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Paul Veyne Foucault O pensamento ee eaNy0y-| Crores 5 textof#crafia Paul Veyne Foucault O pensamento a pessoa Titulo original: Foucault, So pensée, 23 personne Tradugio: Lois Lima Revisdo: Gabinete Editorial Texto & Grafia Grafismo: Cristina Leal PaginacZo: Vitor Pedro © Editions Albin Michel, 2008 © Todos os direitos desta edigio reservados para Edigbes Texto & Grafia, Lda Avenida Oscar Monteiro Torres, n° $5, 2.° Esq, 1000-217 Lisboa Telefone: 21 797 70 66 Fax: 21797 81 03 E-mail: texto-gralia@texto:grafia.pt www texto-grafia pt Imapressio e acabamento: Papelmunde, SMG, Lda, 1.4 edigio, Setembro de 2009 ISBN; 978-989-95884-9-3 Depésito Legal n.° 297530/09 Esta obra estd protegida pela lei. Nao pode ser reproduzida no todo ou em parte, qualquer que seja 0 modo utilizado, sem a autorizacio do Editor. Qualquer transgressio 4 lei do Direito de Autor sera passivel de procedimento judicial. | © panorama das ideias, do pensamento e das transformagées culturais avulta ¢ recorta-se, rico e diverso, na mole de obras e de acontecimentos com que @ humanidade foi deixando a sua incisio no corpo irrequieto da historia. Neste contexto, a coleccio PILARES publicaré trabalhos que, além do seu valor intrinseco, encerrem uma garantia de perenidade tematica que 08 possam inscrever no rol de textos fundamentais para a articulagio ¢ a conversagio, cada vez mais urgente, dos saberes entre si. Como lembranga reconhecida dos nossos mestres, Hans-Georg Pflaum e Louis Robert Introdugao Nao, Foucault nao era um pensador estruturalista. Também nfo foi fruto de um certo «pensamento de 1968»; nao era mais relativista do que historicista, nem do género de farejar ideologia por toda a parte. Coisa rara nesse século, ele foi, por confissio propria, um céptico'; um céptico que acreditava unicamente na verdade dos inumeros factos histéricos que enchem todas as paginas dos seus livros, e nunca na verdade das ideias gerais. Ele nfo admitia qualquer transcendéncia fundadora. Mas nem por isso foi um niilista: constatava a existéncia da liberdade humana (0 termo esta patente nos seus textos) € nao pensava que a perda de qualquer fundamento metafisico ou religioso, mesmo que erguida em doutrina adesencantadan, pudesse ter alguma vez desencorajado essa liberdade de ter convicgdes, esperangas, indignagées, revoltas (cle proprio foi disso um exemplo, militou 4 sua maneira, que era a de um intelectual de um novo tipo; em politica foi um reformador). No entanto, considerava falso e inutil pensar nos seus combates, dissertar sobre as suas indignagées, generalizar. «Nao utilizem o pensamento para dar a uma pritica politica um valor de verdade», escreveu’ ele. Foucault nao foi o inimigo do homem e do sujeito humano que se julgou que fosse; considerava, simplesmente, que esse sujeito née podia fazer cair do céu uma verdade absoluta nem agir soberanamente na cons- telagdo das verdades; que s6 podia reagir contra as verdades e as realidades da sua época ou inovar sobre elas. Como Montaigne, ¢ nos antipodas de Heidegger’, Foucault considerava que «nao temos qualquer comunica- G0 com o Ser»*. Todavia, 0 seu cepticismo nao o faz exclamar: «Ah! 1 John Rajchman, Michel Foucault: lo liberté de savorr, trad. Durastanti, PUF, 1987, p- 8. «Foucault é o grande céptico da nossa época. Duvida dos nossos dogmatismos ¢ das nossas antropologias fil s6ficas, ele ¢ 0 pensador da dispersio e da singularidade» 2 Dits ec Berits, ed. Defert et Ewald, Gallimard, 1994, 4 vol. (ser3 doravante citado pelas iniciais DE), 11, p. 135 3 Foucault disse © quanto Heidegger contou para ele ¢ evocou as suas leituras do autor em DE, IV, p. 703; mas, na minha modesta opiniio, de Heidegger no ter Lido nada além de Vom Wesen der Wahrheit ¢ 0 grande livro sobre Nietzsche ~ que importou para ele, j8 que esse livro teve como efeito paradoxal torné-lo nietzschiano e nio 4 Montaigne, Il, 12, Apologie de Raymond Sebond. FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA Tudo & duvidoso!». Se preferirmos, este pretenso adepto do Maio de 68 foi um empirista ¢ um fildsofo do entendimento, por oposi¢fo a uma ambiciosa Razio, Ele formula, de modo quase inconfesso, uma concep¢io geral da condi¢ao humana, da sua liberdade reactiva e da sua respectiva finitude; 0 foucaultismo é, na verdade, uma antropologia empirica que tem a sua coeréncia ¢ cuja originalidade reside em ser fundada sobre a eritica historica Passemos agora aos pormenores, mas nao sem termos, com um objectivo de clareza, enunciado primeiro quais sero os nossos dois prin- clpios. Primo, o que esté em jogo na historia humana, para Ii mesmo do poder, da economia, etc., é a verdade: que regime econémico conceberia confessar a sua falsidade? Este problema da verdade na historia nio tem nada, rigorosamente nada a ver com duvidar da inocéncia de Dreyfus ou da realidade das cdmaras de gis. Secundo, 0 conhecimento histérico, por seu Jado, se quiser levar a bom termo as analises de uma dada época, ter4 de atingir, para além da sociedade ou da mentalidade, as verdades gerais nas quais os espiritos dessa época estavam, sem saber, encerrados, quais peixes num aquério. Quanto ao céptico, é um ser duplo, Na medida em que pensa, em que se mantém fora do aquario e olha para os peixes que nele andam as voltas. Mas como é preciso viver, da por si dentro do aquario, também ele peixe, para decidir que candidato recebera o seu voto nas proximas cleigdes (sem por isso atribuir valor de verdade & sua decisio). O céptico ¢ a0 mesmo tempo um observador, fora do aquario de que se distancia, eum dos peixinhos vermelhos. Desdobramento que nada tem de tragico Na circunstancia, 0 observador que é 0 herdi deste livro chamava-se Michel Foucault, essa personagem magra, elegante e incisiva que nada nem ninguém fazia recuar ¢ cuja esgrima intelectual manejava a escrita como se fosse umn sabre. E por isso que cv poderia ter intitulado o livro que vai ler O Samurai e 0 peixinho vermelho. | Tudo é singular na hist6ria universal: | o «discurso» Quando apareceu a Histéria da Loucura, alguns historiadores (entre 0s quais 0 autor destas linhas) no viram logo o aleance do livro; Fou- cault mostrava simplesmente, pensava eu, que a concepgio da loucura que tinhamos construido ao longo dos séculos havia variado muito; o que nao nos ensinava nada; jé 0 sabiamos, as realidades humanas traem uma contingéncia radical (é a conhecida «arbitrariedade cultural») ou sao, pelo menos, diversas e variaveis — nao ha nem invariantes hist6- ricas, nem esséncias, nem objectos naturais. Os nossos antepassados desenvolveram estranhas ideias sobre a loucura, a sexualidade, 0 cas tigo ou o poder. Mas tudo se passava como se admitissemos que esse tempo do erro estivesse ultrapassado, que faziamos melhor do que os nossos avs € que conhecfamos a verdade em torno da qual eles tinham girado. «Este texto grego fala do amor de acordo com as concepgées da época», dizlamos nés; mas a nossa ideia moderna do amor valia mais que a deles? Nao ousarfamos afirmé-lo se essa questi ociosa € caduca nos fosse colocada; mas pensaremos nela seriamente, filosoficamente? Foucault pensou seriamente nela. Eu nao tinha compreendido que Foucault tomava partido, sem o dizer, num grande debate do pensamento moderno: é ou nao a verdade uma adequacao ao seu objecto, parece-se ou nao com aquilo que enuncia — como supde 0 senso comum? Na verdade, nao se vé bem como se poderia saber se cla é parecida, jé que nao temos qualquer outra fonte de informagao que permita confirmé-lo, mas adiante. Para Foucault, como para Nietzsche, William James, Austin, Wittgenstein, lan Hacking ¢ tantos outros, cada um com a sua prépria visio, 0 conkecimento no pode ser o espelho fiel da realidade. Foucault nao acredita mais do que Richard Rorty* nesse espelho, nessa concepgao «especular» do saber: segundo ele, 0 objecto na sua materialidade no pode ser separado dos quadros formais através dos quais 0 conhecemos e que Foucault, com uma palavra mal escolhida, designa por «discurso». Esta tudo ai. 5 R, Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature, Princeton, 1979 2 | FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA Mal compreendida, esta concepgio da verdade como néo corres- pondéncia com o real fez crer® que, segundo Foucault, os loucos nfo eram loucos € que falar de loucura era ideologia; até mesmo um Raymond Aron no compreendia diferentemente a Historia da Loucura e dizia-mo sem rodeios: a loucura nio é sen3o demasiado real, basta ver um louco para sabé-lo, protestava cle, ¢ tinha razio; 0 