Vous êtes sur la page 1sur 19
MARIO DE ANDRADE EO FOLCLORE BRASILEIRO* Florestan Fernandes** Introdugdo A contribuigao de M4rio de Andrade ao folctore brasileiro até hoje no foi convenientemente estudada. Tao pouco mereceu a devida aten¢do por parte dos especialistas na bibliografia do nosso folclore. Basflio de Magalhdes faz uma simples alusdo bibliogréfica a "A Mésica e a Cancéo Populares" ¢ a "O Samba Rural Paulista (1); e Joaquim Ribeiro apenas aponta sua contribuigdo ao folclore musical brasileiro € ao folclore regional paulista (2). Falta em nossa bibliografia do fol- clore principalmente uma andlise por assim dizer panor4mica, situan- do pelo menos as quest6es capitais na contribuicdo de Mario de An- drade, Parece-me que, em nossos dias, 60 maximo que se poderé fazer em mem6ria do Mério de Andrade folclorista. Dentro de oito ou dez anos ser4o perfeitamente possiveis estudos mais minuciosos e definiti- vos. A perspectiva do tempo permitiré comparar a sua contribuic¢do ao folclore musical brasileiro as de Luciano Gallet, Renato de Almeida, Flausino do Valle, Guilherme T. Pereira, Lufs Heitor, Mariza Lira, Oneyda Alvarenga etc; e criar4 novas possibilidades, ao mesmo tempo, a verificagdo de sua importancia relativa na historia do folclore brasi- * Transcrito da Revista do Arquivo Municipal. Ano 12, vol. 106, Sio Paulo, DPH, janJTev., 1946, As notas foram mantidas como no original. ** Professor da Universidade de Sio Paulo. 1 O Folclore no Brasil. Rio de Janeiro, ed. de 1939. p. 15-6. 2. Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro, 1944. p. 219. HA também uma compreensiva referéncia 2 Mario de Andrade in O que’ Povo ta cam Portugal. Rio de Janeiro, sid. p. 41, de autoria do folclorista Jayme CortesSo. Na Antologia do Folelore Brasileiro, S80 Paulo, /4, organizada por Luiz da Camara Cascudo, Mario de Andrade no foi inclufdo, Todos os autores vivos, na €poca de sua organizagSo deixaram-no de ser. Mas, isto se explica, pois tratam-se de certos critérios de selegdo que no nos compete discutir € do qual o autor, uma vez estabelecidos, niio deve se alastar. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 141 leiro, Esta mede-se nfo s6 por seus estudos do folclore musical, mas também por outras investigagées do mesmo modo valiosas (folclore infantil, folclore do negro, escatologia popular etc), pelo papel que desempenhou como pesquisador e investigador erudito e, particular- mente, pela influéncia propriamente de presenga, como animador e muitas vezes como orientador, exercida sobre um bom ntimero de no- vos folcloristas (Oneyda Alvarenga, Lufs Saia, Nicanor Miranda, Alceu Maynard Arafjo etc). Quanto ao aspecto de aproveitamento ativo do material folcl6- rico em suas produg6es literdrias, a distancia de dez anos, para um estudo completo, até parece pouca. So precisos outros trabalhos es- pecializados sobre as técnicas de transposi¢&o de elementos folcléricos ao plano da arte erudita brasileira, desde o romantismo até nossos dias, As correntes p6s-realistas suscitam interessantes problemas de critica, a esse respeito, que devem ser esclarecidos. Deles depende em grande Parte a compreensio, a exata localizag4o hist6rica e a determinagdo do valor da obra literdria de Mario de Andrade, do ponto de vista do fol- clore brasileiro. Ainda assim, € Obvio, uma andlise modesta pode por muita coisa em evidéncia, desde que respeite o sentido da intengio e conceba nos devidos termos a amplitude de suas tentativas, na utili- zagao de motivos, formas € processos da arte popular brasileira, Aqui, entretanto, Mério de Andrade tem sido pouco feliz: os folcloristas bra- sileiros néo se pronunciaram sobre o significado e as conseqiéncias das suas inovagoes literérias. Na obra mais importante e mais meticu- Josa que possufmos de bibliografia do folclore brasileiro — que € ade Basilio Magalhaes — entre os poetas e prosadores que de uma forma ou de outra apresentariam interesse do ponto de vista do folclore bra- sileiro ou do folclore regional, nfo consta Mario de Andrade. Relati- vamente a Sfio Paulo, so citados os poetas Vicente de Carvalho, Ba- tista Cepellos, Eurico de Géis, Mario de Azevedo, Paulo Setdbal, Ri- cardo Gongalves, Paulo Gongalves, Guilherme de Almeida e Ernani de Cunto; e os prosadores — José Piza, Batista Coelho, Carlos da Fon- seca, Le6ncio de Oliveira, Francisco Diamante, Menotti del Picchia, Veiga Miranda, Manuel Mendes, Valdomiro Silveira, Cornélio Pires, Monteiro Lobato, Jerénimo Osério, Oliveira e Souza, Manuel Victor, Armando Caiubi, Otoniel Motta, Assis Cintra, Mdrio Pinto Serva, Breno Arruda, Plinio Salgado, Anténio Constantino (3). Na nova edigdo de sua obra, esse foi um dos pontos em que Basflio de Maga- Ihdes ndo mexeu; M4rio de Andrade continuou de fora (4). Verifica-se que na relacdo acima, em que pese a reconhecida autoridade de Basflio de Magalhies, esto escritores cuja importancia na transposigéo do material folclérico ao plano erudito ou cuja fixagdo do popular, sé po- dem ser admitidas por meio de critérios muito flexiveis. O mais cu- tioso € 0 contraste entre essa atitude reservada dos folcloristas e a afoi- 3. O Folclore no Brasil. Rio de Janciro, 1928. p. 149-50. 4 Idem. p. 158-9, 142 Rev. Inst, Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 teza dos criticos e historiadores da literatura. H4 muito tempo circu- lam certos chavOes sobre os estudos folcloricos de Mario de Andrade. Eo autor de um manual de historia da literatura, editado em 1939, repetia engracadamente um deles: “folclorista de rara capacidade in- terpretativa, dedicou-se sobretudo ao estudo das dancas e dos cantos do norte do pats"... Por ora, todavia, € de bom aviso tratar dos aspectos gerais da contribuigao de Mério de Andrade, em cada setor de suas atividades liter4rias. Pensando nisto, pareceu-me dtil reunir os dois artigos que escrevi sobre Mario de Andrade ¢ 0 folclore brasileiro — por solicita- ¢4o do Jornal de Sao Paulo (5) e do Correio Paulistano (6), comple- tando ligeiramente algumas notas. A vantagem dessa fusdo esté mais na oportunidade que d4 de considerar lado a lado as suas duas ativi- dades sempre entrelacadas — a de folclorista ¢ a de literato, enquanto se preocupa com 0 folcl6rico — do que no esclarecimento propria- mente falando dos problemas levantados ou implicitos nas vrias ten- tativas ¢ experiéncias do autor de Macunafma. Estes, mesmo, pelas ra- z6es referidas acima, foram cuidadosa e propositadamente limitados. Em conjunto é provavel que estas notas