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litica a € pol So 2 Be = o 73 yn fe} 2 a= 9g a wi was Copyright © 1998 by José Murilo de Carvalho 1999 - 1¥ reimpressio 2005 - 24 reimpressio Exe livro ou parte dele nto pode ser reproxluzido por qualquer meio sem autoriziglo escrita do Editor. Carvalho, José Murilo de C331p Pontos € bordados: escritos de historia e politica/ José Murilo de Carvalho. - Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. 4599, 1, Brasil - Hist6ria 2. Cronicas brasileiras - Coletinea 1. Titulo DD: 981 DU: 981 Catalogagao na publicagao: Divisio de Planejamento Divulgagio da Biblioteca Universitiria - UPMG ISBN: 85-7041-154-5 EDITORACAO DE TEXTO: Ana Maria de Moraes REVISAO DE PROVAS: Flavia Silva Bianchi, Maria Aparecida Ribeiro, Maria Stela Souza Reis ¢ Rubia Flivia dos Santos PROJETO GRAFICO: Gloria Campos - Manga FORMATAGAO: Alexandre Gregole Colucci, Marcelo Belico CAPA: Marcelo Belico: detalhe de bordado de Joio Cindido, gentilmente cedido pelo Museu Tomé Portes del Rei/Prefeitura Municipal de Sao Joao del Rei (MG) PRODUCAO GRAFIC: : Warren M. Santos EDITORA UFMG Av. AntOnio Carlos, 6627 - Ala direita da Biblioteca Central - Térreo Campus Pampulha - 1270-901 - Belo Horizonte/MG ‘Tel. (31) 3499-4650 Fax (31) 3499-4768 www.editora.ufmg.br — editora@ufmg.br INTRODUGAO. Sou do mundo, sou Minas Gerais 9 eae 1 ¢ BORDADOS Qs bordados de Joao Candido 15 ‘ ag kona 35 As batalhas da aboligao_ 65 PRIMEIRA REPUBLICA Entre a liberdade dos antigos ¢ a dos modemos: a Republica no Brasil 83 Brasil 1870-1914: a_fc da tradigao 07 Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussio conceitual __130 PENSAMENTO POLITICO Federalismo ¢ centralizacio no Império brasileiro: hist6ria ¢ argumento 155 A ortodoxia positivista no Brasil: um_bolchevismo de classe média _______189 A utopia de Oliveira Viana__202 BRASIL Brasil: nagdes imaginadas 233 Brasil: outra América? 269 Brasileiro: cidadao? 275 PAR tT & PONTOS CIDADANIA Gidadania a porrete 307 Entre 0 mondlogo € 0 cochicho 310 Res-ptibica 313 TWOV em Miami 316 A. OAB na contramio da democracia 318 A bilheteira € 0 Presidente 321 Cidadania ¢ seus dois maridos 324 Material com direitos autorais PROFISSAO GENTE, CONCLUSAO 500 anos de pau-brasil Nacionalismo mineralégico Brasileiros, uni-vos! Euchamo o velho! O exército © os negros Eleigio em tempo de célera Esse debate € real Q célera das legides © bicho que deu Kennedy em Piedade PMs, instituigdes centensi Burocracia cabocla ataca nos Estados Unidos Basta de brasilianista brasileiro © negécio da hist6ria Juntos, ainda que errantes In memoriam — Victor Nunes Leal (1914-1985) Francisco Iglésias, critico de historia Da cocotte a Foucault Gottschalk: gloria e morte de um pianista no Rio Richard Morse ¢ a América Latina: ser ou nio ser ‘As duas mortes de Getilio Vargas Jeca resgatado Os fantasmas do Imperador Com 0 coragio nos labios O tiltimo dos rominticos historiador as vésperas do terceiro milénio 327 332 340 343 349 359 362 365 367 371 375 379 381 384 390 396 400 409 413 418 423, 434 441 ESCRAVIDAO & RAZAO NACIONAL INTRODUCAO Libertas non privata, sed publica res est. Perdigdo Malbeiro Os abolicionismos europeu ¢ norte-americano foram marcados pelo intenso recurso a argumentos de natureza religiosa e filos6fica. Para grande parte dos abolicionistas, a escravidao era condenavel por violar o principio da liberdade individual, garantido seja pelo direito natural, seja pelo cristianismo. Na tradi¢do luso-brasileira predominam raz6es politicas antes que religiosas ou filos6fica: mentos baseados na fé crista eram contrabalangados e freqtien- temente derrotados pela razao colonial, isto é, pelos intere: do Estado portugués. Apos a Independencia, a razio nacional, vale dizer, os argumentos baseados em concepgdes diversas dos interesses do Ps liberdade nao é vista como problema individual, mas como questio publica. Explorar esta diferenga e dis © propésito deste artigo. Antes da Independéncia, os argu- se , adquire a supremal icado se cutir seu signifi RAZAO CRISTA E RAZAO FILOSOFICA O abolicionismo, entendendo-se por tal correntes de opiniao: e€ movimentos sociais e nao politicas de governo, baseou-se, na Europa e nos Estados Unidos, em razGes tiradas de determinada pratica do cri; des geradas pelo Iluminismo francés. A principal fonte do abolicionismo na Inglaterra e nos Estados Unidos foi o quakerismo. Manifestagdes quakers contra a escravidio comecgaram ja na segunda metade do século XVII, quando até mesmo John Locke, pai do liberalismo, ainda aceitava a existéncia da instituigdo. Apos visita a Barbados, William Edmundson abre © ataque em 1676, atribuindo os pecados cometidos na ilha a existéncia da escravidio.! Tratava-se de inversio importante no pensamento cristdo. A tradigao, consolidada por Santo Agostinho, dizia 0 oposto, isto é, que a escravidao & que era conseqiiéncia do pecado. O pecado era, na verdade, a pior escravidao: ele tornava os homens escravos de suas paixdes. Nao demoraria que a inversio fosse completa. A escravidao passou a ser o proprio pecado. As verses mais apaixonadas deste ponto de vista foram pregadas por R. Sandiford e Benjamin Lay. Esse tiltimo escreveu em 1737 um panfleto intitulado Todos os Proprietarios de Escravos so Apéstatas, Nele, a escravidao era considerada um pecado sujo, o maior pecado, O Ventre do Inferno, a Prostituta das Prostitutas, 0 proprio Anticristo. Até ai as manifestagOes eram individuais, nao refletiam a posicao da seita quaker como um todo. O crescimento da escravidao nos Estados Unidos fizera mesmo com que varios quakers se tornassem proprietarios de escravos. Mas, pela metade do século XVIII, em parte como conseqiiéncia do movimento de renovagio religiosa chamado de O Grande Despertar (The Great Awakening), a posicdo antiescravista tornou-se oficial. Em 1757, a reuniao da Sociedade dos Amigos, como se denominavam os quakers, realizada em Londres, fez a primeira condenagao coletiva, No ano seguinte, a reuniao de Filadélfia, o centro do quakerismo americano, decidiu expulsar da comunidade os membros que comerciavam com escravos. Dois anos depois, 0 exemplo foi seguido pelos quakers da Nova Inglaterra e, em 1761, pelos de Londr: A agao propriamente politica dos quakers comecgou em 1783, quando uma peti¢io foi enviada ao parlamento inglés. Quatro anos depois foi criada em Londres a Sociedade para a Abolicdao * Baseei-me, para esta sumiria exposigao das correntes abolicionistas, no texto chissico de DAVIS. The problem of slavery in Western culture. A discussio da posigio quaker encontra-se principalmente no cap.10. 36 do Trafico de Escravos, cujos membros eram, na grande maioria, quakers. O emblema da Sociedade, gravado num medalhao por Josiah Wedgwood, era a figura de um escravo semi-ajoelhado, exibindo maos e pés acorrentados, com a inscrigdo: “Nao sou um homem e um irmao?”. Tratava-se de clara afirmagao da igualdade dos homens e da fraternidade crista. Feita a abolicao do trifico para as coldnias inglesas em 1807, a luta dos quakers e de outros abolicionistas que a eles se juntavam ar a aboligdo geral do trafico. Em 1823 eles nova- passou a vi mente forneceram a base para a organizagao da Sociedade Contra a Escravidao. A luta era, agora, contra a instituigdo em si ¢ nado apenas contra o trafico. O argumento religioso permaneceu forte na nova Sociedade. Testemunho disto é que, ao se dar a aboligao da escravidao nas colénias inglesas em 1833, muitos quakers se opuseram a indenizagio conce- dida aos senhores de escravos, sob o argumento de que pecado nao pode ser compensado.? Nos Estados Unidos, os quakers foram atuantes até a Guerra Civil, sobretudo a partir de sua ¢ na Pensilvania. Seus seminiirios eram focos de libertacao e de educagao de libertos. De modo geral, o tema religioso era freqiiente na pregacio abolicionista. A libertagio do povo judeu, descrita no Velho Testamento, tornava-se imagem poderosa para abolicio- as, livres e escravos. A famosa guia de escravos, Harriet Tubman, que os conduzia para o Norte, ficou conhecida como o Moisés de seu povo. Muitas seitas, sobretudo os batist: também tornaram-se instrumentos de organizagao de escravos e libertos, Embora de natureza religiosa, tais organizagoes tiveram efeitos poderosos na construgio da identidade negra e na formagao de liderangas politicas. Tudo isto contrastava com a posigio da Igreja Anglicana, que se limitava a apelar aos senhores para que tratassem bem seus escravos.