proprio Foucault professava que @ loucura, por nao ser aquilo que dela disse, diz e dird o respectivo discurso, nem por isso «era nada» ’. O que entende entio Foucault por discurso? Algo bastante simples: é a descrigao mais precisa, a mais cerrada de uma formagio historica na sua nudez, é 0 por em dia da sua diltima diferenga individual’. Je assim até & differentia ultima de uma singularidade datada exige um esforco intelectual de apercepgio: ha que despojar 0 acontecimento da roupagern demasiado ampla que © banaliza e racionaliza. As consequéncias vio longe, come se poder ver, No seu primeiro livro, o ponto de partida heuristico de Foucault foi o esclarecimento do discurso daquilo a que chamamos loucura (a desrazio, dizia o discurso de outrora); os livros seguintes exempli- ficaram através de outros assuntos a filosofia céptica que ele tinha retirado dessa experiéncia de pormenor; mas ele proprio nunca expés dos pés 4 cabega a sua doutrina, deixou essa temivel tarefa para os seus comentadores®. Vou tentar aqui explicar 0 pensamento daquele que foi um grande amigo ¢ que me parece ser um grande espirito 6 DE, IV, p. 726: «Fizeram-me dizer que a loucura nio existia, quando o problema era absolutamente inverso.» Ver também Naksance de la bropolingue. Cours au Collage de France 1978-1979, Hautes Etudes-Gallimard-Seuil, 2004, p. 5 7 Sécurité, territoire, population, ed, Ewald, Fontana, Senellart, col. Hautes Etudes. -Gallimard-Seuil, 2004, p. 122: «Pode sem diivida dizer-se que a loucura nio existe, mas isso nao significa que ela no seja nada». 8 Eis um exemplo. Em Homero, como ao Jongo de toda a Antiguidade, escreve M. 1. Finley, «as mulheres eram tidas como naturalmente inferiores ¢ 0 seu papel limitava- ~se por conseguinte & procriagio ¢ & execugdo das tarcfas domésticasn (Le Monde d' Ulysses, trad, Vernant-Blance Alexandre, Maspero, 1983, p. 159). Héléne Monsacré, num recorte mais fino, escreve: «f na impossibilidade de integrar verdadetramente uma parte de masculinidade que reside a alteridade profunds da mulher» (Les Lormes d'Achille: le héros, la femme et la souffiance dans la poésie d’Homire, Albin Michel, 1984, p. 200) 9 Como constata Daniel Defert, «De la violence entre pouvoirs et interprétations chez Foucault», em De la violence, Sémnoire de Frangoise Héritier, Odile Jacob, 2005, vol. 1, p- 105. Foucault raramente explicitou os grandes temas da sua filosofia, 1, TUDO £ SINGULAR NA HISTORIA UNIVERSAL: O «DISCURSO» Citarei abundantemente os seus Ditos e Escritos porgue ele af evoca os fundamentos da sua doutrina com mais frequéncia do que 0 faz nas suas obras principais. Antes de nos aventurarmos por essa via, partamos de um exemplo. Suponhamos que empreendiamos escrever uma historia do amor ou da sexualidade ao longo dos tempos. Poderiamos estar satisfeitos com o nosso trabalho quando o tivéssemos levado até ao ponto em que o leitor nele pudesse ler quais as variagdes que os pagios ou os cristos, nas suas ideias e praticas, haviam modulado sobre o tema bem conhecido que é 0 sexo. Mas suponhamos que, chegados a esse ponto, algo nos inquictava ainda, que julgavamos dever levar a andlise mais longe; teriamos sentido, por exemplo, que determinado modo de expressio de um dado autor grego ou medieval, tal palavra, tal contorno de uma frase deixavam, apds a nossa andlise, um residuo, uma nuance que implicava algo que nio viramos. E que, em vez de ignorar esse residuo como nao passando de uma expressio desajeitada, um mais ou menos, uma parte morta do texto, faziamos mais um esforgo para explicitar o que ele parecia implicar © que 0 consegufamos. Entio a venda cai-nos dos olhos: uma vez explicada a variag3o até ao fim, 0 tema eterno esbate-se ¢, no seu lugar, sé restam variacdes sucessivas, diferentes umas das outras a que chamamos os «prazeres» da Antiguidade, a «carne» medieval ¢ a «sexualidade» dos modernos. Estas slo trés ideias gerais que os homens sucessivamente tiveram sobre 0 niicleo incontestavelmente real, provavelmente trans-historico e inaces- sivel, que se encontra por detras delas. Inacessivel, ou antes, impossivel de discernir: dele fatalmente fariamos um discurso. Suponhamos que, gracas ao «programa» de uma ciéncia, se aprende algo verdadeiro, cientifico, sobre a homossexualidade (para Foucault, a ciéneia nao era uma palavra va); por exemplo (suposi¢ao gratuita da minha parte) que os gostos homossexuais sio de origem genética. Seja, e dai? And then what? O que é a homossexualidade? O que faremos desse pedaco, grande ou pequeno, de verdade? Foucault desejava que se fizesse © discurso de um detalhe insignificante que sé dissesse respeito & anato- mia € 4 fisiologia ¢ nio a identidade dos individuos, enfim, um detalhe de que sb se falaria na cama ou com 0 médico: Precisamos realmente de umn sexo verdadeiro? [é ele quem sublinha, ironicamente] Com uma consténcia que roga a teimosia, as socieda- des do Ocidente moderno responderam afirmativamente. Puseram obstinadamente em jogo esta questo do «verdadeiro sexo» numa 4 FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA. ordem de coisas em que se poderia imaginar que apenas contam a realidade dos corpos e a intensidade dos prazeres ". © amor da Antiguidade constituiu um discurso dos «prazeres» afrodistacos, ¢ insuspeitos, ¢ do seu controlo ético e civico; que incluta os gestos amorosos da época, tdo timida quanto sem pecado, em que, durante a noite, uma lamparina —, em que uma moral civica fazia menos disting&o entre os sexos do que entre os papéis activo e passivo, onde o ideal do dominio de si fazia com que um Don Juan pudesse ser tomado por efeminado, onde a reprovacio obsessiva da cunilingua (que nem por isso era menos praticada) constituia o derrubar de uma hierarquia dos sexos, em que 0 pederasta fazia sorrir porque levava o gosto pelos prazeres ao ponto de ter um coragdo de manteiga, etc. ‘Tomemos outro exemplo, menos amavel do que o amor: o direito penal através dos tempos. Nao basta dizer que, no Antigo Regime, os castigos eram atrozes, 0 que demonstra a rudeza dos costumes. Nos suplicios pavorosos dessa época, a soberania real «cai com toda a forga» sobre o subdito rebelde, para dar a medida aos olhos de todos da enor- midade da malfeitoria ¢ da desproporgao de forcas entre 0 rebelde e 0 seu rei — que o suplicio vinga com cerimonial, Com a Idade das Luzes, © castigo, infligido por um aparelho administrativo especializado, torna- -se preventivo ¢ correctivo; a prisio ser uma técnica coercitiva de adestramento, para instalar novos habitos no cidadio que nio respeitou uma lei", Este € um progress humanitario, seguramente, mas ha que compreender, alids, que é algo diferente de um melhoramento: é uma mudanga de parte em parte. Quinze séculos antes, nas arenas do Império Romano, a morte era preparada para o condenado numa encenacio mitoldgica; vestiam-lhe © traje de Hércules a suicidar-se pelo fogo e depois era queimado vivo: cristis houve que foram trajadas de Danaides, logo, previamente violadas, ou entio de Dirce e, assim, amarradas aos cornos de um touro, Estas encenacdes eram um sarcasmo, um ludibriunt, 0 corpo civico, com 0 qual o culpado acreditara poder rivalizar, despreza-o agora, ri-se na cara dele para lhe mostrar que ndo é o mais forte. Cada um destes sucessivos discursos reencontra-se nas leis penais, gestos, instituigdes, poderes, 6 um libertino fazia amor —nio as escuras, mas a luz de 0 DE, IV, p. 116. LL. Simmplifico aqui a andlise mais aprofundada que Foucault faz em Surveiller et punir naissance de la prison, Gallimard, 1975, pp. 133-134. I. TUDO E SINGULAR NA HISTORIA UNIVERSAL: © «DISCURSO» costumes e até edificios que Ihe dio expressio e que formam aquilo a que Foucault chama dispositive Como se vé, partimos, sem ideia preconcebida, do detalhe dos «factos concretos» ; descobrimos entio variagées tio originais que cada uma delas é sé por si um tema. Eu falava de tema e de variagdes, Foucault disse as coisas; em 1979, anotava no seu caderno: «Nao passar os universais pelo ralador da historia, mas fazer passar a historia por um fio de pensamento que recusa os universais». " Ontologicamente falando, s6 existem variagdes, sendo o tema trans-histérico um mero nome vazio de sentido: Foucault é nominalista como Max Weber e como qualquer bom historiador. Heuristicamente, mais vale partir do detalhe das praticas, daquilo que se fazia e dizia, ¢ fazer o esforco intelectual de se lhes explicitar o discurso; ¢ mais fecundo (mas mais dificil para o historiador e também para os seus leitores"*) do que partir de uma ideia geral ¢ bem conhecida, porque se corre 0 risco de se ficar preso a ela, sem nos apercebermos das diferencas ultimas ¢ decisivas que a reduziriam a nada. Esquegamos os suplicios ¢ voltemos antes aos prazeres. Pudemos facilmente distinguir os prazeres pagios da «carne» crista (esse discurso da carne pecadora ¢ da natureza inspiradora, por ser criagio divina) Sucederam-se outros discursos ainda, 0 do «sexo» dos modernos", para o qual contribuiram a psicologia, a medicina ea psiquiatria; ¢ talvez.o gender pos-moderno, com o feminismo ¢ a permissividade, ou antes, 0 direito subjectivo de ser si proprio e de dizé-lo (a psicanilise nio sobreviveria aqui, diria Didier Eribon). Além disso, adivinha-se que cada «discurso» pc em jogo, em torno do amor, uma infinidade de elementos dispostos em seu redor: costumes, palavras, saberes, normas, leis, instituigdes; 12 CB. DE, IV, p. 635: «Dirigit-se como dominio de anilise &s prdticas, abordar 0 estudo por via do que se fazta.» 