demonstrem que 0 fol- cl6rico é um dos aspectos mais importantes na obra de Mario de An- drade — tanto do folclorista, 0 que € Obvio, como do literato. Esta éa quest4o bdsica. Nenhum trabalho que trate do folcl6rico em sua obra seré completo se considerar apenas uma das faces de sua contribuigdo ao folclore e a literatura brasileira. E preciso ndo esquecer que 0 fol- clore domina — ¢ até certo ponto marca profundamente — sua ativi- dade polimorfica de poeta, contista, romancista, critico e ensafsta; € constitui também o seu campo predileto de pesquisas e estudos espe- cializados. Por isso, quando se pretende analisar a sua contribuigaéo ao folclore brasileiro, deve-se distinguir 0 que fez como literato do que realizou, digamos a sua revelia, como folclorista. Ante popular e arte erudita Seria inoportuna, aqui, a andlise ea discussdo das relagdes entre a “arte popular" ea “arte erudita" ou, de modo mais limitado — ambos 0s aspectos preocuparam Mario de Andrade a entre a "literatura oral" ea “literatura escrita". A principio, Mario de Andrade pensava que os elementos folcl6ricos passam sempre do plano folclérico para o plano da arte erudita. O papel dos artistas eruditos, nos diversos casos de transposico de motivos ¢ técnicas populares, circunscrever-se-ia a reelaboragao. "Formas e pracessos populares em todas as épocas fo- Tam aproveitados pelos artistas eruditos € transformados de arte que 5 0 Folclorista Mério de Andrade. 19/02/1946. 6 Mario de Andrade, Literato-folclorista. 24/02/1946. Rev. inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 143 se aprende em arte que se aprende" (7). Por isso estranhou muitg que a modinha, de fundo melédico europeu, se transformasse primeiro num género de romances de saléo e mais tarde em cantiga popular urbana, E embora o seu longo treinamento como folclorista o levasse a admitir, posteriormente, estes fendmenos, isto é, a procedéncia eru- dita de formas populares (8) ¢ vice-versa, a idéia original sempre lhe serviu de guia em suas tentativas de aproveitamento literdrio de ele- mentos do folclore brasileiro. Do grau de aproveitamento do material folcl6rico mesmo, parecia-lhe poss{vel inferir 0 grau correspondente de maturidade e o cardter nacional da cultura de um povo. Sobre este Ponto, alids, Mario de Andrade volta com insisténcia em seus escritos, defendendo a sua idéia mais cara e propugnando contra os preconcei- tos e as suscetibilidades dos letrados» da terra, pelo abrasileiramento da literatura e da misica brasileiras, através de injegdes macigas de arte popular. E, conforme seu habito, coloca friamente a questéo em termos concretos, Da andlise, por exemplo, da passagem de maior para menor, dentro da mesma tonalidade, que se operou na modinha bra- sileira, conclui que os nossos compositores, aproveitando livremente os elementos nacionais burgueses, “podiam tirar daf verdadeiros Planos tonais que especificariam de jeito caracterfstico a maneita mo- dulat6ria nacional (9). E certo que essa idéia — da necessidade do aproveitamento erudito do material folclérico — j4 é velha na crftica brasileira. Sflvio Romero foi o primeiro a desenvolvé-la, com todas as suas conseqilén- cias. Pensando que esse entrosamento entre o folclore e a literatura erudita existisse no Brasil, 0 crftico sergipano dedicou-se ao estudo exaustivo do nosso folclore; apés as suas decep¢es, nfo se cansou de defender a possibilidade de renovagdo da literatura brasileira através dos elementos da tradigdo popular. Melo Morais Filho tentou alguma coisa com tal propésito, indo na cola de Sflvio Romero, como fazia sempre, mas sem nenhum sucesso. Um prolongado processo de ama- durecimento cultural ¢ hist6rico, cuja andlise ndo caberia aqui, criou Por etapas as condigGes necessdrias A realizagao do velho ideal de Sfl- vio Romero. O que importa, todavia, 6 que em Mario de Andrade a distancia entre a arte popular e a arte erudita diminui consideravel- mente, atingindo em algumas produgSes excepcionais um grau de in- terpenetracdo e de equilforio notaveis. E preciso ressaltar, contudo, a auséncia de finalidades chauvinistas; ¢ por isso que grifei acima o adje- tivo nacional. Nacional aqui significa expressividade, existéncia de um Padr&o caracterfstico e préprio de cultura. Embora fizesse algumas confus6es quando entrava na andlise dos fatores explicativos da cul- tura — no sentido lato, antropologico — considerados em termos do 7 Modinhas Imperiais. $50 Paulo, 1930. p. 8. 8 Veja-se Namoros com a Medicina Ed. Liv. Globo, 1939. p. 73. 9 Modinhas Imperiais. Ed.cit. p. 11. 144 Rev. Inst, Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 nosso processo histérico como povo, Mario de Andrade situou bem o problema e desenvolveu sua contribuicdo pessoal melhor ainda. Tenho a impressdo, entretanto, que sé parcialmente essas idéias. de Mério de Andrade explicam a transposigfo do material folclérico ao plano erudito, em sua obra; ou, melhor, elas apenas mostram um obje- tivo e os meios de o atingir: evidenciando a preméncia da apropriaglo dos elementos da tradi¢ao oral pelos artistas eruditos brasileiros e as possibilidades de renova¢ao pelo emprego adequado dos processos da arte popular. A parte de realizacao, propriamente falando, parece-me correr mais por conta daquele estado de simpatia, relativamente ao povo ¢ ao folclore brasileiro, que o proprio Mario de Andrade cha- mava de "quase amor". Af est o alfa eo émega do assunto, Porque € como um problema psicol6gico pessoal que Mario de Andrade enfren- tae resolve a questao. Isso torna-se evidente A medida que se penetra no significado ativo de sua obra poética e de sua novelfstica. Os exem- plos poderiam variar muito; ¢ preferivel, porém, limitar-mo-nos a di- versas amostras de uma s6 de suas preocupagoes. Trata-se do proprio problema do homem no Brasil. Abstratamente, problema aqui seria desconversa. Mas existe uma realidade concreta, expressa em quil6- metros quadrados e em diferengas regionais agudas — uma realidade s6cio-geogréfica, pois, digamos rebarbativamente, que d4 uma confor- magio obrigatéria ao problema do homem brasileiro. E este o aspecto primdrio da questéo, que nfo se deve perder de vista. E foi também este o principal escolho as necessidades de participagao e de identifi- cago de mestre Mario. Os antagonismos e as limitagSes provocaram nele uma reagdo que é um grito épico de revolta, o espetdculo mais emocionante aos meus olhos na literatura brasileira, como exigéncia afetiva e como inquietag¢éo — agitada pela falta de