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PUT EOP OVAOSEY A HISTORIA RE ii E INQUIETUDE m li > Geo eee Dae O nome de Roger Chartier eleeeieeiyeccentc teu O autor coloca-se entre os mais Pern teats ema somes eters Cort Pretet let teset loc RE ten Et Coe Conner eres publicadas em varios paises Pernt era sas conarey Renee Nec taeon orrtee ee Proedoaet een CEO peceierg Bese ecco rnentste meric) Reratte Mcneela eee ce eral ens ten pois, de alguém sobre o qual ieee ec eer oy4 berae male ven (Mo ocere Cteloy de maneira definitiva, a esta Nova Histéria Cultural que renovou os dominios de Clio Peeters Prospect) eee também a descobrir novas fontes, ou entéo descobriram Pease bon ieentecn te documentos, mas com o olhar iluminado por outras questées Nesta medida, Chartier associa corey reece eee lg atento uma reflexdo te6rica aoe eee Pete temrnnt cob ieee strat Ce entre os historiadores. A BEIRA DA FALESIA UNIVERSIDADE BAUS CV One) coe BER Ue en Reena) eee ay José Carlos Ferraz Hennemann ae one an) larval s eed fom ag eRe 0 Carlos Guimaraes once ot) eno) Cece rom enn José Augusto Avancini ire tira car Lovois de Andrade Luiza Maria Cristin Geraldo F. Huff, president Editora da Universidade/UFRGS * Av. Joao Pessoa, 415 - 90040-000 - Porto Aleg Sane ena tea nye Wrens Ue en ae ten ren eet ees ene Ana Reyer eee rc kere CR ae ence Meenas Oe co nio da Silveira (coordenador), Carla M. Luzzatto, Maria da Gloria Almeida dos Santos, Rosangela de Mello; suporte editoriak Fernando Piccinini Schmitt, Gabriel Bolognesi Ferronatto (bolsista), Luciane Leipnitz Silvia Aline Otharan Nunes (bolsista) ® Adminis trac@o: Najéra Machado (coordenadora), José Pereira Brito Filho, Laerte Balbinot Dias. Mary Cirne Lima e Norival Hermeto Nunes Saucedo: suporte administrative. Ana Maria D'Andrea dos Santos, Erica Fedatto, Jean Paulo da Silva Carvalho, Joao Batista de Souza Dias e Marcelo Wagner Scheleck * Apoio: Idalina Louzada ¢ Laércio Fontoura. \ BEIRA DA FALESIA ROGER CHARTIER __Traducio PATRICIA CHITTONI RAMOS ‘da Universidade he Fer do Re Gace © de Roger Chartier 14 edicdo: 2002 Titulo original em francés: Au bord de la falaise: L’histoire entre certitudes et inquiétude. Direitos reservados desta edicao: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Capa e projeto grafico: Carla M. Luzzatto Ilustracdo da capa: Diego Velasquez, “Las hilanderas”, dleo sobre tela, Museo de Prado, Madrid; manipulado eletronicamente. Traducao: Patricia Chittoni Ramos Revisdo: Rosangela de Mello Editoracdo eletrénica: Fernando Piccinini Schmitt Roger Chartier é historiador. Diretor de estudos na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales - EHESS. Conhecido por seus trabalhos de histéria cultural e especialista em historias do livro e da leitura, publicou e dirigiu inimeras obras. C486b Chartier, Roger A beira da falésia: a histéria entre incertezas e inquie- tude / Roger Chartier, trad. Patricia Chittoni Ramos. — Porto Alegre : Ed. Universidade /UFRGS, 2002. 1, Histéria — Filosofia. 2. Histéria — Sociologia. I. Titulo. CDU 930.23:101 930.23:304 Catalogacdo na publicacgao: Monica Ballejo Canto — CRB 10/1023 ISBN - 85-7025-623-X Sumario Introdugao geral / 7 PRIMEIRA PaRTE Percurso Introdugao / 21 1. Hist6ria intelectual e histéria das mentalidades / 23 2. O mundo como representacao / 61 3. A histéria entre narrativa e conhecimento / 81 4. Figuras retéricas e representacées histéricas / 101 SEGUNDA PARTE Leituras Introducao / 119 5. “A quimera da origem”. Foucault, o Iluminismo e a Revolucao Francesa / 123 6. Estratégias e taticas. De Certeau e as “artes de fazer” / 151 7. Poderes e limites da representacao. Marin, o discurso e a imagem / 163 8. O poder, o sujeito, a verdade. Foucault leitor de Foucault / 181 TERCEIRA PARTE Afinidades Introducado / 201 9. A histéria entre geografia e sociologia / 203 10. Filosofia e histéria / 223 11. Bibliografia e historia cultural / 243 12. Histéria e literatura / 255 Fontes / 273 Indice de autores citados / 275 Introdugao geral “A beira da falésia”. Era com essa imagem que Michel de Certeau caracterizava o trabalho de Michel Foucauit.' Ela me parece designar lucidamente todas as tentativas intelectuais que, como a nossa, colo- cam no centro de seu método as relacdes que mantém os discursos e + as praticas sociais. O empreendimento é dificil, instavel, situado a beira do vazio. E sempre ameacado pela tentagao de apagar toda diferenca entre légicas heter6nomas mas, no entanto, articuladas: as que orga- nizam os enunciados € as que comandam os gestos e as condutas. Seguir assim “Aa beira da falésia” também permite formular mais seguramente a constatacao de crise ou, no minimo, de incerteza fre- qientemente enunciada hoje em dia acerca da hist6ria.’ Aos elas oti- mistas e conquistadores da “nova histéria” sucedeu, com efeito, um ' Michel de Certeau, “Microtechniques et discours panoptique : un quiproquo’”, in Michel de Certeau, Histoire et psychanalyse entre science et fiction, Paris, Gallimard, 1987, p.37-50. Em lingua francesa, trés publica¢ées coletivas situam a disciplina historica: Histoire socia- le, histoire globale? Actes du colloque des 27-28 janvier 1989, Christophe Charle (ed.), Paris, Editions de la Maison des sciences de I’homme, 1993, Passés recomposés. Champs et chantiers de Uhistoire, Jean Boutier e Dominique Julia (ed.), Paris, Editions Autrement, 1994, e LHistoire et le métier d’historien en France 1945-1995, Francois Bédarida (ed.), coma colabo- racao de Maurice Aymard, Yves-Marie Bercé e Jean-Francois Sirinelli, Paris, Editions de la Maison des sciences de l'homme, 1995. Cf. também, Gérad Noiriel, Sur la “crise” de Uhistoire, Paris, Belin, 1996. Em lingua inglesa, ver Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margaret Jacob, Telling the Truth about History, New York e Londres, W.W. Norton and Company, 1994. tempo de diividas e de interrogacées. Para esse humor inquieto e, as vezes, impertinente, varias razdes: a perda de confianca nas cer- tezas da quantificacao, o abandono dos recortes classicos, primeira- mente geograficos, dos objetos hist6ricos, ou ainda, o questionamen- to das nogées (“mentalidades”, “cultura popular”, etc.), das catego- rias (classes sociais, classificagdes socioprofissionais, etc.), dos mo- delos de interpretagao (estruturalista, marxista, demografico, etc.) que eram os da historiografia triunfante. Acrise da inteligibilidade histérica foi mais rudemente senti- da porque sobreveio em uma conjuntura de forte crescimento do numero de historiadores profissionais e de suas publicagées. Ela teve um duplo efeito. De inicio, fez a historia perder sua posicao de disciplina federalista no seio das ciéncias sociais. Na Franca, mas também fora dela, fora em torno dos dois programas sucessivos dos Annales (aquele comandado pelo primado da histéria econédmica e social dos anos 1930, aquele identificado 4 antropologia histéri- ca dos anos 1970) que se realizara, sendo a unificacao da ciéncia social com que sonhavam no inicio desse século a sociologia dur- kheimiana e o projeto de sintese histérica de Henri Berr, pelo menos uma interdisciplinaridade, cuja pedra angular era dada pela hist6ria. Hoje nao ocorre mais o mesmo. Em segundo lugar, o tem- po dos questionamentos foi também o da dispersao: todas as gran- des tradicGes historiograficas perderam sua unidade, todas se frag- mentaram em propostas diversas, frequentemente contraditorias, que multiplicaram os objetos, os métodos, as “histérias”. Diante do refluxo dos grandes modelos explicativos, uma pri- meira e forte tentagao foi a volta ao arquivo, ao documento bruto que registra o surgimento das palavras singulares, sempre mais ri- cas e mais complexas do que pode delas dizer o historiador. Desa- parecendo por detras das palavras do outro, o historiador esforga- se para escapar 4 postura que the viria de Michelet e que, segundo Jacques Ranciére, consistiria na “arte de fazer os pobres falarem ca- lando-os, de fazé-los falarem como mudos”.? Tal vontade de apaga- ‘Jacques Ranciére, Les Mots de U’histoire. Essai de poétique du savoir, Paris, Editions du Seu- il, 1992, p.96. mento por detras das palavras, dadas a ler em sua propria literalida- de, pode parecer paradoxal em um momento em que, bem ao con- trario, a historia é habitada por uma reivindicacao, por vezes alta- mente proclamada, da subjetividade do historiador, da afirmacao dos direitos do eu no discurso histérico e das tentacdes da ego-historia’. No entanto, a contradicao é apenas aparente. De fato, dar a ler tex- tos antigos nao é, de acordo com as palavras de Arlette Farge, “reco- piar o real”, Pelas escolhas que faz e pelas relacGes que estabelece, o historiador atribui um sentido inédito as palavras que arranca do siléncio dos arquivos: “A apreensao da palavra responde 4 preocu- pacao de reintroduzir existéncias e singularidades no discurso his- torico, de desenhar a golpes de palavras cenas que sao igualmente acontecimentos”.® A presenca da citacdo no texto histérico muda assim totalmente de sentido. Ela nao é mais ilustragao de uma regu- laridade, estabelecida gracas a série e 4 medida; indica agora a irrup- cao de uma diferenga e de uma variacao. O retorno ao arquivo levanta um segundo problema: o das re- lag6es entre as categorias manipuladas pelos atores e as nocées em- pregadas no trabalho de andlise. Por longo tempo, a ruptura entre ambas pareceu a propria condicao de um discurso cientifico sobre o mundo social. Essa certeza nao existe mais. Por um lado, os crité- rios e os recortes classicos que por muito tempo fundamentaram a hist6ria social (por exemplo, a classificac4o socioprofissional ou a posicao nas relagées de producao) perderam sua forca de evidén- cia. Os historiadores tomaram consciéncia de que as categorias que ‘Maurice Agulhon, Pierre Chaunu, Georges Duby, Raoul Girardet, Jacques Le Goff, Michelle Perrot, René Rémond, Essais d’ego-histoire, Pierre Nora (ed.), Paris, Gallimard, 1987. Para um exemplo americano, Pensar la Argentina. Los historiadores hablan de histo- via y politica, Roy Hora e Javier Trimboli (ed.), Buenos Aires, Ediciones El Cielo por Asalto, 1994. *Arlette Farge, Le Cours ordinaire des choses dans la cité du XVIIF siécle, Paris, Editions du Seuil, p.9. Ver também Arlette Farge, Le Gott de Varchive, Paris, Editions du Seuil, 1989, 0 texto fundador de Michel Foucault, “La vie des hommes infames”, Les Cahiers du che- min, 29, 1977, p.12-29, reeeditado em Michel Foucault, Dits et écrits, 1954-1988, edicao estabelecida sob a direcdo de Daniel Defert e Francois Ewald, com a colaboracdo de Jacques Lagrange, Paris, Gallimard, 1994, t. III, p.237-253. manejavam tinham elas préprias uma histéria, ¢ que a historia SO- cial era necessariamente a histéria das razOes € dos usos destas.° Por outro lado, as hierarquizagoes habituais, fundadas sobre uma con- cepc¢ao fixa e unfvoca da atividade profissional ou dos interesses so- ciais, pareceram nao dar totalmente conta da labilidade das relacoes e das trajetorias que definem as identidades. . Por isso, a atencao atribuida as categorias e ao léxico dos ato- res, e a énfase dada as interacdes e as redes que delineiam solidarie- dades e antagonismos. Por isso, também, nas formulacoes radicals do linguistic turn 4 americana, a perigosa reducao do mundo Soria’ a uma pura construcdo discursiva, a meros JOgos de linguagem. O desafio lancado por uma nova historia das sociedades, da qual a mi- crostoria italiana pode ser considerada como uma modalidade exem- plar, consiste, portanto, na necessaria articulacao entre, de um lado, a descricdo das percepgoes, das representacoes € das racionalidades dos atores e, de outro, a identificacdo das interdependéncias desco- nhecidas que, juntas, delimitam e informam suas estratégias. Dessa articulacao depende a possivel superacao da oposicao classica entre as singularidades subjetivas € as determinagoes coletivas. Por essa razdo, uma atencao particular deve ser dada ao conjunto das nagoes (“configuragao”, “habitus social”, “sociedade dos individuos ) que, para Norbert Elias, permitem pensar de uma maneira nova, libera- da da heranca da filosofia classica, as relacées entre o individuo e 0 mundo social. _ ; ‘A articulacao entre as propriedades sociais objetivas e sua inte- riorizacao nos individuos, sob forma de um habitus social que coman- da pensamentos € acées, leva a considerar os conflitos ou as negocia- cées, cujo desafio continua sendo sua capacidade para fazer com que se reconhega sua identidade.’ E do crédito concedido (ou recusa- do) a imagem que uma comunidade produz de si mesma, portanto de seu “ser percebido”, que depende a afirmacao (ou anegacao) de ® Alai iti istoii ison statistique, Paris, 6 Alain Desrosiéres, La Politique des grands nombres. Histoire de la raison s » Par Editions La Découverte, 1993, e Eric Brian, La Mesure del Etat. Administrateurs et géométres au XVIF siecle, Paris, Albin Michel, 1994. 