13 DE, I, p. $6 14 Os livros de Foucault, incontestavelmente diflceis, puderam desconcertar his toriadores de formagéo mais tradicional que arriscaram, porém, criticd-los (penso, por exemplo, nas gargalhadas despropositadamente dirigidas contra a sua interpretasio de Cle des songes de Arternidoro de Daldis} 15. Cf. DE, III, pp. 311-312; Arnold I. Davidson, The Emergence of Sexuality, Harvard, 2001; trad. Dauzat, L'Emergence dela sexualicé: éprstémologie historique et formation des concepts, Albin Michel, 2008, pp. 79-80. 15 FOUCAULT, © PENSAMENTO, A PESSOA por isso valer4 mais falar de préticas discursivas ou ainda, de um termo carregado de sentido ao qual voltaremos, disposicivos"®, Retomemos: em vez da banalidade que é o amor tinham-nos assim aparecido varios pequenos objectos «de época», bizarros, nunca antes vistos. Acabavamos, com efeito, de trazer a luz.a parte imersa do amor na época considerada. A parte visivel, que unicamente emergia aos nossos olhos, tinha uma aparéncia afinal de contas familiar; em contrapartida, assim que se conseguiu explicitar a parte n3o visivel, nio consciente, apareceu um outro objecto «lacunar ¢ retalhado'» cujos contornos estapafturdios no correspondem a nada de sensato ¢ nao preenchem j4 0 amplo e nobre drapejado com que estavam revestidos; fazem antes pensar nas fronteiras historicas das nagGes, tracadas em ziguezague pelos acasos da historia, € nao em fronteiras naturais, E certo que a ideia que temos da sexualidade on da loucura (ideia que o discurso inconsciente, implicito, encerra e do qual diz a sin- gularidade ¢ a bizarria que nbs ndo vemos) remete seguramente para uma «coisa em si» (diria eu, abusando do vocabulério kantiano), para uma realidade que pretende representar. A sexualidade, a loucura, tudo isso existe mesmo, nao so invengdes ideolégicas. Poder-se-ia até especular infinitamente, prevalece 0 facto que o homem é um animal sexuado, a fisiologia e o instinto sexual provam-no. Tudo 0 que se pensou do amor ou da loucura através dos séculos assinala a existéncia e como que a localizagao de coisas em si. Todavia, ndo possuimos uma verdade adequada das coisas, porque s6 alcangamos uma coisa em si através da ideia que dela construimos em cada época (ideia cujo discurso é a formulacio ultima, a differentia ultima). Nao a alcangamos, pois, sendo enquanto «fendmeno», porque nio podemos separar a coisa em si do «discurso» no qual ela se encontra contida para nés. «Assoreada», gostava de dizer Foucault. Nada poderia ser conhecido na auséncia dessas espécies de pressupostos; se nao tivesse havido discursos, 0 objecto X no qual se acreditou ver sucessivamente uma possessio divina, a loucura, a desrazio, a deméncia, etc., nem por isso existiria menos, mas, no nosso espirito, nada haveria sobre a sua localizagio. Ora, todos os fendmenos sio singulares, qualquer facto histérico ou sociolégico é uma singularidade; Foucault pensa que nao existem 16 A palavra «dispositivon permite a Foucault ndo empregar 0 termo vestruturay ¢ evitar qualquer confusio com essa ideia, entio na moda e muito confusa 17 LArchéologie du Sovoir, Gallimard, 1969, p. 157. 1. TUDO E SINGULAR NA HISTORIA UNIVERSAL: O «DISCURSO» verdades gerais, trans-histéricas, porque os factos humanos, actos ou palavras, nfo provéem de uma natureza, de uma razZo que seriam a sua origem, nem reflectem fielmente 0 objecto para o qual remetem Além da sua generalidade enganadora ou da sua respectiva funcionali- dade suposta, esta singularidade ¢ a do seu bizarro discurso, Resulta dos acasos do devir, da concatenao complicada das causalidades que se encontram, Porque a histéria da humanidade nio esta apoiada pelo real, pelo racional, pelo funcional, nem por qualquer dialéctica. E preciso «localizar a singularidade dos acontecimentos fora de toda a finalidade monétona*», de qualquer funcionalismo. A sugestao técita que Foucault d4 aos socidlogos e aos historiadores (paralelamente a ele, alguns punham-na em pratica por si proprios)" consiste em levar 0 mais longe possivel a andlise das formagies histéricas ou sociais, até por a nu a sua estranheza singular. A cada época 0 seu aquario Foucault, cujo pensamento sé se precisou com o passar dos anos © cujo vocabulério técnico foi durante muito tempo flutuante, invo- cou estas singularidades através dos termos «discurso», mas também apraticas discursivas», «pressupostos», «epistemen, «dispositivon Em vez de nos determos nestes diferentes vocabulos, melhor ser4 atermo-nos ao principal: pensamos as coisas humanas através de 18. DE, Il, p. 136 19 E por exemplo, na minha opiniio, 0 caso de L. Boltanski e L. Thévenot, De Ja justification, Gallimard, 1991, ov de P. Rosanvallon. Este altima, para caracterizar 0 seu método, notava em 2001 que apreendia as 4 cias» das quais escrevia s historia como crepresent jes ectivas que demarcam o campo «os possiveis pelo do pensivels, a fim de ccaltrapassar a cisio vulgarmente admitida entre 2 ordem «los factos ¢ a das representa- esp; acrescentava ainda que @ histéria do politico «ndo pode limitar-se & anilise e a0 mentério das grandes obras»: reencuntraremos a mesma conviccio em Foucault. Em Genealegia dos Barbaros (Odile Jacob, 2007), R.-P. Droit mostra os deslocamentos cons. tantes da afronteira histérica: que é 0 iseurso — que separa os barbaros daqueles que © nio Ho, Nio pretendo certamente que estes autores se reclamem todos de Foucault; ‘mas a preciso subtil das respectivas andlises, que nfo recorre a universais e que incide profundamente na realidade, faz pensar 4 maneira de Foucault | FOUCAULT, © PENSAMENTO, A PESSOA ideias gerais que julgamos adequadas, quando nada do que é humano € adequado, racional ou universal. E isto surpreende ¢ inquieta o nosso bom senso : Assim, uma ilusio tranquilizante faz-nos vislumbrar os discursos através de ideias gerais, de tal modo que desconhecemos a sua diversi- dade e a respectiva singularidade de cada um. Pensamos vulgarmente através de esteredtipos, generalidades, ¢ & por isso que os discursos permanecem «inconscientes» para nés, escapam aos nossos olhares. As criangas chamam a todos os homens Papé c a todas as mulheres Mami, diz a primeira frase da Metafisica de Aristételes. E preciso um trabalho histérico que Foucault chama de arqueologia ou genealogia (nio entrarei em pormenores) para trazer § luz o discurso. Ora, esta arqueologia é um balango desmistificador. Porque cada vez que se atinge essa differentia ultima do fenémeno que consiste no discurso que o descreve, descobre-se infalivelmente que o fendmeno ¢ bizarro, arbitrario, gratuito (comparévamo-lo mais acima ao tracado das fronteiras histéricas). Balango: quando se foi assim até ao findo de um certo nimero de fendmenos constata-se a singularidade de cada um ¢ a arbitrariedade de todos e dai se conclui, por indug%o, uma critica filoséfica do conhecimento, a constatagio de que as coisas humanas sio sem fundamento e ainda um cepticismo sobre as ideias gerais (mas unicamente sobre elas: nao sobre singula- ridades tais como a inocéncis de Dreyfus ou a data exacta da batalha de Tevtoburgo). Seguramente os livros de historia e de fisica, que nao falam por meio de ideias gerais, esto cheios de verdades. Ainda assim, 0 homem, © sujeito de que os fildsofos falam, no é sujeito soberano: néo domina © tempo nem a verdade. «Cada um sé pode pensar como se pensa no seu tempo», escreve um condiscipulo de Foucault na Ecole Normale € na «agregacio»” de filosofia, Jean d’Ormesson, que esta, neste ponto, de acordo com o nosso autor; «Aristételes, Santo agostinho até Bossuet no sao capazes de se erguerem até 4 condenagao da escra- vatura; alguns