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Valéria Venturella
(com a colaboração de Clotilde P. Grazziotin e Maria Dalila Mallmann)2
INTRODUÇÃO
A cada dia nos deparamos – família e educadores – com desafios e frustrações cada
vez maiores na nossa tarefa de educar. E as dificuldades encontradas são semelhantes em
muitos lugares do mundo nesse novo milênio: crianças e jovens preconceituosos,
arrogantes, agressivos, insatisfeitos, e geralmente precoces sexualmente, enquanto
imaturos emocionalmente.
A pergunta que todos se fazem é: as crianças são vilões ou vítimas nesta história?
São vítimas, é a conclusão mais lógica. E se são vítimas, quem as está vitimando? Quem
lhes está doutrinando para serem tão difíceis? A resposta a essa segunda pergunta parece
também muito óbvia: é a TV, são os filmes, são os jogos eletrônicos. É a mídia.
Possivelmente seja mesmo a mídia a responsável pelo comportamento quase incontrolável
das crianças modernas. E a terceira pergunta que surge aqui é: o que podemos, então,
fazer?
Este trabalho tenta investigar o problema apresentado acima, em primeiro lugar
contextualizando a criança moderna, a mídia e os principais efeitos da mídia no
comportamento infantil e, em segundo lugar, oferecendo sugestões sobre o que pode ser
feito para reverter o quadro que todos bem conhecemos.
A CRIANÇA HOJE
A infância não é um conceito abstrato ou uma circunstância estanque, mas é obra do
tempo e do espaço em que está inserida, resultante das relações sociais em curso, e se
transforma à medida em que o ambiente sócio-cultural evolui (ROBBINS, 1997). Cada
sociedade, assim, tem crianças condizentes com as condições sociais vigentes, e a maneira
como as sociedades lidam com a infância – especialmente no que se refere ao espaço e às
vivências a ela reservadas – determina como as próximas gerações verão a realidade
(GOODENOUGH, 2000).
No mundo quase que totalmente programado e comercializado de hoje, há muito
pouco tempo e espaço para se ser verdadeiramente criança. As crianças de classes mais
favorecidas têm seu tempo totalmente regulado pelos adultos, e são obrigados a se dedicar
às mais diversas atividades: cursos de idiomas, esportes, computação, etc. Já as crianças
de classes desfavorecidas, embora não tenham as oportunidades a que têm acesso as
crianças ricas, também têm seu tempo tomado por pequenos serviços que garantem o
1
Artigo publicado na revista Hífen, v. 27, n. 51, PUCRS Uruguaiana, 2003, p. 37-44.
2
Alunas do nível VI do curso de Pedagogia – Educação Infantil da PUCRS Uruguaiana, 2002.
auxílio à família, ou, quando têm sorte, estão protegidas por projetos sociais em que não
podem administrar seu próprio tempo.
Antigamente, as crianças criavam os regulamentos de suas brincadeiras. Elas
inventavam regras para jogos como quebra-cabeças, bolinha de gude e memória. Hoje elas
já não têm esse poder. Os novos brinquedos praticamente brincam sozinhos, enquanto a
criança apenas assiste. ”Não há criatividade infantil que resista a tanta regulação”, afirma
Edmir Perrotti, pesquisador na área de ciência e informação da Universidade Federal de
São Paulo (COSTA, 2002).
A criança moderna é forçada a produzir o tempo inteiro, ou por já fazer parte do
mercado de trabalho, ou para entrar nele o mais rápido – e bem preparada – possível. O
triste resultado é que houve, ao longo dos últimos trinta anos, um encurtamento progressivo
da infância a ponto de crianças de sete ou oito anos não mais se comportarem como, ou se
considerarem, crianças.
Outro fator importante a ser considerado nesta equação é que as crianças do mundo
inteiro hoje – e as brasileiras não são exceção – estão privadas dos espaços que
costumavam ser seus: as ruas, as calçadas, as praças e o contato com a natureza (COSTA,
2002). Privadas desses espaços, elas se refugiam na frente do televisor, horas e horas de
seus dias. As crianças modernas têm tido suas personalidades moldadas pela cultura
popular, a ponto de nem a família nem a escola conseguirem contrapor a força exercida na
vida das crianças pela mídia e pela indústria.
Em seu cultuado livro Kinderculture: the corporate construction of childhood, Joe
Kincheloe e Shirley Steinberg sustentam que nesse mundo dominado pela mídia, em que o
conhecimento pode ser acessado a toda hora e em qualquer lugar, as crianças estão quase
que totalmente familiarizadas com assuntos adultos, enquanto os adultos – pais e
professores – insistem em tratar as crianças como se elas estivessem ainda protegidas do
mundo real (STEINBERG e KINCHLOE, 1997).
Apesar de esse encurtamento da infância ser evidente para famílias, educadores e
outros profissionais ligados às crianças, a maioria dos estudiosos ainda teoriza sobre um
modelo biológico, não-histórico de criança, negligenciando as influências culturais, históricas
e econômicas que acabaram por contradizer boa parte das concepções tradicionais da
infância (PROGLER, 1997). A chamada era da informação alterou radicalmente a infância,
ao ponto de tornar obsoletas as teorias mais básicas sobre educação e psicologia infantis.
