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VLSI Vaal ted Daniela Beccaccia Versiani AUTOETNOGRAFIAS: CONCEITOS ALTERNATIVOS EM CONSTRUCAO, Bternas] © 2005 Danicla Gianna Claudia Beccaccia Versiani Product editorial Debora Fleck Isadora Travassos Jorge Viveitos de Casero Macilia Gaecia Valeska de Aguirre Revisio Renata Josey Silva Leonavlo Francisco Soares ‘or-muasL. CATALOENGAO-NAcFONTE SINDICATO NACIONAL Dos EDTTORES DE LIvROS, RJ VERSIANI, Da la Gianna Claudia Beecaecia, 1967~ Auoetnografias:conceits alterativos em canstrusio ! Daniela na Claudia Beceaecia Versian. Rio de fancto : 7Lae3s, 2005, 257p. Inclui bibliografia ISBN 85-7577-223-6 1. Literatura Historia eftiea 2, Anilise do discuso liter 3. Antopologia 4, Eenografia.L Titulo. DD 801.95 CDU 82.09 Viveiros de Castro Editors Luda, | (21) 2540-0130 / 2540-0037 R, Jardim Botinico 674 ah. 417 | editora@7lerascombr Rio de Janeiro RJ cer 22461000] www 7letrs.com-be SUMARIO Apresentagio ~ Arte autoctnogrdfiea (Heidrun Krieger Olinto) ui. 13 introduc ectecteeeseeeaereeemee eee 15 Caneruto 1 SEXTUS DOS DISCURSOS AUTOBIOGRAHICOS IE MEMORIAUSTAS EM ANTONIO CANDIDO E SUVIANO SANTIAGO sssues 35 Caprruto 2 AUTOBIOGRATIAS E ETNOGRAPIAS: DISCUTINDO BSTRATEGIAS ALTERNATIVAS DE LEITURA E PRODUC Cartruto 3 AUTOETNOGRAFIAS: CONCEITOS ALTERNATIVOS EM CONSTRUGAO sss ‘Mapeando contextos disciplinares.. “Autoetnogeafias’ alguns usos ¢ problemas associndos ao rermo.... 99 Key B Warr oo 106 — autoctnografia como mliliidade dd pontos de vita — auntoctnografia como uma “zona de contato” — autoctnografia como superagao de dicotomias David A. Kideckel. . so 4 = autocenografia entre o saber piblica e 0 saber privado ~ autoernografis como nnituo proceso de descabera etnogrfica ~ auttoctnografias como process diseursvos alternatives aos dsenrsos oficiais Birgitsa Svension = biognfiasenire process de sev objeiogto ~ biagrafias entre “discurso de poder” ¢“estatdgias de vesistincia” ~ biografias como diseursos de coergio e subordinagiio ~ autocenografia como a pritica discursioa entre 0 sl Henk Driessen vssenns 140) = eino-antobiografias como textos que ultrapacsam seus interlocutores 5 acontecimentos de uma vida pest — autoctnografias entre processos de consirugio de identidades pesois ecoletivas Debora E. Reed-Danabay, 147 — autocrnografias como escrita de ambigiidades Alexandr Jaffe. eee 158 ~ autoemnografia como “vepresensagiio” do self em contestos de literaturas de minorias = autoctnograpia como género a permear a produsio 0 consumo de escrtas de minorias ~ autoctnografias negaciagdo entre diferentes poltticas de leiura Michael Hlerafeld. = autoctnografia como excrta dos pantdoxos do self = autoetnografia como métado auto-reflecivo ¢ auto-inclusivo do produtor de conhecimento Pnina Moteafi-Haller so — autoctnografia como escrita de deslocamentos centre diferentes posgiestebrieo-politicas = autoemnografia come escrita da refleto entre o pessoal eo teorético ~ antoetnografias e complesidade dos selves Caraline Bretell on sos ~ autoetnografia como escrita entre géneros — autoctnografia entre diferentes vozes narrativas = autoctnografia entre subjetvidade e objesividade = autoctnografia entre observagio ¢ participagio = autoctnografia einterlocugao 169 7 185 Captruto 4 AUGUMAS CONCLUSOES E PERSPECTIVAS EM TORNO DO TERMO “ RUTOETNOGRAFIA” sn nn ‘Autoetnografias: apenas um novo género? Autoernografia como neologismo que procura superar dicotomi Deslocamentos ¢ discursos de construgio de selves. Autoctnografias: contradiscursos ou alternativas discursivas?.. 220 Legitimidade, aurenticidade, auroria e auroridade... lugar do pesquisador, reflexividade, interlocugio e Autoctnografia como método: arte e culeura Referéncias bibliogrdfcas AGRADECIMENTOS ‘Meus agradecimentos 3s professoras Eneida Maria de Soura, Maria Rothier Cardoso, Pina Arnoldi Coco e Cristiane Brasileiro, componentes da banes examinadora que aprovou a cese que deu origem a est livro. Obs pica e estimulante com que conduaieam suas argiigbes. As discusses © a pels letutas arentas, plas inimeras sugest6es, pelo modo pers questionamentos levantados naquela manha produziram ressonancias que ainda perduram em mim. A Marilia e Pina agradego também as contribu es generosas feitas a0 longo de toda a pés-graduagao. Ao antropélogo Valter Sinder, peas preciosas indicagées bibliogréfi- ‘cas que me levaram a0 encontro de novas perspectivas epistemaligicas na antropologia contemporinca, pelo dislogo enriquecedore pela leirura tenta desta versio da tese agora apresentada em liv. ‘Ao antropélogo George Marcus, pela disponibilidade ¢ arengio com, que orientou minhas pesquisas no Departamento de Antropologia da Rice University. ‘Aos professores Eliana Yunes, Julio Diniz, Kal Erik Schollhammer ¢ Renato Cordeiro Gomes, do Programa de Pés-graduagio da PUC-Rio, pelo estimulo a0 dislogo crtieo, curiosoe instigador,& investigaglo, & bus- ca de conhecimento. ‘Aos amigos, colegas e uncionérios do Departamento de Pés-gradua- «gio da PUC Rio. ‘A Pontificia Universidade Carélica do Rio de Jancito e av Departa- mento de Pés-graduagéo em Estudos de Literatura, pela bolsa de isengos 20 CNPa, pelas bolsas 2 mim oncedidas como integrante dos programas de mestrado ¢ doutorado; & Capes e 4 Fundagio Fulbright, pelo ‘mento de minhas pesquisas no Departamento de Antropologia da Rice University como participante do programa para dourorandos com bolsas no exterior 20 Departamento de Antropologia ca Rice University (Hous TX), que me recebeu durante o primeiro semescre de 2001 ‘A Thiago Bell, pelas primeiras tradugoes das intime ‘A Jorge Viveiros de Castro, por acreditar no in possa suscitar. citagbes, se que este Livro Em especial, agradeso a generosidade intelectual, 0 encorajamento €0 profisionalismo, codos temperados com afero, atengo ealegria, que rece- bi de minha otientadora, Heideun Krieger Olinto, a0 longo dos cursos de mestrado e doutorado. Agradego sobretudo sua persisténcia em incentivar- ‘mea percorrer novos eaminhos, ampliando os horizontes de minhas inves- tigagées quando, por ansiedade e temor de nfo dat conta da empreitada, ‘eu ciclicamente manifestava o desejo de dara viagem por encerrada, deli- rmitando ~ e limitando ~ 0 corpus de minha tese muito precocemente, Eu diria que pacientemente minha orientadora me ofereceu todas as condi- {es e oportunidades de eaborar minhas reflexSes a partir de uma perspec- tiva eferivamente construtivista, que ¢ incompativel com o desejo de escre~ ‘ver uma tese de eis para frente, ou seja, das conchisGes pata as hipdteses, 0 ‘que sem dhivida teria sido muito mais Facil, mas também muito mais limitador em cermos de resultados ¢ muito menos instigantee eransforma- dor em rermos pessoais intelectuais, Seus ensinamentos, que foram mui- to além do tema ao qual a tese se dedicou, agora fazem parte do que sou. ‘Aos meus pas, viver com gencrosidade, alegriae dignidade. De onde vim, que de tio bom, para onde quero sempre voltar. Ea vocé, Augusto, por todos e todos os motivos, entte eles, 0s mais Claudio, agradego 0 exemplo diirio do que seja preciosos:o encorajamento, a paciéncia, osléncio. 4 Heidrun, A Augusto, Nide, Claudio, Iris e Mauro, Amanda, Danilo, Renata e Vitor, Cli Lainscel ¢ Teresa Montero Al nonna Oreste conceitosndo morrem, esim definbaom, desintegramse sob presio,tornam- se instes, on devem ser reinevites em novos contextos. (Andreas Huyssen, “The fate of difference: pluralism, politics, and the postmodern”, p. 306}. O que precisamos nao é menos cigncia, mas de uma ciéncia melhor, no de menos raionalidade, mas de uma racionalidade mais elaborada, nao de mir 10s nebuloss, mas de wom esclarecimento que no sjabipartdo, (Siegfried Schmidt, “Do texto a0 sistema literiio”, p. 55). Um contemportneo deve srabalhar com eategorias abrangentese generasas. 0 tempo e os critics posteriores teria a perspective a disposigto para aperfcigad- as eafind-las sem 0 periga de incorrerera em exclusiesinconscientes, tans tides por uma tradigho represion. Gilviano Santiago, “Prosaliteriria atual no Brasil”, p. 31). devemos interpelar todos agueles que ocupam wma pesgto de ensino nas citnciassocaise prcolégica, ou no campo do srabalho social - todos agueles, enfion, cwia proisto consste em se interesar pelo discurso do outro. les se encontram numa enerusilhada politica ¢ mieropolitea fundamental. Ou vito fazer 0 jogo desea reprodusito dé modelos que nde nox permitem criar saidas ‘para os process de singularizagto, ou, ao contririe, vito estar trebalhande para o funcionamento deses procesos na medida de suas posibibdadese dos «agentcia menos que consigam por para fncionay: ko quer dizer que no ht obje- tividade alguna nese compo, ners wna suposta neweralidade wa rlago(.). (Félix Guattari, Micropoltica. Cartografias do deo, p. 29). I | | i | ARTE AUTOETNOGRAFICA Heidrun Krieger Olinto Um dos artigos do belo manifesto Artelatina apresenta-se con ros0 convite & liberagio de sensibilidades, de “Fantasias ansiedacles’, ver que, segundo o seu autor, Silviano Santiago, 0 “blablablé tesrico no & fo bastante” para entendé-a.” Em que pesem as diferengas entre a pritiea artistica co oficio de produgio de conhecimenta, parece-me oportuno es bogar © nexo entre a demanda expressa no manifesto ea intengio do proje- tode Daniela Versa _gestos subjtivos, atos empiricos © opgoes de sua descrigio e teorizagio. que ensuia com stberesabor dificil ravessia entre Sem a tentagio usual de reduzir a complexidade de seus objetos de anslise pelos rivuais da generaliz Neste sentido, Autoctnografias conectosalternatvos em conserugio,ofe- rece uma leitura fascinante da geografa intelectual contemporinea dos eam- pos das ciéncias humanas esociais, avessos a0 fechamento de suas Frontei- ras disciplin liveratura, de cultura e de antropologia, as indagagbes tematizam intercim- es. Centradas sobre possiveis articulagoes entre estudos de bios ¢ cruzamentosalheios 3 hifenizagao comaum que linha de modo con- tiguo e distinto os seguintes termos: auto-etno-grafia, A revisio critica de paradigmas clissicos, legitimados pela marca da discriminagio que respeita 0s limites dos teritrios particulares da eonscigncia de si, da consciéncia do outro e da forma de sua escrita, culmina assim no questionamento des- tora: atavetnognafis, Nesta radu {20 0 mito da integridade do sefféafrontado pela cacofonin de nuiiplas substiculdo pelo crits, de tes pela formula compésita radical da voues sem sintese; a descrigio do outro como