séculos mais tarde, esta surge como uma evidénciay. Para parafrasear Marx, a humanidade levanta os problernas no momento em que os resolve. J& que, quando se desmorona a escravatura ¢ todo © dispositivo legal ¢ mental que a sustentava, desmorona-se também a sua «verdade» 20 A cagrégation» é um concurso piblico para prafessores do ensino secundério ou upiversitério ingressarem na carreira docente nas instituigdes do Estado, (N. do T) 1, TUDO E SINGULAR NA HISTORIA UNIVERSAL: O «DISCURSO» Em cada época, os contempordneos encontram-se assim fechados em discursos como em aquarios falsamente transparentes, ignoram quais sdo e até que existe um aquario. As falsas generalidades e os discursos variam através do tempo; mas, em cada época, passam por verdadeiros. De tal modo que a verdade é reduzida a dizer a verdade, a falar conforme o que se admite ser verdade ¢ que faré sorrir um século mais tarde. A originalidade da pesquisa foucaultiana esta em trabalhar sobre verdade no tempo. Comecemos por ilustrar isto com toda a ingenuidade: por detris da obra de Foucault — como por detris da de Heidegger — esti emboscado um nio-dito truistico e esmagador: 0 passado antigo e recente da humanidade é apenas um vasto cemitério de grandes verdades mortas. ‘Tornou-se uma evidéncia desde ha mais de um século, ou mais de um milénio; durante a mesma longa duragio, a grande filosofia pensou porém. em muitas outras coisas além desta verdade primeira — cada pensador, Hegel, Comte, Husserl, esperava ter vindo encerrar pessoalmente a idade das errancias, Foucault, em contrapartida, atirou-se a esse problema do cemitério ¢ fé-lo num Angulo de investigac3o pessoal ¢ inesperado: a pesquisa em profundidade do «discurso», a explicitagio das diferengas ultimas entre formagdes histéricas e, por essa via, o fim das derradeiras ideia gerais Para dizé-lo de outra forma, a maior parte das filosofias baseia -se na relagao do filésofo, ou dos homens, com o Ser, com 0 mundo, com Deus. Por seu lado, Foucaule parte daquilo que os diferentes homens fazem e dizem como sendo evidente, considerando-o verdade; ou antes, como os homens estio na sua imensa maioria mortos, ele parte de tudo o que possam ter feito ¢ dito em diversas épocas. Em suma, ele parte da histéria, da qual recolhe amostras (a loucura, a punigao, o sexo...) para lhe explicitar 0 discurso ¢ inferir dela uma antropologia empirica. Explicitar um discurso, uma prética discursiva, consistir’ em inter~ pretar © que as pessoas faziam ou diziam, em compreender aquilo que supSem os seus gestos, palavras, instituigdes, coisa que fazemos a cada minuto que passa: compreendemo-nos entre nds. Logo, o instrumento de Foucault sera uma pratica quotidiana, a hermenéutica, a elucidacio do sentido”; esta pratica quotidiana escapa ao cepticismo sob 0 jugo 21 A relagie de um espirito humano com outro, vivo ou morto, feita de iniciativa ¢ de recepgao (quer esse espirito seja traduzido por palavras, por actos ou até mesmo por um cespirito objective», costume, instituigi0, doutrina, pritica com a significagio dessas 19 20 FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA do qual caem as ideias gerais. A sua hermenéutica, que compreende o sentido dos actos e das palavras de outrem, restringe ao maximo esse sentido, longe de reencontrar © eterno Eros no amor da Antiguidade ou de contaminar esse Eros com psicandlises ou com uma antropologia filosofica. Compreender aquilo que outrem diz ou faz é um oficio de comediante que se «pée na pele» da sua personagem para compreendé- -la; se esse comediante for um historiador, precisara, além disso, de se tornar dramaturgo para compor o texto do seu papel e encontrar palavras (conceitos) para poder dizé-lo, Acrescentemos rapidamente que essa hermenéutica, que néo faz mais do que delimitar a positividade de dados empiricos, estava nos antipodas do linguistic turn dos anos 1960, ao qual acontecia fazer desvanecer em infindas interpretagdes ( A fisica fizera uma descoberta andloga com Galileu e Newton. Tornaram-se pueris as ctimologias avangadas no Crdtilo com uma soberba despreocupacao"!. © nascimento da gramética comparada no consistiu apenas num melhor conhecimento do seu objecto, implicou também que, no fundo, ja nao se estivesse a falar da mesma coisa, tendo «a parte da coisa considerada pertinente» mudado Como o mesmo niicleo objectivo tem sido considerado, de cada vez, parcial e diferentemente, nunca completamente nem na sua nudez, 0 seu conhecimento tem por cardcter a raridade, no sentido latino do termo: encontra-se furado, disseminado, nunca vé aquilo que poderia ver. . Ver L. Ocing-Hanhoff em Hisorisches Wrterbuch des Philosophie, vol. V, na entrada «Metaphysik, col. 1272; R. Malter, vol. IX, na entrada «Sein, Seiendes», col. 219. O pensamento de Heidegger ¢ um esforco desesperado para continuar por outros meios uma sensibilidade religiosa (e até crist’, porque € diversos paganismos nada oferecem de anélogo). VI. APESAR DE HEIDEGGER, O HOMEM £ UM ANIMAL INTELIGENTE O homem nao é uma espécie viva entre outras, © que faz a sua especificidade ¢ que a Verdade pode advir nele; nio advém aos animais Esta Verdade nao consiste em dois e dois serem quatro e outras pequenas verdades que. temos em mente: nao esta nele, € 0 homem que esta na verdade. Ela advém-lhe, desvenda-se-lhe, se pelo menos ele renunciar a uma pretensa objectividade. Sé esta implantacio (pela qual se desvenda ao homem o proprio facto de estar originariamente implantado na Ver- dade) faz dele um homem digno desse nome", que sabe que o Ser e o homem se pertencem mutuamente (Zu-cinander-gehéren). Idéntica Verdade consiste em saber que se esté na Verdade. Nao se trata aqui de um julgamento; pelo contrario, os nossos intimeros julgamentos s6 podem ser verdadeiros ou falsos gracas & abertura originaria do homem ao verdadeiro '*”. Isto no se demonstra légica nem factualmente, é uma Verdade propriamente filoséfica, escreve Heidegger: advém através de um acto, o da sua implantagio nela Heidegger ndo € daqueles para quem o horizonte do vistvel cons titui o limite daquilo de que ¢ permitido falar. Era uma dessas almas que possuem © sentimento de algo elevado, ocednico, azul, para li do verificavel. Este pressentimento explica que Heidegger conte com parti- darios tio fervorosos e combativos. Muites homens, uma maioria prova- velmente, possuem em algum grau esse pressentimento de um céu azul para Id do nosso céu, Ninguém é obrigado a acreditar neles, mas seria ridiculo conden4-los (antes lhes invejariamos essa riqueza). Ora, com a descristianizacao, no sabem jé como alimentar o seu desejo de céu azul. Se se sentirem tentados a dar-lhe o heideggerianismo como alimento, & bom que saibam que © preco a pagar serd elevado: deverdo resignar-se a um fatalismo, j4 ndo poderao distinguir entre o verdadeiro e 0 falso nos entes (nem sequer apreciar a boa pintura) e deverao crer no Ser ¢ 166 O homem deve mostrar-se digno da sua situagdo perante © Ser, ser auténtico, nio se perder inautenticamente em vis curiosidades (Sein und Zeit, p. 170), em metal sicas, em técnicas ¢ crer que a ciéncia das coisas, dos entes, é a diltima palavra de tudo. 0 Eterno é 0 meu pastor, diz © Antigo Testamento; de acordo com as préprias palavras de Heidegger, 0 homem & pelo contririo, o pastor do Ser, que tem o dever de nio 0 esquecer, de nio se distrair com as coisas, na intuigao dos simples «entes». 167 Heidegger, Sein und Zeit, p. 226. Sobre a indistingZo heideggeriana entre origem ce esséncia, ver mais adiante. 168 Parafrascio aqui as piginas 75-78 do semindrio de Heidegger sobre a esséncia da verdade (Gesomousgabe, I. Abteilung: Yorlesungen. Band 34: Wom Wesen der Wahrheit, Klosterman, 1988). 