* O outro pé em que se baseava o abolicionismo era a con- cepgio da liberdade como um direito natural, desenvolvido pelos filésofos do Iluminismo francés. Esbogada em Locke, ¢ + 4 luta dos abolicionistas ingleses ¢ a influéncia quaker no movimento é discutida por TEMPERLEY. British antislavery, 1833-1870, sobretudo nos ca pitulos 1-4. $ Para uma descrigado do proceso abolicionista americano, veja FRANKLIN. From slavery to freedom. & history of negro Americans. Material com dir mais forte em Montesquieu, ela desabrochou com plena forga em Rousseau e nos enciclopedistas na segunda metade do século XVIII. No verbete da Enciclopédia sobre 0 comércio dos negros redigido por De Jaucourt e publicado em 1765, a liberdade é afirmada claramente como direito natural inalie- navel. O comércio de escravos era, em conseqiiéncia, nulo por sua prépria natureza.‘ Como parte do direito natural, a liberdade do homem nao podia ser objeto de compromissos. Tratava-se de um principio universal que obrigava a todos. Tal concepgio foi incorporada a Declaragio de Independéncia dos Estados Unidos e 4 Declaragao dos Direitos do Homem e do Cidadao. A Declaragio de Independéncia, com sua famosa introdugao sobre a igualdade dos seres humanos € sobre os direitos inaliendveis 4 vida, a liberdade e a busca da felicidade, serviu de poderoso argumento aos abolicionistas. Os principios da Declaragao faziam parte da cultura republicana norte-ame- ricana, por mais que a realidade os desmentisse. Bastava aos abolicionistas exigir que os Estados Unidos aplicassem na pritica os principios que justificavam sua existéncia como nagao.* Na Franga, as idéias antiescravistas levaram a libertagao dos escravos nas colénias em 1794. Aos criticos da deci: dada a famosa resposta que tanto 0 foi andalizou os realist da politica: “Antes peregam as colénias que um principio.” Aqui também, como entre os quakers, tratava-se de um prin- cipio que nao admitia compromissos, que de limitagdes praticas baseadas em circunstancia Uma terceira vertente do pensamento abolicionista, usada em geral de maneira subsidiaria pelos militantes radicais, era a mercé Jo estava a que se fundava em cAlculos econdmicos. Argumentav: seja com base em premissas psicol6; ia como fruto de observagao, que o trabalho escravo era menos econdmico * Veja DAVIS, em The problem of slavery in Western culture, cap.13, Para uma discussao da evolugio do conceito de direito natural, veja BLOCH. Natural law and a buman dignity. Dentro do espirito do Huminismo, saliente-se ainda a obra de Raynal, Histoire des deux indes, publicada em 1770 com a colaborago de Diderot. Raynal atacava a Igreja Catdlica por sua posigio perante a escravidao. 5 Sobre o impacto do cristianismo e da cultura republi negros norte-americanos 2 época da aboligao, veja FON America’s unfinished revolution, 1863-1877. na ideologia dos ER. Reconstruction: 38 que o trabalho livre. Os primeiros a formular tal posi¢io que, uma vez resolvido 0 foram os fisiocratas. Turgot di: problema do excesso de terra em relagdo a oferta de trabalho, a escravidao tornava-se antiecondmica. O primeiro a fazer calculos concretos comparando a rentabilidade dos dois tipos de trabalho talvez tenha sido Benjamin Franklin. Concluiu ele, em 1755, que, nos Estados Unidos, 0 trabalho do escravo era mais caro do que o do imigrante europeu. Mais tarde, Adam Smith daria a essa tese a autoridade de seu nome, embora nao condenasse a escravidao como matéria de principio. Segundo ele, o escravo trabalharia menos por nao ter o incen- tivo da propriedade. Estando o direito 4 propriedade na base do interesse individual, a escravidio violava também a lei da utilidade individual e, portanto, o bem coletivo, pois este resultava da soma dos interesses de cada um. Estavamos ai jf em pleno dominio do individualismo que sustentava os argumentos religioso e filoséfico.® RAZAO COLONIAL VERSUS RAZAO CRISTA Em contraste com o que acaba de ser descrito, a tradigao luso-brasileira praticamente nio conheceu movimento ou corrente de idéias abolicionistas senao nos Gltimos anos da escravidao. A discussio do problema ficou, durante a Col6nia, a cargo quase exclusivo de padres e religiosos; apés a In- dependéncia, os que se envolveram no debate e na campa- nha abolicionista eram quase sempre pessoas ligadas ao mundo oficial da politica. Era uma das caracteristicas dessa tradicao, alias, o fato de Igreja e Estado serem instancias que freqiientemente se confundiam. Nao é, pois, de surpreender que os argumentos usados fossem distintos. Para manter o paralelo com o inicio do abolicionismo quaker, comecemos no século XVII. Os principais textos nele produzidos foram ou de religiosos ou de padres seculares. A marca registrada desses pensadores era a ambigiiidade com que se colocavam frente & percepgao de que haveria incom- patibilidade entre cristianismo e escravidao, de um lado, e€ © Veja DAVIS. The problem of slavery in Western culture, cap.14 frente as necessidades da sociedade colonial e do Estado portugués de que dependiam, de outro. A dependéncia era direta no caso dos padres seculares ¢ indireta no caso dos regulares, O jogo da ambigiiidade foi inaugurado pelo jesuita Vieira. Colocava-se ele contrario A escravizagao dos indios, defendendo a politica reducionista desenvolvida no Maranhao pela Companhia de Jesus. Mas, no caso da escravidao afri- cana, seu pensamento dava grande guinada. Em um dos ser- moes pregados na década de 1680, ele discute com clareza o problema e usa a velha tese da relagdo entre escravidao e pecado para aconselhar aos escravos a obediéncia.” O jesuita Vieira reconhecia o estado miseravel em que se encontravam os escravos e condenava severamente os senhores pela brutalidade e gandncia com que se haviam. Ao se dirigir aos escravos, lembrava 0 cativeiro dos israelitas na Babil6énia. Mas logo acrescentava que mais importante que o cativeiro do corpo era o cativeiro da alma produzido pelo pecado. Os israelitas sofreram, perderam até a vida, mas nao abjuraram sua fé. Para se libertarem da escravidio do pecado, 0s escravos deviam obedecer aos senhores, desde que este nao os forgassem ao pecado. Deviam obedecer aos senhores como se servissem a Deus, pois assim obedeceriam como pessoas livres. E vinha a citagdo de Sao Paulo, que se tornaria classica entre os defensores da escravidio, aconselhando aos ia. Assim fazendo, teriam o proprio Deus como seu servo no céu. A énfase era no pecado como escravidao € nao na escravidao como pecado. A mesma ambigitidade de condenar e justificar a escravidao est4 presente no texto de Jorge Benci, intitulado A Economia Crista dos Senhbores no Governo dos Escravos, escrito em 1705. Benci era um jesuita de origem italiana que vivera 17 anos na Bahia, onde pudera observar de perto a pratica da escra- vidao. O padre Benci também via a escravidao na perspectiva tradicional de conseqiiéncia do pecado original. A rebelido contra Deus que caracterizara esse pecado levara também a rebeliio, dentro do homem e contra ele, de seus apetites. Dai os conflitos e guerras que produziam o cativeiro, pois 0 ? Para a exposigio das posigdes de Vieira, utili Ideologia e escraviddo, p.125-129. io trabalho de VAINFAS. 40 escravo era o prisioneiro a quem se poupava da morte, era o servatus (preservado, dai servo) da morte. Diante dessa reali- dade, restava apenas apelar aos senhores no sentido de tratarem os escravos dentro do que ele chamava de economia crista. Para definir tal economia, Benci inspira-se nos conselhos de Sao Paulo sobre o dever dos senhores de tratar os escravos com justica e eqiiidade e sobre o dever dos escravos de obedecer aos senhores, a que Sao Pedro acrescentara: mesmo aos maus senhores (etiam discolis). E vai buscar no Eclesiastes a receita para o tratamento cristéo dos escravos. A receita € simple: e, segundo ele, vem desde Arist6teles: panis et disciplina et opus, vale dizer, pao, castigo e trabalho. Condenando as praticas brutais dos senhores baianos, Benci exorta-os a alimentar e vestir adequadamente os escravos, a ensinar-lhes a religiaio (o alimento espiritual), a castiga-los com moderagao e a manté-los sempre ocupados mas sem excesso de trabalho.