sincronizacio hu- mana de milhares de brasileiros que se ignoram rec{proca e simples- mente, Como esta falha de sensag4o de presenga dos homens de nossa terra revela-se sob a forma de conflitos, entre o "progresso™ ¢ 0 "atra- so", a "civilizagio" e o interior, € sob este aspecto que Mario de Andrade fixa dolorosamente o problema. E verdade que existem ma- nifestacdes ambivalentes, como no "Improviso do Mal da América‘. Af, contudo, esté mais o drama do homem da cidade que o seu préprio. Assim mesmo merece nossa atengdo, pelo que afirma indiretamente 0 que vimos acima: "grito imperioso de brancura em mim... as coisas de minha terra sio ecos". "Me sinto branco, fatalizadamerte um ser de mundos que nunca vi" (o mundo original dos imigrantes e de culturas exOticas). A negacio do indio e do negro — a nega¢ao da terra, € ape- nas aparente. Encobre tenuemente o drama verdadeiro € mais pro- fundo. E a civilizagéo reponta como um dilema terrivel, como motivo de alegria, pois significa aproximagdo pelo nivelamento (“Noturno de Belo Horizonte", em que capta de modo maravilhoso a luta entre 0 Progresso a tradi¢o), e como motivo de dtivida e de ansiedade ("Car- naval Carioca", por exemplo: »Vit6ria sobre a civilizagdo? Que civili- zagéo2"; e especialmente em Macunatma. E sintomatico que Macu- nafma tenha escondido a consciéncia antes de tocar para S4o Paulo, 145 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 para a civilizagdo, e que tenha ficado com a inteligéncia muito per- turbada aqui). Mas é no “Acalanto do Seringueiro", a poesia mais emo- tiva e brasileiramente mais ecuménica de Mario, que o drama da se- parac&o entre o “litoraneo" € 0 "sertanejo" aparece em toda sua ple- nitude e brutalidade, marcado pela distancia cultural que os torna re- ciprocamente estranhos e ausentes: ..@ ndo sinto os seringueiros Que amo de amor infeliz... “Nao boxa, nfo veste roupa de palm-beach... Enfim nao faz Um desperdfcio de coisas Que d4o conforto e alegria". . Eisafa outra parte da tese, que tem, pois, dois lados: um l6gico; outro por assim dizer psicolégico. Ambos complementam-se, levando a mesma necessidude prdtica de fundir arte popular e arte erudita, em busca de um cardter nacional mais expressivo e verdadeiro, um terceiro termo que implique pelo menos um mfnimo de separag’o humana. Essa necessidade manifesta-se do mesmo modo na 4nsia de re- cuperac4o hist6rica, tema constante nos ensaios € nas poesias tanto quanto em Macunaima. Seria melhor dizer: na consciéncia de um Ppassado, de tradigdes e de antepassados fundamentalmente comuns, dos quais, acreditava, comega a brotar alguma coisa nova e de feigdes originais j& nos fins do século XIX. Este é um problema de dificil tra- tamento em poucas palavras. Em todo caso, as experiéncias de Mario de Andrade lembram-me o que van Gennep escreveu algures sobre 0 entrosamento do histérico no folelérico. Até certo ponto as objetiva- g6es populares referem-se diretamente aos acontecimentos da vida em comum e as reagdes mais vivas que provocam nos individuos, Revela- se, portanto, nos elementos folcl6ricos a parte talvez mais significativa da hist6ria de um povo. Deixando fora de cogitagao os problemas ted- Ticos, que nao nos interessam neste momento, levantam-se dois pro- biemas vitais: 1) a existéncia de uma mem6ria coletiva, ou melhor, de elementos que se fixam preferentemente a outros no conjunto de lem- brangas de um povo; 2) as modalidades estereotipadas formais de con- servagdo ou de expressfo desses elementos. F claro que, literariamen- te, achar uma resposta a esses dois problemas ou, antes, a esses dois quesitos de um s6 problema — € colocar de modo fundamental nao sé a questdo das relagdes entre arte popular e arte erudita, mas princi- palmente ferir em cheio a questdo essencial por exceléncia da busca de uma express4o literéria em si mesma popular, formal e funcionalmente. Voltamos ao cardter nacional que deve ter a literatura de cada povo, porém agora a perspectiva é mais larga. As duas formas de arte defron- tam-se numa relagdo dialética — tal como M4rio de Andrade situa 0 problema: a arte erudita deve realizar-se na e através da arte popular 146 Rev. Inst, Est, Bras., SP, 36:141-158, 1994 — ea antftese, no caso a arte popular, cede o lugar a uma terceira forma de arte que do ponto de vista da fatura chama-se ainda arte eru- dita, mas que é uma coisa nova, mais essencial e mais expressiva. Ope- ra-se assim aquela transforma¢ao que deve ter parecido obscura a al- guns leitores de Mario de Andrade, "de arte que se aprende em arte que se aprende". Desse modo processa-se também o desencantamento do folclore, pois a arte popular surge como uma etapa necesséria no desenvolvimento de uma forma artistica superior, nada mais. Nesse sentido, entretanto, a propria arte erudita é posta, no fundo, a servigo das objetivagGes das camadas populares, matriz e celeiro do folclore, podendo captar da mesma forma que este o significado e o sentido da vida coletiva. Exprimindo-se de modo préprio, mas inteligivel e fun- cionalmente articulada 4 ordem existencial dos grupos sociais em pre- senga — O que acontece depois da superagio das formas e processos estritos da arte popular, como foi visto — a arte erudita, ao mesmo tempo, torna-se independente. Trés exemplos interessantes, como ten- tativas até certo ponto incompletas, s4o “Carnaval Carioca", "Bela- zarte" é, irregularmente, porém em maiores proporgées, Macunafma. E ébvio que procurava aplicar as suas idéjas em varias diregdes, mas parece-me que s6 como poeta alcancou resultados positivos. Em todas as obras que tenta a empresa, porém, Mario de Andrade afasta-se fiel- mente do puro retratismo. E 0 que dé, aliés, forca excepcional as suas produgies, localizando-as sob este ponto de vista. Servir nao € reco- ther ou reproduzir com fidelidade académica, mas incorporar e desen- volver segundo processos sempre novos ou melhor dinamicamente re- novados pelo proprio viver em comum. Logicamente, a razdo esté com Mario de Andrade, pois trata-se da reatizagéo da arte erudita endo do seu nivelamento a arte popular. Preciosas, por isso, so as duas ligdes que ficam, Primeiro, de- ve-se evitar a todo custo as solug6es de continuidade. As ligagdes entre aarte erudita e a arte popular s6 serdo vitais quando se estabelecerem num plano de igualdade. Isto é, apés 0 seccionamento do corddo um- bilical — quando desaparecem os contrastes que alicnam de uma 0 maximo de representatividade e 440 a outra somente um minimo de universalidade. Enquanto uma parasitar sobre a Outra ou, mais sim- plesmente, enquanto permanecer ignorada sua métua interdependén- cia, ambas correrao o risco de uma crise letal — estiolam-se por falta de desenvolvimento. Segundo, © perigo do esclerosamento da arte eru- dita — em vez de um enriquecimento de contetdo, funcées ede formas — €afastado com naturalidade. E certo que existe aqui algo que evoca os germes de um formalismo tem{vel; mas, isso cinge-se as aparéncias. Ou, mais precisamente, trata-se de um formalismo pacifico, incluindo entre suas regras a propria necessidade de inovagdo permanente, Eis porque o mais importante mesmo équea libertacéo da arte erudita, no fim do processo, seria integral. Os contatos iniciais com a arte popular, com 0 folclérico, portanto, perdem o cardter de um compromisso es- treito com a tradicao, para adquirir, ao contrério, 0 cardter de uma nova forma de reelaborar a tradi¢ao. Mais do que isso, mesmo, passa a Rey. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 147 ser um modo de libertacio do tradicional, pois, diz em *O Samba Rural Paulista": “na mésica popular basileira, e provavelmente na universal, qualquer pega se empobrece 4 medida que se estratifica ou tradicio- nalisa." E interessante como as preocupag6es folcléricas de Mario de Andrade levam t4o profunda e organicamente a solugGes de fato re- voluciondrias. Em conjunto, porém, s4o justas ¢ nada tém de parado- xais. Resta ainda por discutir o problema da transposigo do material folclérico ao plano erudito, na obra de Mario de Andrade. O que fica exposto acima ¢ apenas a conseqiléncia de uma atitude diante dessa transposigdo, nfo esgotando o assunto. Adiantarei desde logo que a transposi¢&o do material folclérico nfo é realizada, por Mario de An- drade, de uma dnica forma. Pode-se distinguir quatro modalidades principais nessa transposigio: 0 aproveitamento dispersivo, a inter- seccdo, a assimilacdo de formas e processos ea estilizagio propriamen- te dita. As duas primeiras modalidades nao se confundem, pois hd en- tre elas uma diferenga de grau bastante aprecidvel. A mesma coisa acontece as duas dltimas, porque nem sempre assimilagio de formas folcléricas redunda em estilizagéo e vice-versa. O aproveitamento dispersivo do material folclérico nio € novo na literatura brasileira. Por ordem cronoldgica, vem-nos diretamente da preocupagio pelo exético do nosso romantismo, assinalando-se fortemente ja em Alencar e Macedo. A medida que se processa a tran- sigdo para o realismo e desse para o neo-realismo, o emprego disper- sivo dos elementos folcléricos aumenta extraordinariamente, em pro- porgio geométrica. Contudo, esta é a modalidade menos importante como técnica de transposi¢éo, na obra de Mario de Andrade. Existem exemplos tanto na prosa — como em Amar, verbo intransitivo: "tatu subiu no pau", "tuturututu, parente de tatu € de urubu", etc, perdidos aqui e acol4; a mesma coisa observa-se na poesia, como em "Carnaval Carioca": «laid fruta do conde, Castanha do Par, etc..." E mais caracterfstica de Mario a intersecgfo do folclérico ou, mesmo, do popularesco. E a sua técnica por assim dizer predileta. Em “Carnaval Carioca", verbi gratia, aproveita com bons efeitos poéticos um vulgarizadfssimo provérbio: “eu enxerguei com estes olhos que ainda a terra h4 de comer"; a mesma coisa faz com uns versos de uma conhecida roda infantil: »Vocé também foi rindo pros outros, Senhora dona Ingrata, Coberta de ouro e prata." 148, Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994. Na poesia "Maria" do ciclo "Tempo de M: a roda infantil: ipo de Maria”, volta novamente “Mas que so anjos? sfo anjos Da boniteza da vida! «» Que anjos sfo estes Que esto me arrodeando De noite € de dia... Padre Nosso Ave! Marial" Mas, nos limites do folclore brasileiro, essa forma de utilizagio da arte popular por mestre Mario, é de fato universal. Exemplo disso € Macunatma, onde a técnica est4 melhor desenvolvida. Todavia, em outras poesias, como *Noturno de Belo Horizon- te", aplica-a também intensivamente — uma quadrinha popular, verbi gratia: “Meu pangaré arreado, Minha garrucha laporte, Encostado no meu bem N&o tenho medo da morte, : Adl.. e até uma lenda em prosa (a histéria do coronel Anténio de Oliveira Leitfio). A parte relativa a assimilagao de técnicas € formas populares, em Mario de Andrade, exigiria um estudo especializado. A comegar pela propria linguagem. B com sabor especial que aponta uma verdade que jé foi mais verdadeira: "Macunafma aproveita a espera se aperfei- goando nas duas Ifnguas da terra, o brasileiro falado e o portugués escrito". Até que ponto vai a contribuigio de M4rio ao advento do bra- sileiro escrito, todos nds o sabemos. Mas, € claro, este éum dos aspectos apenas da assimilagdo das formas € processos populares em sua obra. Ao seu lado h4 0 aproveitamento generalizado, nas poesias, do ritmo dos cocos, das modas, dos lundus etc. E h4 também a tentativa de de- senvolver a poesia erudita nas formas escritas da poética popular, como "Serra do Rola-Moga", do "Noturno de Belo Horizonte", ¢, principalmente, a sua produgéo mais perfeita no género, a »Cantiga do Ai" que pertence ao ciclo "Tempo de Maria". O proprio desenvolvi- mento de ciclos — como "Tempo de Maria", que esta longe de ser, todavia, uma realizagéo completa — visa a repetigSo da técnica popu- lar dos romances velhos (amorosos, maritimos, heréicos etc), dos quais ainda hd sobrevivencia entre nds mesmos nas zonas urbanas. A estili- zagdo apresenta-se, por sua vez, de modo verdadeiramente original. Porque nem sempre ocorre de acordo com os cAnones tradicionais da passagem da arte popular a arte erudita. Assim, hd o aproveitamento livre dos motivos folcl6ricos, como na citada »Serra do Rola Moga", no Poema" — “Nesse rio tem uma Iara etc". mas, a seu lado, processa-se uma como que *desaristocratizagao" de temas, processos ¢ formas Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 M49 eruditos, por meio de formas e processos populares — reconhecida- mente muito comum em suas poesias. E a manifestagdo tipica do ca- rdter nacionala que Mério de Andrade aspirava e defendia para a nossa literatura e para a nossa Mdsica, mostrando que ndo existe paradoxo No abrasiletramentoda arte erudita através da arte popular. Nas esferas da estilizagao, entretanto, a obra capital de Mario de Andrade é Macunafma, uma sintese do folclore brasileiro levada a efeito na forma do romance picaresco. Romances folcléricos, no sen- tido restrito, s6 possufmos dois na