76 FOUCAULT, © PENSAMENTO, A PESSOA no Acontecimento por um acto de fé — como habitualmente exigem as religides mais do que as filosofias. Porque 0 intelecto nio intervém na relag3o do Dasein com o Ser, Heidegger nio alega minimamente qualquer intuigio intelectual e fala mais de uma vez da «nossa crenga», escreveu-me Emmanuel Faye. E se nao acreditarmos, seremos inauténticos. Mas por que razio deveriamos nds fazer fé nesse sublime romance metafisico? Nenhuma: 0 leitor lembra- -se, é preciso dar um salto para tal. E, uma ver. que Heidegger afirmou o reino do Absoluto, da Origem que se esconde e se revela, tudo o resto, que é a nossa espessa realidade humana, parece nao mais existir aos seus olhos. De modo que a sua doutrina implica uma humanidade simplificada, amputada, que é alheia & realidade ‘Tal parece ser 0 caso da sua célebre teoria da verdade como desven- damento, Em parte, ele tem razio, ¢ certo: fenomenologicamente falando, «vemos» previamente as coisas, «acreditamos nelas» imediatamente, sem precisar de julgé-las verdadeiras, de alinhar um julgamento no tragado da sensagao, como diz Merleau-Ponty. E 0 que se desvenda diante de nds sio as proprias coisas que «vemos»: nao consultamos a fotografia, que seria a representagio delas. O que permite a Heidegger falar de presenga mais do que de evidéncia. Mas a presenga nao é tudo: é a mera condigao de possibilidade da verdade, a sua origem; se nada «vissemos», nenhuma realidade seria possivel. Mas ser que tudo aquilo que «vemos» é por isso verdadeiro? Nao basta fiar-se na origem, porque, para citar Koyré'™, a origem da verdade e a esséncia da verdade nao so a mesma coisa. Ao restringir-se a origem, Heidegger negou-se, se bem compreendo, a pos- sibilidade de distinguir a verdade do erro. O que vejo neste momento uma percepgao ou uma alucinagio? Presenca ou nio, toda a realidade deste mundo terreno é passivel de um exame critico, porque a verdade tem uma esséncia, que ¢ a da correspondéncia com o seu objecto. Talvez a «simplicidade do olhar e do acolhimento» seja suficiente para tornar vis todas as ideologias do Século XX, como Heidegger teve a frontalidade de dizer, mas, além dessa bela simplicidade, um pouco de exercicio critico ter-Ihe-ia sido util contra a ideologia nazi. Idéntica telescopia da origem e da esséncia em matéria de arte. Sim, as Sainte-Victoire de Cézanne sio icones da deusa que o pintor de Aix-en- -Provence adorava intimamente, mas, sem essa qualidade puramente 169 Alexandre Koyré, eL’évolution de Heidegger», nos seus Etudes d’biscoire de la pensée philosophique, Gallimard, 1971, p. 288 170 D. Janicaud, La Puissonce du racionnel, Gallimard, 1985, p. 281 VI. APESAR DE HEIDEGGER, O HOMEM & UM ANIMAL INTELIGENTE pictural que é a esséncia da pintura, nio seriam {cones, mas vulgares camadas coloridas. Idéntica telescopia em politica, que resulta numa espécie de fatalismo: a origem destinal (a misao historico-mundial da Alemanha ou entdo a Gestel!) basta para ditar qual a politica a seguir, sem que a esséncia especifica do politico seja tida em consideracio. Mas suponhamos, por exemplo, que essa esséncia consista em fazer viver os homens em paz entre si? Nao estou a dizer que esta é a Unica boa resposta, mas que é preciso responder qualquer coisa e nao deter-se numa presu- mida origem destinal. Se 0 Gestell, a técnica, ¢ 0 nosso destino actual, pelo Envio do Ereigniss, teremos de resignar-nos e esperar com fatalismo que isto termine com o Envio seguinte? Nao, porque, como escreveu Dominique Janicaud (que, no mesmo lance, deixou de acreditar na gnose heideggeriana da sua juventude) ', 0 pacote no chega de uma so vez, mas sim por etapas, ao longo do tempo vivido, o que da aos homens a possibilidade de reagir politicamente; e os homens tém, precisamente, uma inteligéncia critica, uma razio, ou, pelo menos, um entendimento, e podem tentar uma parada, se acharem por bem”. Diferentemente de Heidegger, do qual lera alguns textos”? (veremos brevemente a prova disso), Foucault é pouco mistico e também nao gosta de falar do homem em geral. Fé-lo, porém, uma vez; «a vida», escreve ele «resultou, com o homem, num vivente que nunca est4 completamente no seu lugar, um vivente eternamente votado ao erro e a0 engano'™»; & Foucault quem sublinha. Enganar-se, no sentido em que o discurso s6 da a conhecer 0 empirico, o fenomenal, e que, porém, o homem faz f em ideias gerais ou meta-empiricas; errar, porque tudo aquilo que os homens pensam ¢ fazem, as suas sociedades, as suas culturas, é arbitrério e muda de uma época para a outra, porque nada de transcendente ou sequer transcendental guia o devir imprevisivel da humanidade ‘A frase de Foucault, que acabo de citar, é quase textualmente decal- cada de Heidegger, modificando-lhe, porém, 0 sentido de uma ponta & outra, Num livro célebre sobre a Esséncia da verdade, o pensador alemao fala da errancia (Irre) humana, para significar que 0 homem (digamo-lo 171 Idem., VOmbre de cette pensée, op. cit., pp. 502-134, Simon Critchley, em Dominique Janicaud, !’intelligence dv partage. Textos reunidos por Francoise Dastur, Belin, 2006, p. 168. 172 D. Janicaud, La Puissonce du ratioonel, possim 173 DE, IV, p. 703 174 DE, IV, p. 774. E Foucault quem sublinha. 1 8 FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA em termos demasiado simples) passa quase sempre a0 lado do Absoluto ¢ segue o caminho banal das verdades quotidianas ou cientificas '*; «toda a época da historia universal é uma época de errancia %», porque esquece que a esséncia auténtica do homem (0 famoso Dasein) deveria consistir em abrir-se a0 Mistério do Todo. No entanto, em lugar de vivermos sempre dispersos no nosso conhecimento das coisas, ocorre-nos por vezes pensar no proprio facto de conhecermos, esse privilégio tnico que as plantas ¢ 0s animais nao tém. Isto faz do homem um ser vivo diferente de todos 0s outros. Se pensar nisso, se escutar o Dasein que haem si, descobrird que todo © comércio com as coisas — com as ideias, com as percepgdes ~ so & possivel para um ser tal como ele, que transcende a natureza € que esta em contacto com 0 Ser, com o Absoluto. Tal deveria ser a base de qualquer filosofia. Para um empirista como Foucault, este Ser é umn fantasma verbal, suscitado, imagino eu, por uma pretensa intuigao intelectual 4 qual se faz dizer aquilo que se pretende. O facto de conhecermos cvisas nao passa de uma realidade deste mundo terreno ¢ toda a verdade passivel de ser criticada, Se o homem se engana constantemente, € porque nunca acede a verdade em si mesma e que sé a recebe atolada em «discursos» que nunca so os mesmos de época para época. Regressemos, pois, ao nosso herdi e 4 sua concepgio do homem. Mas o que acabara ele de dizer, a0 falar da nossa errancia perpétua € dos nossos erros! Acabava de enunciar uma ideia geral e até mesmo uma tese de antropologia filoséfica! Para aonde tinha ido o seu cepticismo? Pois bem, este ultimo acabava de atingir o seu limite: a frase que lemos diz uma verdade verdadeira que é 0 ponto fulcral da condi¢ao humana; existe uma verdade Ultima e é essa, por muito decepcionante que seja. Vimo-lo acima, um balango ruinoso nao se arruina a si mesmo, a divida nao se arrasta a si propria; de acordo, tudo é relativo, mas a afirmagao de que tudo é relativo nio é relativa Por detrés desta frase, em torno desta frase, podemos imaginar por toda a parte, antes de nds, longe de nés, depois de nds num tempo por vir, mil variagdes humanas possiveis, mil «verdades» passadas, futuras ou exdticas, verdades de um tempo limitado e de um dado lugar. Nenhuma dessas «verdades» ser mais verdadeira do que as nossas, mas o que acabo de escrever aqui ¢ verdadeiro. Desses homens de outrora ou de amanha, 175 Heidegger, Vom Wesen der Wahrheit, parte 7: «La non-vérité comme errance». 176 Idem, Holzwege, p. 310, VI. APESAR DE HEIDEGGER, O HOMEM £ UM ANIMAL INTELIGENTE | talvez nada saibamos, mas sabemos pelo menos que so homens como nés, prisioneiros de um discurso ¢ de um dispositivo, e livres pela metade; sdo nossos irmios. Ter curiosidade por outrem, nao o julgar, nao é isto humanismo? Preferirfeis mais dogmatismo edificante? Foucault acaba, pois, de escrever uma frase de antropologia geral. Esta antropologia é empirica, porque no provém da reflexio de um qualquer sujeito transcendental que deteria as chaves do mundo, e porque Foucault a escreveu depois de ter meditado sobre factos histéricos. E & também uma antropologia filos6fica, porque essa frase eleva-nos acima de nés préprios, faz-nos sair do nosso tempo e do nosso lugar, das nossas, pequenas verdades e, numa palavra, da nossa redoma: olhamos, abaixo de nés e como se eles jé nao fossem nds, para os bichos que giram na sua redoma. Conchusio: 0 homem nio & um anjo caido que se lembra do céu, nem um Pastor do Ser segundo Heidegger, mas um animal erratico do qual nadz mais ha que saber do que a sua histéria, que é uma perpétua positividade, sem o recurso exterior de uma negatividade que, intrusio apés intrusio, acabaria por conduzi-lo & totalidade. Se, consequentemente, nio existe para nds nenhuma verdade ver- dadeira que no seja empirica e singular, é porque um acontecimento fisico ou mental é 0 produto de encontros entre séries causais diferentes, encontros que so apenas um outro nome para 0 acaso, como cada um sabe. Assim, 0 devir existe, nfo se repete e muda incessantemente de direccao da maneira mais inesperada. ‘Além dos erros de facto que lhe