objeto dislogo intermindvel e tenso entre subjetividades distintase a modo geral, vista como reprodugio transparente de realidadesexteriores, & ‘questionada a favor de seu estaruto performtico de evento. pensamento construtivist, nio-dualisa, pesmeia todos os pressu- postosepistemoligicos que dio contorno is indagagées,apontando para © "SANTIAGO, Villa (orgs). Valores: Art 2002, pp. 57-60 iano. “Arelatina (Manifesto). In; Reinaldo Marques eLikia Helena merci, polities. Belo Horizonte: Favors URMGI Aral 13 olhar participativo do analista, ele mesmo inserido em contextos cuncretos Seguinda a perspeciva do prSprio Andreas Huyssen, no sentido de fier anlises conextalizadss pontusis,é postive aflemar que a tansferéncia do corpo teica ps- ‘eacuturalsa par ocontexo brs partir de una interpreta bastante poltzada econtexcuaizada de seus comets presi feos, xoconcetio do que ocorre nos EUA, a posts, ie vier some am reflex extea que remones i antropofayia osvtaliana, {Ck ensio de Eneida Mara de Souza, *Sujioe dental enlewa” In: Tito erie. Belo HorizontelRio de Janeito: UFMG/UER}, 1993, De Silvano Santiago cf. “O ente-agat Ao dscuro latin americana” In: Una fiero ns ripices Sao Paulo: Prspeeiva, 1978, ‘co ens "Denocratizagso no Brasil = 1979-1981. (Cultura versus Arte), In: ANTELO, Ral (ong). Desin date Arcot da elt. FleranSpolis: Leas Contemporiness€ [Algaliz, 1998, sober a nota n* 8, Volar dseuir com mais profundiade ses dois tenstios de Saniago oe captul 4e | dest live, eespectivaments 32 » Segundo Sarya Mont, identidades cultrasformam corpos de conhecimento distncos que, jusamente por esaren em competgio, tua nurs espécie de cooperagi pitémica, Em outs plavras, sendo capes de transforma sus pedis valores «erent eetando ‘om constant interaio amas com as outs, idenridades cultura suas pestis calarss‘e ‘moras podem ser compreenddas como “perspecivstericas em competiis’ (Mobsney, 1997: 242) ~e orenmo teoria.aqu, nfo é empregado mecforicament, Tis perspectvas tedricasFormariam, em eonjanto, uma ree de eanhectnentos informagies gue colabo- ‘am pars oeneiquesimente do conhecimento mora. Duss tees sstentam 0 poncode vista dle Mobnry: 1) “cucutas! preci ser vistas como campos de indagagio moral”; 2) “mulvculuralismo deveria set definida como ums forma de cooperasio epistémica” (ohanry, 1997: 240). “Batre os princpais fundamentos desta tors exo a eoriascognitvises desenvalvids pelos chilenos Humberto Maturana ¢ Francisco Vatls, a erie epstrmolgicas de Heine von Foerster ¢ Ernest von Glaerafeld ea corn socioldgiess de Niklas Laan, + Fmbora em in sagens Sigil Schmidt airme gue ma cigacia da liertuca empires otermo “empties” ni dew ser compreenid no sentido positivist de empita, parc da sugeseto feta por alguns de seus cxscos sobre a necestidade de efiizae os ressupostoeconstutvis desta teoria em sua propria denominagio Ciacia d ters ‘consirutivia, a9 menos no context brasil, me parce ver una denominagso ue et Fis confines e mal-entendides por ves asociados a esta euizagio. Pats uma disussio tnaisaprofundada sobre exs questo, confer de minha autora, o exo "Ciena da Lite- ‘aura Empirica no Brasil”, Anais do XI Congreso da Asiocisio Latino-ameriana de Escudos Germanisins (ALEG). FFLCH = USP, 2003. Nesta comunicago apesenel ure breve mapeamenio da crculagso no Brasil desta eoria, mais apecifcamente en univetsi- dades do Rio de Jairo (PUC e UFR)),procurande avaliaralgune motivas que imagino poss extarasocidos A su ands limaitada repo no Bras ene cles resistencia sgetada pelos cmos “eignis”e“empities" por emeterem, em coarexto brasileiro, aun Campo semacico geralmenre associado ao positivism, assciagdo que é contudo audamence negada por seus teéricos, os quais, exatamente por assum conscrucivismo fade, afatan-se de qualquer perspeciv positivist 33 | Capfruto 1 STATUS DOS DISCURSOS AUTOBIOGRAFICOS E MEMORIALISTAS EM ANTONIO CANDIDO E SILVIANO SANTIAGO "A nacrativa aucobiogrifica & 0 elemento que catalisa uma série de questGes rebricas gerais que s6 podem ser colocadas ‘corretamente por seu intermeédio. Silviano Santiago, "Prost literdvia atual no Bras | | | | | | | | SE ENTENDERMOS AUTOMOGRAFIAS, BIOGRAFIAS E MEMORIAS como discursos de construgio de selves que, quando lidos, se transformam em comunica- dos entre suieitos participantes de um circuito comunicativo (Schmice, 1989a, 1989b, 1996), exemplares desse género de escrita podem apresen- tar-se como importantes campos de investigagio e discussio de modos de percepsio dos processos de construcio de subjetividades assunidos, cons- cientemente ou no, a partir das molduras sécio-tedrieas € culturais nto apenas de seus produtores, mas também de seus divulgadores, leirores co- imuns ¢ leitores especializados. Com isto quero dizer que desse citcuito comunicativo ¢ impossivel dissociar, além das subjetividades e das moldu- rs sécio-tedricas ¢ culturais dos autores de discursos de consttugio de selves ~o que implica a retomada, em termos nao-idealizados, nio-metafisicos, ¢ sim histérieos, das nogées de “sujito” e de “autor” — também as subjetivi- dades e molduras sécio-te6ricase cultura de seus eventuais leitotes, sobre tudo 0s leitores “especializados” que, por sua vez, produaizio textos de cr- ticaliteriria que ampliarSo ainda mais esse ci reuto comunicativ. Chego assim ao cema sobre o qual gostaia de me dedicat neste capi- tulo, a andlise de algumas reflexes sobre discursos autobiogrificas € ‘memorialistas elaboradas por dois crticos literitios: Antonio Candido € Silviano Santiago. Ainda que ambos, como procurarei destacar,conside- rem produtiva a dissolugio das fronteiras entre discurso ficcional e discur- s0 reerencial como um modo de ampliar as possbilidades discursivas dos génetos autobiogrifico © memorialista, potencializando suas respectivas estratégias de leitura, eainda que busquem ambos enfatizat a relagio entre subjerividades e contextos, ¢ entteinclivieune «« fo proc: learas, minha compara 4 apontar algumas diferengassignifcativas entre suas contt- buigées, diferengas que podem ser relacionadas com distintos pressupos- {05, mais ou menos explicitados por eles. Pressupostos que merecem ser 37 analisidos por aqueles que hoje se dedicam a0 estudo dos discursos de construgio de selves. ‘Embora cu esta tangencialmente buscando contextualizar mews pro- pris pressuposts redricorritics em relagio a discusGes anteriores €2¥a- liar quis dentreas perspectives apresentadas por Antonio Candido eSilviano Santiago continuam a set produtivas hoje, gostaria de manter presente que fm suas reflexdes ambos responderam — desnecessirio enfatizar ue mult ‘bem -—a questionamentos cizcunscritos a contextos socioculturais ¢histéri- cos expectficos, ificilmente compariveis a0 momento atual, o que deveria cm principio desencorajar qualquer interpretagio deste breve estuco com- parativo como renativa de estabelecer uma linha evolutiva entre os dois De fato, a comparagio entre alguns dos posicionamentos de Antonio Candido ¢ Silviano Santiago diance de discursos de construgio de selver pretend ser principalmente um mapearnento parcial dos pressupostos > ticos a partir dos quais desenvolveram suas reflexses. Através da avaiagio dos diferentes crtérios adotados pelos dois pensadores na operagio de in- ‘lusto de escritas autobiogréfieas e memorialistas entre seus objetos de ané- lisee do starus que cada um deles thes atribui, meu objetivo expecifico serd destacar~ para além da reiteragio em ambos da importincia da inclusio da fiecionalidade como elemento que nfo descaracterirae, de fato, porencializa estes gfneros ~ a8 diferentes implicagées politicas vinculadas « uma pers: pectva tebrico-critica que ve a paticularidade dos discutsos de construgdo de selves como caminho para discussio de quest6es universais (Candido), ‘ea uma perspectiva terico-critica que enfatiza questoesligadas ao cema da diversidade cultural, que deseja se aproximar de alguns pressupostos da antropologia e vé nestesdiscursos um. campo propicio ao exericio de uma polcca das diferengas, politica esta quesedesenvolve no cotidiano Santiago). Por fim, as quest&es levantadas principalmente por Silviano Santiago sobre 0 papel do intelectual no contexto sociocultural ¢ politico levam a tum questionamento sobre qual seria uma postura produtiva a ser adorada hhoje por pesquisadores da cultura interessados em lidar com discursos de consteugio de ele. Em “Poesia e ficgio na autobiografis’,! Antonio Candido dé inicio a tum process, legitimado também pela sua importancia enquamto erttco, de inclusio na histéria literria brasileira de um género sobre o qual até enti recaia a qualificagio de “menor”. Contudo, seria um erro supor que 38 as conttibuigdes de Candido as reflexdes em toro das autobiografias ~ &, como veremos, também das memérias ~ se exgotam neste gesto inclusivo. Embora associe o melhor do género autobiogrifico a um contetido univer- salista, Antonio Candido amplia as possibilidades deste género ao também inclu, entre suas caracteristicas, elementos da fiegio eda poesia, como podemos verficar no pardigrafo que di inicio a0 ensaio: [Nesta palestea desejo comentar certs livros recentes produrides por escrito res mincros, que podem sr clasificados deautobiografia podticas ficionais, ra medida em que, mesmo quando nfo aeescentam elementos imaginirios i realidade, apresentam-na no todo ou em parte como se fosse produto da Jmaginagao, graga a recursos expressions priprios da ict eda poesia, de mae rita a efewuar uma ateragio no sou objeto especifico. Além disso a palestra visa a sugerirque estes tapas inprimens sim eunbo de acentuada universalidade A matévia nara a partir de alg to contingentee particular conc & prin« cpio a vida de cada tom (Candido, 1986: 51) (rifos mew). Serio portanto duas as qualidades enfatizadas por Candido como definidoras do melhor do género autobiogréfico: a universalidade, atingids através do particular e sua nfo redugio a0 puramente referencal Fiel tese sust ntada em Formuapo da lirettura brasileira, Antonio Candido associa o inicio do género autobiogrifico no Brasil ao lugar onde teve inicio a propria produsio literiria nacional, ou sej, nas Minas Gerais do século XVIII. Assim, as obras que estario sob o faco de sua andlise ~ Boisempo, de Catlos Drummond de Andrade, A idade do serote, de Murilo Mendes, e Bati de Ossos, de Pedro Nava ~ sio apresentadas como detento- ras de caracteristicas, tidas como opostas, que remontariam 8s produgies literias do arcadismo: universalidade e particulatismo, este tltimo decor- rente do gosto mineiro pela eserita em primeira pessox: Os vos em questio foram publics entee 1968 ¢ 1973 esi devios a Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Pro Nava. Ante ce os, bord lembro dua Greunstincss qe podem sri para jstilos30 pon- i Newscpopon ag oft de pedo ict r gid em Mis, no ateulo XVII, com um acntuado cunho de wniverslidade; eo Fo dos thins pina itravra na primeir pron, parculae a atabio- tralia, ou sg algo& primeira it emmentementeparticularzadore por fanco, spate & outa tendéncia (Candido, 1986: 51) (rif men). 