* O senhor devia agir como o pai de uma grande familia cris- t4 da qual os escravos eram parte. Vai ainda mais longe para justificar a escravidio dos negros. Supostamente, os negros (etfopes) seriam descendentes de Cam, 0 filho de Noé que fora amaldigoado pelo pai por ter zombado de sua nudez. Tal vinculagao jé fora feita por Santo Agostinho e Sao Jer6nimo. Para este tiltimo, os etiopes (negros) se caracterizariam por estarem profundamente mergulhados em vicios (penitus in vitio demersi sunt). (Benci, p.179). A Biblia fornecia, assim, um argumento racista em favor da escra- vidio que viria a calhar quando esta, nos tempos modernos, se concentrou em vitimas negras. A imoralidade atribufda por quase tod comentaristas aos escravos negros encontrava também ai facil sustentacao. Ao final do texto, aparece com maior clareza o incémodo que causava ao autor a defesa da economia crista dos senhores. Apés descrever em termos fortes a miséria da escravidao, Benci lembra aos leitores 0 exemplo dos antigos cristaos que, "A receita brasileira para o tratamento dos escravos foi descrita por Antonil como sendo os trés pés: pau, po, pano. A diferenga em relagao 2 receita do Eclesiastes era mais de espirito do que de letra. Veja ANTONIL. Cultura e opuléncia do Brasil, p.51. 41 ao se converterem, libertavam seus escravos, “parecendo-lhes que com a liberdade da lei de Cristo nao estava bem o cati- veiro”. (Benci, p.223). Mas nao ousa pedir tanto aos senhores. Pede apenas que tratem aos escravos como a proximos e miseriveis. Lutavam dentro dele 0 missiondrio que, além de jesuita — portanto, parcialmente independente do Estado —, era também italiano, menos comprometido que o padre Vieira com a politica portuguesa, e o membro de uma Igreja oficial comprometida com a politica de colonizagio de Portugal. A ambigiiidade é ainda mais gritante no livro do Pe. Manuel Ribeiro da Rocha, O Etiope Resgatado, Empenbado, Sustentado, Corrigido, Instruido e Libertado, publicado em 1758.” Ribeiro da Rocha, portugués de nascimento, também vivera na Bahia como padre secular e advogado. O Etiope é um prodigio de contorcionismo: parte da condena¢o explicita da escravidio perante a lei divina e termina justificando a sua existéncia perante as leis tanto humana como divina. A escravidiao é condenada, de inicio, como a maior infelicidade que pode acontecer a uma criatura racional, pois repugna & propria natureza humana. A compra e venda de escravos por crisos pode levar 4 condenagao eterna, embora entre gentios possa ser feita sob a sangdo do direito das gentes e pelo direito natural. A rigor, a compra seria legitima se o seu objeto fosse alguém legalmente escravizado, isto €, por guerra justa. Ma como € dificil averiguar tal legalidade e como, em geral, entre os gentios, a escravidao é fruto de pirataria, a compra é quase sempre ilegitima, O pecado, como se vé, estaria em comprar coisa que sabemos ser alheia. A conseqiiéncia légica do argumento seria condenar o comércio escravo e, portanto, a escravidao sem mais nem menos. Mas, como Benci, Ribeiro da Rocha nao tem condigd de propor solugao radical. Sendo portugués e padre secular, 0s interesses do Reino ¢ da Igreja oficial pesam sobremaneira em seu pensamento. O trafico nao pode terminar, pois isto S * Note-se 0 uso da palavra resgatado. Na época, a palavra resgate adquirira duplo sentido: podia indicar a compra € libe de prisioneiros ou simp! mente comércio. Um pouco mais tarde, como veremos, um defensor do tifico, Azeredo Coutinho, falaria em comércio do resgate dos escravos € no simplesmente resgate, para deixar claro o sentido econdmico € nao- filantropico da operagao. 42 “prejudica o Reino e conquistas no temporal; e no espiritual prejudica o s ico de Deus e o bem das almas que resulta do dito comércio e transporte destes gentios e sua conversao”. (Rocha, p.99-100). Propde entao um arranjo, uma “via média” que concilie a moral crista e os interesses do Estado colonial, Esta via é um primor de sofistica. A compra pura e simples de escravos, jure emptionis, € proibida, Mas pode-se resgatar © escravo, pode-se compri-lo jure pignoris, como penhor. Neste caso, nao se compra a propriedade sobre o escravo, compra-se o direito de penhor e retengao, isto é, o direito de manter o escravo até que ele reponha o custo de seu resgate. Tal solugio € legitima perante os foros interno e externo. Para justificar esta afirmagdo, Ribeiro da Rocha socorre-se abundantemente de citagdes de juristas espanhéis como Molina, Arouca ¢ outros. A solugao € perfeita, segundo ele: resolve © problema de consciéncia, evita a indenizagao do escravo porventura comprado indevidamente ¢ mantém o senhor na posse do escravo! (Rocha, p.88). Sua proposta é, entao, que todos os senhores de transformem o jure dominii (direito de propriedade) em jure pignoris (direito de penhor). Os es assim resgatados serviriam por um maximo de 20 anos; , por um maximo de 25 anos. O limite que a lei romana colocava era de cinco anos para os resgatados, Mas Ribeiro da Rocha acha que, por este prazo, ninguém daria por um escravo os 100 mil-réis que custam, e 0 comércio desapareceria, seguindo-se conseqiiéncias desastrosas para o Reino. escravos, Feita a magica da transformagio do dominio em penhor, o texto prossegue na linha de Benci, embora nao haja citagao deste autor. O etfope resgatado e penhorado devera ser susten- tado, corrigido e instruido, de acordo com a férmula do Eclesiastes, com as mesmas recomendagoes sobre 0 cuidado No sustento ¢ a Moderagao no castigo. Ribeiro da Rocha nao deixa de observar, como Benci, a crueldade e 0s maus exemplos com que os senhores baianos tratam seus escravos. E uma crueldade ferina, isto é, propria antes de feras do que de seres humanos. (Rocha, p.198). Por fim, 0 etiope resgatado, penhorado, sustentado, corrigido e instruido, se sobreviver, sera libertado, dando-se-lhe pequena quantia de dinheiro como afago pelos anos de 43 servigo € pelo lucro que proporcionou. A possibilidade de libertagdo, embora remota, tendo em vista a crueldade com que sao tratados os escravos, resgata o senhor do crime de escravizagao sem o privar do servigo do escravo. Sao atendidas as leis divinas e humanas. Tudo muda e nada muda. Compa- tibiliza-se © cristianismo com a escravidao ¢ com os interesses da metrépole portuguesa, tudo combinado com uma defesa calorosa da “natural liberdade” dos etiopes escravizados. As preocupagées da consciéncia crista de Benci e de Ribeiro da Rocha acabam por se reduzir, na pritica, ao frio realismo de outro jesuita, Joao Ant6énio Andreoni (Antonil), que em Cultura e Opuléncia do Brasil, publicado em 1711, apenas constata o papel fundamental do escravo, “maos e pés do senhor de engenho”, sem manifestar maiores preocupagdes com a legi- timidade ou legalidade de sua situagdo. (Andreoni, p.47-50). Em um dos autores do periodo colonial nao esta presente a ambigitidade de Vieira, Benci e Ribeiro da Rocha. Trata-se do Unico brasileiro do grupo, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. Azeredo Coutinho fora senhor de engenho em Campos, na entio capitania do Rio de Janeiro, tornara-se padre, fora nomeado sucessivamente bispo de Pernambuco, onde criou o Seminario de Olinda, bispo de Elvas e, final- mente, Inquisidor-Mor do Santo Offcio. Entre varios textos sobre a economia colonial, D. José produziu, em 1798, com segunda edicio em 1808, uma “Andlise sobre a Justiga do Comércio do Resgate dos Escravos da Costa da Africa”.!