acontece cometer, a humanidade cré em ideias gerais que se faze obedecer (0 verdadeiro impde-se 4s nossas condutas) € que, em cada época, passam socialmente por verdadeiras. A maior parte das veres, quando se fala da verdade, so estas verdades as designadas. «Por verdade, nio quero dizer o conjunto das coisas verda- deiras que esta por descobrir ou por fazer aceitar, mas o conjunto das regras segundo as quais se deslinda 0 verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos especificos de poder'”», escreve Foucault. E Wittgenstein teria aprovado esta outra frase da Arqueologia do Saber: os discursos, as regras, as normas «impdem-se segundo uma espécie de anonimato uniforme a todos os individuos que empreendem falar num campo discursivo» ”* 17 DE, IIL, p. 159, 178 LArchéologie du Soroir, pp. 83-84. FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA Estamos rodeados, comprimidos, cercados por verdades. «Porque, afinal, a verdade existe!», ouve-se protestar, ¢ a maior parte das vezes essa no é uma verdade. Sim, eu sei, uma sociedade nao pode existir sem convengées, sem preconceitos, mas é este o lugar certo para relembré-lo? Retérica edificante ¢ filosofia sio duas coisas distintas, ora, a filosofia no gosta de se apressar, quer saber a quantas anda € levar o seu tempo para dizer onde est o preconceito. Hi, portanto, de um lado, singularidades que comparémos ousa- damente aos modos espinosistas e, do outro, 0s conceitos ou discursos demasiado amplos ¢ enganadores de que as revestimos: «a» religiao, «a» democracia, Pode resumir-se 0 pensamento de Foucault opondo aos modos de Espinosa'? as monadas de Leibniz". As ménadas no sao singularidades, si0, cada uma delas, expressdes imperfeitas ou parciais da verdadeira realidade. Consideremos os esplritos objectivos como ména- das: diremos entio que as diferentes religides, as diferentes formas de democracia ou as morais dos diferentes povos sao outras tantas ménadas, outras expressdes imperfeitas ¢ parciais da «verdadeiray democracia, da «verdadeira» religiao, e que elas devem ser explicadas a partir destas dltimas. Esta é mesmo, desde Plato, a nossa maneira habitual de pensar. © miltiplo é uma expressio imperfeita do Uno. Hé sempre margem, dir-se-d, entre uma forma, uma esséncia (a democracia, por exemplo) e a realidade correspondente. Nada ¢ perfeito neste mundo terreno; pronunciemos aqui a palavra encarnagao ou ento atribuamos 4 matéria, como faziam os gregos, esse desfasamento entre a forma e a realidade, ¢ fechemos os olhos sobre isto. Ora, todo o espirito do foucaultismo consiste em nao fechd-los, em fazer esvanecer as esséncias e vislumbrar, no seu lugar, pequenas realidades «discursivas», Aceitaremos nés 0 desfasamento entre 0 ideal ¢ 0 real ou retiraremos antes dai consequéncias politicas? E assunto que so diz respeito a cada um de nés, Diremos, a direita, que, sendo tudo o reflexo imperfeito da sua Ideia, mais vale deixar as coisas como esto. Em contrapartida, para Foucault, nada é reflexo de um ideal; toda a politica nao é mais do que © produto de uma concatena¢io de causas; nao possui totalidade exterior 4 sua disposigao, nao exprime nada mais elevado que ela propria, apesar de afogarmos a sua singularidade em nobres generalidades, Mas, desse 179. Em Espinosa, escreve Leibniz, «tudo, fora Deus {isto é, fora da propria Natu- reza}, & passageiro e desvanece-se em simples acidentes € modificagSeso. 180 G. Deleuze, Spinoza et le probléme de expression, op. cit., p. 306. VI. APESAR DE HEIDEGGER, O HOMEM & UM ANIMAL INTELIGENTE, modo, Foucault torna impossivel o velho pensamento «de esquerda» que aspira & verdadeira democracia, ao fim da histéria. Torna impossivel 0 intelectual generalista, Sartre ou Bourdieu, que toma posico em vir- tude de um ideal da sociedade ou de um sentido da histéria, Foucault considera-se um intelectual especializado, que se indigna com certas singularidades que conheceu ao acaso da sua existéncia ou no exercicio do seu oficio"*'. E 0 intelectual de um novo tipo, o intelectual especifico de que se falava por volta de 1980. Nao entremos em panico com a idcia de ndo nos podermos esconder debaixo da saia das verdades adequadas. A nossa faculdade de conhecer vale largamente a dos animais, que podem, como nés, enganar-se, mas que se desenvencilham a maioria das vezes nos detalhes das suas existéncias Nao vivemos no mundo dos gnésticos da politica, um mundo alucinado ¢ manipulado por ideologias, conhecemos pequenas verdades, singularidades empiricas, agimos sobre as séries de fendmenos € podemos estudé-las € manipulé-las, Alcangamos resultados praticos e até cientificos, tanto nas, ciéncias exactas quanto nas ciéncias humanas. Podemos reconhecer os nossos erros € a nossa errancia. Nem por isso essa errancia terminara, 0 que nao impede de viver, porque se vive na actualidade. 181 Ver, por exemplo, DE, IIL, pp. 154, 268, $94, 528-531: «Zola é 0 caso tipico. Nao escreveu Germinal enquanto mineiro.» Foucault informava-se ¢, para isso, acontecia- She participar num coldquio, nao de professores de filosofia, mas de enfermeiras. | Ciéncias fisicas e humanas: | © programa de Foucault Sobram alguns grandes problemas. Se tudo & duvidoso, ou quase, excepto a realidade quotidiana (diriam os cépticos gregos "”), como é possivel que as ciéncias exactas obtenham resultados indubitiveis? O que valem, pelo seu lado, as ciéncias das singularidades humanas, his- toria, sociologia, economia? Serio possiveis '*¥? E 0 proprio Foucault, grande céptico que era, duvidaria ele da veracidade ¢ do futuro da sua propria empresa? Creio bem que nio, mas falemos antes das ciéncias humanas. Entre estas ciéncias e as ciéncias exactas, 0 conflito, flagrante ou larvar, é centenario: em relagao as ciéncias «duras», qual € 0 estatuto epistemolégico e o grau de rigor das ciéncias humanas? Um grau muito baixo, pretendem alguns «duros» —“Nds também encontraremos lei da historia ¢ da sociedade, ou, pelo menos, construiremos modelos”, respondiam-lhes algumas das suas vitimas. “— Terao de encontra-las, como os economistas, sendo estdo perdidos”, avisava-os Gilles-Gaston Granger. Teve lugar, em 1991, uma intervencao do socidlogo e filésofo Jean- Claude Passeron que o simples historiador que eu sou julga decisiva para a epistemologia tanto do conhecimento sociologice como do histérico. Melhor que 0 proprio Max Weber com os seus ideais-tipo, Passeron, ao deslocar a posicéo demasiado cientista do problema, mostrou onde encontrar uma cientificidade para as ciéncias humanas: no na imitagio das ciéncias exactas, no estabelecimento de leis ou de modelos, sem falar de sistemas hipotético-dedutivos, mas na elabora¢io daquilo a que poderfamos chamar semi-nomes préprios. Ora, esta teoria epistemoldgica e metodoldgica dos semi-nomes proprios esté em concordincia com aquilo que supus ser o principio 182 Ver a defesa ¢ ilustrag3o do «cepticismo empirico» por Victor Brochard, Les Scepriques grecs, 1887; reimprimido ed. Le Livre de poche, 2002, pp. 344-391. Filho neto de médicos, Foucault tem um antepassado longinquo num médico grego da seita filoséfica céptica, Sextus Empiricus, que julgava inacessiveis as coisas escondidas, mas nem por isso era menos empirico € médico da seita «metédica». 183 DE, IV, p. $77. A ideia nio est muito desenvolvida, os problemas das ciéncias huraanas interessem pouco a Foucault 83 | FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA ontologico do foucaultismo ou principio de singularidade, Supde tacita mente que, em qualquer época, 0 universo historico é apenas um caos de singularidades, oriundas do caos precedente. Um pouco ultrapassado por estes altos pensamentos, vou, 3 falta de melhor, expé-los em linguagem corrente ¢ tentar discretamente fazer melhor em nota. Consideremos uma pessoa singular — 0 actual presidente da nossa repiiblica ou entio a vossa propria irma —, essa pessoa é singular, digo eu, por isso é designada por um nome préprio. O significado desse nome proprio s6 compreendido se eu conhecer essa pessoa, se tiver lido ou ouvido declaragées sobre cla, se a tiver visto, Sendo, sera para mim uma desconhecida, nao saberei de quem esto a falar-me ¢ 0 seu nome «nao me dir4 nada». Loira, nariz mediano, testa mediana, mags do rosto salien- tes... Descrevé-la mais demoradamente? Nao teria fim (todos os logicistas modernos vo-lo dirio); valeria mais uma fotografia tipo passe 184 Em Le Raisonnement sociologique: un espace non poppérien de l'argumentation, nova edicio revista € aumentada, Albin Michel, 2006, pp. 361-384, J.