7 Pierre Bourdieu, La Distinction. Critique sociale du jugement, Paris, Editions de Minuiié 1979, 10 seu ser social. O porqué da importancia da nogao de representacao, que permite articular trés registros de realidade: por um lado, as representacoes coletivas que incorporam nos individuos as divisOes do mundo social e organizam os esquemas de percep¢ao a partir dos quais eles classificam, julgam e agem; por outro, as formas de exibi- cao e de estilizacdo da identidade que pretendem ver reconhecida; enfim, a delegacdo a representantes (individuos particulares, insti- tuicdes, instancias abstratas) da coeréncia e da estabilidade da iden- tidade assim afirmada. A historia da construcao das identidades so- ciais encontra-se assim transformada em uma historia das relacdes simbélicas de forca. Essa hist6ria define a construcao do mundo so- cial como o éxito (ou o fracasso) do trabalho que os grupos efetu- am sobre si mesmos — € sobre os outros — para transformar as pro- priedades objetivas que sao comuns a seus membros em uma per- (enca percebida, mostrada, reconhecida (ou negada). Conseqtien- (cmente, ela compreende a dominacao simbélica como o processo pelo qual os dominados aceitam ou rejeitam as identidades impos- las que visam a assegurar e perpetuar seu assujeitamento. Ela inscre- ve, assim, no processo de longa duracao de redugao da violéncia e de contencao dos afetos, tal como descrito por Elias, a importancia crescente assumida, na Idade Moderna, pelos confrontos que tém por quest6es e instrumentos as formas simbélicas. O retorno dos historiadores ao arquivo situa-se, sem diivida al- guma, em um movimento mais vasto: o interesse renovado pelo tex- to. Os historiadores perderam muito de sua timidez ou de sua inge- nuidade diante dos textos canénicos de seus vizinhos — historiadores da literatura, das ciéncias ou da filosofia — e isso, no proprio momen- to em que, nessas outras histérias, as abordagens sociohistéricas ou contextualistas encontravam uma nova vivacidade apés a dominacao sem reservas dos procedimentos estruturalistas e formalistas. Para citar apenas um exemplo, os postulados classicos e domi- nantes da historia da filosofia (ou seja, a definicdo da legitimidade das questées e dos autores a partir de sua atualidade na atividade filos6fi- ca contemporanea, a existéncia de um fundo comum de problemas c de respostas independente de qualquer formulacao especifica, a 11 autonomia dessa philosophia perennis em relacao a toda inscricao his- torica) so hoje em dia fustigados por outros modos, igualmente le- gitimos, de pensar a relacao da filosofia com a hist6ria. Em uma tipo- logia que se tornou classica, Richard Rorty coloca assim, ao lado das reconstrucées racionais da filosofia analitica, voluntariamente anacro- nicas e a-histéricas, trés outros modos de escrever a histdria da filoso- fia, todos trés plenamente histéricos e todos trés tidos por pertinen- tes: a Geistesgeschichte, definida como a historia das questées propria- mente “filos6ficas” e da constituicdo do canone dos “filésofos” que as formularam, a “hist6ria intelectual”, entendida no sentido de uma hist6ria das condicdes mesmas da atividade filoséfica, enfim, as recons- truc6es histéricas, que atribuem o sentido dos textos a seu contexto de elaboracdo e a suas condicées de possibilidade.* Esta ultima pers- pectiva é evidentemente a mais préxima das praticas hist6ricas classi- cas, na medida em que acentua a descontinuidade das praticas filos6- ficas, diferenciadas pelo lugar social ou pela instituicdo de saber onde sdo exercidas, pelas mutacées das questdes € dos estilos de investiga- cdo legitimos, pelos géneros e formas do discurso, pelas configuragoes intelectuais que dao aos mesmos conceitos significagoes diversas.? Essas trés vias tém seus equivalentes na histéria das ciéncias, na historia da arte ou na historia da literatura. Ilustram uma forma de retorno aos textos (ou, mais geralmente, 4s obras) que as inscreve nos lugares e meios de sua elaboracao, que as situa no repertorio especifico dos géneros, das questoes, das convencgées proprias aum dado tempo, e que focaliza sua atencao nas formas de sua circula- cdo e de sua apropriacdo. Nisso, elas marcam claramente que, no momento em que certas dtividas assaltaram a disciplina, as aborda- gens histéricas reencontram todos seus direitos em outro lugar: na filosofia, na critica literdria, na estética. ® Richard Rorty, “The Historiography of Philosophy : Four Genres”, in Philosophy in His- tory, Essays on the Historiography of Philosophy, Richard Rorty, J.B. Schneewind e Quentin Skinner (ed.), Cambridge, Cambridge University Press, 1984, p.49-75 (traducao fran- cesa “Quatre maniéres d'écrire l'histoire de la philosophie’”, in Que peut faire Ia philoso- phie de son histoire?, Gianni Vattimo (ed.), Paris, Editions du Seuil, 1989, p-58-94). ; ® Alasdair McIntyre, “The Relationship of Philosophy to its Past”, in Philosophy in History, op. cit., p.31-48. 12 Entre os historiadores, um dos efeitos da atenc4o renovada pe- los textos foi atribuir novamente um papel central as disciplinas de crudi¢ao. Por muito tempo relegados 4 posicao ancilar de ciéncias auxiliares, esses saberes técnicos, que propdem descricées rigorosas c formalizadas dos objetos e das formas, tornam-se (ou tornam-se novamente) essenciais, j4 que os documentos nao sao mais conside- rados somente pelas informagées que fornecem, mas sao também es- tudados em si mesmos, em sua organizacdo discursiva e material, suas condicoes de producao, suas utilizacées estratégicas. A paleografia e a diplomatica transformaram-se, assim, em uma hist6ria dos usos so- ciais da escrita, brilhantemente ilustrada pelos trabalhos de Arman- do Petrucci e de seus alunos." Ja a analytical bibliography, tal como pra- ticada sobretudo, mas nao exclusivamente, no mundo anglo-saxao, ampliou-se em uma ambiciosa “sociologia dos textos”, segundo a ex- pressao de D. F. McKenzie,"! que lembra, contra a tirania das aborda- gens estritamente lingiisticas, que as determinacées em curso no pro- cesso de construcao do sentido sao plurais. Elas dependem das estra- légias de escritura e de edicdo, mas também das possibilidades e im- posic6es préprias a cada uma das formas materiais que sustentam os discursos, e das competéncias, das praticas e das expectativas de cada comunidade de leitores (ou de espectadores).'* A “sociologia dos tex- tos” assim compreendida nao se afasta da reflexdo feita sobre a nocdo de representagao, jA que, seguindo a distingdo proposta por Louis Marin, as proprias formas dadas aos textos (tanto na oralidade quan- "Armando Petrucci, La scrittura : Ideologia e reppresentazione, Piccola Biblioteca Einaudi, ‘Turim, Einaudi, 1986 (tradugdo francesa Jeux de lettres. Formes et usages de Vinscription en Halie XF-XX siécles, Paris, Editions del’Ecole des hautes études en sciences sociales, 1993), © Le scritture ultime: Ideologia della morte e strategie dello scrivere nella tradizione occidentale, Turim, Giuilio Einaudi editore, 1995. "'D.F. McKenzie, Bibliography and the Sociology of Texts, The Panizzi Lectures 1985, Lon- dres, The British Library, 1986 (tradu¢ao francesa La Bibliographie et la sociologie des tex- tes, Paris, Editions du Cercle de la Librairie, 1991). "A titulo de tentativa para relacionar em uma mesma histéria uma obra, suas formas e “performances”, seus ptiblicos e suas significacdes, ver Roger Chartier, “George Dan- din, ou le social en représentation”, Annales, Histoires, Sciences Sociales, 2, marco-abril 1994, p.277-809, reeditado em Roger Chartier, Culture écrite et société. Liordre des livres (XTV-XVUF siécle), Paris, Albin Michel, 1996, p.155-204. 13 i i 4 dimensao to na escrita, no manuscrito ¢ no impresso) pertencem a dime: a ispositivo “reflexiva” de toda representac4o, aquela pela qual um disp sit matcrial apresenta-se como representando algo —no caso “ me ‘or Os historiadores sabem bem hoje em dia que tambe sao pr ° dutores de textos. A escritura da historia, mesmo a mais av hate é rrativa, i |, pertence ao género da nai : va, mesmo a mais estrutural, p Y ™ o qual compartilha as categorias fundamentais. Narrativas de fecae ¢ narrativas de historia tem em comum uma mesma maneira ¢ eis i constr = i “ ns”, uma mesma maneira de zer agir seus “personagens”, i tem a usalidade. Essas con: i ma mesma concep¢ao da ca ni ema A ichel de Certeau™ e de 0 Assi las obras de Michel de ‘Ses tornaram-se classicas pelas obras 1 : bal Ricoeur." Eles lembram, de inicio, que considerando a depen déncia fundamental de toda histéria, qualquer que “ie om re oie es ee ‘storia factual n : as técni . o reptidio da historia as técnicas da mise en intrigue’, : ah neo SE nificou absolutamente o abandono da narrativa. O que cum Poa vee . u i i toriadores, assim como Os 0 , maneira de dizer que os his mem sempre fazem 0 que pensam fazer € que as rupturas OE en te reivindicadas mascaram com freqiiéncia continuidades igno ; i : ay _ Porém, o problema mais essencial é outro € pode ser assim f or > : ess - mulado: por que, duradouramente, a historia ignorou sua Per e a classe das narrativas?'® Esta era necessariamente oculta a em to istorici incidén- todos os regimes de historicidade que postulavam uma cones con cia sem distancia entre os fatos historicos e os discursos que inham A j os am justifica-t uer seja coleta de exemp t 0 encargo de justificé-los. Qi ‘ Se i é hecimento de si mesma na tradi¢ antiga, quer se dé como con d nesma na tradicao his torieista e romantica alema, quer se queira “cientifica”, a historia 86 i ao nao i mo uma narrativa. A narra¢ odia recusar-se a se pensar como un nao podia ter nenhum estatuto préprio, visto que, ae niet ° cass a ida as di icdes e as figuras da arte retonica, tava submetida as disposicoes € as c ret cons derada como o lugar do desenvolvimento dos proprios acontecimen tos, ou era percebida como um obstaculo maior a um conhec , ‘Ecru *histot is, Gallimard, 1975. Michel de Certeau, L'Ecriture de histoire, Paris, d paul Riconan Temps et récit, 3 vol., Paris, Editions du Beuil 1983-1985. ¥ Composicao de uma trama, de uma intriga. (N. de .) ‘5 Francois Hartog, “L’art du récit historique”, in Passés recompr Uhistoire, op. cit., p.184-193. osés. Champs et chantiers de 14 to verdadeiro. Somente com a contestacdo dessa epistemologia da coincidéncia e com a tomada de consciéncia da distancia existente cntre o passado e sua representacio (ou, para dizer como Ricoeur, entre “o que, um dia, foi”, e que nao é mais, e as construcées discur- sivas que pretendem assegurar a représentance ou a lieutenance’ desse passado)'® podia desenvolver-se uma reflexio sobre as modalidades, 40 mesmo tempo comuns € singulares, da narrativa de historia. Essa consciéncia aguda da dimensao narrativa da historia lancou um sério desafio a todos aqueles que recusam uma posicao relativista a Hayden White, que nao vé no discurso de hist6ria senao um livre jogo de figuras retéricas, sendo uma expressio dentre outras da in- vencao ficcional. Contra essa dissolucdo do estatuto de conhecimen- to da historia, freqiientemente considerada nos Estados Unidos como uma figura do pés-modernismo, deve-se sustentar com forca que a historia € comandada por uma intengdo e por um principio de ver- «lade, que o passado que ela estabelece como objeto é uma realidade exterior ao discurso, e que seu conhecimento pode ser controlado. Alembranca é mais do que util em uma época em que as fortes tentacoes da hist6ria identitdria correm 0 risco de embaralhar toda distingéo entre um saber controlado, universalmente aceitavel, e as reconstrucdes miticas que vém confirmar memorias e aspiracdes particulares. Como escreve Eric Hobsbawn: “A projecao no passado de desejos do tempo presente ou, em termos técnicos, o anacronis- mo, é a técnica mais corrente e mais comoda para criar uma histé- ria propria a satisfazer as necessidades de coletivos ou de ‘comuni- dades imagindrias’ — conforme a expressao de Benedict Anderson — que estao longe de serem exclusivamente nacionais”.!7 Mas pode-se resistir a essa deriva, mortal para a funcdo refe- rencial da hist6ria, somente pela reafirmacao, por mais necessaria * Représentance, o que tem a funcao de representar; eutenance, 0 que substitui. (N. de T.) “Paul Ricoeur, Temps et récit, op. cit., t. 1, p. 203-205. "Eric J. Hobsbawm, “L’historien entre la quéte d’universalité et la quéte d’identité”, Diogene, 168, outubro-dezembro 1994, nimero especial “La responsabilité sociale de Vhistorien”, p.52-86 (citacao p61). Eric Hobsbawm faz referéncia ao livro de Benedict Anderson, Imagined Communities. Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, (1983), edicao revista, Londres e New York, 1991. 15 que seja, das exigéncias, das disciplinas e das virtudes do exercicio critico? Nao se deveria antes, considerando que 0 saber, histérico ou nao, nao pode mais ser pensado como a pura coincidéncia ou a simples equivaléncia de um objeto e de um discurso, empreen- der uma refundacao mais essencial? E para isso que tendem Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margaret Jacob quando pleiteiam uma new theory of objectivity (entendida como an interactive relationship between an inquiring subject and an external object [uma relacao reci- proca entre um sujeito conhecedor e um objeto exterior] e pensa- da como nao exclusiva da pluralidade das interpretagdes) e quan- do adotam uma posicdo epistemoldgica, qualificada de practical realism, segundo a qual people’s perceptions of the world have some cor- respondance with that world and that standards, even tough they are his- torical products, can be made to discriminate between valid and invalid assertions'® [as percepcdes do mundo dos atores tém alguma cor- respondéncia com esse mundo e onde critérios, mesmo que sejam historicamente construidos, podem ser estabelecidos para distin- guir entre as afirmacoes admissiveis € as que nao o sao]. Paul Ricoeur, por sua vez, indica as condicdes de possibilidade de um “realismo critico do conhecimento hist6rico”. Para ele, elas se devem, por um lado, a inscri¢ao do sujeito historiador e do obje- to hist6rico no mesmo campo temporal: “FE o mesmo e unico siste- ma de datacao que inclui os trés acontecimentos que constituem o comeco do perfodo considerado, seu fim ou sua conclusao, € 0 pre- sente do historiador (mais precisamente, da enunciacao histérica)”. Elas remetem, por outro lado, a pertenga do historiador e dos ato- res, cuja historia ele escreve a um Campo de praticas e de experién- cias suficientemente comum e compartilhado para fundar a “depen- déncia mesma do ‘fazer’ do historiador em relacao ao ‘fazer’ dos agentes histéricos”: “E primeiramente como herdeiros que os histo- riadores se colocam em relacao ao passado antes de se colocarem como mestres artesaos das narrativas que fazem do passado. Essa 8 Joyce Appleby, Lynn Hunte Margaret Jacob, Telling the Truth about History, op. cit., p.259 bes ppleby, Ly! s P e 283. 