literatura brasileira. O de José Vieira, que aproveita o ciclo de Pedro Malazartes — que conhecemos quase completamente gracas as investigagSes de Lindolfo Gomes; e este Macunatma, de Mario de Andrade. A sua tentativa 6 muito mais ambiciosa ¢ audaciosa. E a realizagéo, devemos reconhecer francamen- te, est4 também acima do que José Vieira conseguiu, arriscando-se a uma aventura menos perigosa e portanto mais facil. Macunafma é o mais auténtico herdi, criadonos moldes dos tipos herdicos populares, em I{ngua portuguesa. O seu estudo minucioso revela em movimento n&o s6 as técnicas de transposi¢a0 do folclérico ao plano erudito, pe- culiares de Mario de Andrade, mas também a sua compreenséo ampla do folclore brasileiro e seus problemas, e das possibilidades do ro- mance folclérico. Tristio de Atafde j4 tratou, com dados fornecidos pelo préprio Mario de Andrade, suficientemente de Macunatma. Ape- nas gostaria de insistir sobre 0 conceito de Macunafma, como “herdi sem nenhum cardter". Apesar de {ndio, originalmente preto e depois branco, Macunafma € o mais mulato dos herdis brasileiros. O repre- sentante por exceléncia de um povo mestico no sangue € mestigo nas idéias, como ja nos definiu Sflvio Romero. Concebido a imagem dos herdis misticos, tudo the € possivel — vive num clima onde espago e tempo sdo revers{veis e imponderdveis. E em que a prépria morte aparece como um meio de retorno A vida e de eternizagio herdica — Macunafma vira Ursa Maior. Nesse sentido, sua conduta desconhece Os padr6es de comportamento habituais — por ser heréi m{tico, mas principalmente por ser brasileiro e culturalmente h{brido. Onde est4 — €a pergunta indireta de Mério — o padrdo de cultura de nossa civilizagéo? Macunaima néo tem cardter — mesmo no sentido de pra- ticar safadezas de toda espécie com as cunhas bonitas; mas, ndo é isso uma conseqiéncia do fato dele incorporar todos os atributos d{spares de seu povo? Se fosse europeu, como um Gil Blés, heréi doutro qui- late, encontraria uma complicagao de coisas danadas, comegando pelo princfpio: a sujeitar-se “& palmatoria de um mestre"; € assim sucessi- vamente, teria que se submeter em todas as situac6es a regras milend- Tias, defendidas pelos homens como outras tantas chaves do Santo Se- pulcro. Mas ndo é, Por isso, mostrando a unidade na diversidade, a tradigio do novo etc, Mario de Andrade vai compondo lentamente o seu her6i e ao mesmo tempo um compéndio de folclore — Macunafma € uma introdugo ao folclore brasileiro, a mais agrad4vel que se po- deria imaginar. Nele pode-se estudar a contribuicao folclérica do bran- 150 Rev. Inst. Est, Bras., SP, 36:141-158, 1994 co, do preto, do {ndio, a fungSo modificadora e criadora dos mesticos € dos imigrantes, as lendas, os contos, a paremiologia, as pegas, 0s aca- lantos, a escatologia, as préticas m4gicas — da magia branca e da magia negra — todo o folclore brasileiro, enfim, num corte horizontal de mestre. E um mosaico, uma s{ntese viva e uma biografia humanizada do folclore de nossa terra. Mas, aqui, é 6bvio, entramos noutro ter- reno, passando naturalmente para a outra parte deste trabalho. Contribuigdo ao estudo do foiclore brasileiro Os estudos folcléricos de Mario de Andrade tém um significado especial na hist6ria do folclore brasileiro, pois inauguram — junta- mente com os de Luciano Gallet, Renato de Almeida e outros — um novo campo de investigag6es: a pesquisa a andlise do folclore musi- cal. Mério de Andrade surge, portanto, num perfodo novo da histéria do nosso folclore; no momento que se iniciam aqui trabalhos senfo rigorosamente de especializagao, pelo menos desenvolvidos em esferas limitadas (estudo do folclore musical, do folclore regional, do folclore negro, do cancioneiro literario, do folclore m4gico, dos contos, lendas, do foiclore infantil, da paremiologia etc). Ndo h4 nenhum inconve- niente, entretanto, em tratar essas contribuigdes como verdadeiros tra- balhos de especializagao, como o fazem alguns folcloristas — Lindolfo Gomes, Basflio de Magalhdes e Joaquim Ribeiro, ao tragarem a his- t6ria do nosso folclore. O importante € assinalar que Mario de An- drade comega a publicar os seus ensaios de folclore quando essa ten- déncia j4 est4 bem marcada e acentuava-se decididamente. O imenso material colhido direta ou indiretamente por Sflvio Romero € as preo- cupacdes deste pela filiacdo imediata dos elementos recolhidos — re- lativamente ao folclore ibérico, ao folclore indigena ¢ a0 folclore afri- cana — bem como as investigagoes de Joo Ribeiro, sobre as fontes préximas ou remotas de algumas composigbes folcléricas brasileiras e o seu curso teérico de folclore, dado na Biblioteca Nacional, em 1913, consubstanciavam duas experiéncias muito sérias, Chamar Jodo Rie beiro de “folclorista-de-gabinete" ou Sflvio Romero de “folclorista- pesquisador"; como fazem certos folcloristas, ¢ dizer apenas meia ver~ dade. Porque ambos foram ao mesmo tempo pesquisadores e investi- gadores —- s6 que um dedicou-se de preferéncia a coleta de dados e outro interessou-se mais pelos estudos de filiago hist6rica. Cada as- pecto, ndo obstante, caracteriza profundamente a obra folclérica de um e de outro, deixando ainda aberto 0 caminho para uma fase mais fecunda. E essa sucedeu-se logo depois, evidenciando a complemen- taridade das orientagdes dos dois maiores folcloristas brasileiros. Mas, Gbvio, este novo desenvolvimento do folclore brasileiro implicava uma restrigso cada vez maior do campo de trabalho do folclorista €, pode-se afirmé-lo, esté em pleno pracesso em nossos proprios dias. Enquanto ndo existirem cursos ou escolas destinadas exclusivamente ao ensino do folclore, predominardo os trabalhos de simples coleta, de Rev. Inst, Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 151 feitio irregular e puramente descritivos. Por isso, sio mais numerosos ‘os estudos € as obras deste género. Mas, j4 os autores mais antigos, apesar dos pontos de contato que tem, metodologicamente, com Sflvio Romero, logo verificaram a conveniéncia de limitar suas ambig6es. Assim, Melo Morais Filho dedicou-se a descrigSo das festas populares e das influéncias ciganas no folclore brasileiro; Francisco Pereira da Costa apresenta uma contribuicgéo maciga ao folclore pernambucano; Rodrigues de Carvatho estuda 0 folclore nordestino; Alexina de Ma- galhaes Pinto e Figueiredo Pimentel interessam-se pelo folclore in- fantil, principalmente; etc, etc... Ao mesmo tempo, outros autores, contando com maiores recursos teéricos, tentavam, com Lindolfo