39 ‘Atelagio entre particular universal é percebida por Antonio Candido a partir de uma fensio coerente com 0 jogo dialético, no qual o universal é «0 termo prvilegiado da diade, Esta tensio entte universal e particulan, com privilégio do primeiro tetmo, confirma-se nos elementos que valorizs, por cexemplo, nos periodos do Bueroco, Neoclasismo ¢ Romantismo. Barroco ‘c Neoclassicismo sfo apresentados por Candido como o “ponto de partida decisivo para a cultura de todo 0 Pais" (Candido: 52), por terem estabele- cido uma “opsio universalizante traduzida na linguagem civilizada do Oci- lente, em terra semibarbara, como era o pals daguele tempo na quase fora lidade” (Candido: 52). Por sua ver, o Romantismo € apresentado como tendo cumprido a fungio de nos colocar no caminho dos valores univer- sais, ainda que para tanto tenha “requerido de preferéncia um mengulho profundo nas particularidades do picoresco ¢ da cor local” {A partie dos romantics ¢ « bem dizer até nosso dias, ese fato fr opia tuniveraliante foi encarado feqicnterente como desvi do splrto nacio~ tal, camo atrso no processo de auto-identificagio, que era requerido de prefeneia um mergulho profundo nas particularidades do pitoresco © da {or local. Mas na verdade ele representava.aincorporago das norma cuss, necessirias para a nossa configuragio como povo. Decisive, no co, nio eta 6 fro em si do arifcio, que pertence a toda arte, mas 0 vinculo que ee Ctabelocia em rlagio is culturas-matrizes. Do mesmo modo atuou, noutto plano a vitéria da lingua portuguesa sobre a lingua gers, nos lugares em que fsta predominava, Se no fosse assim nao seramos © que somos (Candide, 1986: 52). Nesse sentido, além de ser compreendido como movimento a sear 0 processo de colonizagio pela consolidagio da lingua da “culeura-matria” portuguesa (numa maternidade que afinal s6 pode ser estabelecids « posterior, diante do flho que sobreviveu), 0 particularismo do romancis- ‘mo igualmente valorizado por servie de meio para se atingiro valor uni- versal das normas cultas. Neste jogo dialetico entre local e universal, transitério ¢ permanente, particular e geral, a sintese€ alcangada com Machado de Assis: ‘A essa luz literatura dos dtcades ganha o seu pleno significado histérico de ttaduug daguele local naguele universal, que permiiria labora berm infla- {ode pitotesco e partcularamo, promorida dla pouco pela moda romin. fica, nun movimento dialtico oportuno, Foi sobretuclo por abra do eixo 40 uuniversilizance dos clssicos (no caso brasileiro, ligado de maneira decsiva civilzagio urbana de Minas) que se desenvolveu em condigdes favors dlisléien da nossa literacura no eorter do decisivo séeulo XIX. Quando ela stingiv wm ponco de maturidade, com Machado de Assis, foi passive ver que local eo universal otrinsitrio eo permanente, o particular eo geal estavarn dvidamenterecidos na sua came, como nade qualquer literatura que valet sma coisa (Candido, 1986: 52) Ao apresentar Marla de Dircew ~ “ama das obras mais importantes no processo de naturalizagio dos valores cultos", como uma “espécie de autobiografia” (p. 52), Candido estabelece contudo uma hierarquia encte as caracteristicas atribuiveis as autobiografias. O “Fccional igado ao real” & «© poético surgem visivelmente dependentes de uma condigio primeira ~a universalidade (ra, no exquegamos que ums das obras mais importantes no processo de naturalizagio dos valores cultos no Brasil se apesenta de certo modo como confissio em verso (oo importa se imaginiria ou fal). O fato de ter havido esa spécie de autobiogria de ina sittagio amoross em contexto 0 Uni- ‘eral quando foi odo Arcadismo, sobretdo en seus aspectosneo-cissicos, permite colocar sob a sua Ggidea pesquisa, no apenas do icin lgado 20 teal, mas universal através do partic, tomaando como exmploo pata porescléncia, que a narrative dpa vids (Cid, 1986: 52-53). Nessa passagem parece caro que, embora incorporando os elementos postico eficeiona as, 0 tie tétio privlegindo por Ant6nio Candido é sempre aquele da universalidade, ainda que ela se dé através do particular; ou seja, as obras de cunho auto- como caracterfsticasatribuiveis as aurobiogr biogrifico de Drummond, Murilo ¢ Nava que analisard seguir sio por cle reconhecidas por apresentarem aspectos universas, eno apenas posticos¢ ficcionais. “Tendo inserido o género autobiogrifico no contexto geral de forma- so da literatura brasileira e demonstrado a adequagio de seus objetos & dialética entre universal ¢ particular, Antonio Candido passa i anilise de Boitempo e Menino antigo, de Carlos Drummond de Andrade, A idade do serrote, de Murilo Mendes, e Bari de Onn, le Ped Nava, apontando nes- tas obras um substrato comum que, a despeito das diferentes gradagies centre poesia e prosa apresentadas em cada uma delas (Candido, 1986: 54), as constitui como um espago discursive no qual se sobrepdem, a um 38 4 tempo, recordagio ¢ invengio, documento da meméria ¢ obra de criagio, iva entre estas duplas permitindo uma "dupla leitura” que no € a altern ccaracteristicas ~ “documento da meméria” ou “obra criativa” ~ mas é sim a propria somatéria das duss: (.) apesie das diferengas, cles tim um substrato comum, que permite [é-Los reversivelmente como recardagio ow como invengio, como documento da ‘meméria ou como obra criativa, nunsa espécie de dupla leitura, ou leituna de cdupla entenl, ena forg todavia, proven de ser ela mest, no alternativa (Candido: 1987: 54) (gifo meu). Cabe aqui um paréntese para melhor explicitar a distingdo que Anto- nio Candido faz entre diferentes tipos de autobiografias,distingio fundada sobre uma maior ou menor apeoximasio do texto memorialsta: autobio- sgrafias estritamente individuais e parcicularistas, nas quais “o dado pessoal pode se dissolver na vaidade, a mais particularizadora das forgas que atwam, ean nés", cujo exemplo é Minha formasao, de Joaquim Nabuco; e autobio- srafias nas quais o et se insere no coletivo e no social, ou seja, autobiogra- ador”,cujo exemplo é Minhas recordagies, de Frat fias de “cunho genera cisco de Paula Ferreira de Resende, segundo Candido, “e melhor livro brie sileiro de memérias do século XIX", no qual o auror consegue “fuer viver fo seu tempo ¢o seu meio, gragas a0 relato da sua vida”. Este tipo de auro- biogralia — cujo modelo ¢ classifieado por Candido como um livro de me- mérias~é aquele no qual o escritor, “inserindo 0 eu no mundo”, éeapaz de js universais nas manifestagdes mais particulates”, “mostrar os aspectos 1 Ou sj, podemos dizer que tipo de aucobiogratia priviegiado por Candide ¢ exatamente aquele no qual o autor, partindo do eu, ranscende o particu- lar para chegar ao universal (Candido, 1987: 53) Eceste tipo especial de aurobiografia —ou esse “intuito autobiogrifico” (Candido, 1987: 55) ~ que Candido reconhece em Boitempo « Menino ‘antigo, de Carlos Drummond de Andrade, obras nas quais “a experiéncia pessoal se confunde com a observagio do mundo’, ¢ransformando-sc, por isso mesmo, em “heterobiografia, a histéria simulkinea dos outros e da sociedade” (Candido, 1987: 56). Para Candido, o sujeito-narrador destas dduas obras de Drummond consegue, por meio da objetividade e do afista~ rento, eeanscender ao fato particular ¢ a si mesmo, passando a focalizar a vida, a familia, a cidade, a culeura: 42 eee eee mal (a) A impressfo & de que o poeta incluideliberadamente a si mesmo na sama do mundo como parte do espeticulo, vendo-se de fora para dentro. Dir individualismo extremado, «que a tonalidade dos ilkimos liveos ¢ frato de uma abdicagao do favor de uma objetividede que encara serena mente 0 en como pega do mundo. Por iss, embora guandem o sabor do pitoresco provincianoe remote, Baitempae, depois, Menino antigo denotamn tum movimento de transcode o fir particular, na media em que o Narrador poético opera um dupe afiszamento do seu eu presente: primeiro, como adul- to que focaliza o passado da sua vida, da sua familia, da sua cidade, da sua cultura, vendo-os como se fos objeto de cera mado remota, for dele e- sgundo, como adulto que vé esse passa w essa vid nde coma expres des ‘mas daguil gue forma aconselaio db mneo, de que ee fs parte (Candido, 1987: 56) (rifes mews) Portanto ¢ pela “objetividade” e pelo “duplo afistamento”, ou distan- ciamento, que Candido véa possibilidade de superagso do individualis extremado e do patticularismo, de modo que, se “experiéneia privads pitoresca, ¢ também exemplar da “mineitidade’: ‘A cxperigneia pessoal se confunde com a observagio do mundo ea autobio- srafia setorna heterobiogafi, histiriasimultnea dos outios eda sociedades sem sacrificaro cunho individual, itro de tla, Natradar poctico di exis ‘cia a0 mundo de Minas no comego do século (Candide, 1987: 56). Neste sentido, a nogio de sujeito operacionalizada por Antonio Candido na elaboragio de sua anise de eseritos autobiogrifices é aquela de um sujeito que abriga dentro de si aspectos universais, anda que a ex- pressio desse denominador comum (por exemplo, a “mineiridade”) passe pelo viés da experigncia particular A passagem do particular para o geral ocorte pela insergio do eu no ‘mundo, ou seja, do “eu como pega do mundo”. mas também pelo afasta- mento que 0 eu, através da observagio distanciada, consegue eriar em rela 0 a0 mundo, E contudo no inicio de sua anilise da obra de Pedro Nava que Anto- niio Candido faz, 20 justificar a presenga do autor de Bati de oss ern seu censaio, o gesto definitive de inclusio do género aucobiogeifico (de eunho memorialist), em nosso cinone: Antes deabordar oestudo de sua obra conviria lembrar que, se estamos habi- turdos a tratar Drummond e Murilo na categoria dos maioreseseritores, a 8 presengaentte es de Pedro Nava pode expancar alguns, porque sa revelae Frog recente eas pana io se bubitnann a acct asa anne 0 Iednti que un ler de mca pss ter alas grande obra liters ‘Gin jstamente porque estou convencida dedeo