-Cl. Passeron substitui a nogio de indexagio (em Peirce) 3 nogio weberiana de estilizagio. Da sua andlise resulta que todo 0 conceito sociolégico & um «semi-nome préprion ¢ que todo o raciocinio historico esta pejado de deicsicas. © ideal-tipo nao é, pois, 0 instrumento aproximativo de uma ciéncia mole, uma forma fraca da inducio, como é geralmente comentado: é umn semni-nome préprio cujo sentido (Sinn) & definido por uma descrigdo sempre parcial que enumera algumas propriedades genéricas cvja denotasio (Bedeutuog) & feita por «indexa- doy numa série aberta de referentes, que sio outros tantos casos singulares (a sociedade medieval no Ocidente, 0 Japio antes dos Tokugawa ¢ até o Império Bizantino que era feudal, segundo Evelyne Patlagean) e que possuem a comum analogia de apresentar estas propriedades genéricas, A definicéo limita-se a uma série de tragos (a feudalidade rene dois tracos: posse do solo, governo dos homens), mas a descri¢ao completa dos referentes serd indefinida, Por isso, & falta de uma descrigdo simultaneamente finita e completa, uma definigdo histérica no pode ser separada dos seus referentes: ndo podem ser exquecidos, porque s6 cles permitem saber do que se trata, do que estamos a falar e, logo, como se raciocina sobre eles, Esta no é uma escolha de metodologia, & um fundamento sobre uma epistemologia do conhecimento historico ¢ da historicidade: a lista dos casos indexados & aberta porque s6 existem singularidades, e a definigao & parcial porque se limita 4s analogias que apre- sentam os casos considerados. Este é um rigor bem diferente do das ciéncias fisicas, mas € ainda assim um rigor: nfo se pode dizer nio importa o qué. Um tal ideal-tipo opde-se & quimera cientista que seria uro modelo trans-histérico, no indexado em casos sortidos de coordenadas espicio-temporais. A linguagem do historiador nio utiliza universais, 0 seu raciocinio também ni; até os advérbios («sempres) eas provas de causalidade permanecem indexados numa série finita de casos: o «sempre» € 0 «porque» dos casos de feadalidade no tém o mesmo alcance que os das sociedades regulamentares VII. CIENCIAS FISICAS E HUMANAS: O PROGRAMA DE FOUCAULT Acontece © mesmo com alguns nomes comuns dos quais os livros de historia esto cheios e que designam acontecimentos ou processos: cesaropapismo, feodalidade, religiio, formacio da unidade nacional. Sio, na realidade, uma espécie de nomes préprios, porque as mais longas pardfrases seriam incapazes de dar a compreendler exactamente o que & uma religio a um ser que nunca tivesse encontrado nenhuma; seria pre- ciso, para que ele pudesse compreender, dar-Ihe a «ver» uma. Os nomes préprios funcionam num regime de «descricio indefinida»: poderiamos enumerar os tragos dos seus referentes, mas essa descri¢o nunca estaria concluida, completa. Igualmente, nas ciéncias sociais, os conceitos que recusem remeter para as singularidades individuais ou colestivas «nio podem encerrar-se numa descrigio definida nem expandir-se na uni- versalidade das leis». Logo, quando se quer colocar feodalidade ou cesaropapismo num livro, deixa-se-lhe um pouco do seu solo histérico, tal como se deixa um pouco de terra as raizes quando se quer colocar uma planta num vaso, Efectivamente, como os individuos, os acontecimentos sio «o que nunca veremos duas vezes», diz 0 poeta; como os acidentes de automd- vel, sio sempre devidos a encontros entre séries causais. Diferentemente das plantas ¢ dos animais, também nio sio situaveis numa tipologia ou classificagao em géneros ¢ espécies; ndo so passiveis de identificagao sem confusio possivel gragas a um numero limitado de marcas de identidade, enquanto que 0s corpos quimicos, chumbo, uranio 235 ou cloreto de s6dio, sio-no pela sua formula quimica ou pelo seu peso atémico na tabela periddica dos elementos. Os historiadores escrevem a historia por outras vias; 0s semi-nomes proprios que utilizam podem ter, também, o seu rigor cientifico, um rigor proprio ao dominio humano. Alcangam esse rigor identitario a0 «densificar» a descrigao do semi-nome proprio 4 maneira de um romancista realista ou de um repérter, a0 multiplicar os pormenores probantes, os tragos pertinentes que precisam o retrato do referente e permitem distingui-lo de acontecimentos que tenham com ele uma parecenga enganadora 185 J.-Cl. Passeron, Le Reisonnement sociologique, op, cit., p. 349, 186 Ccorre-me, neste instante, um excmplo: Mireille Corbier acaba de descrever, melhor do que fizera Momimsen no seu Droit public romain, 0 que foi a monarquia imperial romana, essa monarquia muito particular que era de uma certa maneira hereditéria e de ovtra nio, Para isso, a autora multiplicou as referéncias identitérias ¢ os pequenos deta- Ihes probantes, Ver M. Corbier, «Parenté et pouvoir & Romes, em Rome et I'Etar moderne européen (J.-Ph. Genet ed), Ecole frangaise de Rome, 2007, pp. 173-192 85 86 FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA Gragas a essa densificagao, a esse entrecruzamento de pequenos factos verdadeiros, evita-se cair em sumarios artefactos essencialistas tais como a raca, 0 génio nacional, etc. Quanto as ciéncias ditas exactas, nasceram da descoberta, mais afor- tunada do que caida do céu'®”, de uma boa chave para a abertura dos fendmenos fisicos; estes, diferentemente do devir humano, apresentam regularidades repetitivas. QO que permite alcangar aplicagdes técnicas, previsdes que se verificam exactas e verificages experimentais: quantas coisas na natureza sio numeréveis ¢ calculéveis! Destes sucessos espectacu- Jares, destas verdades experimentalmente demonstréveis ¢ empiricamente aplicdveis, n3o concluamos pela existéncia de uma harmonia preestabe- lecida entre 0 nosso espirito a natureza: os fisicos constroem modelos que permitem prever e gerir a realidade, sem que possamos saber se a representam adequadamente. Eu sei por a funcionar com sucesso um automével ao utilizar correctamente os comandos, mas confesso ignorar © que se passa debaixo da capota fechado do carro. Efectivamente, as ciéncias fisicas esbarram na finitude da nossa facul- dade de conhecer'*, na nossa incapacidade de atingir o Ser sem passar por pressupostos. Tém por base pressupostos tedricos, «paradigmas» (que, de resto, sio sempre passtveis de revisdo ou refutagio). Através do termo discurso, Foucault denotava, na ac¢o e no pensamento humanos, aquilo que, pelo seu lado, os actuais historiadores e tedricos da ciéncia denotam na evolugio das ciéncias fisicas através do termo «paradigma» 187 Alexandre Koyré mostrou que as especulagies filosoficas mais famosas contri- buiram, no Renascimento, para as origens da fisica experimental ¢ quantificada 188 Uma vez que hi finitude, uma pergunta divertida coloca-se: a dos limites da nossa inteligéncia, e se essa inteligéncia nos permite perceber os seus préprios limites. O meu gato, que se desenvencilha muito bem na sua existéncia, arranha por citime o livro que me absorve, compreende que nao penso nele o suficiente, mas nao descontia do que possa ser um livro, Colin McGinn colocou-se a questio dos limites num raciocinio rigoroso em Problems in Philosophy: the Limits of Inquity, Blackwell, 1993, part. p. 154, onde supde com graga que, sem davida, ctalentosos marcianos detém de modo natural as solugdes para os nossos problemas». Kant em pessoa levantou a questo em plena Critica da Razdo Pura, secsdes 3 € 8 da Estética Transcendental, como assinala Thierry Marchaisse: «E-nos impossivel julgar as intuigdes que podem ter outros seres pensantes e saber se estio ligadas as mesmas condigdes [de espaco e de tempo] que limitam as nossas intuigBes e que slo para nés universalmente vilidas [...]