Go- mes, Gustavo Barroso, Artur Ramos, Nina Rodrigues, Manuel Que- tino, Luiz da Camara Cascudo, Gongalves Fernandes, Joaquim Ri- beiro, Daniel Gouveia, José Vieira Fazenda, Alberto de Faria, Ama- deu Amaral, Renato de Almeida, Luciano Gallet etc, aprofundar as investigagGes folcléricas e delimitar ainda mais o seu campo de pes- quisas. Mario de Andrade orienta-se neste sentido. Pouco a pouco, 0 estudo dos textos literdrios das cangSes populares, dos cocos, dos lun- dus, do samba rural, de dancas coreograficas, de roda e dramaticas, vai alargando paulatinamente a sua esfera de interesses. Passa ao folclore infantil, ao folclore do negro, ao folclore magico, a escatologia popu- lar, Em cada um destes setores, porém, d4 somente contribuigées par- ciais, embora valiosas; a sua importaéncia maior como folclorista ex- plica-se principalmente por seus trabalhos relativos ao folclore musi- cal — as vezes umas poucas p4ginas, de seus manuais de histéria da mésica, outras vezes ensaios rigorosamente dedicados a uma quest4o determinada (as dangas dramiticas, rodas infantis, cangdes populares etc). Af estfio, todavia, condensadas, laboriosas ¢ pacientes investiga- gbes de campo e€ bibliogréficas, e um némero enorme de sugestdes, de hip6teses a comprovar e, especialmente, de pistas a seguir — vias abertas a estudos mais especializados e mais profundos. Nesse sentido, mais do que qualquer outro, Mério de Andrade caracteriza-se como um auténtico pioneiro, consciente de suas responsabilidades e de suas limitagSes. Em vez de desenvolver uma a uma as idéias e sugestdes que legou aos musicdélogos ¢ folcloristas brasileiros (0 que seria facil a quem, como ele, sempre trabaihava sobre fichas de material recolhido e de leituras), com os riscos correspondentes, preferiu transmitir con- densada, laconicamente seria o termo, as suas experiéncias. Eumaaiti- tude prudente que revela ao mesmo tempo compreensfo exata da na- tureza e desenvolvimento dos estudos cientfficos. Até agora tenho usado e abusado da palavra folclorista. Entre- tanto, seria bom repetir 0 que o préprio Mario de Andrade pensava: “eu no sou folclorista ndo" (10). Mais séria a impressionante, numa terra em que até compositores malandros e cantores de rédio querem 10 Musica, Doce Masica. Sko Paulo, 1933. p.77. 152 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 ser folcloristas, é a confisso que faz em “O Samba Rural Paulista®. A citagdo € longa, mas vale a pena: De resto ¢ por infelicidade minha, sempre me quis consi- derar amador em folclore. Disso derivard serem muito in- completas as minhas observagSes formadas até agora. O fato de me ter dedicado a cotheitas e estudos folcléricos no derivou nunca de uma preocupacso cientifica que eu julgava superior as minhas forgas, tempo dispontvel e outras preocupagdes. Com minhas colheitas e estudos mais ou menos amadorfsticos, s6 tive em mira conhecer com intimidade a minha gente e proporcionar a poetas € mGsicos, documentag4o popular mais farta onde se inspi- rassem" (11). Nesta questao, todavia, devemos ser mais realistas que o proprio rei, Mario de Andrade foi folclorista e, medido pela bitola dos demais folcloristas brasileiros, um grande folclorista. De fato, se tomassemos o termo num sentido restrito, do folclo- rista de formag&o cientffica e exclusivamente interessado nos proble- mas te6ricos do folclore, Mario de Andrade n4o era folclorista. Aquele seu estado de espfrito que ele chamava de “quase amor, com que enca- rava as composig6es populares brasileiras, no se coadunava muito com as limitages da abordagem cientffica. E embora sua curiosidade 0 levasse a ler obras de natureza teérica, mantendo-o bem informado do que acontecia do lado de I da ciéncia, embora tivesse grande ad- miragdo pelos pesquisadores de formagdo cientffica, a verdade € que considerava com alguma ironia os cientistas € os frutos de seus traba- Ihos. A sua crénica sobre “Sociologia dos Botdes", de 1939, prova-o esclarecedoramente: “a sociologia est4 milagrosamente alargando os seus cam- pos de investigagdo... Estamos todos, para maior felici- dade, unanimemente convencidos que uma andlise dos nomes das casas que vendem colchées, pode fornecer a razio do excesso de divércios; € se uns procuram 4 ver- dade poenta nos alfarrabios, usando andncios de jornais, outros constroem doutrinas inteiras sobre a urbanizago da humanidade, estudando a rapidez do v6o dos mosqui- tos" (12). O folclore permanece até hoje numa posigao incémoda, acavalo entre a ciéncia ea arte. Isso por causa de seu prdprio objeto. Omesmo L 0 Bom Jesus de Pirapora (Mério Wagner Vieira da Cunha) e © Samba Rural Pau- : ie: Soparta ‘Satna db angibe Muntepol n?-41, So Paulo, 1937. p. 38. 12 Os fithos de Candinha. io Paulo, 1943. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 153 nome folclore serve para designar os elementos da tradigdo oral, da arte popular, e o seu estudo propriamente dito. E tanto é folclorista quem se dedica ao estudo cientffico do folclore como quem lhe d4 por diletantismo. Entretanto, néo se pode negar um carter muito sério aos trabalhos de Mario de Andrade. Se n&o s4o rigorosamente cientf- ficos, nfo séo exclusivamente obra de diletantismo. Ao contrdrio, Mario de Andrade foi um dos primeiros folcloristas brasileiros a se especializar, como vimos, fazendo do folclore musical o seu campo principal de atividades. Por isso, deve-se deixar claro que 0 abandono dos problemas tedricos em nada invalida a sua contribuigdo como fol- clorista, Além disso, dedicou-se a estudos que mais implicam curiosi- dade e erudicgSo que propriamente a observ4ncia de regras deste ou daquele género. Daf a fecundidade de sua passagem pelo folclore bra- sileiro, pois a sua mania de fichar tudo o que via, ouvia e lia, e sua quase cat6lica curiosidade, talharam-no para o papel de folclorista erudito e pesquisador. Avalia-se a importancia disto quando se acom- panha as suas investigagGes das fontes mediatas e imediatas das com- posigGes do cancioneiro musical ou do cancioneiro liter4rio brasi- leiro (13). Os resultados de suas pesquisas tem o mesmo valor que se fossem realizadas por especialistas longamente treinados. E 0 que importa, no caso, s40 exatamente os resultados obtidos, embora os meios de investigagso empregados paregam mais ou menos livres. Nesse particular, de pesquisas de fontes, Mario de Andrade aproxima-sc da orientagéo de Silvio Romero, procurando determinar a proveniéncia imediata dos elementos do folclore brasileiro. Todavia, nas