16 nocao de heranca pressupde que, de um certo modo, o passado se perpetua no presente e assim o afeta”.'® Sem duvida, é paradoxal que um historiador como eu, que en- contra inspiracao nos pensamentos da ruptura e da diferenca, evo- que deste modo o procedimento hermenéutico e fenomenoldgico de Paul Ricoeur. Mas é dessa tensao que depende hoje a compreen- sao do passado, ou do outro, para além das descontinuidades que separam as configuracées histéricas. Todavia, a constatacdo nao basta para dotar a histdria do estatu- to de conhecimento verdadeiro. Resta uma questao que, parece-me, nao responde completamente nem 4s tentativas para fundar uma wets theory of objectivity, nem as propostas que visam a assegurar o “realismo critico do conhecimento histérico”: ou seja, quais sao Os critérios gra- as aos quais um discurso hist6rico, que é sempre um conhecimento sobre tracos e indicios, pode ser considerado como uma reconstru- cdo valida e explicativa (em todo caso, mais valida e explicativa do que outras) da realidade passada que ele constituiu como seu objeto? A resposta nao é simples — e hoje menos ainda do que no tempo em que as certezas bem ancoradas da objetividade critica e de uma epistemo- logia da coincidéncia entre o real e seu conhecimento protegiam a historia de qualquer inquietude quanto a seu regime de verdade. Isso nao ocorre mais. Fundar a disciplina em sua dimensao de conhecimento, e de um conhecimento que é diferente daquele for- necido pelas obras de ficc4o, é de uma certa maneira seguir ao lon- go da falésia. Os historiadores perderam muito de sua ingenuidade ede suas ilusGes. Agora sabem que 0 respeito as regras e as opera- ces proprias a sua disciplina € uma condicao necessdria, mas nao suficiente, para estabelecer a histéria como um saber especifico. Talvez seja seguindo o percurso que leva do arquivo ao texto, do texto a escritura, e da escritura ao conhecimento, que eles poderao acei- tar o desafio que lhes é hoje lancado. Uma tiltima consideracdo. Sempre me pareceu que o trabalho de todo historiador esta dividido entre duas exigéncias. A primeira, "Paul Ricoeur, “Histoire et rhétorique”, Diogéne, p.9-26 (citacdes p.24 € 25). 17 classica e essencial, consiste em propor a inteligibilidade mais adequa- da possivel de um objeto, de um corpus, de um problema. E por essa razao que a identidade de cada historiador lhe é dada por seu traba- lho em um territorio particular, que define sua competéncia propria. Em meu caso, esse campo de pesquisa é 0 da histéria das formas, usos e efeitos da cultura escrita nas sociedades da primeira modernidade, entre o século XVI € 0 século XVIII. Mas ha também uma segunda exigéncia: aquela que obriga a historia a travar um didlogo com ou- tros questionamentos — filoséficos, sociolégicos, literarios, etc. Somen- te através desses encontros a disciplina pode inventar quest6es novas e forjar instrumentos de compreensao mais rigorosos. Por isso, a organizacdo deste livro. Sua primeira parte demar- ca, por meio de uma série de reflexées historiograficas e metodol6- gicas, os deslocamentos que transformaram os modos de pensar € de escrever a historia nestes tiltimos vinte anos. A segunda segue em companhia de pensamentos fortes, de obras densas, que foram pre- ciosos pontos de apoio para o trabalho dos historiadores. Nestes ul- timos anos, trés noes sustentaram a reflexdo das ciéncias huma- nas € sociais: discurso, pratica, representacao. Resgatar a obra de Michel Foucault, a de Michel de Certeau e a de Louis Marin permi- te precisar melhor seus contornos e definir com mais acuidade sua pertinéncia. Enfim, a ultima parte da obra € consagrada as relacées que a histéria manteve e mantém com varias disciplinas que sao suas vizinhas proximas. Trata-se de compreender como 0s historiadores preferiram certos corporativismos e, conseqiientemente, negligen- ciaram as propostas ou as questées vindas de outros horizontes. Acompanhando a histéria dessas aliancas e ignorancias, nosso obje- tivo é duplo: retornar as escolhas que marcaram duradouramente a pratica da hist6ria na Franca, mas mostrar igualmente (a partir do exemplo dos lacos entre critica textual e historia cultural) que se inventam hoje em dia novos espa¢os intelectuais. PRIMEIRA PARTE Percurso Introdugao Os quatro textos que compoem a primeira parte deste livro foram redigidos e publicados em datas e em contextos muito diferen- tes. Reunilos hoje responde a uma dupla intencdo. Por um lado, tra- tase de indicar meu percurso a partir da tradicdo historiogrdfica 4 qual pertenc¢o — a da histéria sociocultural 4 maneira dos Annales. Entre o texto critico apresentado em Cornell em 1979 e publicado em 1983, que pretendia submeter a exame as divis6es e nocdes demasiado sim- ples sobre as quais tinha vivido a histéria das mentalidades, e o publi- cado em 1994, que tenta fazer o levantamento das principais razées que abalaram as certezas dos historiadores, tanto na Franca como fora dela, um caminho foi tragado. Ele é marcado pela ampliacao dos ho- rizontes historiograficos, pelo apagamento das fronteiras entre tradi- Ges nacionais, pelo desencravamento da histéria, agora mais ampla- mente aberta as interrogac6es das disciplinas que sao suas vizinhas. Situando em um campo de estudo particular, aquele que une textos, livros e leituras, os novos questionamentos definidos, o ensaio intitu- lado “O mundo como representacao” queria mostrar os ganhos que se pode esperar tanto da manipulacao dos conceitos que nao perten- ciam ao repertorio classico da histéria das mentalidades — por exem- plo, os de representaca4o ou de apropriacdo — quanto do cruzamento de abordagens e de técnicas por muito tempo disjuntas. al Por outro lado - e esta € uma segunda intencao —, os quatro ensaios aqui reunidos permitem, pelo menos espero, determinar os principais debates que atravessaram a disciplina historica nestes tl- timos vinte ou trinta anos. Os desafios foram numerosos € diversos, da “reviravolta lingifstica” 4 americana ao retorno ao politico, cris- talizado na ocasido do Bicentenario da Revolucio Francesa, da “re- viravolta critica” pleiteada pela redacdo dos Annales ao questiona- mento do estatuto de conhecimento da historia. As discuss6es tra- vadas em torno dessas propostas, as vezes perturbadoras, transfor- maram profundamente os modos de pensar, de trabalhar é de es- crever dos historiadores. Elas fizeram surgir novos objetos, obriga- ram a reformular questées classicas (por exemplo, a da objetivida- de do discurso histérico); levaram a correlacionar de maneira iné- dita as formas da dominacao, a construc¢ao das identidades sociais e as praticas culturais. Com 0 desaparecimento das antigas certezas, tais como organizadas pelos paradigmas dominantes dos anos 1960, a histéria pareceu entrar em crise. Penso que o diagndstico nao € totalmente exato. Questionando as evidéncias que pareciam mais solidamente estabelecidas, o trabalho histérico encontrou uma nova vitalidade e articulou de modo inventivo as reflexdes teéricas ou metodolégicas com a producao de novos saberes. 1. Histéria intelectual e histéria das mentalidades 7 Definir a historia intelectual nao 4 tarefa facil, e isso por varias razoes. A primeira manifesta-se no préprio vocabulario. Em nenhum outro campo da historia, de fato, existe uma tal especificidade nacio- nal das designac6es utilizadas e uma tal dificuldade para aclimaté-las, até mesmo simplesmente para traduzi-las para outra lingua e outro contexto intelectual.’ A historiografia americana conhece duas cate- gorias, cujas relac6es sao, alias, pouco especificas e sempre problema- ticas: a de intellectual history, surgida com a New History do inicio do século e constituida como designacao de um campo particular de pesquisa com Perry Miller; a de history of ideas, construida por Arthur Lovejoy para definir uma disciplina tendo seu objeto préprio, seu programa € seus métodos de pesquisa, seu lugar institucional (em particular, gracas ao Journal of the History of Ideas, fundado em 1940 por Lovejoy). Ora, nos diferentes paises europeus, nenhuma dessas dues designacoes passa: na Alemanha, Geistesgeschichte permanece dominan- te; na Italia, Storia intellectuale nao aparece, nem mesmo em Cantimo- ri. Na Franga, histéria das idéias quase nao existe, nem como noca4o nem como disciplina (e foram de fato historiadores da literatura, tal ' Ver as primeiras paginas do arti; ix Gi . Ir igo de Felix Gilbert, “Intellectual History: its Ai Methods”, Daedalus, Historical Studies Today, winter 1971, 80.97, sa MAE AE como Jean Ehrard, que reivindicaram, alids, com dividas e prudén- cia, o termo), e histéria intelectual parece ter chegado tarde demais para substituir as designacdes tradicionais (histéria da filosofia, historia lite- raria, histéria da arte, etc.) e nao teve forga contra um novo vocabula- rio forjado essencialmente pelos historiadores dos Annales. historia das mentalidades, psicologia histérica, hist6ria social das idéias, historia sociocul- tural, etc. A reciproca desse fechamento €, alias, verdadeira, ja que historia das mentalidades exporta-se mal, parece mal assegurada em outras linguas que nao 0 francés e parece ser a origem de intmeras confusdes, o que leva a nao traduzir a expressao ea reconhecer assim a irredutivel especificidade de uma maneira nacional de pensar as questoes. As certezas lexicais das outras historias (econdmica, social, politica), a historia intelectual opde, portanto, uma dupla incerteza do vocabuldrio que a designa: cada historiografia nacional possui sua propria conceitualizagao e, em cada uma delas, diferentes nocoes, dificilmente distinguidas umas das outras, entram em competicao. Mas, por detras dessas palavras que diferem, as coisas SAO se- melhantes? Ou ainda, 0 objeto que designam tao diversamente é tinico e homogéneo? Nada parece menos certo. A titulo de exem- plo, duas tentativas taxindmicas: para Jean Ehrard, a historia das idéias recobre trés historias - “historia individualista dos grandes sistemas do mundo, historia dessa realidade coletiva e difusa que éa opiniao, historia estrutural das formas de pensamento € de sen- sibilidade”;? para Robert Darnton, a historia intelectual (intellectu- al history) compreende the history of ideas (the study of systematic thou- ght usually in philosophical treatises), intellectual history proper (the stu- dy of informal thought, climates of opinion and literacy movements), the social history of ideas (the study of ideologies and idea diffusion) and cul- tural history (the study of culture in the anthropological sense, including world-views and collective mentalités® [a histéria das idéias (o estudo 2 Jean Ehrard, “Histoire des idées et histoire littéraire”, in Problémes et méthodes de Uhistowe littéraire. Colloque 18 novembre 1972, Publications de la Société d'histoire littéraire de la France, Paris, Armand Colin, 1974, p.68-80. 3 Robert Damton, “Intellectual and Cultural History”, in The Past Before Us: Contemporary His- torical Writing in the United States, M. Kammer (ed.), Cornell University Press, 1980, p.337. 24 dos pensam: i en Ati Q ee ries pone NE geralmente em tratados filoséficos) tos inte antel ctual propriamente dita (o estudo dos pensamen- S, inia : a codiat dosadtine f de opiniao e das tendéncias literarias) a hi ias (0 estudo das ideologi i : dé ideologias e da difusdo pologice a storia cultural (o estudo da cultura no sentido are pore ine O as visGes do mundo eas mentalidades coletives) am voKE uvario diferente, essas definicdes dizem, no fund, . aethri : bem sa: que 0 campo da histéria dita intelectual reco- syeaweewen » 9 conjunto das formas de pensamento e que seu I tem mais precisao a priori i wel om ota saniee P do que aquele da histéria so- Para além i 6 . oan cm das designacGes e das definicées, importam portan agin 0, a ou as maneiras como, em um determinado mer to, ost istoriadores recortam este territério imenso e indeci ‘he contro de cposiedes observacao assim constituidas Toma- las n sicdes intelectuai ' . Vitel ( , $s ao mesmo tempo que ins- oon ‘ essas maneiras diversas determinam cada timna seu ob. Jet, suas ities conceituais, sua metodologia. No areata, as sustenta, explicitam: a ; a € ente ou nao cao da totali istori ‘que ela tetende ga 22 toral dade do campo hist6rico, do lugar que ela pretende ee oe ‘ laquele deixado aos outros ou recusado. A incerte. “aca con Pee nenayaa do vocabulario de designacao remetem Betshe na guma a estas lutas interdisciplinares cujas configura oes “or poten a ae campo de forcas intelectuais e cujo Sbje- ‘ e hegemonia é primei . wa dette gi » que € primeiramente hegemo- ueremos enta i larane unas nee expor aqui algumas das oposicdes que mode- a eira original a histéria i ae 4 6ria intelectual fi me iss > csrando consciente de um duplo limite: por um lado. na a quuestbe. igacoes Precisas, nao poderemos restituir plenamen. teas questo S Institucionals ou politicas subjacentes aos confrontos moe poe iO Pe SEO devido a nossa posi¢ao pessoal, privilegiare- guns debates, em particular, aqueles travados em torno dos Annales, de 1930 até hoj ili cuuacro de conju até hoje, desequilibrando talvez assim