primi monica de que a sin om sea, de que Pera aoa € um do gvandesescrivoresbnasieivos conten pores, to bese em stil na devia compari (Candide, 1987: 61) (qifo mews) Cicia seja dispensivel destacar que, neste pargrafo, nfo apens 0 au tor Pedro Nava, mas junto dele o género de sua predilegio, o memorialista, ‘sho inelufdos no cinone pelo gesto autorizado ~ “justamente porque estou convencido desde o primeiro momento de que é assim” ~ de um dos mais consagrados criticos brasleiros, ‘Nesse mesmo parigrafo, ama vez mais a autobiografiaé aproximada dameméria, ou do que Candido anteriormente chamara de “heterabiogrs- fi" e pouco adiantechamari de “memria dos outros” (Canclido, 1987: 60: [Nos sus dois livros [Bai de Osos Bali caine, a amtobiografi deli pars a biografia, que por sua ver. tem aberturas para a hist6ria de grupo, da qual merge em plano mais largo a visio da sociedade, traduaida finalmente numa testa visio do mundo (Candido, 1996: 61) seguida, cetera a importincia dos recursos flecionais para que a ‘eserita possa ter esse aleance coletivo: © motivo dessa transfiguragio do dado besico & sem diivida o tratamenco nitidamente fccional, que di ares de invengo 3 realidade, transpondo pars Ii eles mesmoso detthe © contingent o individual eo partials (Cncido, 1986: 61) Antonio Candido aponta ~ como tinico ~ 0 ony poems Nateador capaz de penetrar um passado que pode ser partihado com seu Jeicor: aquele de “apelar para a imaginagio", recorrendo & efabulagio ¢ & Forma romance: Confido no nie das mem, coma Yona os de preender Spt hse oto abd ei do ae zamblette nosso bits eno en uo ni de repent spl para maging Dssemod, sob 44 Bari de Ovo, 0 ato adquire um cunho de efabulagio ¢ o leitor 0 reeebe ‘canio matétia de romance (Candido, 1986: 61) Assim, se os ctitérios adotados por Antonio Candido para a inchusio dos discursos autobiogrificos/memorialistas entre seus objetos de anise so em certo sentido restrtivos, por estarem limitados iquelas produgées que supostamente apresentem caraetersticas universas, secundariamente ampliam as possbilidades discursivas aribuiveis a0 género a0 inclu entre suas catacteristicas também os recursos proprias da fico e da poesia. Nes- se sentido, mais do que na relagio ~ de oposigio ~ que Candido estabelece centre universal e particular, condigio primeira por ele estabelecida para definit o melhor do género, « producividade de seu pensamento a meu ver cstiligada exaramente inclusio da fiecionalidade como elemento que nio descaracteriza 0 género aucobiogrifico ¢ que, permite "tansligae ragio do dado bisico”, através do apelo “A imaginagio”, em uma narrativa ‘capaa de estabelecer uma relagfo com “a meméria dos outros" (Candido, 1986: 61). ‘Ao desvincular as narrativas utobiogeifieas de urn imttador esatuto de referencialidade, Candido amplia 0 que pode doravante see entendido como autobiografa, potencializando um génerolieririo desd siderado menor e alterando significativamente os pressupostos que sustet- tavam esta afirmativa. Quanto a0 argumento com que valida as nartativas “da propria vida" (Candido, 1986: 53) ~ sua suposta universalidade -, em tempos em que hé algum consenso em torno da necessidade de assumit- mos perspectivas multiculturais —entendido aqui o multiculcuralismo como processo que busca cornar visivel a diversidade e no como pluralizagio de fandamentalismos ~ penso que tenha perdido sua forga, Isto pode ser per: cebido na prépria kctura que Antonio Candido fz. de Murilo Mendes, 0 qual se refere ~ com expressio emprestada de Manuel Bandeira ~ como o poeta “conciliador de contririos’. Vendo nas mesclas de vocabulos estran- geiros adaptados a0 poreugués um movimento de “superagio de fronteiras” cm regio & generalizagio ¢ 20 universal, Antonio Candido afiema: mprecon- Esse efnsito entre dus linguas, a0 mesmo tempo natural einsolito, simboll za a atitude de Murilo, eneralizando por meio da superagia de fronteieas, usando 0 excepeional como se fosse corriqueto, no recorrendo as tablets prudentes do grifo, da aspa, da destaque de citacio ~ mas fundinde os eon- 5 tvs eunifirmizande na univeatidade da linguagem posi os pariula- tes de cada lingua” (Candido, 1986: 60) (fo me ‘Assim, onde poderia vera explicitagio de um sujeito complexo ¢sin- gular, Antonio Candid v2, em eoeréncia com seus pressupostos ceca” siticos, a prin sites, afasfo das conttirios, a centaiva de uniformiza- ade da inguagem poctiea, cas diferentes iden- através da “universal “ficagGes culeurais (Maffesoli, 1997) proposcionadas pelo insta do su- jeto-autorente diferentes univers Tingistics ¢ cultura em sara, de sua singularidade (Guatea, 1980) “Poesia e ficggo na autobiografia’, texto Fundamental sobre o género aucobiogrfico e memorialista no context da critica brasileira, tazosee- nentos de wm pensador formado por uma perspectiva histérico-sociolOgt a eujos pressupostos sfo tipicamente modernists eluministas, Dstintes ‘Go os pressupostos de Siviano Sanciago, que se insere na diseussioa parte dle um porspectivateéico-critca de abalo de tas pressupostos. Em “Vale quanco pes’, ensaio de 1978, Silviano Santiago apresents- va alguns dados sobre o contexto brasileiro de produsio, cireulago ¢ do objto-livro em fins da década de 1970: iragens com media de tues mil exemplates por edigfo, em um pais de 110 milles de habitances cxemplares de boa vendagem, com quito ox cinco edges no deeatet de Gquinze anos, atingindo, numa projesoorimist, a casa dos 50 a 60 mil leitores (Santiago, 1982: 25). (Os dados por si sé eram de ato alarmantes, no fsse ours realidad aque Silvano Santiago nos apontava a lango de sua andlise do period: ea minima’, a um citcuito irculagio do objero-ivro resumia-se a uma * testrite no qual escttor,leitor comum e eritico pertenciam todos mesma Gjasse social”, com pouicas variagBes de gosto, invariavelmente afinado com uum "cosmopoliismo cultural burgués". Circuito que abrigia um letor “pouco xendfobo", mais atento & prodagdesestrangelras que nacional con busea de qualidade lterérasligadas «un “universlismo burgués's cima critica literisia que, oseilando entre as dss perspectivas redricas do- tminantes no periodo ~ estudos de fontese influéncias ou 0 desvelamenso dls nose dependéncia cultural ~ nfo conseguia “apreender a qualidade ds fico brasileira ems"; eum autor que, abendo-se amarrado aos “hibess austeros” do seu leitor, produzia eonsciente de que qualquer desvio as ex- 46 pectativas criacas neste estreito horizonte literirio poderia significa a reji- Gio de seu livro. Este tltimo dado, se de um lado era um aspecto positivo, pois trazia uma certa difieuldade para o livso de mé qualidade, de outro, apontava Santiago, deixava pouco espago para a obra experimental, para livro um pouco estranho”, que desagradasse a0 "gosto refinado, cosmopo- lica e auco-suficiente dos Juppy few” (Santiago, 1982: 25-27). Este era 0 quadto apresentado por Silviano Santiago do final da déea- da de 1970. Um contexco no qual o piiblico de fig res, 05 leitores comuns, professores ealtunos univers auto os ~ era "sofisticado ¢ conservador, petulante ¢ cosmopolits, além de apreciador das narrativas ccurtas uma vez que, habitando em sua maior as grandes metcépoles, jt sabia que tempo ¢ dinheiro. Um pablico pertencente basicamente 8 “classe sédia’, denteo da qual circulava considerava um “objeto de casse cxitico, no qual o discurso ficcional reproduzia © “discurso de uma chasse social dominance” da qual autores, leitores livro que, em tal contexto, Santiago n suma: um contexto pouco demo- icosfaziam parte, a0 inves de refletir sobre as “aspiragBes multifacetadas e contraditorias da populagio em geral" (Santiago, 1982: 27-28). Para Silviano Santiago, somence através da incluso de um elemento exdgeno seria possivel alterar este circulo autofigico € endégeno, numa cestratégia que, a0 invés de recorrer i nogio de esctiror como porta-vo2, apontava para a necessidade de abrir © circuio literdrio para win “novo & diferente leitor’, que requisitasse do romancista “uma temvtica e uma p tua diferentes” e, por sua vez, ciasse um novo circulo, mais aberto € mocritico, do qual surgiria também um “novo ¢ diferente zomancista’, aque pudesse “propor teflexdes a camadas socias diferentes”, Para que isto pudesse ocorrer, afirmava Silviano Santiago em 19778, era preciso antes que ase individuo pudesse “se agar & condigio de letor ou & de romancist Gantiago, 1982: 29) Em um pais voltas com sérios problemas de alfabetizagio, esta ne~ cessdadesurgia como dilema euja solugio, segundo Silviano Santiago, Fora bbuseada, nas décadas de 1930 ¢ 1960, em uit tipo de “escrta iecional populist” © que agora, na década de 19/0, era buscada na opgio pela “denincia socal” contida na poesia de Thiago de Melo eno teatro de Chico Buarque e Gianftancesco Guarnieri, Contudo.afirmava S nntiago, estas ten= a7 tacivas continuavam a circular dentro do mesmo “vicuo ideologico "(San- tiago, 1982: 29). m contraponto as centativas dos textos populistas, Silviano Santiago ros modernist: via nos romances brasil dle macizes memorialistas um p imeiro movimento em diregSo a uma “postura ideolégica mais avangad (Santiago, 1982: 30): [Nos nossos melhores romancistas do Modernismo, o texto da lembrangaa menta o texto de cgio, « memériaafeiva da infincia © de adolescéncia sasteta o fingimento littiio indicando a importineia que a marativa da vida do esrtar, ede seus Farilieeseconcidados, rer no proceso decom- precio dastransformagiessfrdas pela classe dominante no Brasil napas- sagem do Segundo Reinado para a Repsblies eda Primeira para a Segunda Repiblcs. Talimportincia advém do fatode que de—o eserior ouintel tual, ao sentido amplo~ parte eonstituiva deste poder, na medida em que su sr est enrizado em uma das ‘grandes falas’ rasleiras (Sensiag, 198231), ‘Assim, embora reconhecesse que a produgio modemista havia per- ‘manecido dentro do fechado circuito apresentado, um circuito no qual uma obra precisava responder As expectativas moderns ¢ universalistas de Ieicores com 0s quais 0s autores compartilhavam interesses sécio-politicos, Silviano Santiago via a fieso memorialista como um caminho para escri- tore, leitores e exticas, de mesma origem sociocultural, "melhor saber de si proprios, melhor conhecer sua condigéo social, melhor apreender sua Jmportanciae inoperincia dentro da sociedade brasileira” (Santiago, 1982: 30-31). Contudo, refleta Silviano Santiago, 0 discurso memorialista mo- demnista era também arma de dois gumes: se de um lado