melhores contribuigdes, ultrapassa os critérios empregados pelo folclorista sergipano ao aprofundar a andlise temAtica ou formal das composig6es estudadas, principalmente as composigées do folclore musical brasiieiro. além do estudo da contribuigso do portugués e do espanhol — do folclore ibérico — do {ndio e do negro, chega, muitas vezes, como Joao Ribeiro e Lindolfo Gomes, as fontes mediatas, com- pletando assim a investigac4o da filia¢do histérica de certos elementos do folclore brasileiro. Hé pronunciada tendéncia, em nossos dias, em desprezar-se, por "evolucionista", esses critérios de pesquisa e de ex- Plicag&o folcloricos. Parece, todavia, que nessa atitude h4 mais como- dismo que outra coisa. Se é certo que a determinag&o de fontes, por si 86 € insuficiente e pode-se usar métodos de pesquisa, de sistematizacao e de explicacSo mais rigorosos e mais de acordo como os modernos re- cursos das ciéncias sociais, nao é menos certo também que a determi- nag&o das fontes do folclore brasileiro conserva ainda toda a sua im- portancia teérica e analftica. E, por sua vez, tem mais valor cientffico uma contribuigéo onde os elementos s&éo estudados deste ponto de vista, do que muitos trabalhos contempordneos, exclusivamente des- critivos. 13 Comoda distingSo de Jayme Cortesso. O que 0 Povo Canta em Pormugal, Ea. cit. p. 34. 154 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 Quando trata da aplicagio terapéutica dos excretos, Mario de Andrade faz uma incisiva referencia as fontes portuguesas € ao proces- so de integragao dos elementos culturais de que os portugueses eram portadores: "muitas de nossas prdticas vieram de Portugal. Algumas so historicamente coloniais, dos tempos em que, mesmo folclorica- mente, se pode dizer que o brasileiro ndo passava de um portugués emprestado" (14). Mais importante é sua contribuigéo ao estudo das fontes do nosso folclore musical. De suas pesquisas, concluiu que os portugueses nos deram (15): 0 nosso tonalismo harménico, a quadra- tura estr6fica, provavelmente a sincopa, desenvolvida posteriormente pelo negro, os instrumentos europeus, como a guitarra (violdo), a vio- la, o cavaquinho, a flauta, o oficlide, o piano, o grupo dos arcos, textos, formas poético-lricas, como a moda, 0 acalanto, dangas do género das rodas infantis, do fandango, dangas dram4ticas como os Reisados, as pastoris, a Marujada, a Cheganga, a forma primitiva de Bumba-meu- boi. Considera muito maior, porém, a influéncia portuguesa no cancio- neiro literdrio. Aprofundando suas investigagdes, poe em evidéncia duas coisas importantes: 1) a heranga musical que recebemos dos por- tugueses € mais propriamente européia que lusitana; 2) a reciproci- dade de influéncias. Sobre esta questdo diz: "€ certo que o Brasil deu Musicalmente muito a Portugal — fado (16), provavelmente a mo- dinha (17), uma parte da rf{tmica e a melodia brasileira". De maneira que, em s{ntese, temos 0 seguinte quadro: a influéncia portuguesa no cancioneiro liter4rio € muito grande, mas é menor no cancioneiro mu- sical. Neste ocorreram por sua vez influéncias brasileiras em Portugal, © que est4 de acordo com as conclus6es de Jayme Corteséo, Luiz F. Branco, Rodney Gallop, ¢ Renato de Almeida. Mesmo, os textos das cangdes e dos romances velhos portugueses, “foram modificados e adaptados antropogeograficamente a nossa realidade", diz Mario de Andrade. E os autos e dangas draméticas, como as Pastoris, marujadas, Cheganga de Mouro, que conservam alguns versos e melodia lusitanas, “foram construfdas integralmente aqui, textos ¢ misicas, e ordenados semi-eruditamente nos fins do século XVII, ou princfpios do século seguinte* (18). No folclore infantil, entretanto, aconteceu ocontrario. A roda infantil conserva-se européia e particularmente lusitana (19), ou, dir-se-ia com maior preciséo, mantem-se ibérica, nas influéncias ibéricas, considera conjuntamente a heranga espanhola ao lado da por- 14 Namoros com a Medicina. Ed. cit. p.74. 15 Pequena Hiséria da Milsica. Sao Paulo, 1942. p. 148; Compendio, de Histéria da Masica. ‘S80 Paulo, 1933. p. 178-9; Ensaio sobre Miisica Brasileira. S80 Paulo, 1928. p.9. 16 Vejam-se também: Origens do Fado, In: Musica, Doce Mitsica Ed. cit. 17 Vejam-se também: Modinhas Imperiais. Ed. cit. p. 6-7. 18 Pequena Hisbria da Masica. Ed. cit. p.149. 19 Influéneia Portuguesa nas Rodas Infantis do Brasil. In: Mitsica, Doce Masica. Ed. cit. p.95. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 155 tuguesa. Mas, € claro, aquela € pobre, reduzindo-se a dangas hispano- americanas ~- como a habanera € 0 tango (20). As informagé6es relativas aos outros dois elementos — os fndios € 0s negros — so menos ricas. Reduz a influéncia dos fndios na mtsica brasileira a alguns instrumentos, certas formas poéticas, 0 catereté, os caboclinhos — nome genérico de bailados nordestinos — a nasalag4o € 0 ritmo discursivo, em parte devido também a influéncia gregoria- na (21). Aos negros atribui a nossa grande variedade ritmica a algumas palavras, que aparecem em dangas dramdticas, como as congadas e mesmo na mtisica popular carioca, instrumentos como o ganz4, o puf- ta, 0 atabaque, ¢ as formas primitivas do lundu (22). Foi em torno de pesquisas de foiclore musical, orientadas neste sentido, que Mario de Andrade péde avaliar a fungao de ceriménias magico-religiosas dos negros no desenvolvimento da misica popular brasileira — que se exerce através dos cantos e dangas a elas associados, As misicas de macumbas ¢ de candomblés, por exemplo, embora nao sejam pura- mente africanas, revelam a sua andlise constantes melddicas diferentes da misica popular brasileira. A ritmica dos cantos usados nas macum- bas e catimbés do nordeste, doutro lado, levou-o a estabelecer uma felagio entre o estado psiquico dos participantes das cerim@nias e as indisicas utilizadas. A sonoléncia, estado de depressdo, obter-se-ia por meio da monotonia dos cantos curtos e lerdos; a exaltagdo, estado de assombramento, conseguir-se-ia pela ritmica de violéncia marca- da (23). Estas observag6es séo valiosas, pois permitem maior com- Preensdo das fases posteriores do cerimonial — no primeiro caso, a intervengio direta do feiticeiro; no segundo, a descida de Xang6 no seu eavalo de santo" — € 0 significado e fung6es dos cantos e dangas no comportamento dos membros do grupo. Roger Bastide, que colheu excelentes dados sobre a masica, os cantos e as dangas dos candomblés na Bahia (24), também observou esta dltima relagdo: "Acontece por vezes qué, apesar dos convites, os “orix4"se recusam a descer. Ent4o uma misica especial é tocada, apressada e insistente, os tambores dao golpes surdos no peito ¢ no estémago, ¢ uma angéstia nos oprime; a foda nfo para: continua, se acelera, nao terminard enquanto os deuses no tiverem saltado na garupa de seus cavalos..." (25) O estudo do samba rural paulista (26), da cangéo popular bra- 20 Comptndio de Historia da Musica, Ed. cit. p. 180. 