o OS PRIMEIROS “ANNALES” E A HISTORIA INTELECTUAL No século XX, a trajetoria da historia intelectual pa range (ae duplo sentido de suas muta¢des temAaticas ou meroee eda) ee i¢d isciplinar da hi des no campo disciplina deslocamento de suas posi¢ i melons i era externo: aq’ dada por um discurso que ne qu aoe ido pelos his duas Guerras Mundiais, i i i res que, entre as duas le mantido pelos historiado' orig nee c ira distinta de escrever a Nis . , formularam uma maneira ra ee portanto, partir daf e tentar compreender como aoe er amar nales e, em primeiro plano, Lucien Febvre e Marc Bloch, " ensara ( ist6ria i importa, nao i toria intelectual. O fato importa, © que devia ser a his' ree dager da a iva qualquer, mas porque ¢ d celebracao retrospectiva q' i a mum entre os ist6ri idéi -se progressivamente co! ‘ histéria das idéias tornou-se p! " ner nS i i ade histérica i 6 edida em que a comunl c toriadores, na propria m ed anata i i i nte sem diivida, tornava: signada, muito abusivame ase dominant, de inicio intelectualmente nos anos 1930, em seguida institucio 5 4 mente apos 1945. _— ae . Para Febvre, pensar a historia intelectual € nine oe . a.cofic gir aquela que se escreve em sua época. Desse ponte devs a ™ imei ublica Rev inui é os primeiros resumos Pp tinuidade é grande entre P dle ése histori ri Berr, antes de 1914, e aq q de synthése historique de Hen h a or monet aos Annales durante e apés a Segunda Guerra Mun fa or 0 ar 5 recensOes que consagra, Nn: exemplo, as duas longas Tear ee ode. i Jaruelle sobre Budé e, € q em 1907, ao livro de L. De } a Droz sobre Proudhon. Ai se encontram formuladas duas interes : a 6pri ntos de seus grandes livros, 6 0 os préprios fundame: cdes que fornecera' : ie eae ae podese Fe ais em 1942. Primeiral , ‘ser o Luther em 1929 e 0 Rabe ae Oe delas ira i icionais de que se serve a Nis' duzir as categorias tradicion: a oes i Reforma, etc.) os pensame: Renascenc¢a, Humanismo, tc. eres seetradltorios, frequentemente composites © on Se gecton évei ou de um meio: lesign : re méveis de um homem , F cths ¢ classificatorias encerram contra-sensos € traem a vive! inuiti i inuities”, Review, vol. 1,n.3/ “ Jes, Continuities and Discontinult : ‘ ena eT 1978, pol8 ¢ “Histoire et sciences sociales: les paradigmes des , invel ,P- _ Annales’, Annales E.S.C., 1979, p-1360-1376. 26 psicoldgica ¢ intelectual antiga: “Assim, por exemplo, designando com o préprio nome de reforma, no inicio desse século [o século XVI], o esforco de renovacao religiosa, de renascimento cristo de um Lef€vre e de seus discipulos, j4 nao deformamos, interpretan- do-a, a realidade psicolégica de entao?” Livrando-se dos rétulos que, pretendendo identificar os pensamentos antigos, na verdade os tra- vestem, a tarefa dos “historiadores do movimento intelectual” (como escreve Lefévre) é, antes de tudo, reencontrar a originalidade, irre- dutivel a toda definicao a priori, de cada sistema de pensamento, em sua complexidade e seus deslocamentos. O esforco para pensar a relacao entre as idéias (ou as ideologi- as) e a realidade social através de categorias distintas daquelas da influéncia ou do determinismo é a segunda preocupacao expressa por Febvre antes mesmo de 1914. Testemunha disso € este texto de 1909 acerca do proudhonismo: Nao ha, no sentido préprio, teorias “criadoras” - porque assim que uma idéia, por mais fragmentaria que seja, foi realizada no dominio dos fatos e de maneira tao imperfeita quanto possivel - nao é a idéia que conta con- seqlientemente e que age, é a instituicdo situada em seu lugar, em seu tem- po, incorporando-se uma rede complicada e mével de fatos sociais, pro- duzindo e sofrendo alternadamente mil ac6es diversas e mil reacées.® Mesmo que os procedimentos de “encarnacao” das idéias sejam sem duvida mais complexos do que Febvre deixa supor aqui, resta que ele afirma claramente sua vontade de romper com toda uma tradi- cao de historia intelectual (figura invertida de um marxismo simpli- ficado) que deduzia de alguns pensamentos voluntaristas a totalidade dos processos de transformacio social. Para ele, 0 social nao pode- ria de modo algum se dissolver nas ideologias que visam a modela- lo, Estabelecendo assim, nesses textos de juventude, uma dupla dis- " Lucien Febvre, “Guillaume Budé et les origines de I’-humanisme francais. A propos d'ouvrages récentes”, Revue de synthése historique, 1907, retomado em Pour une histoire & part entiére, Paris, SEVPEN, 1962, p. 708. “Lucien Febvre, “Une question d’influence: Proudhon et les syndicalismes des années 1900-1914”, Revue de synthése historique, 1909, retomado em Pour une histoire 4 part entiére, op. cit., p.785. tancia, de um lado, entre as maneiras de pensar antigas € as nocoes, na maioria das vezes muito pobres, com as quals 0S historiadores pre- tendiam catalogélas; de outro, entre esses pensamentos antigos € 0 terreno social onde eles se inscrevem, Lucien Febvre indicava 0 Ca- minho a seguir para uma analise hist6rica que tomaria por modelo as descricées dos fatos de mentalidade tais como os construjam en- tao os socidlogos durkheimianos ou 0s etndlogos que seguiam a tri- évy-Bruhl. m “Quaranta anos mais tarde, contra uma historia das idéias que Febvre percebe como imobilizada em suas abstracoes, 0 tom tornou- se mais critico e mais mordaz. Em 1938, ele maltrata assim os histo- riadores da filosofia: De todos os trabalhadores que retém, precisado ou nao por algum “or teto, o qualificativo genérico de historiadores, nao existe quem ° justi _ que de alguma maneira ao nosso ver ~ salvo, com bastante | Fequé ne aqueles que, aplicando-se a repensar por sua conta sistemas - ji jm varios séculos de idade, sem a menor preocupacao de estabel ecer sua relacéo com as outras manifestagdes da €poca que os viu nascer ac am ~ se assim fazendo, muito exatamente, 0 contrario do que recl ama | método de historiadores. E que, diante dessas criacoes de aE dos de inteligéncias desencarnadas ~ € depois vivendo sua propria on fora do tempo e do espaco, urdem estranhas cadeias, de anéis ao mo tempo irreais e fechados ...’ Contra a historia intelectual do tempo, a critica é, portanto, dupla. Por isolar as idéias ou os sistemas de pensamento das condicoes que autorizaram sua producao, por separa-los radicalmente das formas da vida social, essa histéria desencarnada institui um universo de abstra- cdes onde o pensamento parece nao ter limites ja que nao tem de- pendéncias. Explicando—- com admiracao — 0 livro de Etienne Gilson, La Philosophie au Moyen Age, Febvre retoma, em 1948, esta idea cen- tral para ele: “Nao se trata de subestimar o papel das idéias na histo- ria. Menos ainda de subordina-lo 4 acao dos interesses. Trata-se de mostrar que uma catedral gética, os mercados de Ypres... € uma des- 7 Lucien Febvre, “Leur histoire et la nétre”, Annales d ‘histoire économique et sociale, 1928, retomado em Combats pour l'Histoire, Paris, Armand Colin, 1953, p-278. sas grandes catedrais de idéias como as que Etienne Gilson nos des- creve em seu livro—sao as filhas de um mesmo tempo. Irmas que cres- ceram em um mesmo lar”.® Sem explicita-la ou teoriza-la, Febvre su- gere aqui uma leitura que postula, para uma dada época, a existéncia de “estruturas de pensamento” (a expressdo nao aparece em Febvre), clas pr6éprias comandadas pelas evolucées socioeconémicas, que or- ganizam tanto as construgées intelectuais quanto as producoes artis- licas, tanto as praticas coletivas como os pensamentos filos6ficos. Arquitetura e escolastica: a letra mesma da observacao de Feb- vre convida a aproximé-la do livro muito contemporaneo de Erwin Panofsky, Gothic Architecture and Scolasticism (objeto de uma série de conferéncias em 1948 e publicado em 1951).° Com efeito, ambos, de maneira paralela, e muito provavelmente sem influéncia recipro- ca, tentam na mesma €poca criar os meios intelectuais que permi- (am pensar este “espirito da €poca”, este Zeitgeist que, por exemplo, fundamenta todo o método de Burckhardt mas que, para Panofsky ¢ para Febvre, é, bem mais do que o que explica, justamente o que deve ser explicado. Fazendo isso, cada um a sua maneira, distancia- se das nocGes que até entao subentendiam implicitamente os traba- thos de historia intelectual, ou seja: 1. o postulado de uma relacao consciente e transparente entre as intencdes dos produtores intelectuais e seus produtos; 2. a atribuicao da criacao intelectual (ou estética) apenas a in- ventividade individual, portanto, sua liberdade — idéia que funda o motivo mesmo, tao caro a uma certa hist6ria das idéias, do precursor; 3. a explicagao das concordancias determinadas entre as dife- rentes producoes intelectuais (ou artisticas) de um tempo, seja pelo jogo dos empréstimos e das influéncias (outras palavras mestras da hist6ria intelectual), seja pela referéncia a um “espirito da época”, conjunto compésito de tragos filoséficos, psicolégicos e estéticos. “Lucien Febvre, “Doctrines et sociétés. Etienne Gilson-et la philosophie du XIV‘ siécle”, Annales E.S.C., 1948, retomado em Combats pour l'Histoire, op. cit., p.288. “Erwin Panofsky, Architecture gothique et pensée scolastique, precedido por L’Abbé Suger de Saint-Denis, traducdo e posfacio de Pierre Bourdieu, Paris, Editions de Minuit, 1967. Pensar de outro modo essas diferentes relacées (entre a obra e seu criador, entre a obra e sua €poca, entre as diferentes obras de uma mesma época) exigia forjar conceitos novos: em Panofsky, os de habitos mentais (ou habitus) e de forcas formadoras de habitos (habit-forming forces); em Febvre, o de aparelhagem mental. Em am- bos 0s casos, gracas a essas Novas nocoes, tomava-se uma distancia dos procedimentos habituais da historia intelectual e, por essa ra- z4o, seu proprio objeto se encontrava deslocado. Em seu Rabelais, publicado em 1942, Febvre nao define a apa- relhagem mental, mas carateriza-a assim: A cada civilizacdo sua aparelhagem mental; mais do que isso, a cada época de uma mesma civilizagdo, a cada progresso, seja das técnicas, seja das ciéncias que a carateriza — uma aparelhagem renovada, um pouco mais desenvolvida para certos empregos, um pouco menos para outros. Uma aparelhagem mental que essa civilizacao, que essa época nao esta garan- tida de poder transmitir, integralmente, as civilizacGes, as Epocas que vao lhe suceder; ela podera conhecer mutilacées, retrocessos, deformacées significativas. Ou, ao contrario, progressos, enriquecimentos, complica- ces novas. Ela vale para a civilizacdo que soube forja-la; vale para a épo- ca que a utiliza; nao vale para a eternidade, nem para a humanidade: nem mesmo para 0 curso restrito de uma evolucio interna de civilizagao."” O que queria dizer trés coisas: primeiramente, seguindo o Lévy-Bruhl de La Mentalité primitive (1922), que as categorias do pensamento nao sio nem universais nem redutiveis Aquelas operacionalizadas pelos homens do século XX; em seguida, que as maneiras de pensar depen- dem, antes de mais nada, dos instrumentos materiais (as técnicas) ou | conceituais (as ciéncias) que as tornam possiveis; enfim — contra um evolucionismo ingénuo — que nao ha progresso continuo € necessario (definido como uma passagem do simples ao complexo) na sucessao das diferentes aparelhagens mentais. Para compreender o que, para Febvre, designa a prépria nocdo de aparelhagem mental, dois textos podem ser evocados: por um lado, o tomo primeiro de LEncyclopédie | francaise, publicado em 1937, sob o titulo L’Outillage mental. Pensée, lan- Lucien Febvre, Le Probleme de U’incroyance au XVI siécle. La religion de Rabelais, 1942, ree- dicdo, Paris, Albin Michel, col. L’Evolution de VHumanité, 1968, p.141-142. 30 gage, manthématique, por outro, o segundo livro da segunda parte de Rabelais. O que define nessas paginas a aparelhagem mental € 0 estado da lingua, em seu léxico e sua sintaxe, as ferramentas e a linguagem cien- tifica disponiveis, e também este “suporte sensivel do pensamento” que € o sistema das percepcGes, cuja economia varidvel comanda a estrutu- ra da afetividade: “Aparentemente tao préximos de nés, os contempo- raneos de Rabelais j4 estao muito longe por todas suas pertengas inte- lectuais. E sua propria estrutura nao era a nossa”! (0 grifo é nosso). Em uma determinada época, o cruzamento desses diferentes suportes (lin- guisticos, conceituais, afetivos) comanda “modos de pensar e de sen- tir” que recortam configurac6es intelectuais especificas (por exemplo, sobre os limites entre o possivel e o impossivel ou sobre as fronteiras entre o natural e o sobrenatural). A tarefa primeira do historiador, assim como do etndlogo, é entao resgatar essas representacoes, em sua irredutivel especificida- de, sem recobri-las com categorias anacr6nicas, nem medi-las pela aparelhagem mental do século XX, posto implicitamente como.o resultado necessdrio de um progresso continuo. Também aqui, Febvre reencontra Lévy-Bruhl para alertar contra uma leitura erré- nea dos pensamentos antigos. Prova disso é a similitude entre a in- troducao de La Mentalité primitive. Ao invés de substituirmos em imagina¢ao os primitivos que estudamos, e de fazé-los pensar como nés pensariamos se estivéssemos em seu lu- gar, o que sé pode levar a hipéteses no maximo provaveis e quase sem- pre falsas, esforcemo-nos, ao contrario, para nos prevenir contra nossos préprios habitos mentais e tratemos de descobrir os dos primitivos por meio da andlise de suas representagdes coletivas e das ligagdes entre es- sas representacdes”” e as primeiras paginas de um livro publicado por Febvre em 1944, Amour sacré, amour profane. Autour de l’Heptaméron: A esses ancestrais, atribuir candidamente conhecimentos de fato - e por- tanto materiais de idéias — que possuimos todos, mas que eram impossi- " Dbid., p. 394. " Lucien Lévy-Bruhl, La Mentalité primitive, 1922, reedicdo, Paris, Retz, 1976, p.41. 