servira para auto-reflexio e tentativa de ruptura com as tradigdes, de outto, a0 1 mar seu lugar de dominago, rornara-se conservador. Para Santiago, a figu- 1a do “personagem-intelectual” presente em grande parte dos romances ‘modernistas ~ cujas reminiscéncias oscilam “entre Proust e Marx” (Santia- go, 1982: 32) ~, atua muitas vezes como elemento a enfatizar essa ambi- gilidade ideologica. Santiago credita exatamente a Antonio Candilo a percepeao mais aguda da importante fungio que os discursos memorialistas moderistas desempenharam na literatura brasileira, alertando para o rsco de tal pro- lo discurso de classe” (Santia- dugio “redurir-se a um tinico ¢ indiferen 48 0, 1982: 34). E também a partir do pensamento de Antonio Candido que Silviano Si ago Fard uma importante inferéncia para suas préprias refle- des acerca da necessidade de ampliagio daquele efeculo restriso a uma na década de 1970: a ne- para “precipitara reflexio critico-burguesa’, reiterando 0 convite feito anteriormente por Candido & Xinica “classe” no qual ciculava o “objeto liveo” cessidade da “acetagio das regras das memérin propria critica liteniria de voltar a atengSo sobre géncros memorialista ¢ autobiogrifico como objetos propicios anslise de questdes sécio-politicas em contexto brasileiro Parece ter sido Antonio Candido quem anotou com maior scuidade consis- téncia a imporcincia dessa vertente no processo de maoridade da literatura brasileira. Possivelmente sf oabandono por completa da miseara dba tia nas etiqueras"romance’ «personage ea aceitayo das regs men vis podeviam, precpitar a vflesto evitico-burguesa (aun abnangéncia lamiter€ stabus), on sea, atinar a partcipagto de qualquer escrita, de qualquer ira, na vida intelectual esbeo-polticn brsileina (Santiago, 1982: 33). Um segundo movimento em diregio a uma abertura daguele cireuito restrito ocorreu, segundo Silviano Santiago, com a publieagio de Gnunde Serta: Veredas, de Guimaries Rosa, uma narrativa que, no seu entender, substituia 0 narrador-intelectual da ficgio memorialista pelo narrador que se cala para ouvir a fala do jaguneo Riobaldo: De repente, uma vor no ouvida Fia-se presente: °O senhor.. Me siléncio, Eu vou contar. Fustando-se em signlicativa deslocament, aquela vorabrangente¢indiferente do discurso memorials, senhoril eeu, so- bres o grand romance de Guimaries Ross, Gintde Serio: Verdes “Tomacwe pertinent asinalar que o ugar ocupado no discurso anterior pelo narador-inteleetual, agora se encontts preenchido por alguém que obe- decee desobedece ao mando do senor, jagungo Riobaldo, Riobakto que apenas pode flr fila ‘em ignorincia’ a est ‘enh’ que a todo momento aflora silencioso na narraiva, Com isso, passa o intelectual, ctadino e dono da cultura ocidentl, a ser apenas ouvinte € escrevent, habitando espago textual nfo com o seu enorme einflado en ~ mas com o seu silencio (San- singe, 1982: 34), Eassim que, em siléneio consentido, 0 intelectual, como um antropé- Jogo, ouve ¢ traduz 0 discurso oral do jagungo para uma forma escrita, corrigida em sua pontuagio: “O intelectual é 0 escrivie de ‘dias inscru 49 das, que s6 pode pontuar o texto de Riobaldo, como dita psicandlise¢ 0 préprio nacrador: ‘Conforme foi. Eu conto; o senhor ponha ponte’ (Sau tiago, 1982: 35) Para Silviano Santiago, na obra de Guimaraes Rosa estd preservado 0 aspecto aucobiogrfico, mas com uma inversio aravés da qual “o elemento sutobiografado nfo pertence mais a uma ‘grande familia’ luso-brasileira, constutora de impetion « repiiblicas”, Ao contririo da fixider e do ccentramento dos discursos que rememoram a vida do nartador-intelectual, 4 narrativa aqui produida surge a partir da logica do deslocamento, no tanto espacial quanto social, econdmice e politico: Ser nome io sem suas sco econdmica deine, pasado de che pu cht v igi da mang do pore ed ransom, Ses ‘islsbuna de sgnfcao: Cod Trane, Urate-Brn, O des ain enn one fd agus em ncaa do mand e602 vangidade do pod sere Scangidadeencontadasno exter emorinasenhoriiecl crac cle Riobld, proc examen noe neous (Sanuog, 1982: 35) (ifr mew). Silviano Sancingo também afirma que, 3 lado de Os sersde, dle Euclides da Cunha, o romance de Guimaries Rosa assinala uma imprescindele importante vette dentro do dscueso smemorialista da classe dominante, pos aga o ntectua! apenas eve part Tolher dicura de mello ndo-ctading, do er ndorincoponad as valores ‘Tics culturisecuropeiados d sociade basa, do eaboclo enfin (San- tiago, 1982: 36) (grifo meu). Embora o romance de Guimaries Rost aponte como alternaciva 20s dliscursos populistas e de densincia, Silvano Santiago io fecha os olhos para alguns dos problemas contidos neste caminho, no qual reconhece uma concep¢io ainda elitist Nowese que no se pode desentranhar de Guimaries Rosa, por exemplo, ‘uma definigio de populte, por extensfo, de povo, segundo uma concep trarsist, Se ler alar oontro comporea ainda wa vst lia da Leta tis ido ea clase dominant 0 conta diver eo conar corgi (Santiago, 1982: 37) (grifo mew). 50 Contudo, é exatamence nessa vertence da literatura brasileira, ~ nesta “vertente nacional popular (..) completamente diferente do discurso (.) populista © de demtincia” (Santiago, 1982: 36) -, na qual o romancista assumia-se, 4 semelhanga de um ancropélogo moderno, tradutor & “interlocutor silencioso” da vox do outro, “ouvinte” da produgio poctica popular e “veiculo” desta “manifestagio nio-privilegiads’, que Silvano San- por exemplo, a possibilidades de um discurso que atualizase, “sem preconceitase sem demagogias, o elemento indigena” (Santiago, 1982: 37), e portanto a possibilidade de um caminho de abertura daquelecireuito: [Na medida em que 0 comancista qponas ecuta a produgio postica popular apenas quer servir de veculo para que esta manifestagio nio-pevilgiada se faga ouvir longe do local de enunciagio, servindo de arta para 0 nos es aquecimento cultural ede riqueza para literatura, & quesen tba seaeme= ara de wn anteapalogo. No caso de Exclides da Cana, sabems anal que smudou de opinigo sobre o massacre xo prsenciaro dia-a-dia dos homens do Conselheiro sabemos como anata con minvicia de linge ws expresses © 1 dos caboclos, No caso de Guimres Ross, sabemtos das sas constan= tes viagens pelo ero mineino, dos seus informances, do sew onde de carnene- 130 e do seu auvido mecinice, gunader gue wstin pant eqpeuntr com maior prio «vor escorteyadia e chcia de divas do agango (Santiagn, 1982:37) (for mens). ‘Como procurei enfatizar em minhas escolhas de certas pasagens de seu ensaio, em "Vale quanto pesa” Silvia 1 Santiago parece reconhecer nas obras de Guimaries Rosa e Euclides da Cunha todas as fases e elementos que constituem 0 processo de construgio daquela que tem sido denomina- da, por antropélogos contemporineos, a moxdexna etnografia: a ida (via- gem) a campo, a observacio participance, a caderneta de eampo (ou 0 gra~ vador), e, contudo, também o apagamento, na construgio da narrativa, da vor do antropélogo, ou, p ra voltarmos 20 ensaio de Silviano amtiago, da vordo romaneista, Anttopélogo/romancist, romancist/antropdlogo,as- sim chegamos i sobreposisio destas das subjecividades E em Macunafma, de Mirio de Andrade, e no entio recente Matra de Darry Riba, que Silvana Santingn eeeanhecin mais precisamente a “divida do romancista brasileiro para com a Antropologia” (Santiago, 1982: 38). Do autor de Mafia, Silviano Santiago afirma: “No caso de Maits, seu autor é por demaisconhecido como ancropélogo e centista social para que 51 se coloque em diivida a legitima ambientasio etnolégica sobre a qual se cerige o discurso ficcional" (Santiago, 1982: 38). Segundo Silviano Santiago, tanto Mirio de Andrade quanto Darcy Ribeiro estéo em busca de um discurso que seja “exemplar da cultura bra~ sileira em todasa sua extensio e em codasas suas ambigtidades” (Santiago, 1982: 38). E no entanto através da parédiae do pastiche ~ que podem ser dobservados em Macunaima de Mario de Andrade, sobretudo no capitulo Cartas pras Icamiabas"-, que Silviano Santiago vé tornar-se possivel 0 “enxecerurar de discutsos’ do "dominador” edo" dominado", onde “seimpée ‘osiléncio do narrador-intclectual” e surge o romancista-antropdlogo. Note- se que, 20 invés de um raciocinio pautado pelo jogo dialético, Silviano Santiago aborda a questio a partir da lia da suplemencaridade, dentro dda qual tomara forma seu conceito de entrelugar:? FE neste entreruzar de discursos, que ¢impossvel pagar o discuso ur0- pee nfo épesvel esquecer mao discurso popula, nestsenteerazar de Tiseusos que se impée 0 sléncio do narrador-inteleetul e que s abre a paras da parila edo esc, é al que se 2x ouvir 0 confi entse 0 diseurso do-dominadore do dominado £ nese pouco pacfico entlugar Gjucosntlecwa basiiro encontra hoe o solo vulinico onde deseaest todos os valotes que foram destruidos pela cultura dos conquistadores. E af {queue const otextord-ifeengs, da diferenga que al das posbilidades Ganda iitadisimas) de uma cultura popular preencher 0 lugar ocupado pels cultura eruita,aprsentando-s inalmente como leptin expresso Brasilia ainda nesscentrlugar que oromancistavénoespelho, oa sua jimagem rfletida, masa um antropélogo. Um antiopélogo que no preci ‘ndenaroscupr6prio pals E como tal, romancista vive mesma ambighi- “ade a mesma contradigfo dese cents social tio bem expres por Lévi- Straus, cm Tes Topigques:"Voluntersubuesifpari essen et en rebelion contne les nges raditionnel, Ueahnogniphe appavatsrespectuens stg sensernatioe, ds quel soit envagge se trowve re difete dea sie (anviago, 1982: 39) ‘Assim, na literatura de enfoque antropol6gico ~ de Buctides da Cur nha, Guimaries Rosa, Mitio de Andrade ¢ Darcy Ribeiro — que Silviano Santiago via, neste ensaio de 1978, a possiblidade, em: alguns mais em tutros menos bem sucedida, de um projeto de demacratizagio nfo apenas pelo vids sicio-econémico, mas principalmence cultural, PoisSilviano San- tiago associa exatamente 20 “attaso” que odiscurso literério-antropol6gico 52. tem em relagio ao discurso socioldgico uma qualidade afirmaciva. Enquan- 10.0 discurso sociolégico impde um “modelo de agio" para a solu de problemas sociais funcado em “categorias atuaise universais da compreen- sio da estratficagio social e dos desequiltbrios econdmices”, 0 discurso literitio-antropolégico "pelo seu lado conservador ~ se inclinatia a consti- ‘uit templos de saber, que serviriam para guardar e preservar toda a produ- so verbal que estara para sempre destruida gragas is boas e as ms moder: nizagbes” (Santiago, 1982: 39), No entender de Silviano Santiago, esta abereura do circuito fora mais bem sucedida nas obras Macunaima, de Mirio de Andrade, ¢ Maina, © Datey Ribeiro. Em Darey Ribeiro, Santiago via figura de um romancista- saves ous formagio de cientista social, como vimos, no per colocar em diivida “a legitima ambientagio etnoligica sobre a qual se erige o lscurs fcional” (Santiago, 1982 38). Mas em Nanaia de Mi tio de Andrade, que Santiago acredita ver o “entrecruzar de discursos” que “impie o siléncio do narrador-intelectual”, o “encrelugae” onde se ouve “o conflito entre o discurso do dominador e do dominado”, e onde “o roman- cista vé no espelho, nao a sua imagem refletida, mas a de um anstopélogo (Santiago, 1982: 39)” ns _ Assim, se Silviano Santiago apontava neste exto de 1978 para a ne- cessidade de a critica se abrir para narrativas capazes de refletir sob “aspiragoes multifacetadas e contraditérias da populagio em getal” (Santi- go, 1982: 28) ¢ para o exgotamento da figura do intelectual porta-vor (que fala pelo out), no posso deixar de notar,contudo, que parcia subs- tituir a figura do intelectual porta-vor pola do intelectual que previa silen- - Teeririo (Clifford, 1986: 5), refrindo-se &“metamorfose” peta qual passa as discplinas humaniicas, tanto 0 pensimentofilosfico quanto as conti= buigdesadvindas do campo dos stados de livratraparticipatam deste deba- 96 te inaugural como subsidios para ums discussio dnmaisciplinar que poste- riormente se ampliara e intensficaria em perspectivas énterlisciplinares. Nos anos subsequentes, os questionamentos apresentados pelos an tropélogos de Writing Culture desencadearam desdobramentos pontuais no interior da disciplina antropolégica' e também novas aproximagées en- tre as duas disciplinas ~ antropologia e estudos de literatura ~ no que se teferea objetos mais especificos, etradicionalmence pertencentes 0 campo dos estudos literitios, entre os quais a autobiografia, com referencias pon tuais de parte de alguns antcopdlogos a tedricos efou criticos literivios que se dedicassem aos estudos desse género. __No Ambito intadsciplinas, por exemplo, 0 antropélogo Michael Fischer, que como vimos em Writing Culture jd tratara do genero autobio- grifico em suas relagées com a construgio de subjetividadese idensidades culturais, continuou posteriormente trabalhando com esta tert, s0- bretudo em relaio’ subjtividade do produtor de conhecimento cientifico’. “Também a coletines organizada pela ancropdloga Deborah E, Reed Danahay, invitulada Asto/Ethnognaphy. Rewriting the self and the social (1997), que seed tema de discussio neste capitulo, pode ser inserida no contexto disciplinar que se formou apds a publicagio de Writing Culture Contudo, emboraarellexio sobre o temo auroetnogra questo central aos nove antropélogos que colaboraram na coletinea de Reed-Danahay, possa ser entendida como sesultante do interesse em superar impasses intradisciplinares quanto as eclagbes entre construgio de subjetividades © identidades de grupo e formas de escritas de construgio do self (autobio- grafis) e de culeuras (etnografias), a eferiva disposigao em buscar aquisi- 6es edricas no campo disciplinar clos estucos ltrs revela-se eustrante, No hist6rico apresentado na sua “Iurreduction", Reed-Danahay 1 ciona Philippe Lejeune, Alice Deck e 2 propria Mary Louise Pratt (Reed- Danahay, 19972: 7) enquanto crticoslitritios ¢ estudiosos do género au tobiogrifico a utilizar o termo autoetnografia®, No seu ensaio "Leaving Home: Schooling Stories and the Exhnography of Auioehtnagniphy in Rural France”, mesma Reed-Danahay menciona.as reflexGes de Philippe Lejeune sobre formas narrativas tais como testemunhos, memérias relatos de vida Ctemoignages”, “memoirs” e “récits de vie") (Reed-Danahay, 1997b: 127- 128, 139) esobre “aqueles que ni escrevern” (Reed-Danahay, 1997: 141) Mary Louise Prat e sas reflexdes sobre textos interculeurais(interenliunal ” text) também sto mencionadas por Kay B. Warren em seu ensaio “Narnating Girltaral Resurgence: Genre and Self Representation for Pan-Mayan Whites” “Traracse, contudo, de mengées de aleance menor, quase referéncias ou cita- ses que vem em auxiio de uma links argamentativa em andamento, Da mesma forma, até onde pude verificar em minhas pesquisas, as dliscussbes sobre a produgio do texto etnogrifico levantadas pelos colabo- radores de Writing Culture também tiveram ressonancias apenas pontusis ias sobre autobiografias. Obras Fun drios, posteriores & publicagio de rno campo dos estudos e teoris lite damentais no campo dos estuds lit Whising Gulture, cujo objeto sio escritas aurobiogrfieas, mencionam ape- ras marginalmente os trabalhos destes antropdlogos.” Assim, embora a mengio a autores situadas no campo exégeno con firme a existencia de interesses compartlhados em relagio aos dois géneros cm questio, o didlogo efetivo entre ancropologia ¢ estudos de literatura ainda é, a meu ver, insuficiente para configurar existéncia de um amplo ¢ aprofundando debate interdseiplinar em torno das relagdes entre 08 pro- ‘essos de construgio de etnografias ¢ autobiografins. Indo além, se estas menges apontam pata algum reconhecimento no campo dos estudos literitias aos trabalhos destes antropélogos sobre a8 relagdes entre processos le construgio de autobiografias ¢ etnografias, ndo ‘enconttei entre te6ricos ou criticos literérios, a0 menos até onde pude pesquisa, qualquer referéncia aos questionamentos levantados pelos an- tropélogos do chamado Cireulo de Rice no que tange a relagio entre sujei- to ¢ produgfo de conhecimento. Nesse ponto especifico, nfo obstante © fro da questio da subjetividade do produtor de conhecimento vir sendo discutida independentemente por ambas as dreas, as discussbes levantadas ¢ posteriormente continuadss pelos antropdlogos que participaram de Whiting Culture clou do Circulo de Rice sobre os processosintersubjetivos que eavolvem etndgrafo e etnografados durante 0 processo de construcio ‘uma interessante discussio em torno de etnografias, eque poderiam abrit dda construgio de teotias liverdrias, me parece vem sendo completamente ignoradas em nossa dea ‘Nesse sentido, eu diria que a alteragio da percepgto dos process de consttugio de autobiogafias ¢ etnografias desencadeados em parte pels pespectivas tedrico-filosficas eompartithadas pelos grupos de estudiosos cima referidos— que, contudo, devem ser considerados como minoriirios 98 dentro de cada uma das disciplinas — parece ter percorrido caminhos para- Jelos em ambos os campos disciplinares, apesar das referéncias mileuas e condiais de praxe. A partir da constatagio de que o didlogo intenlisciplinar entte antro- pologia ¢ teoria literiria no que concerne aos estudos relacionados as escri- tas de construgio de slver€ dos “outros” e relagio entre a subjetividade dos produrores de conhecimento e processos de construgio de teorias ain- da no ocorreu em sua plenitude, imitando-se a referénciasisoladas, creio poder afirmar que ese didlogo me parece see no apenas imensamente pro- tmissor se aprofundado, mas definitivamente urgente, visto que, de meu Ponto de vista, os interesses em ambas as diseiplinas nas ltimas duas déca- das, além de apresentat pressupostos tesrico-filossficos comuns, si0 com- plementares, de modo que um dislogo atualizado e constante representaria tum entiquecimento para ambas. E com o intuito de contribuir para 0 estreitamento deste diflogo que ao longo deste capitulo buscarei discutir uestBes formas, merodolégieaseepistemolbgicas relacionadas alguns usos e problemas associados ao termo autoetnografia no campo da antropologia “AUTOETNOGRAFAS": ALGUNS USOS E PROBLEMAS ASSOCIADOS AO TERMO © termo autoetnografia! nfo é novo, Hii pelo menos duas décadas & cmpregado por aurores tanto do campo dos estudos litetirios quanto do campo da antropologia A partic do momento em que algumas perspectivas antropolbgicas retomam a questio do indi wo € quea subjetividade do préprio antrops- logo passa a ser discutica em sua relasio com a construgio do texto cexnogrifica © que, por sua ver, no campo dos estudos literitios, passam a predominar perspectivas tedrico-criticas que enfatizam a contexutalizagio ¢ ahistoricidade das produgdes cultura e nas quais 0 autor ¢ sua localiza- io passam a ser compreendidos como dadbos de certo modo incontorn para compreensio dessas mesmas produgdes, 0s géneros autobiogrifi biogrifico voltam a inceressar como repositorios de questbes que envolvem 10 apenas modos de construgéo do sefaravés da escrit, mas eprincipal- -mence, sta relagio com a cultura ea sociedade através da qual ena q selfinterativamente se conste6i. E portanto nesse contexto de muda perspectivas tebrico-critcaseepistemoldgicas pa as cisciplinas, no qual a subjetividade do produtor de conhecimento (For- ‘mal ou do “senso comutn”) passa. ater una importdncia decisiva, que surge 0 termo autoetnograia No campo da antropologia, uma publicagio que pode ser util como tum compéndio dos usos, coneepgées ¢ problemiticas recentes associadas 20 termo autoemografia, por fxzer dele seu tema central, é coletanea or- ganizada pela anttopéloga Deborah E. Reod-Danahay, AaslEthnography ‘Rewriting the Self and the Social (1997). A minha escolha desses nove en- stios como objeto para uma reflexio mais aprofundada sobre alguns usos dados a0 cermo autoctnografia se deve também ao fato desta coletinea inserir-se no contexto disciplinar posterior publicagio de Writing Culture, ‘The Poetics and Politics of Evbnagraphy. ‘Como explica Deborah Reed-Danahay, Auro/Ethnography Rewriting she Selfand the Social nasceu de um painel realizado em 1995 pela “Society for the Anthropology of Europe and the American Anthropological “Association Meetings” do qual participaram os colsboradores desta colett- nea, exceto os antropdlogos Michael Herzfeld e Henk Driessen, que com seus ensaios se juntaram posteriormente discussio iniclada pelos demais, Criosamence, explica a organizadora, embora os nove antropdlogos con- viddados a participar do projeto estivesem trabalhando com perspectivas que envolviam de alguma forma a andlise de narrativas de construgio de Seloes fo estavam familiarizadas com 0 termo autoetnografia, que desta forma foi a eles proposto por Reed-Danahay como um “conceito com 0 «qual pensac” (Reed-Danahay, 1997s: vi), ou seja, como 0 ponto central em como do qual a coletinea sera construda, ‘No meu entender, a curiosa auséncia de uma reflexio sobre 0 conceito cde