A MÍDIA
Embora se saiba que as camadas sociais menos favorecidas dediquem mais tempo
à televisão por não ter outras opções de lazer, é fato comprovado em nossa sociedade que
crianças e adolescentes de todos os estratos sociais têm no televisor sua companhia mais
constante. Os meios de comunicação, especialmente a TV, são modelos com os quais
crianças e jovens se identificam e, quanto maior é o isolamento da criança e do jovem,
maior é o poder de influência que a mídia exerce sobre ele (CAMPOS, 1985).
A família tem pouco ou nenhum poder de decisão quanto ao tipo de programa que as
crianças assistem na televisão. Por um lado, por estarem geralmente afastados de casa, os
pais nem sequer ficam sabendo o que os filhos assistem. Quando estão em casa,
normalmente não querem iniciar uma discussão sobre que programas serão vistos. Via de
regra, os pais vêem a TV apenas como um calmante para os filhos, estando pouco
conscientes da verdadeira revolução que este elemento tem provocado na personalidade de
suas crianças. A TV é a grande divulgadora da mais poderosa forma de influência sobre as
crianças de hoje – a kindercultura.
A chamada kindercultura – a cultura popular a qual as crianças estão submetidas
exatamente por passarem a maior parte de seu tempo livre entre quatro paredes –
representa, segundo Kincheloe e Steinberg, uma pedagogia cultural, um currículo
educacional, desenvolvido prioritariamente, mas não somente, dentro de casa. A educação
das crianças pela kindercultura ocorre na TV, nos filmes, em jornais e revistas, nos
brinquedos, nos comerciais, nos vídeo-games e nos livros, entre outros (STEINBERG e
KINCHELOE, 1997). Este currículo acaba substituindo o currículo escolar tradicional por ser
mais vivo, interessante, fácil e – principalmente – mais real.
Assim, as grandes empresas que produzem toda essa parafernália que tanto atrai as
crianças e também os adolescentes tomaram em suas mãos, sem resistência adulta, a
tarefa de educar os jovens. Protegidas pela falsa sensação de o que elas produzem e fazem
é inocente e trivial, estas corporações tiveram o poder de transformar já várias gerações de
crianças em adultos agressivos (ou submissos), insatisfeitos, compulsivos, consumistas,
incapazes de lidar bem com sua sexualidade e com suas emoções.
CONCLUSÃO
Na época em que vivemos, há muito tempo a educação não ocorre apenas na família
e na escola. Os meios de comunicação têm ampla e fortíssima atuação na educação das
crianças, e já que não é possível isolar seus efeitos, é necessário fazer com que que essas
instâncias educativas – família, escola e mídia – passem a cooperar.
Não adianta apenas criticar a influência da mídia na educação das crianças. A
cultura popular é, acima de tudo, uma cultura do prazer, e não se pode simplesmente
ignorá-la ou eliminá-la de nossas vidas. É necessário que se conheça suas potencialidades
e a maneira como atua, de modo a minimizar seus efeitos negativos e otimizar os positivos.
Para que isso seja possível, os pais devem procurar conhecer os programas que os
filhos assistem, para analisar os valores e as idéias que são veiculados, e tentar formar o
espírito crítico e diminuir a passividade diante dos meios de comunicação. Em suma, a
família necessita assumir-se como principal responsável pela educação de seus filhos, e
devem tomar para si a tarefa de orientá-los para a vida e transmitir-lhes os valores
fundamentais. Nenhuma família pode se entregar ao desânimo diante dessa tarefa.
A escola, por sua vez, deve abrir mão de sua auto-imagem de retentora única do
conhecimento para se transformar em um espaço de interação e trocas, de ensino e
aprendizagem em duas vias (professor-aluno e aluno-professor). A escola deve ser um local
onde se discute, debate e critica, onde se constróem significados e posturas ativas diante do
bombardeamento de informações e de ideologia a que todos estamos submetidos.
Cooperativamente, família e escola devem se empenhar em promover valores,
atitudes e comportamentos humanistas e espiritualistas, que sirvam como uma alternativa
viável ao superficialismo que a cultura popular faz reinar entre nós, e que nós temos
comodamente aceito. Segundo Shirley R. Steinberg, co-autora de Kinderculture, obra já
citada, “devemos utilizar nossa força pessoal e coletiva para transformar a variedade de
formas pelas quais o poder das grandes corporações, obtido através de seu acesso à mídia,
nos oprime e nos domina” (STEINBERG, 1997).
REFERÊNCIAS
ABURCIO Jr., Milton. Sem limites. Revista Educação, Editora Segmento. v. 25, n. 214, p 34-
42, fev. 1999.
COSTA, Carolina. Entre quarto paredes. Revista Educação. Editora Segmento.v. 28. n. 250,
p.44-53, fev. 2002
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http://www.umich.edu/~newsinfo/MT/00/Sum00/mt10j00.html [2002. Agosto]
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