31 veis de adquirir mesmo pelos mais sdbios dentre eles; imitar tantos bons missiondrios que outrora voltavam maravilhados das “ilhas”: pois todos os selvagens que tinham encontrado acreditavam em Deus; um pequeno passoa mais, e eles seriam verdadeiros cristaos; dotar também nés, os con- temporaneos do papa Ledio, com uma generosidade sem limite, das con- cepgées do universo e da vida que nossa ciéncia nos forjou e que sao tais que nenhum de seus elementos, ou quase, jamais habitou o espirito de um homem da Renascenga -, podem-se contar infelizmente os historia- dores — falo dos mais influentes, que recuam diante de uma tal deforma- cao do passado, uma tal mutilacdo da pessoa humana em sua evolucao. E isso, sem dtivida, por nao se ter levantado a questao acima, a questao da inteligibilidade. Na verdade, um homem do século XVI deve ser inteligi- vel nao em relacdo a nds, mas emi relacado a seus contemporaneos."* Anocio de aparelhagem mental tal como empregada por Feb- vre apresenta, todavia, um certo ntimero de diferencas em relagao aos conceitos, no entanto préximos, avancados na mesma €poca por Panofsky. Em primeiro lugar, a propria palavra aparelhagem (ou a expressao “aparelhos mentais”, as vezes empregada por Febvre) , que sugere a existéncia quase objetivada de uma pandplia de instrumen- tos intelectuais (palavras, simbolos, conceitos, etc.) a disposi¢ao do pensamento, contrasta com a maneira como Panofsky define 0 ha- bito mental, conjunto de esquemas inconscientes, de principios in- teriorizados que dao sua unidade as maneiras de pensar de uma época seja qual for o objeto pensado. Nos séculos XII e XII, por exemplo, sao os principios de esclarecimento e de conciliacao dos contrarios que constituem um modus operandi escolastico, cujo cam- po de aplicacéo nao se limita A construc4o teolégica. Dessa primei- ra decalagem resulta uma segunda. Em Febvre, a aparelhagem inte- lectual que os homens podem manipular os homens de uma época €é pensada como um estoque dado de “materiais de idéias” (para re- tomar sua expressio). Conseqientemente, 0 que diferencia as men- talidades dos grupos sociais é, antes de mais nada, a utilizagao mais ou menos extensa que fazem dos “instrumentos” disponiveis: os mais eruditos empregarao a quase totalidade das palavras ou dos concei- 13 Lucien Febvre, Amour sacré, amour profane. Autour de UHeptaméron, 1944, reedicao, Pa- ris, Gallimard, col. Idées, 1971, p-10. 32 tos existentes, Os mais desfavorecidos nao utilizardo senao uma par- te infima da aparelhagem mental de sua época, limitando assim, em relacao a seus préprios contemporaneos, o que lhes € possivel iene sar. A énfase em Panofsky é distinta (e paradoxalmente mais social) Com efeito, para ele, os habitos mentais remetem a suas condigdes de inculcacao, portanto, a estas “forcas formadoras de habitos” (habit- forming forces) — por exemplo, a instituigao escolar em suas diferen- tes modalidades — préprias a cada grupo. Ele pode entao compre- ender, na unidade de sua producio, as homologias de estrutura exis. tentes entre diferentes “produtos” intelectuais de determinado meio, e também pensar as variacdes entre os grupos como diferengas en tre sistemas de percepcao e de apreciacao, eles préprios remetendo adiferencas nos modos de formacao. E dessa concepcao que se apro- xima Marc Bloch quando, no capitulo de La Société féodale intitula- do | Maneiras de sentir e de pensar”, hierarquiza niveis de lingua e universos culturais em funcdo das condic¢ées de formacao intelec- tual." No entanto, aqui falta, como em Febvre, a andlise (central em Panofsky) dos mecanismos através dos quais categorias de pensamen- to fundamentais tornam-se, em um determinado grupo de agentes sociais, esquemas interiorizados e inconscientes, estruturando todos os pensamentos ou acoes particulares. Apesar dessa limitacao, de natureza teérica, fica bem claro que a posigao dos historiadores da primeira geracao dos Annales pesou muito na evolugao da hist6ria intelectual francesa. De fato, ela des- locou o proprio questionamento: o que é importante compreen- der nao é mais as audacias do pensamento, mas bem mais os limi- tes do concebivel. A uma histéria intelectual das inteligéncias sem limites € das idéias sem suporte, € oposta uma historia das repre- sentacoes coletivas, das aparelhagens e das categorias intelectuais disponiveis e compartilhadas em uma época dada. Em Lucien Febvre, éum tal projeto que funda o primado concedido ao estu- do biografico. Luther em 1928, Rabelais e Des Periers em 1942 Marguerite de Navarre em 1944: casos onde determinar como, para "Marc Bloch, La Sociélé féodale, 1939. ica i in Mi eA PHumanité, 1968, we 98. > , reedicao, Paris, Albin Michel, col. L’Evolution de 33 os homens do século XVI, se organizam a percepcao ea represen- tagao do mundo, como se definem os limites do que é entao possi- vel pensar, como se constroem relacdes proprias a época entre re- ligido, ciéncia e moral. Assim, o individuo é devolvido a sua épo- ca, jd que, seja ele qual for, nao pode se subtrair as determinagoes que regulam as maneiras de pensar e de agir de seus contempora- neos. A biografia intelectual 4 Febvre é, portanto, na verdade, his- t6ria social, visto que situa seus herdis como testemunhas €, ao mesmo tempo, como produtos das imposi¢6es que limitam a livre invencao individual. O caminho estava assim aberto (uma vez aban- donado o gosto particular de Febvre pela biografia) para uma his- toria dos sistemas de crencas, de valores e de representacdes pro- prios a uma época ou grupo, designada na historiografia francesa pela expressdo, tanto mais globalizante quanto seu contetido no- cional permanece vago, de “histéria das mentalidades”. E ela que devemos examinar agora. HISTORIA DAS MENTALIDADES/HISTORIA DAS IDEIAS A partir dos anos 1960, a nocao de mentalidade imp6e-se na historiografia francesa para qualificar uma histdria que nao estabe- lece como objeto nem as idéias nem os fundamentos socioecond- micos das sociedades. Mais exercida do que teorizada, essa histéria das mentalidades “a francesa” repousa sobre um certo numero de concep¢6ées mais ou Menos comuns a seus praticos.” Primeiramen- te, a definicdo da palavra: “a mentalidade de um individuo, mesmo sendo um grande homem, é justamente 0 que ele tem de comum com outros homens de seu tempo”, ou ainda “o nivel da historia das 1s es Duby, “L’histoire des mentalités”, in L’Histoire et ses méthodes, Paris, Galli- mand, Bibliotheque de la Pléiade, 1961, p.937-966; Robert Mandrou, “histoire des mentalités”, in Encyclopedia Universalis, vol. VII, 1968, p-436-438; Georges Duby, | His- toire sociale et histoire des mentalités. Le Moyen Age”, 1970, in Aujourd ‘hut UHistoire, Paris, Editions Sociales, 1974, p.201-217; Jacques Le Goff, “Les mentalités. Une histoire ambigué”, in Faire de Phistoire, Paris, Gallimard, 1974, t. UI, p.76-94; Philippe Ariés, “L’histoire des mentalités”, e Roger Chartier, “Outillage mental”, in La Nouvelle Histoire, Paris, Retz, 1978, p.402-423 e p.448-452. 34 mentalidades é aquele do cotidiano e do automatico, € 0 que esca- pa aos sujeitos individuais da histéria porque revelador do contet- «lo impessoal de seu pensamento” (as duas definicées so de Jacques Le Goff). E assim constituido como objeto histérico fundamental tum objeto que é 0 contrario mesmo daquele da histéria intelectual classica: a idéia, construcdo consciente de uma mente individuada, opoe-se termo a termo a mentalidade sempre coletiva que regula, sem que eles o saibam, as representacées e julgamentos dos atores sociais. A relac4o entre a consciéncia e o pensamento é, portanto, estabelecida de uma nova maneira, préxima daquela dos socidlogos da tradicéo durkheimiana, enfatizando os esquemas ou os conteu- dos de pensamento que, mesmo que sejam enunciados sobre o modo individual, dependem, na verdade, dos condicionamentos incons- cientes ¢ interiorizados que fazem com que um grupo ou sociedade compartilhe, sem que seja preciso explicit4-los, um sistema de repre- sentacgoes e um sistema de valores. Outro ponto de acordo: uma concep¢do muito ampla do cam- po recoberto pela nocao de mentalidade que engloba, como escre- ve Robert Mandrou, “o que é concebido e sentido, o campo da inte- ligéncia e do afetivo”. Por isso, a atencdo dedicada tanto as catego- tias psicolégicas (e provavelmente) quanto as categorias intelectuais, portanto, mais uma decalagem entre uma historia das mentalidades identificada a psicologia histérica e a hist6ria intelectual em sua de- fini¢do tradicional. Muito presente em Febvre, leitor atento de Charles Blondel (Jntroduction & la psychologie historique, 1929) e de Henri Wallon (Principes de psychologie appliquée, 1930),'° e em seus su- cessores (0 livro de Mandrou, Introduction & la France moderne, 1500- 1640, publicado em 1961, ndo tem o subtitulo Essai de psychologie his- lorique?), essa identificacao funda a prépria obra de Ignace Meyer son, cuja importancia foi central para a transformacdo do campo dos '° Cf. seus trés artigos: “Méthodes et solutions pratiques. Henri Wallon et la psycholo- gie appliquée”, Annales d’histoire économique et sociale, 1931, “Une vue d’ensemble. His- toire et psychologie”, Encyclopédie Francaise, 1938, e “Comment reconstituer la vie affec- tive d’autrefois? La sensibilité et 'histoire”, Annales d'histoire sociale, 1941, retomado em Combats pour Vhistoire, op. cit., p.201-238. estudos gregos.'” Para além mesmo do projeto de reconstituicao dos sentimentos e das sensibilidades préprios aos homens de uma €po- ca (que é, grosso modo, 0 projeto de Febvre), sao as categorias psico- légicas essenciais, aquelas em acao na construcaéo do tempo e do espaco, na producao do imaginario, na percep¢ao coletiva das ati- vidades humanas, que sdo postas no centro da observacao e apreen- didas no que tém de diferente de acordo com as épocas hist6ricas. Por exemplo, a nocao de pessoa tal como abordada por Jean-Pierre Vernant, seguindo Meyerson: Nao ha, nao pode haver pessoa-modelo, exterior ao curso da historia humana, com suas vicissitudes, suas variedades conforme os lugares, suas transformacées conforme o tempo. A investigacao nao tem, pois, de es- tabelecer se a pessoa, na Grécia, é ou nao é, mas buscar 0 que é a pessoa grega antiga, em que ela difere, na multiplicidade de seus tracos, da pes- soa de hoje."® A partir de uma posigao intelectual semelhante, Alphonse Dupront propunha em 1960, no Congresso Internacional das Ciéncias His- toricas, em Estocolmo, constituir a historia da psicologia coletiva como disciplina particular no campo das ciéncias humanas, ¢ isso, dando-lhe uma extensado maxima ja que recobrindo “a histéria dos valores, das mentalidades, das formas, das simbédlicas, dos mitos”.'* Na verdade, através de uma tal definicdo da psicologia coletiva, era uma reformulacdo total da historia das idéias que era sugerida. Um dos objetos maiores da histéria da psicologia coletiva €, com efeito, constituido pelas idéias-forcas e pelos conceitos essenciais que habi- tam 0 “mental coletivo” (a expressao é de Dupront) dos homens de uma €poca. As idéias, apreendidas através da circulacao das palavras que as designam, situadas em seus enraizamentos sociais, pensadas em sua carga afetiva e emocional tanto quanto em seu contetido intelec- " Ignace Meyerson, Les Fonctions psychologiques et les oewvres, Paris, Vrin, 1948, reedicao, Paris, Albin Michel, 1995. '* Jean-Pierre Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs. Etudes de psychologie historique, Paris, Maspero, 1965, p.13-14. ’ Alphonse Dupront, “Problémes et méthodes d’une histoire de la psychologie collec- tive”, Annales E.S.C., 1961, p.3-11. 36 tual, tornam-se assim, exatamente como os mitos ou os valores, uma destas “forcas coletivas através das quais os homens vivem seu tempo”, portanto, um dos componentes da “psique coletiva” de uma civiliza- cao. Aqui, ha como que uma conclusao da tradicdo dos Annales, tan- to na caracterizacio fundamentalmente psicolégica da mentalidade coletiva quanto na redefini¢cao do que deve sera hist6ria das idéias, ressituada em uma exploracao global do mental coletivo. E claro, enfim, que como a histéria das mentalidades (conside- rada como uma parte da historia sociocultural) tem por objeto 0 co- letivo, o automatico, 0 repetitivo pode e deve fazer-se contavel: “A his- toria da psicologia coletiva necessita de séries, senao exaustivas, pelo menos 0 mais amplas possivel”.”” Vé-se, deste modo, o que ela deve a histéria das economias e das sociedades que, no horizonte da grande crise dos anos 1930, depois naquele do imediato pés-guerra, consti- tuiu o setor “pesado” (pela quantidade de investigacées € pelos éxi- tos de alguns empreendimentos) da pesquisa histérica na Franga. Quando, nos anos 1960, a histéria cultural emerge como 0 dominio mais freqiientado ¢ mais inovador da historia, ela o faz retomando, para transpé-las, as problematicas e as metodologias que garantiram o sucesso da hist6ria socioecondmica. O projeto é simples, claramen- te enunciado a posteriori por Pierre Chaunu: O problema consiste em usar realmente o terceiro nivel [ou seja, o afe- tivo e o mental (R. C.)] em beneficio das técnicas de uma estatistica re- gressiva, em beneficio, pois, da andlise matematica das séries e da dupla interrogacao do documento, primeiramente em si, depois em relacao a sua posicdo no seio da série homogénea na qual a informacao de base esta integrada e posta. Trata-se de uma adaptacao tao completa quanto possivel dos métodos aperfeicoados ha varios anos pelos historiadores da economia, ¢ depois por aqueles da quantidade social.