auroetnoggafia anterior i proposta de relizasio desta coletinea entre a maioria dos antropélogos que dela participaram — como veremos adiante a iinica excegio é a préprin Reed-Danahay ~ pode ser em parte explicada pelo quase total desconhecimento miltuo que antropélogos ¢teSricos ou critica literirios tm de estudos realizados sobre autabiografias eetnografias fora de suas éeas de origem. Esse desconhecimento também ocorre entre pesquisadores da mesma drea, uma ver que, embora o termo autoetnoge- fia nao seja novo para uma parcela de estudios0s, definicivamente tem sido usilizado em redutos especializados e pequenos nichos de pesquiss, no sendo um conceito que i participe do mainssraum destas disciplinas, Além 100 disso, aauséncia de uma reflexio préva sobre o conceito também pode ser explicada porque, afinal, autoetnografa ¢ um terme criacdo ~constuido— para tentar dar conta de uma percep jo recentemence intensificada, ¢ que peteia no apenas 0 campo das ciéncias humanas: a do reconhecimento da subjetividade como fator importante no processo de construsio de co- nhecimento (seja ele “cientifico” seja ele ligado ao “senso comun’). Nao obstante, em sua introdugio, Deborah Reed-Danahay nos ofere- ‘ce uma perspectiva sistemitica e hist6riea dos usos ¢ definigies dados 20 fermo por alguns autores provenientes da antropologia e da erica literé- ria, Procurarei resumi-lo com o intuito de estabelecer um terreno comum para as discussoes que desenvolvereia seguir. Segundo Reed-Danahay, uma das primeiras roferéncias 2o termo em. ‘questi data do ano de 1975, quando, no Journal af Anthropological Research, Karl Heider chamou de “auto-etnografias” os relatos de sessenta ctian de uma escola elementar que responderam a um questioniria sobre suas atividades habituais. Como explica a antropéloga, Heider atibuiu so pre- fixo auto os sentidos de “autdctone” por se tratar de relatos sobre stivicades pessoas, ¢ “automitico”, por se trarar da mais simples técnica de obrengio de informagées. Em 1979, David Hayano, em artigo publicado em Hhvnan Ongnization, utiliza 0 termo “auto-etnografia’ definindo-a como o estudo feito por an~ tropélogo sobre scu proprio povo, excluindo desse género a figura do an- tropélogo tradicional, que trabalha preferencialmente com um grupo 20 qual nfo pertence. Para Hlayano, explica Reed-Danahay, um antropélogo que consiga estabelecer uma identificagso permanente com um deter do grupo, a ponto de também ser por ele econhecido como um dos seus, pode adquitir 0 starus de autoetndgrafo. Além dessa concepgio, Hayano também compreende a autoctno; fia como uma investigagio de diversos autores sobre um determinado cema e fz a distingio entre autoctnogeafia e escritos autobiogréficos Em 1987, no artigo “The Limits of Auto-Anthropology", continua Reed-Danahay, a antropéloga Marilyn Strathern define “auto-antropolo- gia” como a antropologia feta no proprio contexto social quea prode. O enfoque dado por Strathern & aqui da etnografia feita sobre & peda culeutae no o relaco de vida, Segundo Reed-Danahay, Stachern chama a tengo paraa diferenga de perspectivas entre um antropélogo isidere um 101 nativo (native), uma ver que o primeiro recebeu um ereinamento que Ihe proporciona una percepgio sobre sua cultura cferente daquela de um nativo sem esse treinamento, Em outras palavras, diferentes experiéncias pessoais constrdem pontos de vista distintos sobre determminada cultura mesmo en- tre individuos insides ‘Um quarto autor ao qual Reed-Danahay faz referencia ¢ John Van Maanen que, em artigo de 1995 intitulado “An End to Innocence: The Echnography of Echnography", apresenta quattotipos de etnografias alter- nativas 4 tradicional emnografiarealista: as “etnografias confessionais", cujo aco € 0 exnédgrafo a0 invés dos natives, “etografias dramatic”, “etnografias critcas” ¢, por fim, a8 “self ou auto-etnografias”, nas quais, cal como na definigio de Hayano, 0 foco principal é a cultura & qual o ancropélogo pertence. Neste quatto tipo, a condigio de etnégrafo ca de nativo retinem- se num mesmo individuo, ‘Ainda entre aqueles antropSlogos que enfatizam a perspectiva aurobi- cogrifica, Reed-Danahay aponta o trabalho de Stanley Brandes “Exhnognephie Autobiographies in American Anthropology’, de 1982, sobre anteopélogos que utilizam relatos de vida como material de anise. Segundo Reed- Danahay, Brandes fiz a distingio entre dois tipos de relatos, as “nurobio- grafias etnogrficas”,excrtas por membros ce uta dada cultura sem tre ramento anttopoldgico, e“autobiografias antropoldgicss", nas quais oan- tropélogo escreve sobre st mesmo. Embora Stanley Brandes nio utilize 0 ‘ermo autoetnografia, Reed-Danahay considera que ambos os tipos defini- dos pelo autor poderiam ser denominados como tal, Eu acrescentaria, con tudo, que a terminologia adotada por Brandes oferece a possibilidade de dicing ente tipos de esrita produzidos por autores com diferentes perspec- tivas, tomando explicita a distingo entre antropélogo fnuider e nativo sem treinamento em antropologia para a qual Marilyn Strathern chama a atengao. 0 ailtimo antropdlogo citado por Deborah Reed-Danahay ¢ Norman Denzin (Interpretative Biography, de 1986), 0 qual tem maior afinidade com as perspectivas adotadas pelos colaboradores de Auto/Ethnography. ‘Rewriting the Sef and the Social Para Denzin, a principal caracterstca do ‘escritor de auroetnogtafias a nio adogio da postura objetiva de outider, comum s etnogeafias tradicionais. E periéneias pessonis ao escrever tanto biografias quanto exnografias. Seria portanto a inclusio da prépria experigncia a caraceristica a diferenciar au- :m seu lugar, 0 escritor inclui suas ex 102 xoctnografias das emografias, histérias de vida ow autobiografias (Reed Danahay, 19972: 4-7), CContinuando o sew hist6rieo dos usos do rermo, agora no eampo dos estudos lceririos, Reed-Danahay citao artigo “Ancoethnography: Zora Neale Hurston, Noni Jabavn and Cros- Disciplinary Discourse” publicado em Black American Literature Forum (1990), no qual Alice Deck estabelece uma distingio entre “relatos de campo auto-reflexivos”e auto-etnoggatias™. Nos “relatos de campo auto-reflexivos", o ancropélogo/autor estabelece uma hicrarquia de vozes ¢ recorre a outras fontes histérieas © a antropéloges ‘ontsiders para confirma a vor do nativo ¢ conguistar autoricade para sua prépria voz. Jé no easo das autoetnografias, esa autoridade Fundamenta-se no préprio stazus do antropélogo, que ¢ também um native. Ou sea, & 0 “conhecimento em primeita mio” da propria cultura a conferir autoridade 30 set texto, Para Philippe Lejcune, segundo autor proveniente do eampo dos es tudos literiios citado por Reed-Danahay, a figura do exndgralo na no & confivel, dai sua aposta na figura do “etnobidgrafo" © em géneros tais como a “etnobiografia’ ea “aucoetnologia”, que, no seu entender, con- tornariam aquilo que considera na lacuna da etnologia. Como bem aponta Reed-Danahay, a perspectiva de Philippe Lejeune, apresenta “Those Who Do Not Write", de On Autobiography (1989), Aaquela de Strathern, e proxima iquela de Alice Deck, por tam a questio da autoridade do ancropdlogo ousider. Eu aereseentaria, contu- do, que, enquanto Alice Deck concede 20 antropslogo euisider a possibili- dade de legitimar seu discurso por meio de outros discursos, Lejeune a nega a0 antropélogo outsider, enquanco atribui legitimidade ao discurso do antropélogo insider baseada, tal como em Alice Deck, apenas em sua pres- suposta autenticdade, [Neste breve histérico, Reed-Danahay ainda destaca dois autores que se aproximam do termo a partit de perspectivas mareadamente politicss Mary Louis Pratt, reporta-nos Reed-Danahay, em Imperial Eyes: Travel Writing and Transculturation (1992), associa formas de escrita de autores a no capitulo untagoniica m enfocar identificados com grupos minoritirios que eserevem sobre sua propria cul- cura como propésito de serem lides pelo grupo dominante, Nese sentido, Pratt denomina autoetnografias as escritas de resisténcia surgias das rela- Ges entre colonizadores e colonizados. This escrtas buscam ser discursos 103 alternativos aqueles produaidos pela metedpole, Na mesma perspectiva de tum tipo de discurso alternativo aquele dominance, John Dorst, em The Whitten Suburb: An Amevicam Site, An Edmographic dilemma (1989), apre- senta uma ctitica radical ao trabalho atribuido ao antropélogo tradicional: inscrever e interpretar uma culeuta que nfo éa sue. Segundo Reed-Danahay, Dorst nfo considera auroetnografias produgSes escrita, mas apenas obje- {as artesanais produzidos por grupos no dominantes, tis como artefatos ‘vendidos em subirbios e feias rurais. Para Dotst esses artefatos trariam. inscrigBes cultura auto-referentes signifi po cultural que as produaiu. Essasinscrigbes auco-referentesresponderiam 1 um impulso de auto-documentagio que dispensariaa figura do antropé- logo como aquele que inscreve ¢ interpreta uma cultura. Sua eritiea, pore tanto, &ditigida ao proprio discurso antropologico em sua concepsio tra- dicional (Reed-Danahay, 1997: 7-9)" Deborah E. Reed-Danahay constsdi sua “breve histétia do termo” (Reod-Danahay, 1997a: 4) baseando-se em duas diferentes perspectivas adotadas pelos autores citados: a primeira perspectiva relaciona 0 termo com as ethoyrafias, a segunda relaciona o termo com as histérias de vida. vas para 0s membros do gru- ‘Quando o sentido privilegiado para 0 termo autoetnografia é aquele que 0 aproxima das etnografias, ele passa a ser compreendida no sentido de “ecnografias nativas” como farem Hayano, Van Maanen, Dost, Serathern « Prat, Neste caso, ou 0 autoetnégrafo & um nativo nio-antropdlogo, ¢ entio a discussio recai sobre a autenticidade de sua vor fundamentada ‘num “conhecimento da cultura em primeira mao” ¢ sobte as possibilidades de o género apresentar-se como um contradiscurso; ou 0 autoerndgrafo & ‘um antropélogo nativo, e entio a discussio recai sobre questBes metodologicas. Quando o sentido privilegiado para o termo autoctnogra- fia € aquele que o aproxima das aurobiografias ~ como em Lejeune, Deck, Denzin ¢ Brandes ~o termo & compreendido no sentido de “autobiografias exnogrificas” ou “autobiografias nativas"e o foco de interesse da discussio recai sobre a importincia antropolégica das “histérias de vida’ (Reed- Danahay, 19972: 8-9). ( breve histérico sistematizado por Deborah Reed-Danahay servir na minha discussio, como ponto de partida para um exercicio comparati- ‘vo ds usose sentidos, com suas convergéncias edivergtncias,dados a rermo pelos aurores eeunidos em Auta/Ethmoguaphy Rewriting the Selfand the Social. 