. $6 conhecemos o nosso modo porque as apreendemos, modo que nos ¢ particular, mas que pode bem no ser necessirio para todos os seres, apesar de sé-lo para todos © homens». VII. CIENCIAS FISICAS E HUMANAS; O PROGRAMA DE FOUCAULT em Thomas S. Kuhn, «programas de investigagio» em Imre Lakatos”, «estilos de pensamento» (ou de raciocinio) cientifico em Alistair C. Crombie ¢ Tan Hacking. O que Hacking escreve sobre os «estilos de raciocinio» poderia ser igualmente dito dos «discursos» foucaultianos: cada um destes ou daqueles introduz uma nova espécie de objecto; os critérios de existéncia dos objectos do novo tipo sio dados pelo proprio estilo de raciocinio. Um estilo de raciocinio nio é responsivel diante de qualquer outra instincia; & ele mesmo, com efeito, quem define os critérios de verdade no seu dominio. Aquilo que garantiu a estas ciéncias os seus numerosos sucessos, os quais precisaram da continuagao ininterrupta do seu projecto, foi e é um dispositive foucaultiano. Consideremos a fisica, Esta ciéncia apresenta a continuidade de uma empresa que, ao longo do tempo e a custa de incessantes correccbes, obteve resultados provisdrios, mas indubitaveis. E como 0 sucesso de uma firma que permanece fiel a boas receitas que lhe garantem um sucesso duradouro; nio esta fundada numa vocagao caida do céu, mas sim numa tradigio experimentada. Nao concluamos por isso na existéncia de uma harmonia entre 0 nosso espirito ¢ a natureza: 0s fisicos constroem modelos coerentes que nio pretendem representar adequadamente a realidade, mas permitem prever e gerir efeitos Husserl queria resolver este mistério enraizando a ciéncia num Eu transcendental '' que tivesse a vocacao da verdade que, por sua vez, seria a condicio de possibilidade de um empreendimento tio obstinado. Se, em vez disso, raciocinarmos de acordo com o espirito de Foucault, retorqui- remos que esse Eu nao passa de um «dobrete empirico-transcendental» que As Palavras ¢ as Coisas contesta: Husserl faz de uma perpetuagio insti- tucional, universitaria, totalmente empirica, uma sacralizagdo de origem metafisica. Numa palavra, um dispositivo. A fisica nao foi fundada como um projecto saido do Eu transcendental, como vocacio da humanidade, mas como algo de teor sociolégico, como o estabelecimento de uma 189 I, Lakatus, Histoire et méthodologie des sciences, trad. Malamoud ¢ Spitz, PUF, 1994, 190 I. Hacking expondo a sua propria doutrina no Annuaire du Collége de France, 2003, pp, 544-546. E igualmente Hacking quem cita os épistémai de Foucault como um quadro de pensamento do mesmo tipo. 191 DE, Il, p. 165 ou I, p. 675 FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA tradigio institucionalizada, fundada sobre o sucesso, que poderia ter sido interrompida e nio o foi. Acrescentemos que as verdades da ciéncia fisica sio perpetuamente provisorias; a Newton sucede Einstein. Com elas nao se pode fazer a economia de uma relac3o com a verdade e da oposi¢ao do verdadeiro e do falso, mas também no se pode considerar essas verdades como definitivamente adquiridas '’’. O erro nao é radicalmente diferente da verdade, nao passa de uma hipétese refutada pela experimentacio; nio existe evidéncia racional. Contudo, se Newton nao viu toda a realidade, nem por isso estava «fora da verdade», Ora, esse estado provisorio da verdade, bem como a perpetuagio da fisica como empresa bem fundada, irdo permitir-nos responder a uma outra questo que colocéramos: como poderd Foucault ter acreditado, porque acreditava, na verdade e na duragio da sua propria doutrina, da qual atribuia todo o mérito a Nietzsche (a certos aspectos escolhidos de Nietzsche, lido na rua d’Ulm, em 1952-1953, e também de Heidegger '"')? Toda a sua obra supée a finitude humana no tempo, ora, a relag3o do homem com o tempo parece insuperdvel, O homem é multaneamente objecto de conhecimento e sujeito que conhece, o conhe- cimento histérico est prisioneiro da sua propria historia que é, sobretudo, a das suas variagSes e errincias. Como pode um historiador julgar ter-se fixado numa rocha que o tempo em breve nio leve consigo 7 Assim, Foucault parece nao estar seguro de si mesmo; «sei perfeita~ mente que me encontro inserido num contexto», escreve "*. Porém, no se pode duvidar, julgo, da grande esperanca silenciosa que o empolgava por vezes, © Nietzsche que ele escolhera para si era, independentemente do que dele tenha dito Heidegger, o autor do grande corte com a tradi¢io metafisica e platonica. E péde parecer, por volta de 1960, que o mundo pés-moderno, por seu lado, se iria desprender da jlusio de um fundamento transcendente, de uma luz mais do que humana que lhe permitia ver a verdade adequada em todas as coisas ¢ lhe indicava a sua verdadeira via. A «morte de Deus», entendida como fim da era de todas as transcendéncias, 192 DE, 1V, p. 769. 193 dbid., p. 703. 194 Les Mots et les Choses, p. 382, of. p. 383: «Ao descobrir a lei do tempo como limite externo das ciéncias humanas, a Histéria mostra que tudo 0 que esté a ser pensado continuaré 2 sé-lo por um pensamento que ainda nio viu 0 dia.» 195 DE, I, p. 611 VII. CIENCIAS FISICAS E HUMANAS: © PROGRAMA DE FOUCAULT iria permitir 4 humanidade desfazer-se das suas ilusdes ¢ ver-se tal como era, na sua nudez ¢ solidio. A modéstia ¢ a prudéncia proibem a um pensador revelar as suas esperangas; no entanto, um belo dia, Foucault sugeriu, imprudentemente, que na nossa época a humanidade comecava a aprender que podia viver sem mitos, sem religido e sem filosofia 5, sem verdades gerais sobre si prépria. Tal era a revolugio nietzschiana, da qual Foucault estimava ser um continuador. A seus olhos, a critica genealdgica tal como ele a praticava tinha, como a fisica galilaica, a cientificidade de um empreendimento empirico "” bem fundado. Acontecera-lhe enganar-se, assinalava erros teéricos que tinha cometido em Histéria da Loucura e em Nascimento da Clinica mas, enfim, a sua empresa estava «dentro da verdade '*». O tom de voz resoluto, o de uma profissio de fé, com o qual me dizia um dia que a hermenéutica nietzschiana tinha operado um corte decisivo na historia do conhecimento, mostrava bem que ele acreditava nisso, que tinha esperanga. Nio esquecera que nenhum homem seria capaz de ter um juizo prévio sobre o seu eventual destino postumo: ele concebia uma possi- bilidade mais empirica. Quando dizia e repetia que os seus livros nao eram mais do que «caixas de ferramentas», nao era para modestamente convir que nio continham tesouros; Foucault entendia por estas palavras que desejava ter alunos (diria ele, num estilo universitério), e convidava os seus leitores de boa vontade a utilizarem os seus métodos e a darem continuidade a sua empresa, tal como um fisico tem alunos que sao seus continuadores. Relativismo, historicismo, spenglerismo? Nao! A questo do tempo e da verdade continua, todavia, por resolver. Para Foucault, ao que parece, a resposta assentar em duas convicgée: historia genealégica nio ¢ uma filosofia, estuda fendmenos empiricos € nio pretende descobrir qualquer verdade total, Tem arelagdes com as 196 Ibid., p. 620. 197 LArchéologle du Savoir, p. 160 ¢ seguintes 198 Para esta expressio, ver L’Ordre du discours, p. 16. 199 LArchéologie du Savoir, p. 160 € seguintes. 90 | | | FOUCAULT, O PENSAMENTO, A PESSOA ciéncias, com anilises de tipo cientifico ou com teorias que respondem a critérios de rigor»; alcanga conclusdes de pormenor, sobre © amor na antiguidade, sobre a loucura ou a priséo — que sio 20 mesmo tempo cientificamente estabelecidas ¢ perpetuamente provisorias e passiveis de revisao, como acontece com as descobertas das outras ciéncias, Num dia longinquo ou prdximo far-se-4 melhor do que Foucault, ficaremos surpreendidos com a sua miopia; basta-lhe, porém, ter contribuido para dissipar as quatro iJusdes que, a seus olhos, sio a adequagio, o universal, © racional ¢ o transcendental. O foucaultismo nao esta empoleirado em cima de uma rocha, nao domina a totalidade porque nao constitui a priori o seu objecto. Desco- nhece qual seria o seu proprio lugar num mapa da totalidade e o que poderia existir para [4 dos limites®!, Mas sera absolutamente necessd- rio filosofar? «Uma actividade cientifica pode perfeitamente deixar essa questio de lado nos limites no interior dos quais se exerce.’» Pode objectar-se «que é inevitavel ser-se fildsofo no sentido em que é inevitavel pensar a totalidade *'», Mas serd inevitavel? Pensar a totalidade é apenas uma das formas daquilo a que se chama filosofia, sendo-o sobretudo com Hegel’**; Husserl tera sido 0 ultimo totalizador*. Pode até conceber- -se que uma filosofia se restrinja «ao relativizar-se»*; pergunto-me entio 0 que poderia ser essa filosofia a0 mesmo tempo relativa e rigo- rosa, senao uma ciéncia em progresso perpetuamente provisério ou, no minimo, o programa dessa ciéncia (suponho que A Arqueologia do Saber, se nio tivesse sido escrita demasiado cedo e demasiado a pressa, seria esse programa). O historiador genealogista nao deveria esconder de si proprio que a sua exegese do discurso do amor antigo ird provavelmente um dia ser substituida por uma melhor. Nem por isso fica paralisado (esta é uma faceta reveladora da psicologia do sdbio: um fisico que acaba de descobrir uma lei no se gaba da sua descoberta ser definitiva, no pensa ¢ nem sequer se preocupa com isso). Se a arqueologia genealogica for uma ciéncia, 200 Ibidem, p. 269. 201 DE, IV, p. 575 202 DE, I, p. 611 203 biden 204 Ibidem, p. 611-612 205 DE, I, p. 612 206 thie.

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