*! Dessa primazia concedida 4 série e, portanto, a coleta e ao tra- tamento de dados homogéneos, repetidos e comparaveis a interva- ™ Tbid., p.8. 21 Pierre Chaunu, “Un nouveau champ pour Vhistoire sérielle: le quantitatif au troisiéme niveau”, in Mélanges en Vhonneur de Fernand Braudel, Toulouse, Privat, 1973, t. IL, p.105-125. los regulares, dependem varios corolarios, e primeiramente o privi- légio dado a conjuntos documentais macicos, amplamente represen- tativos socialmente e que autorizam sobre um longo periodo a cole- ta de dados miultiplos. Dai, a releitura e a reutilizagdo de fontes clas- sicamente utilizadas em histéria social (por exemplo, os arquivos notariais); dai, também, a invencao de novas fontes prdéprias a res- gatar os modos de pensar ou de sentir. Para além da similitude me- todolégica, essa “histéria serial do terceiro nivel” (para retomar a expressao, que discutiremos posteriormente, de Pierre Chaunu) compartilha com aquela das economias e das sociedades uma du- pla problematica. A primeira é a das duragées: como articular, com cfeito, o tempo longo de mentalidades que, no nivel do maior nt- mero, s40 pouco méveis e pouco plasticas, com o tempo curto de bruscos abandonos ou de transferéncias coletivas de cren¢a e de sen- sibilidade? A questao (levantada, por exemplo, acerca da descristia- nizagdo da Franca entre 1760 e 1800) reproduz a interrogacao cen- tral de La Méditerranée. como pensar a hierarquizacao, a articulacao ca complexidade das diferentes duracgdes (tempo curto, conjuntu- ra e longa duracao) dos fendmenos histéricos?” A segunda heranga problematica da hist6ria cultural reside na maneira de conceber as relagoes entre os grupos sociais € os niveis culturais. Fiéis 4 obra de Ernest Labrousse e a “escola” francesa de hist6ria social, os recortes feitos para classificar os fatos de mentali- dade resultam sempre de uma anilise social que hierarquiza os ni- veis de fortuna, distingue os tipos de rendas, classifica as profissdes. E, portanto, a partir dessa grade social e profissional, dada de ante- mao, que pode ser operada a reconstituigao dos diferentes sistemas de pensamento e de comportamentos culturais. De onde, uma ade- quacao necessaria entre as divisoes intelectuais ou culturais e as fron- teiras sociais, quer sejam aquelas que separam 0 povo € os notaveis, os dominados e os dominadores ou aquelas que fragmentam a esca- la social. Essa primazia quase tiranica do social, que define previa- * Fernand Braudel, La Méditerranée et le monde méditerranéen a Vépoque de Philippe II, 2.ed., Paris, Armand Colin, 1966, t. L, p.16-17, e “Histoire et sciences sociales. La longue du- rée”, 1959, in Eorits sur UHistoire, Paris, Flammarion, 1969, p.41-83. 38 mente variacGes culturais que em seguida se trata apenas de carac- terizar, é o traco mais nitido dessa dependéncia da hist6ria cultural em relacao 4 hist6ria social que marca a historiografia francesa do pos-guerra (pode-se alias observar que essa dependéncia nao existe em Febvre ou Bloch, mais sensiveis seja as categorias compartilha- das por todos os homens de uma é€poca, seja aos usos diferenciados do equipamento intelectual disponivel). Foi sobre esses fundamentos metodoldgicos, manifestos ou in- conscientes, que a histéria das mentalidades desenvolveu-se na his- toriografia francesa nos ultimos quinze anos. Ela respondia, com efeito, bem mais do que a historia intelectual, 4s novas tomadas de consciéncia dos historiadores franceses. Dentre estas, trés antes de tudo sao mais importantes. Em primeiro lugar, a consciéncia de um novo equilfbrio entre a histéria e as ciéncias sociais. Contestada em seu primado intelectual e institucional, a histéria francesa reagiu anexando os terrenos € os questionamentos das disciplinas vizinhas (antropologia, sociologia) que questionavam sua dominacao. A aten- cao deslocou-se entao para os objetos (os pensamentos e€ gestos co- letivos diante da vida e da morte, as crengas e rituais, os modelos educativos, etc.) até entao préprios a investigacao etnolégica e para novas quest6es, amplamente estrangeiras 4 hist6ria social, dedica- da antes de tudo a hierarquizar os grupos constitutivos de uma socie- dade. Tomada de consciéncia, também, de que as diferenciagoes sociais nao podem ser pensadas somente em termos de fortuna ou de dignidade, mas que sao ou produzidas, ou traduzidas por varia- ¢6es culturais. A distribuicao desigual das competéncias culturais (por exemplo, ler e escrever), dos bens culturais (os livros ou os quadros), das praticas culturais (das atitudes diante da vida aquelas diante da morte) tornou-se assim o objeto central de multiplas in- vestigacdes, conduzidas de acordo com métodos quantitativos e vi- sando, sem questiona-la, a dar um conteuido outro a hierarquizacao social. Enfim, uma outra tomada de consciéncia coletiva reconhe- ceu que, para abordar esses novos dominios, as metodologias classi- cas nao bastavam: eis a razao, como ja vimos, do recurso a andlise serial onde as disposigdes testamentarias, os motivos iconograficos 39 © os contetidos impressos substituiram os pre¢os do trigo; razao tam- hém do trabalho sobre a ou as linguagens, da lexicometria 4 seman- tica histérica, da descricao dos campos semanticos a andlise dos enun- ciados.”* Por transpor procedimentos e problemas que eram os da historia socioeconédmica, ao mesmo tempo que operava um deslo- camento do questionamento historico, a histéria das mentalidades (parte ou totalidade da histéria sociocultural) péde ocupar a dian- tcira do palco intelectual e parecer (como sugeria implicitamente Alphonse Ducront) reformular — e, portanto, desqualificar — a ma- _neira antiga de fazer a hist6ria das idéias. : Mas essa reformulacao também foi feita no interior do campo da hist6ria intelectual e chegou a posicées totalmente contraditdrias com aquelas dos historiadores das mentalidades. Aqui, a obra funda- mental, alids, bem acolhida pelos Annales, a de Lucien Goldmann.** No ponto de partida, seu projeto subentende uma mesma distancia em relacdo as modalidades tradicionais, biografica e positivista, da historia das idéias. Como em Febvre, como na histéria das mentalida- des, trata-se antes de tudo de construir a articulacao entre os pensa- mentos € 0 social. Extraido de Lukacs, 0 conceito de “visao do mun- do” € 0 instrumento que autoriza essa apreensao. Definido como “o conjunto de aspiragoes, de sentimentos e de idéias que retine os mem- bros de um mesmo grupo (na maioria das vezes, de uma classe social) € 0s opoe aos outros grupos”,” ele permite uma tripla operacao: atri- buir uma significacao e uma posicao sociais definidas aos textos lite- rarios e filos6ficos, compreender os parentescos que existem entre obras de forma e de natureza opostas, discriminar no interior de uma obra individual os textos “essenciais” (0 adjetivo é de Goldmann), cons- tituidos como um todo coerente, ao qual cada obra singular deve ser relacionada. Em Goldmann, o conceito de visao do mundo tem, pois, o encargo das fung6es que séo aquelas da aparelhagem mental em 2 Cf R. Robin, Histoire et Linguistique, Paris, Armand Colin, 1973. ™ Lucien Goldmann, Le Dieu caché. Etude sur la vision tragique dans les Pensées de Pascal et dans le thédtre de Racine, Paris, Gallimard, 1955, e 0 artigo de Robert Mandrou, “Tragi- que au XVII siécle. A propos de travaux récents”, Annales Z.S.C., 1957, p.305-313. * Lucien Goldmann, op. cit., p.26. 40 Febvre e, simultaneamente, do habitus em Panofsky (e Bourdieu). O Dieu Caché dava wma aplicacao, discutivel mas exemplar, dessas pro- postas, construindo os Pensées de Pascal e nove tragédias de Racine, de Andromaque até Athalie, como © corpus expressando com a maior coeréncia “uma visdo tragica do mundo”, identificada ao jansenismo, e relacionando essa consciéncia coletiva a um grupo particular, o dos Oficiais de toga privados de seu poder, portanto, de seu poder social, pela construcao do Estado absolutista. Seja qual for a validade histérica dessa anilise, ela trazia uma idéia essencial, totalmente oposta a um dos postulados da histéria das mentalidades, ou seja, que sao os “grandes” escritores e fildso- fos que exprimem com mais coeréncia, através de suas obras essen- ciais, a consciéncia do grupo social ao qual pertencem; sao elas que atingem “o maximo de consciéncia possivel do grupo social que ex- pressam”. De onde a primazia concedida aos textos maiores (defi- nidos, de maneira nova, por sua adequacdo a uma visdo do mundo) e seu corolario: a desconfianca, sendo a rejeicao, das abordagens quantitativas no campo da histéria cultural. Bem antes das reservas atuais, baseadas em uma concep¢ao antropolégica da cultura, foi na tradicao da histéria intelectual 4 Goldmann que surgiram os primei- ros alertas contra as ilusdes da quantificagdo. “Uma histéria sociol6- gica da literatura deve privilegiar o estudo dos grandes textos”, es- creveu Jean Ehrard,”* o que queria dizer, por um lado, que é na sin- gularidade desses textos que se mostram mais claramente, mais com- pletamente, as idéias compartilhadas; por outro, que as contagens das palavras, dos titulos, dos motivos, dos temas sao, no sentido pr6- prio, “insignificantes”, isto é, incapazes de restituir as significacées complexas, conflituais e contradit6rias, dos pensamentos coletivos. A coleta contavel do superficial, do banal, do rotineiro nao € repre- sentativa, ¢ a consciéncia coletiva do grupo (que é “inconsciéncia” coletiva para a maioria) se da a ler unicamente no trabalho, imagi- nativo ou conceitual, dos poucos autores que a elevam a seu mais alto grau de coeréncia e de transparéncia. * Jean Ehrard, op. cit., p.79. O debate que se trava aqui tange a definicao mesma da histo- ria intelectual, portanto, 4 constituicdo de seu objeto proprio. Em 1960, Dupront pleiteia assim contra a historia das idéias: A histéria das idéias, de resto mal distinta e capaz de receber, mais ou menos como um deposito generoso, tudo aquilo de que a historia tradi- cional se ocupava tao pouco, pende demais para a intelectualidade pura, a vida abstrata da idéia, isolada freqaentemente além da medida dos meios sociais onde ela se enraiza e que diversamente a exprimem [...]. O que importa, tanto quanto a idéia e talvez mais, €a encarnacao da idéia, suas significacdes, 0 uso que se faz dela.” De onde a proposta de uma histéria social das idéias, tendo por ob- jeto seu enraizamento e circulacdo. Em um texto dez anos depois, Franco Venturi recusa a pertinéncia de um tal projeto que, para ele, carece do essencial: I rischio della storia sociale dell’'Tiluminismo, quale la vediamo oggi soprattuto in Francia, é di studiare le idee quando son diventate ormai strutture mentali, senza cogliere mai il momento creativo e attivo, di esaminare tutto la struttura geologica del passato, salvo precisamente Unumus sulla quale crescono le prante ei fruite® . {O risco da hist6ria social das Luzes, tal como a vemos sobretudo hoje em dia na Franga, é estudar as idéias quando elas se tornaram estruturas mentais, sem apreender 0 momento criativo e ativo, examinar toda a es- trutura geoldgica do passado, salvo precisamente o htimus sobre o qual crescem as plantas e os frutos]. Idéias contra estruturas mentais: a oposicdo indica bem o lugar das divergéncias e a recusa do reducionismo suposto da histéria social (portanto quantitativa) da producao intelectual. Alias, esse reducio- nismo tem uma dupla face. A primeira é sociolégica, reduzindo a significacao das idéias 4 sua qualificacao social, quer seja dada pela posicdo dos individuos ou dos meios que as produzem, quer o seja pelo campo social de sua recepcao.™ Deve-se notar que essa critica, * Alphonse Dupront, op. cit. | , 24 Franco Venturi, Utopia e riforma nell'llluminismo, Turim, Einaudi, 1970, p.24. an Jean Ehrard, “Histoire des idées et histoire sociale en France au XVIII siecle: réflexions de méthode”, in Niveaux de culture et groupes sociaux, Anais do coléquio reunido de 7a 9 de maio de 1966 na Ecole normale supérieure, Paris/La Haye, Mouton, 1967, p.171-178. 42 dirigida contra os empreendimentos de sociologia cultural, nao co- loca em questao a perspectiva de Goldmann, mas situa-se na verda- de em sua heranca. Com efeito, a nocao de visio do mundo permi- te articular, sem reduzi-las uma 4 outra, de um lado, a significacao de um sistema ideolégico, descrito em si mesmo, de outro, as con- dic6es sociopoliticas, que fazem com que um grupo ou uma classe determinados, em um dado momento hist6rico, compartilhe, mais ou menos, conscientemente ou nao, esse sistema ideolégico. Esta- mos, portanto, longe das caracteristicas sumarias que esmagam o ideolégico sobre o social e levam, por exemplo, a designar as Luzes como uniformemente burguesas, sob o pretexto de que a maioria dos fil6sofos ou seus leitores o sao. Diante das idéias, ou melhor, dian- te dos conceitos de que se servem os homens de uma €poca hes dan- do um conteudo préprio a essa €poca, a tarefa do historiador das idéias é, pois, “substituir a busca de uma determinacao pela de uma fungdao’, funcao que nao pode alids ser apreendida senao pela consi- deracao global do sistema ideolégico da época considerada.” Mais recentemente, a critica dirigida a histéria social das idéias visou um outro alvo e denunciou uma outra forma de reducio- nismo, Ou seja, ndo mais a reducdo de uma idéia ou de uma ideolo- gia as suas condigdes de produgao ou de recepgao, mas a assimila- cdo, que é uma reificacao, dos contetidos de pensamento a objetos culturais. A “historia serial do terceiro nivel” carrega em seu proprio projeto uma tal reducao, j4 que seu empreendimento contavel su- poe ou que os fatos culturais e intelectuais analisados sejam de sai- da conjuntos de objetos (por exemplo, livros cujos titulos podem ser tratados estatisticamente, ou imagens cujos motivos podem ser in- ventariados), ou entéo que os pensamentos coletivos, tomados em suas express6es mais repetitivas e menos pessoais, sejam “objetiva- dos”, isto é, reduzidos a um conjunto reduzido de férmulas das quais se trata apenas de estudar a freqiéncia diferencial no interior dos diferentes grupos de uma populacao. A tentagao sociolégica consiste, portanto, em considerar as palavras, as idéias, os pensamentos, as ” Ibid., p.175 ea intervencao de Jacques Proust, p.181-183. 