104 No meu entender, a importinciada coletinea organizada por Deborah Reed-Danahay deve-se a0 fato de seus colaboradores —akém de no se fixa- rem em apenas um de seus possveis sentidos, autobiografia ou etnogralia, mas em ambos ~acrescentarem perspectivas de mobilidade e contextualidade Asnogées de autoetnografias anteriores, adicionando ao termo wsos ese dos mais complexos e dinimicos, em especial quanto & posicio do rlfdo autor de auroemografias em relagio a0 grupo estucado e contextualizagio do processo de construgio da eserita autoetnogrifica, Em sua introdugio, 4 organizadora resume as principais nogoes compartilhadas pelos nov tropélogos que participam desta obra: [Neste livro, o temo autoetnografia é definide como ume forma de narrativa dlo self que localiza o ‘sel rmétodo eum texto, como no caso da etnografia. Uma autoetnografia pode ita tanto por um antropélogo tabalhando em wma etnografia “feta em * ou “native”, quanto por alguém que no é nem antropélogo nem canégrafo. Pode se feita também por wm autobiégrafo que localiza a narra vs toy] de sua propria vida no interior da nartativa [sary] do contexto so- cial dentro do qual ela se encontta (Reed-Danahy 19974: 9)" um contest social £ 30 mestno tempo wm © préprio contexto sécio-teérico no qual a coletinea foi publicada & Jevado em considerasio por Reed-Danahay que, logo no inicio de sua in- ttodugéo, destaca a mudanga de perspectivas redrico-crtieas que passaram storientar boa parte dos antropélogos nas décadas de 1980 — leia-se tam- bbém a partir da publicagio de Writing Culture ~ € 1990: ‘Anatureza mutivel do trabalho de campo em um mundo pés-coloniale pose ‘modemo, acompanhada peas novastendécia tries em antropoogia desde adiécada de 1980, significou, no entanto, que os estuosde narrativas de vida « narrativas pessoais passaram a ser orientados por questes diferentes das abordagens anteriores (Reed-Danaliay, 19974 1). Assim, a leitura dos ensaios reunidos nesta coletinea pode nos ofere- ‘cer um panorama do amplo espectro de questdes que atualmente envolvem o termo autoetograia no campo da antropologia, aida que sex uso seja restrito a poucos especialistas Embora 0 conccito de autoetnografia tenha sido adotado por quase odos os antropélogos que contribuiram nesta coletinea excecio é Birgitta Svensson —, cada um deles o ez.com diferentes propdsi- 105 Cc... tose nuances de sentido, constituindo-o como um instrumento construido segundo as necessidades, interesses e motivagSes de suas respectivas pesqui- sas ou reflexdestedricas. Isto, no meu entender, longe de set uma impreci- sho enfraquecedora do termo, a0 contriio, me parece ser uma premissa bi em que a flexibilidade conceitual de um lado esti a servigo de diferentes ica de indagagBes conduzidas num momento das disciplinas humanisticas propostas e perspectivas; de outro, decorre da crescente necessidade de concexcualizagio de indagagdes especticas. Por isso, neste expitulo, nio pretendo redefinir o termo autoetnogr- fia, mas apenas dar continuidade a esse processo construtivo, buscando além da- ls pelos nove antropélogos reunidos nesta coletinea. Para acrescentat algumas possibilidades de compreensio para term: igumas pe quelasapresen conc atraws da leitura etica dos enaioe de AutlEibnography Rewriting the Selfand the Social, procurareiapresentar alguns dos campos semanticos nos quais 0 termo ¢ empregado por estes antropdlogos, apontando alguns problemas relacionados a estes expecificos usos, ¢ buscando, desta forma, ofereceralgumas novas contribuigSes a partir de um enfoque alinhado com a construtivista.!” ios de Auro/Ethnography. Rewriting the Self and the Social fo- ram organizados por Deborah Reed-Danahay segundo tm crsério temitico « agrupados em trés partes. Kay B. Warren! = antoctnagrafia como muttiplcidade de pontos de vista = antoctnagrafia coma wana "zona de contata” — autocinografia como superaso de dicotomias Na primeira parte da coletanea ~ intitulada Power, Documentation and Resistance ~ estio reunidos trés ensaios eujos autores reflerem sobre relatos de vida, autobiografias¢ testemunhos como documentos com valor ctnogeifico. Em seus respectivos ensaios, os antropélogos Kay B. Warren, David A. Kideckel e Birgitta Svensson também refletem sobre as possibi- Iidades de resistencia politiene/ou cultural associadasa ests fort Ue esi No ensaio “Narnasing Cultural Resurgence: Genre and Self Reprerentaion for Pan- Mayan Waiters” wancropéloga Kay B. Warren examina as potencia- lidades das natrativas de testermunho como meios de resistencia politica a 106 partir da anilise da obra do escritor ¢ antropélogo guatemalteca Vietor Montejo, exilado nos EUA durante o periodo de violéncia de Estado na Guatemala na década de 1980 ¢ inicio da década seguinte ‘Warren insere Montejo entre aqueles intelectuais que participaram do movimento pan-maia que floresceu na Guatemala em meados da década de 1980, em cujo Fandamento estava a busca pelo restabelecimento de uma identidade maia "pré-colonial € transcendente” que reuniria os sessenta por cento da populasio de ascendéncia indigena daquele pais (Warten, 1997: 21), Essesintelectuas, aponta Kay B. Warren, além de procurar promover © “ressurgimento” da cultura maia através de narrativas que oferecessem imagens alternativas aquelas consteuidas pelos colonizadores, cambém pro- punham a critica a ética e politica da antropologia “estrangeica”, rejeitan- do, de um lado, pesquisas antropolégicas bascadas em entrevistas © por conseguinte 0 género etnogrifico em sua concepgfo tradicional; de outro, 6 individualismo dos retratos aurobiogrificos ¢ testemunkos por conside- rarem © movimento pan-maia um "esforgo coletivo” (Warren, 1997: 21) Em lugar dos dois géneros criticados — etnografias ¢ autobiograi participantes do movimento Pan-Maia criaram uma variedade de definidos por Warren como de “auto-representagio" (*selfreprsentation”) (Waren, 1997: 21), Esses géneros iam de diirios bascados nos calenditios, imaias até teses universtirias, passando por romances, poesia, colegdes de Fibulas e tradugées. A reflexio sobre o conflico entre as nogies de “indivi- duo" ¢ “coletivo” no movimento pan-maia ¢ 0 exame das potencialidades destes géneros como discursos altemativos de “representagio" e poder sto 0 principais objetivos do projeco de pesquisa de Kay 8. Warren: (.) meu extenso projeto examina as esritas de intelectuais maias com uma, stengio especial no modo pelo qual grupos marginalizadosrepresentam a si prépros, questionam as estuturas de poder dentro das qua opera, eima- imam faturos alternatives Est pesquisa lida com as constugesconvergen- tes € confltantes do ‘individual’ € do ‘coletive’ nos retratos estrangeitos © twadicionalistas do movimento PaneMaia (Warren, 1997: 22), Para Warren, Vietor Montejo contribuiu de forma singular para a reestruturagio do movimento ao publicar, nas décadas de 1980 e 1990, trabalhos nos quais retine iniimeros testemunhos, io compartilhando, portanto, da rejegio a esse género preconizadsa inicialmente pelos intelec= 107 tunis desse grupo. Segundo Warren, através da justaposigao de cestemu- rnhos dados por maias com diferentes posigGes politics esocias,o trabalho de Montejo como editor e selecionador desses textos desestrututa nfo ape- nasa idéia antiindividualistainicial do projeto pan-maia, mas também a rnogio de umia suposta identilade main homoggneae transcendent (Warten, 1997:33-41). Contudo, para antropéloga, 0 fato deo trabalho de Montejo cexplicitara diversidade existente entre os maias nao o impede de manter 0 projeto de “representagio coletiva” (Warren, 1997; 23), uma ver. que tis exctitos sio coneebides como resultado de um processo de colaboragio (Warren, 1997: 32) € como um trabalho interativo (Warren, 1997: 35). Como nos informa Warren, ao longo da década de 1980 e inicio da de 1990, Victor Montejo reuniu, editou e publicou inimeras obras sobrea violéncia co terrorism de Estado em regidesrurais da Guatemala (Warren, 1997: 23-24). Entre essus obras eset Brevisima Relacién Testimonial de La Gominua Destruccién del Mayab’ (Guatemala) (1992), que Montejo escre- ‘eu em colaboragio com outros mains que, como ele, sofferam a repressio de Estado (Warren, 1997: 31) ocorrida em 1982 na Guatemala (Warren, 1997: 23). O objetivo desse projeto era produtir provas da repressio do governo contra comunidades localizadas perto da fronteira com o México (Warren, 1997: 31) e obviamente, naquela ocasifo,significava um grande risco testemunhar sobre esses acontecimentos. Como forma de proteger seus informantes, Montejo atribui-thes um name ficticio ~ QYanil Akab’ — que, nas palavias da antropéloga, éa um s6 tempo “muitas vozes" ea “diversi- dade unida e transeendente” da cultura maia (Warren, 1997: 31) Para Warren, a0 conceber Brevisima Relacién Testimonial como uma Jo que teiine inimeras vores subalternas que denunciam a violencia na Guatemala, Montejo cria um tipo de escrita coletiva que ¢ uma contti- buigao ao género testermunho porque nfo concebida como a narrativa de tum: fico sobrevivente da violéncia, mas como “um testemunho multivocsl do horror" (Warren, 1997: 32). A esse tipo de cestemunho ~ coletivo ¢ imultivocal ~ Warten denomina ‘autoetnegnafia de wna zona de contato’, ‘que poderiamos caracteriaar pela multiplicidade de pontos de vista sobre urn ema ou aconeceimento histésico: (6) Montejo seleciona uma expectfca intersego de vozes para esta coletines: ‘um ex-soldico.e membeo ds divisio deineligencia, parulheiros evi, ecivis «que escaparam de centros de torwura em bases militares. No que eu argmen 108 tavia como sendo « ansoetneguafia de uma zona de contat, codes os Falantes, posiem ser vistos contribuindo com sua perciaobservativa para reve funei- ‘onamento interno de um Estado terrorist (Wren, 1997: 34) (gif mew) Aleicura que Warren faz sobre as potencialidades da obra de Montejo, contudo, nio se esgots nas contribuigées que o escritor guatemalteea ofe~ rece ao gtnero dos testemunhos. Estende-s para outras questoes, ais come a desestabilizagio da autoridade do antropdlogo ea reflexividade de seu dis- curso, seu posicionamento como nativolescangeto e seu aivismo politic. Segundo Kay B, Warren, as obras organizadas por Victor Montejo ‘estfo inseridas na perspectiva adotada pelo movimento pan-maia de eviar akecnativas discursivas de “auto-representagio” (Warren, 1997: 21) que