Governo local: o mito da descentralizagao e as
novas praticas de governanga
Peter Kevin Spink
Roberta Clemente
Rosane Keppke
Entre 0 muitos temas que citcundam 0 topico de desenvolvimento de
‘governos subnacionais em regides de Terceiro Mundo, o mais onipresen-
te € talvez o da descentralizagao. No periodo que vai do pés-guerra 20
inicio dos anos 60, a descentralizacdo foi moralmente exaltada a0 lado
da democracia e do desenvolvimento econdmico, servindo de alavanca
pparaaa primeira e de garantia para o segundo (Smith, 1988; Spink, 1993),
Para a Divisio para Administragdo Publica da Organizagdo das Nages
Unidas, os governos nacionais devem descentralizar a autoridade para a
tomada de deciséo (via delegacdo as agéncias nacionais locais ou via
devolugéo aos governos locais) “to rapidamente quanto praticamente
possivel para acelerar o desenvolvimento econémico e social e para tor
har 08 efeitos de seus programas duréveis a longo prazo” (Nagées Uni-
das, 1962:6).
‘Ao mesmo tempo, formando uum espaco para a criago de mitos @ a
producao consecutiva de uma narrativa com elementos progressistas e
circulares, foi reconhecido que a descentralizaco era um processo dificil
Problemas de habilidades técnicas, de estilos e culturas tradicionalistas ou
patrimonialistas, elites locals e lideres personalistas, falta de competéncia
fiscal ou estrutura, de praticas democraticas e 0 espectro da corrup¢ao
estavam entre 05 muitos elementos listados que tornaram dificil 0 desejo
de descentralizar e que justficaram a manutencao de variagées no tema
de programacio central, A descentralizagéo era vista como des-centrali-
2ac%o, ou seja, a delegacéo ou a transferéncia de autoridade, poder e/ou
servigos do centro, podendo ou nao incluir as estruturas correspondentes
de representacao democratica (Smith, 1985)
NNo inicio dos anos 80, a descentralizaco comecava a adquirir novos
significados como parte do debate crescente sobre a reforma econdmica
a ampla adorao de modelos de ajuste estrutural (Schuurman, 1997),
Os governos nacionais eram vistos como tendo demasiado poder con-
centrado nas camadas superiores, necessitando ser downsized ou rolled-
back — para usar duas das muitas expresses que circulavam na época.
Os servigos piiblicos deveriam ser descentralizados ou para o mercado
(para fora) ou para a esfera local (para baixo) como forma de garantir
‘melhor servico orientado ao cliente (customeroriented). Em muitos pai-
Recebio em ouubroee
eter Kevin Spink 6 Professor de Aeminsagdo
Piiblca da Escola de Adminstraéo de Empresas
{Sto Pauio da Fundardo Geto Vargas,
Fax: (01) 287-5095
smal sink @igvsp br
‘Roberta Clemente 6 Pés-Graduanda em
‘Adminsragdo Pica da Escola de Adrinsragdo
de Empresas de Séo Paulo da Fundago Gato
Verges.
Fax (011) 287-5005
E-mail 6961824@ fovsp.br
FRosane Keppke¢ Pés-Gradvanda em
-Adinstragdo Piblica da Escola de Administaglo
Empresas de Séo Paulo da Fundaco Geto.
Vargas.
Fax (01) 281-7892
Ermalt 6961525@fqvspbr
Revista de Adminstragdo, Sd0 Paulo v34, 1.1, p.61-69, janeirofmargo 1999
6Peter Kevin Spink, Roberta Clemente @ Rosane Keppke
ses latino-americanos, dada a falta de uma estrutura efeti-
va de governo local (Nickson, 1995), a resposta veio por
meio dos diversos Fundos de Investimento Socials e Fun-
dos Sociais de Emergéncia que acabaram assumindo toda,
se nao a maior parte, da politica social de forma paralela
‘a0 governo e a administracao piblica.
Mais recentemente, a descentralizago adquiriu um ni-
vel adicional de significado; desta vez em relagéo ao seu
papel no fortalecimento de um tecido social mais amplo.