43 representacdes como meros objetos que se deve contar a fim de res- lituir sua distribuicaéo desigual. O que equivale a eliminar o sujeito (individual ou coletivo) da andlise e, ao mesmo tempo, denegar toda importancia 4 relacdo (pessoal ou social) que mantém os atores so- ciais com os objetos culturais ou os contetidos de pensamento. Ora, todo uso ou toda apropriacdo de um produto ou de uma idéia é um “trabalho” intelectual que faz falta certamente ao estudo apenas dis- tribucional: Nel caso della storia quantitativa delle idee, soltanto la consa- pevollexza della variabilita, storica e sociale, della figura del lettore, potra porre davvero le premesse di una storia delle idee anche qualitativamente diver- | sa [No caso da hist6ria quantitativa das idéias, somente a clara cons- ciéncia do carater hist6rica e socialmente variavel da figura do lei- tor podera estabelecer as verdadeiras premissas de uma histéria das idéias que seja diferente mesmo no plano gqualitativo]. Por exemplo, ¢ para seguir Carlo Ginzburg em seu terreno, 0 que os leitores fa- zem de suas leituras é uma questao decisiva diante da qual tanto as andlises tematicas da producdo impressa quanto aquelas da difusao social das diferentes categorias de obras permanecem impotentes. Assim como as modalidades das praticas, dos gostos e das opinides sao mais distintivas que estes,” os modos como um individuo ou um grupo apropria-se de um motivo intelectual ou de uma forma cul- tural sao mais importantes do que a distribuicao estatistica desse motivo ou dessa forma. Seguros de sua metodologia quantitativa, reunidos em uma definicao da historia das mentalidades menos vaga do que se disse,** os historiadores franceses ficaram por muito tempo surdos a essas interpelacoes. Implicitamente, sua representacao do campo da his- toria intelectual constituia essas criticas como sendo combates de retaguarda de uma tradicao esgotada e postulava, a termo, a absor- cao da histéria das idéias em um recorte mais vasto, que se podia “' Carlo Ginzburg, /I formaggio et i vermi. Il cosmo di un mugnaio del’500, Turim, Einaudi, 1976, p.XXI-XXII (trad. fr. Le fromage et les Vers. L'univers d’un meunier du XVF sitcle, 2. Paris, Aubier, 1993, p. 18). , 7 . Pierre Bourdieu, La Distinction. Critique sociale du jugement, Paris, Editions de Minuit, 1979, p.70-87. ™ Por exemplo, Robert Darnton, op. cit. 44 batizar de diversas maneiras (histéria sociocultural, historia das mentalidades, histéria da psicologia coletiva, histéria social das idéias, etc.). Pode-se ver hoje em dia que, neste caso, tratava-se de acreditar que no dominio da historia intelectual nada mudara des- de os anos 1930. Ora, o desconhecimento era duplo. Desconhecimen- to, primeiro, do modelo proposto a qualquer método de histéria in- telectual pela epistemologia, a de Bachelard, de Koyré ou Canguilhem. E sintomatico encontrar nos Annales apenas um artigo consagrado a Bachelard (duas paginas de Lucien Febvre, em 1939, sobre Psychanalyse du few) € nenhum sobre as obras de Canguilhem ou Koyré (0 tinico artigo publicado por Koyré na revista o sera somente em 1960). Essa extraordindria cegueira tem muitas conseqiiéncias: ela privou os historiadores franceses de todo um conjunto de conceitos que os teria alertado contra as certezas demasiado grosseiras advindas da investigacao estatistica e que lhes teria permitido substituir a descri- ¢ao nao articulada das producées culturais ou dos contetidos de pensamento de uma €poca (aquela estabelecida pelo estudo quan- litativo) pela compreensao das relacées que existem, em um dado momento, entre os diferentes campos intelectuais. Através disso, teria sido concebivel o que falta ao inventario contavel: primeiramente, os lacos de dependéncia reciproca que unem as representacdes do mundo, as tecnologias e 0 estado de desenvolvimento dos diferen- tes saberes; a seguir, através de uma nocao como a de obstaculo epis- temolégico (que encontra de outra mancira o que ha de mais agu- do na de aparelhagem mental), a articulacdo entre as representa- ¢des comuns (estoque de sensacoes, de imagens, de teorias) e os progressos dos conhecimentos designados como cientificos.* A es- cuta da epistemologia histérica poderia ter permitido igualmente colocar diferentemente 0 problema com o qual se choca toda his- toria das mentalidades, ou seja, as razGes e as modalidades da passa- gem de um sistema a outro. Ainda aqui, a constatacao das mutacées através da enumeracao dos objetos ou dos motives permanece im- potente para apreender os processos de transformacdo que nao “Gaston Bachelard, La Formation de Vesprit Scientifique. Contribution & une psychanalyse de la connaissance objective, Paris, Vrin, 1939. podem ser compreendidos a nao ser pensando, a maneira de Koyré, a dependéncia ¢a autonomia dos diferentes campos do saber. A pas- sagem de um sistema de representacées a outro pode entao ser vis- {a ao mesmo tempo como uma ruptura radical (nos saberes, mas também nas proprias estruturas do pensamento) € como um pro- cesso feito de hesitacdes, de retrocessos, de bloqueios.*® Aesse desconhecimento da epistemologia, que os privou dos instrumentos intelectuais capazes de articular o que a histdria social das idéias Ihes permitia apenas constatar, os historiadores acrescen- taram por muito tempo um outro: aquele da maneira nova de pen- sar as relacOes entre as obras (no sentido mais amplo) e a socieda- de, tal como a formulavam, sendo fiéis mas também se distancian- do de Lucien Goldmann, historiadores da literatura e das idéias. A problematica comum 4 histdria era ai deslocada de uma dupla ma- neira: de um lado, dando uma acepcio da representatividade que nao era fundada sobre a quantidade; de outro, desarticulando os sistemas ideologicos da sociedade cujos conflitos supostamente re- fletiam ou prolongavam ou traduziam — 0 que, contudo, nao signi- fica afirmar sua absoluta independéncia face ao social, mas estabe- lecer essa relacio em termos de homologias estruturais ou de cor- respondéncias globais. Hoje em dia, os historiadores das mentalida- des resgatam a validade desses questionamentos, outrora negligen- ciados, sem diivida porque, renunciando ao projeto de uma hist6- ria total, levantam agora o problema das articulacdes entre escolhas intelectuais e posicdo social em escala de segmentos sociais bem delimitados, até mesmo naquela do individuo.** Nessa escala redu- zida, e sem dtivida somente nela, podem-se compreender, sem re- 3 Alexandre Koyré, From the Closed World to the Infinite Universe, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1957 (trad. fr. Du monde clos 4 Uunivers infini, Paris, P.U.F, 1962, p.1-6). ° A titulo de exemplos, ver o livro ja citado na nota 31, de Carlo Ginzburg, consagrado 4 cosmologia de um moleiro de do Fritili, Domenico Scar uella, dito Menocchio, e os ensaios de Natalie Zemon Davis, que levantam, a partir de alguns “case studies", 0 pro- blema das relacées entre escolha religiosa e pertenca social, reunidos em Society and Culture in Early Modern France, Stanford University Press, 1975 (trad. fr. Les Cultaures du peuple. Rituels, savoirs et résistances au XVP siécle, Paris, Aubier-Montaigne, 1979). 46 ducao determinista, as relacdes entre sistemas de crencas, de valo- res e de representacgoes de um lado, e pertengas sociais de outro. Os procedimentos de andlise, no dpice, préprios a4 histéria dos pensa- mentos sao assim mobilizados sobre um outro terreno, para apre- ender como um grupo ou um homem “comum” apropria-se 4 sua maneira, que pode ser deformadora, das idéias ou das crencas de seu tempo. Longe de estar esgotada, a historia intelectual (entendi- da como a andlise do “trabalho”, cada vez especifico, feito sobre um material ideolégico dado) anexa assim o terreno dos pensamentos populares, que parecia por exceléncia o dominio reservado da his- téria quantificada. Entre histéria das mentalidades e histéria das idéias, as relac¢des devem ser concebidas de uma mancira infinita- mente mais complexa do que aquela comum aos historiadores fran- ceses dos anos 1960. RECORTES EM QUESTAO Além dos métodos de andlise ou das definicoes disciplinares, as questoes fundamentais dos debates de hoje concernem aos recor- tes essenciais que até entao eram admitidos por todos. Essas distin- ¢6es primordiais, expressas mais geralmente através dos pares de oposicées (erudito/popular, criagio/consumo, realidade/ficcao, etc.), eram como que a base comum e€ nao problematica sobre a qual se podiam apoiar maneiras de tratar os objetos da hist6ria intelec- tual ou cultural, as quais divergiam. Ora, de alguns anos para ca, s40 esses prdprios recortes que se tornaram objeto de questionamentos, convergentes, senao idénticos. Pouco a pouco, os historiadores to- maram de fato consciéncia de que as categorias que estruturavam o campo de sua andlise (com tal evidéncia que frequentemente nao era percebida) também eram, exatamente como aquelas cuja histé- ria faziam, o produto de divisGes méveis € temporarias. Por essa ra- zao, a atencao deslocou-se agora (neste texto, mas sem duvida tam- bém no seio da disciplina histérica) para uma reavaliacao critica das distincdes consideradas evidentes e que sao, na verdade, o que deve ser questionado. 47 Primeira divisao tradicional: aquela que opée erudito e popu- lar, high culture e popular culture. Estabelecida como evidente, essa diviséo encerra em si mesma toda uma série de corolarios metodo- légicos cujo principio John Higham estabelecia em 1954: The internal analysis of the humanist applies chiefly to the intellectual elite, it has not reached very far into the broad field of popular thought. The blunter, external approach of the social scientist leads us closer to collective loyalties and aspirations of the bulk of humanity" [A andlise internalista do es- pecialista das humanidades aplica-se principalmente 4 elite intelec- tual, nao tendo penetrado muito no vasto campo do pensamento popular. A abordagem dogmatica e externalista do especialista de ciéncias sociais € mais préxima das lealdades coletivas e das aspira- ¢des da maior parte da humanidade]. Encontra-se em intimeros textos, na Franca e nos Estados Uni- dos, essa mesma oposicao entre, de um lado, a cultura da maioria, que diria respeito a uma abordagem externa, coletiva e quantitativa e, de outro, a intelectualidade dos pensamentos no dpice, suscetivel ape- nas de uma andlise interna, individualizando a irredutivel originali- dade das idéias. Claramente ou nao, foi sobre essa distingao que se basearam os historiadores desejosos de explorar o vasto territério da cultura popular, objeto nao tinico, mas em todo caso privilegiado da hist6ria das mentalidades na Franca e de uma histéria cultural ampla- mente inspirada pela antropologia nos Estados Unidos. Vejamos 0 exemplo francés. A cultura popular (que poderia ser designada também como o que é considerado como popular no campo da historia intelectual) foi duplamente identificada na Franca: a um conjunto de textos — aquele dos livretos vendidos de porta em porta e conhecidos sob 0 nome genérico de “Bibliothé- que bleue” [Biblioteca azul]; a um conjunto de crengas e de ges- tos considerados como sendo constitutivos de uma religido popu- lar. Em ambos 0s casos, o popular é definido por sua diferenga de algo que nao é ele (a literatura erudita e letrada, 0 catolicismo normativo da Igreja); em ambos os casos, o historiador (“intelec- ¥ John Higham, “Intellectual History and its Neighbours”, The Journal of the History of Ideas, vol. XV, n. 3, 1954, p.346. 