® Tinha sobre seus predecessores a vantagem de conhecer boa parte da literatura abolicionista, sobretudo a que se baseava na versio iluminista da idéia de direito natural. Sabia também dos resultados da politica francesa de libertagao na ilha de Sao Domingos. Mesmo assim, ou por isso mesmo, D. José nio teve qualquer das diividas dos que o precederam. Nele, a razio colonial reina soberana sobre a razao crista. Como se tratava, alids, de debater com os filésofos da Enciclopédia, que ele chamava ironicamente de novos fildsofos, nao Ihe adiantavam argumentos biblicos ou eclesiasticos. '©.O opiisculo esta incluido em Obras econdmicas de J.J. de Azeredo Coutinbo, 1794-1804, p.231-307. Este texto baseia-se na segunda edigao feita em Portugal em 1808, A primeira edigdo apareceu em Londres € era redigida em francés 44 Material cor dire D. José estava plenamente convencido de que tais argumentos eram favordveis & escravidao."' Mas queria combater no campo do adversario, no campo da filosofia. E assim 0 fez. O alvo central de seu ataque é a idéia da existéncia de um pacto social garantidor de direitos naturais considerados preexis tentes 4 sociedade. Tal pacto, segundo D. José, nado existe: tais direitos sao fantasia, O homem nasce em sociedade e dela deriva seus direitos, Em suas palavras: “O homem é uma parte integrante do corpo da sociedade: € um membro que, separado do seu corpo, ou morre ou fica sem acao.” E conclui aqui descoberto o grande principio de onde devem partir todos os nossos discursos.” (Coutinho, p.244-245). Se a natureza criou o homem para a sociedade, a sociedade € obra da natureza. Dai, também, que todos os meios neces: saris 4 preservagao da sociedade sao concedidos pela nature: Os direitos naturais, tanto da sociedade como do homem, sao deduzidos da necessidade da existéncia. A natureza prescrev ao homem ¢ a sociedade que defendam sua existéncia com todas as armas e meios disponiveis. A salvagao da Republica a lei suprema, como diziam os romanos. A justiga da lei de qualquer sociedade consiste no maior bem ou no menor mal dela decorrente em determinadas circu: ‘a justiga nao é absoluta mas relativa as im como a liberdade do homem nao é direito natural absoluto, como querem os novos fil6sofos, mas relativo as necessidades sociais. A conclusao de tudo isso é limpida e direta: A necessidade da existéncia do homem que no estado da socie- dade estabeleceu a justi¢a do direito da propriedade, foi também a mesma que no estado da sociedade es abeleceu a justica do direito da escravidao. |...) O comércio da venda dos escravos é uma lei ditada pelas circunstincias 48 nagdes birbaras para o seu maior bem, ou para o seu menor mal. (Coutinho, p.239). A justica da lei, isto é, sua conformidade com a lei natural que manda fazer o maior bem a sociedade € estabelecida por quem melhor pode avaliar as necessidades da sociedade — o soberano. Justo é aquilo que ele manda como lei tendo em "1 A defesa da escravidao com citagdo de leis civis ¢ candnicas foi fe D. José em outro livro, publicado também em 1808, vista o bem da sociedade. Assim é que, historicamente, se estabeleceu o direito do vencedor de matar o vencido ou de escravizar os prisioneiros. Se a liberdade é direito natural, ¢ se a escravidao é contraria a este direito, como € possivel que tal razao natural tenha estado ofuscada por tanto tempo 86 tenha sido revelada aos novos filésofos do século XVII? Das duas uma: ou tal direito natural a liberdade nao existe, ou ele nao é evidente e neste caso deve-se dar preferéncia a pratica milenar da humanidade. O trabalho escravo é uma necessidade social sempre que haja abundancia de terras e escassez de populacao. Para Portugal, o fim da escravidao seria um desastre, pois destruiria a economia de suas col6nias, base do excedente que the garante a sobre- vivéncia. Pela lei da sobrevivéncia, 0 comércio de escravos € justo para Portugal. E para a Africa? Se os europeus nao comprarem os escravos eles serio ou mortos ou vendidos a mouros e asidticos. Além disto, o comércio é a maneira pela qual a civilizagao se difunde. A Europa levou dois mil anos para se libertar da escravidao. A Africa nao pode fazé-lo de um salto. Dai que a escravidao de pessoas na Africa, onde nao sao necessarias, para leva-las para a Europa civilizada que delas precisa, constitui um beneficio para todos. Assim escreveu o bispo D. José. Em seu argumento desa- parece a razao crista; resta apenas a razdo colonial. Resta a visio hobbesiana do homem em guerra contra si mesmo, sujeito 4s paixdes e obrigado a se defender por todos os meios disponiveis. Para Hobbes, também, 0 primeiro direito do homem no estado de natureza é 0 de se defender a todo custo. O paralelismo entre os dois autores pode ir ainda mais longe. D. José apenas nao aceita o individualismo que aparece na ficcio do estado de natureza desenvolvida por Hobbes ¢ que configura o lado moderno do autor de O Leviatd. O que se vé no pensamento do bispo € a total primazia da sociedade, do coletivo, do todo, sobre o homem, sobre o individuo, sobre a parte. Tal posigao pré-moderna, que também contrasta com toda a fundamentagao dos abolicionismos europeu e americano, pode ter suas raizes na tradicho comu- nitiria da Igreja ou pode simplesmente refletir a razao do Estado absolutista. O lado comunitério aparece melhor em Benci e Ribeiro da Rocha quando definem 0 poder do senhor 46 Material cor direitos como um poder paternal. Em D, José, 0 coletivo apresenta-se mais com 0 rosto do Leviata. Nao ha nele, também, como nos outros, qualquer preocupagao com os aspectos morais ou espi- rituais da questao. Os interesses que discute sao de natureza puramente material, inadequados para fundar qualquer comu- nidade que mesmo de longe possa ser chamada de crista. Assim, 0 cristianismo em sua versio luso-brasileira, vale dizer, na versdo do catolicismo ibérico, nao foi capaz de gerar oposicao clara 4 escraviddo como na versio reformada. Ou os autores nao encontravam claras evidéncias na Biblia € na teologia para justificar a escravidao, caso especial de D. José, ou as indicagdes sobre a liberdade civil que deduziam nao eram suficientemente fortes para leva-los a uma postura evangélica ou profética contra a escravidao. Acabavam por apenas aconselhar aos senhores o tratamento “cristo” dos escravos, sancionando na pratica 0 escravismo. As variagdes dentro dessa postura bisica talvez pudessem algo simplisti- ‘amente ser atribuidas 4 posi¢gio dos autores em rela Igreja e ao Estado. Os menos dependentes, como os jesuitas, podiam ir um pouco mais longe na condenagio da escravidao. Os mais integrados ao sistema, como D. José — lembre-se que fora também senhor de engenho —, eram os que menos se inclinavam a atacar a instituigio. A tradig&io luso-brasileira passou também ao largo da versio francesa do Iluminismo, Entre os autores que examinamos, ou esta corrente de pensamento era ignorada, ou era reco- nhecida apenas como objeto de ataque sem quartel. Ao atacar os novos filésofos, D, José estava combatendo, na realidade, toda a concep¢ao individualista do homem, base da emergente sociedade liberal, Assustavam-no especialmente os aspectos politicos desta onda, que ele vira concretizados na Revo- lugdo Francesa € na revolta dos escravos de So Domingos. Na verdade, defendeu com tal ardor o trafico que nem a Academia de Ciéncias de Lisboa se dispés a publicar seu trabalho. A primeira edigao foi publicada em francés em Londres, e a segunda veio a ptblico durante a ocupacao francesa de Portugal. Mas seus argumentos em defesa do trafico e da escravidio continuaram a inspirar os escravistas brasileiros apés a Independéncia. 47 A RAZAO NACIONAL A Independéncia trouxe importante mudanga de enfoque na discussio da escravidao. Nao se tratava mais de pessoas ligadas 4 metr6pole discutindo a escravidao na coldnia, depois de ter sido ela abolida na propria metrdpole. Trata agora de is a escra- viddo representava um problema muito mais sério. O problema nao era mais de economia metropolitana ¢ de moral crista. Era pura e simplesmente de formacdo de uma nagao. Os motivos religiosos passavam a segundo plano; 0 motivo nacional vinha para o proscénio. E como se tratava de uma nac4o que come- gava a ser construida de cima para baixo, nao é de estranhar que a maioria dos que inicialmente se ocuparam do tema tenha pertencido aos membros da elite politica. idadaos de um pais em formagao, para os qu A mudanga de enfoque torna-se evidente j4 no primeiro texto importante produzido apés a Independéncia. Trata-se da justa- mente famosa Representagdo que José Bonifacio de Andrada e Silva enviou & malograda Assembléia Geral Constituinte de 1823, € que foi publicada em Paris dois anos depois.'