(Os acontecimentos na Europa oriental (Keane, 1988), 08
crescentes reconhecimento e énfase no papel desempe-
hado por organizacdes ndo-governamentais (ONGs| (Car
roll, 1992; Smillie & Helmich, 1993; Lemaresquier, 1980)
ea importancia atribuida a participacao popular em expe-
rincias de planejamento e desenvolvimento rural ¢ urba-
no (Bebbington, 1997) trouxeram a descentralizacao de
volta & arena social, no mais enquanto parte, mas como,
‘um desafio 4s novas ortodoxias de privatizagéo. Ora a
descentralizacao era considerada como uma estratégia de
fortalecimento da sociedade civil, ora, inversamente, 0
fortalecimento da sociedade civil era considerado como
requisito para a descentraliza¢ao, trazendo assim uma ver
so nova e atualizada da triade descentralizagao-democra-
ciadesenvolvimento econdmico.
A medida que esses varios significados eram tecidos
pela estrutura existente de idéias, aparentemente modifi
cando, mas ao mesmo tempo mantendo os pressupostos,
gerais de desenvolvimento (c.f. Sachs, 1992), a arena eco-
némica ou de mercado também entrou novamente em.
cena através do debate sobre a énfase crescente de orga-
nizagées filantrépicas e particulares (empresarial e comer-
al) na articulacdo de agées de politica social. Enquanto a
discussao mais ampla sobre a reforma do Estado oferece
diversos caminhos para pensar tanto 0 fornecimento quan-
toa regulacéo de servigos piblicos ver, por exemplo, Bres-
ser Pereira & Spink, 1998), nao ha duvida de que para,
‘alguns a configuragao de um assim chamado terceiro se-
tor criou uma relagao triangular na descentralizacso e na
reforma das politicas de bem-estar (Taylor & Bassi, 1998).
No entanto, apesar das vérias mudangas e dos acrésci-
mos de significado, os elementos basicos da narrativa de
descentralizacao mantiveram-se: um processo que requer,
‘acho vinda do centro para transferir ou para outros seto-
res fora do gaverno ou para baixo, em diregao ao gover-
no local, e que continuamente encontra impedimentos,
seja pela resisténcia do centro ou pela incompeténcia do,
mercado ou da administragao subnacional. Enquanto a
tensdo entre os que transferem e os que recebem aparen-
ta sugerir conflito, na verdade as duas metades do argu-
mento encaixam-se, formando uma estrutura coesa para
lum pressuposto mais amplo sobre a validade do Estado-
ago e o papel do governo central como a parte crucial
de seu regime de governo. Assim, o Estado, enquanto
constructo nacional no imaginario coletivo, consolida-se
na narrativa de descentralizacdo como 0 centro que é a
fonte de poder e autoridade em contraste com o local,
enquanto periferia, que é fraco e subordinado.
A DESCENTRALIZAGAO NO BRASIL
Até recentemente, o Brasil vinha ocupando posigao re
lativamente tinica na América Latina em virtude da bem-
estabelecida tradicéo de municipalidades concebidas como
jutisdigdes sobre dreas teritoriais bern-definidas e contiguas.
Apesar da falta de autonomia financeira e politica, esse
‘modelo diferenciave-se de outros mais comuns no Conti
rnente Latino, em que a administracéo regional ou departa-
‘mental (nomeada centralmente) cuidava do local e a cidade
cu vila era uma referéncia por sie ndo em conjuncdo com
as dreas rurais que a cercavam e que permaneciam Id fora.
Essa diferenca esta sendo rapidamente modificada & medi-
da que diferentes governos latino-americanos procuram
reconfigurar a arena local, mas o Brasil continua sendo uma
importante fonte de material para estudos de casos nos
quais se possa procurar conclusdes de longo prazo.
Tradicionalmente, tanto os pesquisadores quanto 0
senso comum via a municipalidade no Brasil como im-
portante dentro das estruturas regionals de poder e alian-
2s, embora operacionalmente fraca na provisao de servi
G08 e submissa ao governo federal, que controlava parte
dos recursos financeiros, e a0 governo estadual, que con-
trolava a outra parte. Aqui também a municipalidade era
vista como senco financeira, técnica e politicamente de-
pendente, sem recursos e habilidades para atender as de-
mandas locais. Os recursos que se encontravam dispont-
veis eram obtidos por meio de relagées clientelistas com
figuras polticas do estado ou federals, em troca de garan-
tia de suprimento de fundos eleitorais e dos votos do elet
torado. Em outras palavras, uma versio internamente con-
sistente e compativel da narrativa do por que se deve
descentralizar e por que é tio dificil
‘A Constituicko de 1988 criou, entre outras, uma base
diferente para a autonomia municipal pela garantia dos prin-