ingressar na Justica com uma agio contra a Federag%io Espitita Brasileira ¢ o médium Francisco Cindido Xavier. Os autos do processo informam que alguns anos ap6s a morte de seu marido, ..comecaram a surgir, como € piiblico € not6rio, intimeras produgées literirias, atribuidas ao “espirito” de Humberto de Campos, |... “psicografadas” pelo “médium” mineiro Francisco Candido Xavier (brasileiro, solteiro, residente em Pedro Leopoldo no Estado de Minas Gerais), as quais, reunidas em vém sendo editadas pela “Livraria Editora da Federagio Espirita Brasileira” na colegio intitulada “Biblioteca de Filosofia Espiritualista Moderna ¢ Cigneias Psiquicas”, Com contendo dezenas de produgécs |...) {4 foram editados, sob os titulos ¢ pelos precos abaixo mencionados: volume procedéncia nada menos que cinco volumes, 1 - Noss mensagens (em 22 edigio): Broch. Cr$ 4,00; Encad. C1 7,005 2- Boa nara (em 2. edigio): Broch. C$ 6,00; Encad. Cr$ 9,00; 3- Repostagens de alémr-timalo (1.* edigao): Broch. Cr$ 8,00; Encad. Cr$ 2,00; 4- Brasil, coragito do mundo, pitria do Exangelho (em 3. edigio): Broch. Cr 7,00; Encad. Cr 10,00; 1. Esse titulo se inspira cm um artigo de Clifford Geertz publicado na revista Didega, % 22, n. 3, 1989, 6x

Vous aimerez peut-être aussi