? Seu autor estava profundamente envolvido nao s6 no processo de independéncia como no pensar o futuro do novo Pais. E vista nesta perspectiva, a meu ver, que sua posigao frente ao problema do trifico ¢ da escravidao adquire pleno significado. O texto é explicito em mencionar a necessidade de se criar uma nacao homogénea, “sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitaveis ¢ felizes”. (Andrada e Silva, p.8). Se nao se amalgamarem tantos metais diversos (fala ai o mineralogista José Bonifacio), o novo Pais correrd risco de se esfacelar ao leve toque de qualquer convulsao politica. Antes, era do interesse da metropole manter o Brasil como um povo heterogéneo, s nacionalidade ¢ sem irmandade. Mas, agora, “como pode haver uma constituigao liberal e duradoura em um pais continua- mente habitado por uma multidao imensa de escravos brutais e inimigos?” (Andrada e Silva, p.7). O final do texto volta a acentuar 0 problema politico da escravidao. Sem o fim do trafico e sem a aboligao da escravidio, “nunca o Brasil firmara m ” Veja José Bonificio de Andrada ¢ Silva, Representagio A Assembléia Geral Constituinte ¢ Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura 48 a sua independéncia nacional e segurara e defendera sua liberal constituigao; nunca aperfeigoard as ragas existentes, € nunca formard, como imperiosamente o deve, um exército brioso, € uma marinha florescente”. (Andrada ¢ Silva, p.40). O trafico e a escravidao impedem a formagao nacional por trés motivos: por serem incompativeis com a liberdade individual e, portanto, com o governo liberal; por introdu- zirem um inimigo interno e porem a risco a seguranga interna como mostrou a revolta de Sao Domingos; finalmente, por ameagarem a seguranga externa do Pais, na medida em que inviabilizam a formacdo de um exército e de uma marinha poderosos. Os aspectos relativos 4 seguranga eram particu- larmente rele’ de declarar sua independéncia ¢ a natureza da reacdo portu- guesa ainda era incerta. Mas fala em favor da lucidez de José Bonifacio que pensasse também em aspectos que tinham a ver com 0 longo prazo e diziam respeito as bases nalidade e da comunidade politica que se pretendia c Na frase que se tornou célebre, a ele, era o “cancro que réi as entranhas do Brasil”. Iva, p.23). bili: antes no momento em que o Pais acabara Ss da nacio- aa nacionalidade. 1 © veneno que invi Se a razo nacional predominava nas preocupacoes de José 240 filosofica eram evocadas como ‘ala novamente em favor de autor da “Representagio” o fato de ter ele visto na escravidao uma ins tuigdo incompativel tanto com 0 cristianismo como com o direito natural € com a sociedade de mercado. José Bonifacio retine as trés principais vertentes dos argumentos anties um reforco do argumento. reflexo, talvez, de sua extensa experiéncia internacional. No que se refere ao cristianismo, afirma redondamente que a escravidio é pecado, na melhor linha quaker. Ignora as citagdes biblicas ti vidio. e da patri 1 interpretaveis como favoraveis 4 es Baseia-se mais no espirito humanitirio do Novo Testamento e na idéia da igualdade basica dos seres humanos. Aproveita para acusar, com violéncia, a corrupgao do clero nacional: A nossa religiio € pela mor parte um sistema de supersticdes € de abusos anti-sociais; 0 nosso clero [...] € © primeiro que se serve de e: acumula para enriquecer pelo comércio € pela agricultura, e para formar muitas vezes das desgragadas escravas um harém turco. (Andrada ¢ Silva, p.13) 49 O conservador José Bonifacio tinha também absorvido plenamente as idéias dos novos filésofos tao odiados por D. José. A escravidao, segundo ele, s6 se podia escorar no barbaro direito puiblico das nagées antigas, sobretudo nas leis romanas. Nao o perturba a pergunta do bispo sobre a razio de s6 agora ter surgido a idéia de liberdade como direito natural. O direito natural, diz José Bonifacio, é eterno. Seus principios, no entanto, revelam-se lentamente na historia. Os gregos e romanos ainda nado o tinham desenvolvido sufici- entemente. Vemos af outro ponto fundamental do Iluminismo: a idéia de progresso e da capacidade de aperfeigoamento do ser humano. Na realidade, José Bonifacio vai até ma longe do que o pensamento liberal clissico ao colocar 0 direito a liberdade acima do direito a propriedade. A proprie- dade € condicionada ao bem de todos. Nao ha bem em ser alguém escravizado. A sociedade civil estaria violando sua finalidade de promover a felicidade de todos se sancionasse a escravidao. Por fim, nao faltavam os argumentos que buscavam apontar a escravidao como incompativel com a indtistria e o progresso técnico, como antiecondmica. A posse do escravo leva ao desperdicio. Causa raiva ou riso, diz José Bonifacio, ver vinte escravos transportarem vinte sacas de agdcar, tarefa que uma carreta com dois bois poderia facilmente executar. Vinte enxad: maos de vinte escravos poderiam ser substituidas por um arado. Embora sem fazer calculos precisos de custos, como os de Benjamin Franklin, José Bonifacio sugere que 0s lucros dos senhores deveriam ser muito menores do que o por eles imaginado, A escravidio leva também ao écio do senhor. Ela traz para nosso meio 0 luxo e a corrup¢ao antes de termos a civilizagao e a industria, invertendo a ordem das virtudes humanas. Até mesmo os estrangeiros, por falso pundonor em relagao ao trabalho manual, compram alguns escravos € também se entregam ao cio. Depois de tal libelo contra a escravidao, talvez o mais com- pleto produzido por um membro da elite politica brasileira, poder-se-ia esperar propostas radicais de abolicdo tanto do trdfico como da escravidao. Mas José Bonifacio, como um dos principais articuladores da independéncia do Pais, sabia das limitagdes dentro das quais tinha que agir. Aboligao imediata 50 seria politicamente invidvel. A razdo politica, como ele literalmente diz, exigia que, findo o trafico, ainda fosse necessario conviver com a escravidao por algum tempo. O fim do trafico é proposto para dentro de quatro ou cinco anos. Varias outras medidas sdo sugeridas para se ir aos poucos restituindo aos escravos remanescentes a dignidade humana e civil, para os ir alforriando. Aos forros deveria o Estado conceder pequena sesmaria e auxilio para que se estabelecessem. Tao sensivel ao lado politico da escravidao, José Bonifacio nao revelava a mesma perspicacia quando se tratava dc aspectos econdmicos. A existéncia da instituigao se dev segundo ele, ao sérdido interesse € A cobiga dos homens, 4 sua paixdo pela riqueza e pelo poder. Nenhum dos argumentos econémicos de D. José Ihe parecia legitimo. Admitindo, embora, a legitimidade do interesse, este devia ser guiado pela razao e pela justia. Dai que os que viam na escravidao a defesa de seus interesses, o faziam por cegueira quanto A verdadeira natureza de tais interesses. O lucro da escravidao, era ilus6rio; ela impedia o progresso, corrompia as pessoas, corroia o Pais. O mundo da escravidao era o mundo da paixao; o mundo da liberdade, o mundo da razao. A campanha pelo fim da escravidao era uma luta pelo triunfo da razao, pelo reconhecimento dos verdadeiros interesses dos homens. Essa crenga iluminista nao impressionava os escravistas brasileiros. Os argumentos do bispo Ihes falavam muito mais de perto do que os do estadista da independéncia. De certo modo, os dois estabeleceram os pardmetros de todo o debate sobre a escravidao até seu final em 1888. Na realidade, nado foram publicados textos importantes até a década de 1860. Apos José Bonifacio, um ou outro autor redigia uma memoria sobre o tema que era relegada ao esquecimento, quando nao encontrava dificuldades de publicagio.'’ A imprensa debatia © tema por ocasido de acontecimentos relevantes, como a °° A dificuldade encontrada em divulgar idéias que de alguma maneira colocas- sem em discussiio o sistema escravista € mencionada, por exemplo, por Henti- que Veloso de Oliveira, em “A substituico do trabalho dos escravos pelo traba- Iho livre no Brasil’, reproduzido em Perdigio Malheiro, A escraviddo africana no Brasil, Tomo I, p.308. Veja outros dados sobre o livro de MALHEIRO na nota 19; a referéncia completa se encontra no final deste artigo. 51 Material com direitos a aboligao do trifico em 1850. Passado o impacto, voltava ao siléncio. Algo semelhante ocorria no Congresso. Aprovado o fim do trafico, sob pressio militar inglesa, todos os projetos apresentados posteriormente foram engavetados. A cortina de iléncio foi quebrada em 1867. Dois aconteci- mentos precipitaram o fato: a resposta do governo 4 mensagem da Junta Francesa de Emancipagao (enviada em 1866 mas s6 divulgada em 1867) e a men¢do do problema da escravidio na Fala do Trono. A resposta do governo, se nao redigida, certamente orientada pelo Imperador, dizia que a aboligio era questio de forma ¢ oportunidade. Finda a guerra em que o Pais se achava envolvido, o governo lhe daria prioridade. A Fala do Trono pedia a atencao do Congresso para o problema do elemento servil. Os dois fatos tiveram, segundo Joaquim Nabuco, o efeito de um raio em céu sem nuvem. A muitos as iniciativas pareceram loucura dinastica, suicidio nacional." Entre os escandalizados estava José de Alencar, o romancista € politico de Partido Conservador. Como reagio aos aconte- cimentos, ele publicou Novas Cartas Politicas que, sob o pseud6nimo de Erasmo, dirigia ao Imperador.'