21 Idem. p. 173 ¢ segs. 22 Idem. p. 178-9. 23 Teraptutica Musical. In: Namoras com a Medicina. Ed. cit. p. 16 esegs. A Imagens do Nordeste Mistico, em branco ¢ preio. Rio de Janeiro, 1945, passim. 25 Roger Bastide. Ed. cit p.85. %6 O Samba Rural Paulista, Ed. cit. 156 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994 sileira (27), de v4rios romances velhos, como o romance do Velu- do (28), das rodas infantis (29), da forma, instrumentagio, polifonia, melodia ¢ ritmo da mésica brasileira — erudita e popular, estudo este seguido de um cancioneiro musical com textos (30) — e das dangas draméaticas brasileiras (31), completam sua contribui¢ao ao folclore musical brasileiro. Ao folclore negro dedicou uma pesquisa importan- t{ssima — sobre as congadas, autos bailados dos negros brasileiros, estudo que se tornou justamente cl4ssico (32). As investigages histé- ricas levadas a efeito por Mario de Andrade, nesse ensaio, permitiram o esclarecimento de muitos problemas ou pontos obscuros, como o da rainha Ginga, do rei de Congo, das guerras intestinas na Africa e 0 seu reflexo no aproveitamento pelos negros de formas portuguesas, como 9 teatro popular, das "embaixadas", etc. Mais tarde, foram completa- das por Artur Ramos (33). O Ginico trabalho exclusivamente consagrado ao estudo da esca- tologia no folclore brasileiro foi escrito por Mario de Andrade (34). Nele s4o analisados: a aplicagéo terapéutica dos excretos, a obsessio pelas porcarias, pelas palavras feias, coprolalia, o uso dos excrementos has praticas magicas — nas esferas que chamou de "magia baixa’. O material apresentado é riqufssimo, sendo alguns elementos analisados do ponto de vista da filiag4o hist6rica. As informag6es dispontveis so- bre essas praticas no Brasil colonial ¢ imperial completam o trabalho. A tese defendida inicialmente por Mario de Andrade nao deixa de ser arriscada. Os excretos exercem uma fungao revitalizadora das terras esgotadas. D4o vida a terra. Por isso, os excretos ficariam associados a fung6es revitalizadoras. Doutro lado, o excremento tem outra fungdo purificadora e aperfeigoadora: na tefinacao do agacar, verbi gratia. Daf nova associago entre o emprego dos excretos, suas virtudes e conse- quéncias. E evidente que essa € uma atitude explicativa do pesquisa- dor; as interpretagdes, ao contrério, devem ser procuradas no meio onde ocorrem os fendmenos analisados, isto é, em seus contextos cul- turais. A explicagéo, portanto, corre o risco de ser falsa, embora ela- borada logicamente. Mario de Andrade compreendeu o perigo de sua 27 AMésica ea Cangéo Populares. In: Folk-tore Musical. Inst. de Coop. Intel. 1939. 28 Romance do Veludo. In: Masica, Doce Milsica. Ed cit. 29 Influencia portuguesa etc. Ed. cit; apesar de ser um ensaio de duas dezenas de paginas, € caren slador nats importantes bre ofoelore infantil brasileiro. 30 Ensaio Sobre Miésica Brasileira. Ed. cit. passim. 31 Dangas Dramsticas Iberobrasileiras, In: Mésica do Brasil. Curitiba, 1941, 32 Os Congos. Boletim da Soc. Felipe de Oliveira, fevereiro de 1935. 33. O Folk-lore Negro do Brasil. Rio de Janeiro, 1935. 34 Medicina dos Excretos. In: Namoros com a Medicina. Ed. cit. volume. abrange mais da metade do Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:14 1-158, 1994 157 posicdo, ajuntando: sem ddévida, ndo vou até afirmar que destas associages de imagens 0 povo tire a inspiragdo primeira que o levou ao emprego medicinal do excretos» (35). Aceita, todavia, como cor- Teta, apesar das restric6es que faz a sua teoria como explicagéo gené- tica e geral, que se devem procurar associag6es I6gicas. Tratando-se do homem "despaisado" de pafses civilizados, parece-Ihe necessdrio con- trapor 0 seu pensamento l6gico ao pensamento mistico dos primitivos. Este apelo a Levy-Bruhl complica em vez de simplificar 0 problema. E em nada melhora as bases precdrias da teoria. O mais conveniente é deixé-la de lado, e aproveitar o imenso material de escatologia popular brasileira que Mario de Andrade reuniu em seu livro. As duas hip6te- ses que servem de conclus6es, contudo, sao mais modestas, e talvez mere¢am um controle especial em pesquisas futuras: 1) originalmente 08 excretos seriam meios misticos de obtencdo de cura e s6 mais tarde tornar-se-iam remédios propriamente ditos; 2) a cura pela ingestao dos excretos basear-se-ia em fundamentos psico-sociais, na nogdo de sacrificio inerente a pratica e imanente ao ato. Neste trabalho nota-se, doutro lado, que Mario de Andrade ja nfo pensa como em 1930-36, a respeito da transformagdo das formas populares em formas eruditas. Entre as duas hip6teses, de que as receitas passariam da prdtica costu- meira a farmacopéia cient{fica ou vice-versa, afasta acertadamente qualquer escolha preferencial. Porque, diz, "provavelmente se deram estes dois fendmenos contrarios" (37). Conclusdes Eis af, em resumo, a contribuigdo de Mario de Andrade ao fol- clore brasileiro. A importancia de sua passagem, pelos dominios do nosso folciore, como literato e como folclorista, é Gbvia. De um lado realizou uma obra de aproveitamento erudito do material folclérico sem precedentes na histdria da literatura brasileira. De outro, apresen- ta um conjunto de ensaios que 0 credencia como um dos maiores fol- cloristas contempordneos, situando-o entre os melhores da historia do folclore brasileiro. Pode-se dizer que quantitativamente os trabalhos publicados s4o pouco representantivos — em relacao a espantosa pro- dutividade de alguns folcloristas hodiernos — levando-se em conta também que M4rio de Andrade repetia-se muito nos seus melhores estudos sobre o folclore musical. Mas, do ponto de vista qualitativo, da contribuigdo efetiva, das sugest6es que deixa e das novas pistas que abre no campo do folclore musical brasileiro, principalmente, a ques- to muda de figura. E é sob este aspecto, exatamente, que deve ser encarada a sua obra de folclorista. 38 Ed eit p. 66, 37 Idem. p. 78, 158 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 36:141-158, 1994. Eniliano Di Cavalcanti siNanquim e pastel, 46,54

Vous aimerez peut-être aussi