* Trés das cartas tratavam diretamente do problema da escravidao. Eram dirigidas ao Imperador nao por acaso. Além de inspirar a resposta & Junta Francesa ¢ a redagao da Fala, Pedro I ja encomendara, em 1866, projetos abolicionistas que, em 1867, estavam sendo discutidos no Conselho de Estado. Era ele, sem dtivida, quem naquele momento empurrava o governo na diregio do abolicionismo. Que dizia Alencar? Curiosamente, sua ira se dirigia ao que chamava de filantropia européia, sobretudo francesa, do mesmo modo que seu antecessor escravista, D. José, se voltava contra os novos filésofos franceses. Passado meio século, o inimigo continuava a vir d plagas. No que se refere aos argumentos, o texto da mensagem francesa s6 falava em cristianismo. A resposta brasileira repetiu o argumento cristio, acrescentando que a civilizagdo também exigia o fim da escravidio, Mas, como a mensagem era fruto de congresso s mesma NABUCO. Um estadista do Império, p.569-574 ALENCAR. Ao Jmperador. Novas cartas politicas de Erasmo. As cartas. que discutem o tema da escravidao sao as de nimero 2, 3 € 4. 52 internacional abolicionista, realizado em Paris no mesmo ano de 1866, por tras dela estavam os argumentos clissicos do abolicionismo europeu ja referidos. A explicagao do presidente do Conselho de Ministros, Zacarias de G6es, aprovada pelo Imperador e oferecida a imprensa para justificar a resposta do governo e acalmar os Animos, referia-se explicitamente a superag¢: s aristotélicas segundo as quais a escravidao se justificaria perante o direito natural. Ao responder, José de Alencar parte da mes de D. José, embora sem o citar expre: foi e € um fato social, faz parte das instituigdes dos povos ¢ nio pode ser revogada pela arrogincia de teorias. E vai mais longe: a escravidio representou passo importante na construgao da civilizagdo. Os povos caminharam pela conquista € pela ma argumentacao mente: a escravidao escravidao. “O primeiro capital do homem foi o proprio homem.” (Alencar, p.16). O escravo € 0 neéfito da civ ulo XV foi pela necessidade Se a escraviddo renasceu no s de colonizagao da América. Se os paises europeus a adotaram nas col6nias ao mesmo tempo em que a extinguiam em seus territ6rios, foi pela necessidade, “a suprema lei diante da qual cedem todas as outras; a forga impulsora do género humano”. (Alencar, p.18). Sem a escravidio afri Américas seriam vasto deserto. A necessidade como lei suprema das nagdes era, como vimos, argumento bisico de D. José. ana, as Alencar endossa também o argumento de D, José de que a moralidade e o direito sao relativos As circunstincias. O catolicismo da liberdade, isto é, sua generalizagdo, é 0 apogeu da civilizagdo, mas nao pode ser apressado. A escravidao ha de desaparecer como desapareceu o feudalismo. Mas enquanto cumpre sua missdo civilizadora merece respeito. “Toda lei é justa, util, moral, quando realiza um melhoramento na socie- dade e apresenta uma nova situagdo, embora imperfeita, da humanidade.” (Alencar, p.14). No momento, a escravidao, além de representar condi¢Ao indispensavel a civilizagao no Brasil, € também fator de futura civil io da Afric; Ja se extinguira espontaneamente quando o aumento da populagio, seu principio regulador, a tornar um luxo. Nesse momento, havera também mudanga de mentalidade: a escravidio tomar-se-d odiosa e desaparecer4. Ela nao foi instituida por lei e nao seri abolida por lei. A critica dos filantropos europeus € respondida com a mesma ironia usada por D. José. Os pa tudo a Franga ¢ a Inglaterra, nao tém cacife moral para nos criticar. Mantiveram a escravidio durante muito tempo em suas col6nias. A Franca chegou mesmo a restabelecé-la depois de a ter abolido e sé voltou a aboli-la em 1848. Além disso, nossa escravidao é sustentada pelo est6mago da Europa, que come nossos produtos. O filantropo europeu fums de Hava escrava. Também nio mandam para ca seus imigrantes. europeus, sobre- a ¢ bebe café do Brasil, produtos da mio-de-obra Entrassem uns 60 mil por ano, em vinte anos a escravidao estaria abolida. O trabalho livre expulsa o trabalho escravo € nao vice-versa, como se argumenta. Ha outra razio, prossegue Alencar, que impede a Europa de nos criticar. Ha li um cancro que r6 do que o cancro da escravidao. E 0 paupe: do proletirio europeu € pior do que a do escravo brasileiro. O escravo brasileiro € mais feliz do que o proletirio. E a felicidade é o fim da sociedade humana. A liberdade é apenas o meio para atingir a felicidade. A liberdade nao € direito natural como queriam os abolicionistas. absoluto, um fim em si. E apenas meio, util na medida em que contribui para o fim a que serve. suas entranhas, pior ismo. A situacdo. Nao é um principio Ha em José de Alencar um ponto que nio estava presente em D. José e que reflete as circunstincias distintas em que produziu seu texto. Seus argumentos em favor da manutengao da escravidio aparentam sélida base econdmica e histérica. No entanto, ele as vezes deixa escapar argumentos que, pela intensidade da linguagem em que sio envolvidos, fazem suspeitar que sejam talvez os mais relevantes. Sdo0 razoes politicas. Mas nao da politica nacional de Jos Sao razdes politicas de sua classe de proprietdrios de escravos. antes que os brancos tenham grande superio- Bonifacio. A aboligio, fei ridade numéri seria, segundo Alencar, um suicidio. No Brasil, diz ele, um terco da populacao é escrava (um exagero); nas seis provincias de maior concentra ‘0, talvez a metade da populagao seja escrava (outro exagero). A populagaio livre nado tem condigdes de conter o contingente escravo. 4 Rompido o respeito imposto pela escravidao, teremos a guerra social, de todas a mais rancorosa e medonha.'® © perigo era visto por José de Alencar como particular- mente grave caso a abolicdo fosse feita de maneira progress Abolicao lenta, ¢ lembra o caso das coldnias ingles Antilhas, desencadeia processo de agitacgao e revoltas cuja mera possibilidade causa vertigens. Mas também a aboligio imediata significaria para 0 escravo a miséria, pelo abandono do trabalho, e 0 exterminio, por uma provavel luta de ragas. Para o senhor, seria a ruina econdmica e o perigo de insur- reicdo; para o Estado, seria a bancarrota, pela destruigao da bases da riqueza nacional. Quando a escravidio ja se achava sob ataques de elementos do préprio governo, José de Alencar produziu sua mais elabo- rada defesa depois de D. José. Quando a defesa da institui se limitava em geral ao argumento do pragmatismo, ele tentou justificd-la também em termos filos6ficos e hist6ricos."” Foi, entre nés, quem mais se aproximou dos teéricos do escravismo do sul dos Estados Unidos. Mas nem ele iria tio longe quanto, por exemplo, George Fitzhugh, na defesa da escravidao. Partindo de criticas semelhantes As de Alencar 4 sociedade liberal, a seu individualismo exacerbado que deixava boa parte da populacao entregue & propria sorte, gerava a miséria do ope- rariado, a desordem, a quebra dos valores comunitirios. se especialmente a 3* Carta, A mengao da possibilidade de revoltas ‘ravas foi titica constante dos escravistas contra a Lei do Ventre Livre. A tatica seria voltada contra eles pelos abolicionistas. A série de contos intitulada Victimas-algozes. Quadros da escraviddo, de Joaquim Manoel de Macedo, publicada em 1869, apenas dois anos apés as Cartas de José de Alencar, sio bom exemplo disto. Os contos buscam aterrorizar os senhores ¢ convencé-los, assim, da necessidade da aboligio. Macedo deve ter julgado mais fa convencé-los apelando a seu instinto de autodefesa do que a seu human rismo, ao contririo do que fez nos Estados Unidos, em relagAo aos senhores de 14, Harriet Beecher Stowe, em seu famoso Uncle Tom's Cabin, de 1852. Os contos foram publicados no Rio pela Typ. Americana. Agradego a Flora Sussekind 0 acesso a essa obra. Nao entro na consideragio dos argumentos de natureza racista tanto de abolicionistas como de escravistas. Eles sio fortes em José de Alencar, que fala abertamente em raga superior e em sua missio civilizadora de absorver © civilizar a inferior. Veja, principalmente, a 3# Carta. O lado racista dos argumentos é explorado por AZEVEDO. Onda negra, medo branco: o negro no imagindrio das elites — século XIX. Fitzhugh defende a sociedade escravista como modelo superior de organizagao social. Em tal sociedade, os escravos, que assim foram feitos pela natureza, trocariam a liberdade pelo direito a protecdo do senhor, que age como pai de uma grande familia, incluindo os escravos, sua familia negra. E na escra- vidao, segundo ele, que a moralidade crista, isto €, 0 amor ao préximo, pode melhor exercitar-se, sobretudo a moralidade e a visio de mundo do catolicismo. O préprio capitalismo europeu ja estaria produzindo, segundo ele, um retorno aos valores da escravidao. A miséria gerada pelo mercado ja obrigava os governos a iniciarem politicas de assisténcia social, de proteg’io aos operirios, que nada mais eram do que uma reativagdo da pratica dos senhores de escravos. Invertendo radicalmente a moderna visio do direito natural a liberdade, Fitzhugh propunha, para a grande maioria da populagio, “o direito natural e inaliendvel de ser escrava”, isto é, de ser cuidada e protegida."* Se no era radical a defesa do escravismo no Brasil, mesmo entre os maiores entusiastas da instituigdo, também nao foi radical a defesa da liberdade, mesmo no auge do abolicio- nismo. O texto mais elaborado a favor da aboli¢ duvida O Abolicionismo de Joaquim Nabuco, e: 1883. Ataques mais contundentes do que o dele foram sem duvida feitos por outros, mas nenhum tao desenvolvido, tfo sistematico, tio bem escrito.'? No entanto, assim como José de Alencar reproduzia em boa parte a argumentacao de D. José, Joaquim Nabuco pouco acrescentava ao contetido da argumentagao de José Bonifacio, a quem cita expres: mente. Sente-se apenas, em seu texto, a maior urgéncia de 0 foi sem oem ™ Para extensa anilise da obra de George Fitzhugh, veja GENOVESE. The world the slavebolders made. Os principais textos de Fitzhugh sto Sociology Jor the south, publicado em 1854, ¢ Cannibals all. Or, slaves without masters, Publicado em 1857. NABUCO. 0 abolicionismo. A obra abolicionista de maior folego foi certamente a de Agostinho Marques Perdigio Malheiro, A escravidao africana no Brasil, cuja primeira edigio é de 1866. Obra muito erudita, € de carter mais juridico do que sociolégico ou politico. Textos mais radicais podem ser encontrados em jornalistas como José do Patrocinio, m Serra ¢ outros. Sobre esta “esquerda” do abolicionismo, veja ER. The movement for the abolition of slavery in Rio de Janeiro, 1880-1889. 56 solucao para o problema e a presenca de uma emergente opiniaio publica capaz de sustentar a luta abolicionista pregada por parte da elite politica. Como José Bonifacio, Nabuco reconhece que, no Brasil, o abolicionismo nada deve a religiio, em contraste com o que se deu na Europa e nos Estados Unidos. E implacavel com 0 clero catolico: A desercao, pelo nosso clero, do posto que o Evangelho Ihe marcou, foi a mais vergonhosa possivel: ninguém o viv tomar a parte dos escravos |...] A Igreja catdlica, apesar de seu imenso poderio, em um pais em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipagao. (Nabuco, p.66-67). Nao foi também a filantropia que impulsionou nosso aboli- cionismo. Foi, segundo Nabuco, a razio politica, Em outros termos, foi a razZo nacional de José Bonificio. A razao nacional, isto é, 0 obstéculo intransponivel que a escravidao colocava no caminho da construgao da nagio brasileira, do corpo de cidadaos, tornara-se particularmente forte para parte da elite politica, a Coroa 4 frente, durante a guerra contra 0 Paraguai. Era atroz ironia ter que usar ex-escravos para defender o Pais. Era insuportavel contradigdo ter que usar ex-escravos numa guerra que se fazia em nome do combate A ditadura e 2 opressio. Era, enfim, enorme risco ir & guerra no exterior com a retaguarda ameacada pelo inimigo interno. Tais razdes foram, sem dtivida, de grande peso na decisio do governo de iniciar 0 processo abolicionista.® Em Nabuco, passada ja ha algum tempo a guerra, a razio nacional aparece menos sob 0 aspecto de defesa do que como exigéncia da construgio de uma nagio vidvel, como *® Certamente nao foi coincidéncia que o parceiro de Pedro II na aprovagao da Lei do Ventre Livre tenha sido Rio Branco, um diplomata profundamente envolvido nas questdes do Prata. A imagem de pais eseravista € as zombai de cariter racista feitas contra a tropa bi , ha maioria negra, pela imprensa paraguaia, para quem os brasileiros eram uma macacada ¢ 0 Impe- rador, o Grande Macacao, certamente calaram profundamente no animo do Imperador quando visitou Uruguaiana, em 1866, ¢ no Ainimo dos estadista dele mais préximos, como Pimenta Bueno, autor dos projetos iniciais, € Rio Branco, o encarregado de levar a termo a reforma, Rio Branco con! abertamente o constrangimento. Veja NABUCO. Um estactista do Império, p.570. as a 37 da forma da propria 0 de uma cidadania general como obrevivenc Enquanto houver escravos, argumenta ele, fica diminuido 0 prdprio titulo de cidadaio dos livres. A aboligio, portanto, deve fazer-se no interesse de todo o Pais, no interesse de livres ¢ escravos. A aboligao é condigao necessiria para evitar a dissolugdo social e fundar uma sociedade liberal baseada no trabalho livre, fortalecida em suas energias préprias, menos dependente do Estado. Nabuco nao deixa de referir os argumentos tradicionai: contra a escravidao, quais sejam: 0 desenvolvimento do Direito moderno, tanto Civil como Internacional, a marcha da civilizagao, as necessidades do progresso técnico e da sociedade de mercado em geral. Até mesmo a ecologia, men- cionada por José Bonifacio, é por ele retomada. Mas nao ha como escapar a impressdo de que sobre tudo isso pesa a razdo nacional. Todos os argumentos acabam por se re- ferir aos empecilhos que a escravidao cria a formagao da nacionalidade. O capitulo XV de O Abolicionismo, intitulado “Influéncias Soc e Politicas da ‘avidao", constitui a mais brilhante formulacao produzida no Brasil da idéia da perniciosidade social da escravidao. Sua intuigao mais profunda esta em perceber a natureza da escravidao brasileira comparada a norte-americana. O fato de ser nossa escravidio menos ligada ao preconceito de raca, fato devido 2 mesticagem, tornou-a mais perversa do que a norte-americana, mais flexivel, mais profundamente enraizada. Pois, entre ndés, ao mesmo tempo que todos podiam ter escravos, até mesmo 0 préprio escravo, ao ser libertado, o ex-escravo tornava-se automaticamente cidad’io de pleno direito. Dai que os valores da escravidao invadiam todos os dominios, todas as classes. O senhor € 0 escravo conviviam dentro do cidadao, gerando mestigos politicos, assim como a relagio das ragas produzia os mestigos étnicos. Nos Estados Unido: escravidio exercia seus efeitos abaixo dos limites da libertas romana; entre nés seus efeitos pesavam também dentro e¢ acima da esfera da civitas. A mestigagem politica era a mais grave conseqiiéncia da escravidao, porque nao poderia ser extinta pela simples extingao de sua causa. Desdobrando 0 argumento, Nabuco insiste em outros efeitos da escravidao: o bloqueio do desenvolvimento das classes 58 sociais e de um mercado de trabalho; a hipertrofia do poder do Estado com a conseqiiente hipertrofia do numero de funcio- narios publicos ¢ a criagio do regime do empenho e do patro- nato; a abdicagio geral das fungdes civicas; por fim, como coroamento da obra maléfica, o falseamento do governo repre- sentativo, a transformagao da democracia em pardédia, e da luta politica em combate de sombras.”" Até mesmo em Nabuco, a razio nacional obscurece total- mente os argumentos baseados no valor da liberdade como atributo inseparavel da moderna concepciio do individuo seja na versdo religiosa, seja na versio filos6fica. Na auséncia de informagdes sobre qual seria a visdo da liberdade entre os escravos, cabe concluir que, entre nds, era esta a visao pre- dominante.” AS RAZOES DA RAZAO NACIONAL Nao estou dizendo — esclarega-se para evitar mal-enten- didos — que o problema nacional nao tenha sido relevante na luta pela aboligao em outros paises. Obviamente, ele era menos relevante nos paises metropolitanos, pois tratava-se, 14, de acabar com a escravidao nas coldnias e nao no préprio pais. Quando se iniciou a grande batalha abolicionista, ao final do século XVII, tanto a Inglaterra como a Franca e Portugal j4 haviam extinto o trabalho escravo em seus terri- torios metropolitanos. Mas mesmo nesses paises 0 governo levava em conta interesses nacionais, na medida em que a economia das colénias era parte desses interesses. Nos Estados Unidos, sem divida, o problema nacional foi fundamental. A escravidio ameacava a unidade do Pais. Esta ameaca foi 2! Distingdo entre os escravismos brasileiro ¢ americano, feita em linhas semelhantes as de Nabuco, pode ser encontrada em CARVALHO, Estados Afro-Asidticos, n.1S, p-14-23, Na época da redagio do artigo, escapou-me a lembranga do texto de Nabuco. Este artigo esta incluido nesta coletinea. * Quem talvez mais se tenha aproximado da defesa incondicional da aboligao foi André Rebougas. Veja, especialmente, seu Aboligdo imediata e sem indenizagao. S6 muito recentemente alguns historiadores tém tentado desvendar a visio de liberdade dos escravos. Veja, por exemplo, Sidney Chalhoub, “Visdes esc escravidio: 0s negros ¢ as transagdes de compra e venda’, trabalho apresentado na reuniio da Associagio Brasileira de Estudos Americanos, maio de 1988. 59 Material com direitos autorz ambém, uma das razées politicas da guerra civil. Ameagava, do ponto de vista da populagao branca, a natureza mesma da sociedade. O proprio Lincoln pensava em planos para exportar a populagao negra liberta. Ja muito antes da aboligdo fora fundada a coldnia da Libéria para receber ex-esc tos como elemento perturbador da homogeneidade racial da nova nagio. O que digo é que nesses paises, além da razao nacional, usada pelo governo ou por p a ele ligads correntes de idéias religiosas e filoséficas, ligadas ou nao a movimentos religiosos ¢ politicos, que se baseavam em outros argumentos que nao a razdo nacional e que formavam a vanguarda e a principal forca do abolicionismo — e que eram independentes, sendo contrarias, as posigdes oficiais. Eram movimentos de opiniao publica, movimentos de grupos politicos ou religiosos imbuidos de valores libertirios sem compromissos com a politica do governo. Tais valores pren- diam-se, fundamentalmemte, 2 concepgao moderna do individuo como valor em si, independentemente da sociedade a que pertencesse. Eram os valores do individualismo que vin romper tanto o dominio dos valores comunitarios como o di pratica do despotismo, um e outro sustentados na predomi- nincia do todo sobre a parte, fosse este todo a comunidade, fosse o Leviata. Mesmo a vertente religiosa do abolicionismo sorvia inspii mesma fonte. A interpretagdo do cristia- nismo em diregao libertaria devia-se sem divida, em parte, quebra do monopolio da hierarquia cat6lica sobre a inter- pretagao da Biblia, um dos fruto & quebra da visio medieval da sociedade hierarquizada e vitérias contra 0 absolutismo. Quando os quakers passam a substituir, na interpretagio da Biblia, a hierarquia pela luz interior, eles participam do mesmo movimento que levou os tedricos do liberalismo a defenderem o individuo contra a opressao do Estado absolut » havia S40, s da Reforma. Como se devia Tudo isso esteve ausente no mundo ibérico em geral ¢ brasileiro em particular. Este mundo escapara ao impacto da Reforma e do Iuminismo libertario. A Igreja Cat6lica manteve-se ligada ao Estado absoluto. Por mais que alguns de seus membros tentassem interpretar o cristianismo em sentido libertario, viam-se presos nao s6 4 disciplina da Igreja (os textos tinham 60 de passar pelo crivo da Inquisicdo), como aos interesses do Estado. Dai as pos s ambiguas ou mesmo contraditérias. O maximo a que chegavam era propor idéi vidio que a aproximasse dos valores comunitirios da familia. Era a escravidao crista 4 moda de Sio Paulo. A preo- cupa¢ao em minorar a sorte dos escravos aparecia mesmo na ada da sua’ legislagao do Estado portugués, refletindo, indubitavelmente, © mesmo complexo de valores. Nao havia, em Portugal, grupos religiosos ou correntes de idéias que pudessem escapar a esse complexo e propor alternativas. Ou, se havia, nado tinham condigdes de manifestar-se e de se fazerem ouvidos. O Brasil mantev parte dessa tradicdo. A grande mudang: como vimos, foi o surgimento do problema nacional. As filos6fica e religiosa eram traduzidas em termos politicos. A liberdade, nessa perspectiva, nao era assunto privado, era problema do individuo. Era um problema puiblico, e 9. Ja evidente em José Bonifiicio, es questio da construgao da na tal perspectiva dominou todos os autores brasileiros Yenhuma Ao mais clara do seu predominio do que a dedicatéria do livro de Perdigao Malheiro. E uma dedicatéria emocional 23 ata, sed publica res est.* Vestra res agitur. Libertas non pri Para D. José, seguido por José de Alencar, a salv: Republica era a lei suprema. A afirmagao poderia ter sido feita também por José Bonifacio e Joaquim Nabuco, se inter- pretada no sentido acima referido de que o fim da escravidao era exigido pelos interesses da nagao. A diferenga entre eles estaria, entio, apenas na maneira de ver os interesses da é certamente uma das diferengas. Os interesses da nagao para D. José ¢ Alencar esto muito mais proximos dos interesses de curto prazo do Estado ou dos proprietérios do que para José Bonifacio e Nabuco. A republica de D. José.era muito mais o proprio Estado e a de José de Alencar era uma res privata dos proprietarios. José Bonifacio ¢ Nabuco tinham vis’ mais auténtica de reptblica ao vé-la como a formagaio a médio prazo de uma sociedade liberal socialmente mais homogéne: ® MALHEIRO, A escraviddo africana no Brasil, Tomo |, p.11. 61 Como nao se tratava de questao de principio, de que: ética ou religiosa, nao se fazia, de um lado, a defesa intransigente da escravidao, nem, de outro, da proposta radical de aboligao imediata ¢ sem indenizagao. Tal proposta s6 apareceu nos anos finais, quando a aboligdo estava praticamente feita. Mesmo im, um dos mais radi , Antonio Bento, ainda propunha em 1887 a aboligio dentro de trés anos. is abolicionis A diferenga entre as duas correntes ia, no entanto, um pouico mais longe. A concepeao de hist6ria que as inforn era distinta. Os escra tinham visio m cionista da hi s econdmicos € a demografia conduziam a hist6ria; o Estado deveria intervir 0 menos possivel nesse processo natural2* Nao negavam o progresso, mas viam-no como processo orginico governado por leis proprias cujo sujeito eram as coletividades antes que os individuos. Os abolicionistas, talvez pela verificagado da lentidaio da agao dos fatores econdmicos e demogrificos e pel que se passara em outros paises, insistiam no apressamento do progresso pela acto humana, sobretudo pela agio politica Para eles, a historia podia s do pens mento e da agao humana. Além disto, embora mantendo também a coletividade nacional como sujeito basico do progresso, eles a concebiam de maneira a nao separar o bem-estar do todo do progresso dos individuos. Daf poderem usar como. apoio as idéias que sustentavam o abolicionismo nos paises que tinham passado pelas transformagdes da Reforma, do Iluminismo e do Liberalismo. terialista e evolu- Mas © uso das idéias liberais soava um tanto no vazio. arautos movimento social que Nao havia por tras de sei fosse portador auténtico delas. E nao havia pela simples raz de que nao havia tal movimento no Pais. Os abolicionistas viam o problema do ponto de vista da nagao, que incluia sem 10 Outro exemplo tipico dessa posi¢lo é 0 de Silvio Romero. Admirador confesso de Spencer ¢ de seu evolucionismo © anties io tem postura semelhante a de Alencar. A escravidao é, para ele, problema que no se resolve politicamente. Deve ser tornada inatil por via econdmica ¢ ta também, Proximo de Alen diz ele citando Huxley, “é ponto de vista vencido na escalt etnogrifica”. Ver ROMERO. Revista Brasileira, v.7, p.191-203. O artigo é de critica contundente aos abolicionistas, sobretudo a Joaquim Nabuco. smo, § 62 divida interesses variados, inchisive os dos proprietarios. Seu apelo ao Estado para solucionar a questao se respondia a percep¢io de que assim se apressaria 0 processo, também tinha o sentido de nao perturbar radicalmente a fabrica da sociedade. Daf também que, consumada a aboligao, nada foi feito em beneficio dos ex-escravos. O progresso do individuo era secundirio. Os poucos que quiseram ir mais longe ou se calaram, ou foram calados pelo rolo compressor da Reptiblica que foi entre nds o reino da res privata. (Publicado em Dados - Revista de Ciéncias Sociais, ».31, n.3, (P.287-308, 1988.) REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALENCAR, José de. Ao Imperador. Novas cartas politicas de Erasmo. Rio de Janeiro: Tipografia de Pinheiro, 1867. ANDRADA E SILVA, José Bonificio. Representaga ral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a vatura. 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