48 tual” ou “cultural”) tem diante de si um corpus bem recortado do qual deve inventariar os motivos. Ora, é justamente esse recorte que causa problema. Por um lado, a atribuicdo social das praticas culturais até entdo designadas como populares é agora pensada de maneira mais complexa. A reli- giao “popular” seria a dos camponeses, do conjunto dos dominados (em oposicao as elites), da totalidade dos leigos (em oposicao aos clérigos)? A literatura “popular” alimenta as leituras (ou a escuta) da sociedade camponesa, ou de um ptiblico mediano situado entre 0 povo analfabeto e a magra minoria dos letrados, ou entao consti- tui uma leitura compartilhada por toda uma sociedade, que cada grupo decifra a sua maneira, da mera determinacdo dos signos 4 lei- tura corrente? Questées dificeis, mas que em todo caso indicam que nao € simples identificar um nivel cultural ou intelectual, que per- tenceria ao popular, a partir de um conjunto de objetos ou de prati- cas. Por outro lado, todas as formas culturais onde os historiadores reconheciam a cultura do povo revelam-se, atualmente, sempre como conjuntos mistos que retinem, em uma imbricacdo dificil de desatar, elementos de origens muito diversas. O repertério da Biblio- théque bleue foi produzido por profissionais da escrita, mas os proce- dimentos de reescritura que submetem os textos eruditos a adapta- ces e revisdes visam a torné-los “populares”. E por meio da compra, mais ou menos maciga, os leitores revelam suas preferéncias; assim, seus gostos estao em posicao de mudar o rumo da propria publica- ¢ao dos textos. Em um movimento inverso, a cultura folclérica, que da sua base 4 religido da maioria, foi profundamente “trabalhada” em cada €poca pelas normas ou pelos interditos da instituicdo ecle- sidstica. Saber se deve ser chamado de popular o que é criado pelo povo ou entao o que lhe é destinado é, pois, um falso probleme. Importa, antes de tudo, a identificacao da maneira como, nas prati- cas, nas representac6es ou nas producoes, cruzam-se e imbricam-se diferentes figuras culturais. Essas constatacées s6 afastam aparentemente da histéria cultu- ral, e por duas razes. Primeiramente, é claro que a propria cultura de elite € constituida, em grande parte, por um trabalho operado so- 49 a bre materiais que nao lhe sao préprios. E um mesmo jogo sutil de apropriacgdo, de reempregos, de desvios que funda, por exemplo, as telac6es entre Rabelais e a “cultura popular do lugar”** ou entre os irmaos Perrault e a literatura oral. A relacao assim instaurada entre a cultura de elite e o que ela nado € concerne tanto as formas quanto aos contetidos, tanto aos cédigos de expressao quanto aos sistemas de represent:cdes, portanto, 4 totalidade do campo reconhecido a his- (ria intelectual. Esses cruzamentos nao devem ser entendidos como relacées de exterioridade entre dois conjuntos dados de antemao e justapostos (um erudito, outro popular), mas como produtores de “aliagens” culturais ou intelectuais, cujos elementos estao tao solida- mente incorporados uns aos outros quanto nas aliagens metalicas. Se seguirmos Bakhtin, para certas épocas (como a Renascenca), até mes- mo em obras da cultura letrada ou erudita a cultura popular se mani- festaria com 0 maximo de coeréncia e revelaria da forma mais com- pleta possivel seu proprio principio. Para ele, a obra de Rabelais é “in- substituivel quando se trata de penetrar a esséncia mais profunda da cultura cémica popular. No mundo que ele criou, a unidade interna de todos seus elementos heterogéneos revela-se com uma excepcio- nal clareza, tanto é verdade que sua obra constitui toda uma enciclo- pédia da cultura popular”.” “Enciclopédia”: isto significa que, além da utilizagao de palavras, de imagens ou de formas da “cultura comi- ca popular”, todo o texto funciona sobre uma concep¢ao da vida e do mundo que é aquela mesma da cultura carnavalesca, estabelecida como 0 “seio materno” de toda expressao popular. Por outro lado, tornar problematica a divisio popular/erudito é, ao mesmo tempo, anular as diferencas metodolégicas postuladas como necessdrias para o tratamento contrastado de um e de outro dominio. O “popular” nao é por natureza destinado a andlise quanti- tativa e externa dos social scientists e, como mostra Carlo Ginzburg, 8 Cf. Mikhail Bakthine, L’Ocuure de Francois Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Rennaissance, trad. fr. Paris, Gallimard, 1970. Marc Soriano, Les Contes de Perrault. Culture savanie et traditions populaires. Paris, Galli- mard, 1968. * Mikhail Bakthine, op. cit., p.67. 50 ry quando os documentos o autorizam, é plenamente licito examinar, minuciosamente, como um homem do povo pode pensar e utilizar os elementos intelectuais esparsos que, através de seus livros e da lei- tura que faz deles, Ihe vém da cultura letrada. Bakhtin € aqui inverti- do, ja que é a partir de fragmentos tomados da cultura erudita e li- vresca que se constrdéi um sistema de representa¢des que lhes da um outro sentido porque, em seu fundamento, ha uma outra cultura: Dietro i libri rimuginati da Menocchio avenamo individuato un codice di let- tura; dietro questo codice, uno strato solido di cultura oralé' [Descobrimos, por tras dos livros ruminados por Menocchio, um cédigo de leitura; por tras desse cédigo, uma camada sélida de cultura oral]. Nao se pode, portanto, colocar como necessario o vinculo estabelecido, por exemplo por Felix Gilbert, entre a ampliacao social do campo de pes- quisas da hist6ria intelectual e o apelo aos procedimentos estatisticos.” Com efeito, se sob certas condicoes, a abordagem quantitativa (inter- na e externa) dos textos mais elaborados pode ser aceita como legiti- ma, inversamente, quando 0 arquivo 0 permite, o trabalho intelectual do mais anénimo dos leitores pode requerer os métodos de andlise normalmente reservados aos “maiores” pensadores. O questionamento do par erudito/popular leva a uma segunda interrogacao, que tem por objeto uma outra destas distingdes conside- radas como fundamentais pelos historiadores, quer sejam historiado- res das idéias ou das mentalidades: a oposicao entre criacao e consu- mo, entre producao e recepcao. Também aqui, dessa distin¢ao primor- dial decorre toda uma série de corolarios implicitos. Em primeiro lu- gar, ela funda uma representacao do consumo cultural que se op6e ter- moa termo aquela da criacao intelectual: passividade contra invengao, dependéncia contra liberdade, alienacao contra consciéncia. A inteli- géncia do “consumidor” (retomando uma metafora da antiga pedago- gia) € como uma cera mole onde se inscreveriam com toda legibilida- de as idéias e as imagens forjadas pelos criadores intelectuais. Disso, outro corolario, uma necessaria divisdo disciplinar entre o estudo da “ Carlo Ginzburg, op. cil., p.80. ® Felix Gilbert, op. cit., p.92. 51 difusdo intelectual, que diria respeito a uma sociologia cultural retros- pectiva, e aquele da produc4o intelectual, que seria o apanagio de uma abordagem estética das formas ou de uma compreensao filos6fica das idéias. Essa radical separacdo entre produgao e consumo leva, pois, a postular que as idéias ou as formas tém um sentido intrinseco, totalmen- tc independente de sua apropriacao por um sujeito ou por um grupo de sujeitos. Através disto, sub-repticiamente, o historiador reintroduz na maioria das vezes seu proprio “consumo” e 0 erige, sem ter bem cons- ciéncia disso, em categoria universal de interpretacao. Fazer como se os textos (ou as imagens) tivessem significagdes dadas por si mesmas, independentemente das leituras que os constroem, leva na verdadé, quer se queira ou no, a relacionéos ao campo intelectual (e senso- rial) do historiador que os analisa, portanto, a decifrd-los através de ca- tegorias de pensamento cuja historicidade nao é percebida e que se dao implicitamente por permanentes. Restituir essa historicidade exige que o “consumo” cultural ou intelectual seja ele mesmo tomado como uma producao, que certa- mente no fabrica nenhum objeto, mas constitui representagdes que nunca sao idénticas aquelas que o produtor, 0 autor ou 0 artista in- vestiram em sua obra. E por essa razdo que se deve, sem diivida, dar um alcance geral a definicéo que da Michel de Certeau do consumo cultural de massa que carateriza atualmente as sociedades ocidentais: Auma produgio racionalizada, expansionista, do mesmo modo que cen- tralizada, ruidosa e espetacular, corresponde uma outra producao quali- ficada de “consumo”. Ela é astuciosa, dispersa, mas insinua-se por toda parte, silenciosa e quase invisivel, jd que nao se distingue com produtos proprios, mas em maneiras de empregar os produtos impostos por uma or- dem econdmica dominante.” Anular o recorte entre produzir e consumir é, primeiramente, afir- mar que a obra so adquire sentido através das estratégias de inter- pretacdo que constroem suas significacoes. A do autor é uma den- tre outras, que nao encerra em si a “verdade”, suposta Unica e per- 4 Michel de Certeau, L’invention du quotidien, tI, Arts de faire, Paris, U.G.E., col. 10/18, 1980, p.11. 52 moans es Sat manente, da obra. Através disso, pode ser restitufdo um justo lugar ao criador, cuja intencao (clara ou inconsciente) nado contém mais toda a compreensao possivel de sua criacdo, mas cuja relacao com a obra nao é, no entanto, eliminada. Definido como uma “outra producao”, o consumo cultural, por exemplo, a leitura de um texto, pode assim escapar a passividade que tradicionalmente lhe é atribufda. Ler, olhar ou escutar sao, de fato, atitudes intelectuais que, longe de submeter o consumidor a onipo- téncia da mensagem ideoldgica e/ou estética que supostamente o modela, autorizam na verdade reapropriacao, desvio, desconfianca ou resisténcia. Essa constatacao leva a repensar totalmente a relagao entre um ptblico designado como popular e os produtos historica- mente diversos (livros e imagens, serm6es e discursos, can¢oes, ro- mances-fotograficos ou programas de televisao) propostos para seu consumo. A “atencao obliqua” que, para Richard Hoggart, caracte- riza a decifracao popular contemporanea desses materiais,“ é uma das chaves que autorizam a elucidar como a cultura da maioria pode, em qualquer época, gracas a um distanciamento, encontrar um es- paco ou instaurar uma coeréncia prépria nos modelos que Ihe sao impostos, contra sua vontade ou nao, pelos grupos ou poderes do- minantes. Tal perspectiva leva a dar um contrapeso aquela que en- fatiza os dispositivos, discursivos ou institucionais, que em uma so- ciedade visam a enquadrar o tempo e os lugares, a disciplinar os corpos e as praticas, a modelar, pela ordenacao regrada dos espacos, as condutas e os pensamentos. Essas tecnologias da vigilancia e da inculcagéo devem sempre compor com as taticas de consumo e de uso daqueles que elas tém por funga4o modelar. Longe de terem a absoluta eficdcia aculturante que lhes é atribuida com demasiada freqiiéncia, esses dispositivos de toda ordem (dos quais fazem parte grande ntimero dos materiais que sao habitualmente objeto da his- toria cultural) deixam necessariamente um lugar, no momento em que sao recebidos, 4 variacao, ao desvio, a reinterpretacao. “ Richard Hoggart, The Uses of Literacy, 1957 (trad. fr. La Culture du pauvre. Etude sur le style de vie des classes populaires en Angleterre, Paris, Editions de Minuit, 1970, p.263-298, ea apresentagao de Jean-Claude Passeron, p.20-24). 53 Essas observagées, que questionam todo um conjunto de postula- dos implicitos na historia sociocultural francesa de hoje (presentes, em particular, na interpretacao da Reforma catélica, cujos efeitos suposta- mente destrufram uma antiga cultura folclorica), distanciam-nos da hist6ria intelectual, mesmo estritamente definida? Parece que nao, na medida em que elas incitam a situar todo texto em relacao com leitu- ras. Contra a concep¢ao, cara aos historiadores da literatura ou da filo- sofia, segundo a qual o sentido de um texto estaria nele escondido como um mineral em sua ganga (a critica sendo consequentemente a opera- cao que traz 4 tona esse sentido oculto), deve-se lembrar que a signifi- cacdo é 0 produto de uma leitura, de uma construcao de seu leitor: “este nao assume nem o lugar do autor nem um lugar de autor. Ele inventa nos textos algo diferente do que era sua ‘intencao’. Ele os separa de sua origem (perdida ou acess6ria). Combina seus fragmentos € cria signifi- cacées inéditas no espaco organizado pela capacidade dos textos para permitir uma pluralidade indefinida de significacdes”.** Concebidos como um espaco aberto as leituras multiplas, os textos (mas também todas as categorias de imagens) nao podem entao ser apreendidos nem como objetos, cuja distribuicao bastaria determinar, nem como entida- des, cuja significacdo seria universal. Devem ser relacionados a rede con- traditoria das utilizagdes que os constituiram historicamente. O que levanta, evidentemente, duas questées: 0 que significa ler? Como res- gatar as leituras antigas? As respostas nao s4o muito garantidas, mas é claro que a historia intelectual nao poderd evité-las por muito tempo. A titulo provisdrio, sem diivida é um bom método nao recusar nenhu- ma das apreens6es que autorizam a reconstituir, pelo menos parcial- mente, o que 0s leitores faziam de suas leituras: a apreensao direta, nos meandros de uma confissao, escrita ou oral, voluntaria ou extorquida; o exame dos fatos de reescritura e de intertextualidade onde se anula o recorte classico entre escritura e leitura, j4 que aqui a escritura é ela propria leitura de uma outra escritura;** enfim, a andlise serial de corpo- * Michel de Certeau, op. cit., p.285-286, e cap. XII, “Lire: Un braconnage”, p.279-296. “6 Em uma bibliografia jd imensa, citemos apenas Julia Kristeva, Recherches pour une séma- nalyse (Semeiotiké), Paris, Editions du Seuil, 1969, e Hans Robert Jauss, Pour une esthétique de ia réception, Paris, Gallimard, 1978. 54 ra fechados na medida em que a mudanga de motivos no interior de um género dado (por exemplo, 0s livretos de boas maneiras ou as pre- parac6es para a morte) situa-se no cruzamento de uma inten¢ao—a dos produtores de textos — e de uma leitura—a de seu ptiblico. Sem reduzi- laa uma histéria da difusao social das idéias, a historia intelectual deve entao estabelecer como central a relacdo do texto com as leituras indi- viduais ou coletivas que, cada vez, o constroem (isto €é, decompoem-no para uma recomposicao). Mas qual é 0 estatuto desses textos multiplos que a histéria inte- lectual éstabelecé como objeto de andlise? Tradicionalmente, € sua prépria fungao que supostamente lhes dé uma unidade: todos, de fato, constituiriam representacoes de um real que se esforcariam para apre- ender sob modalidades diversas, filos6ficas ou literarias, A oposigao entre realidade e representacao é assim estabelecida como primordial para distinguir tipos de histérias e, simultaneamente, discriminar ti- pos de textos. Oporse-ia ao historiador das economias e das socieda- des que restitui o que era aquele das mentalidades ou das idéias, cujo objeto nao é o real mas as maneiras como os homens 0 pensam € 0 transpdem. A essa divisao do trabalho histérico corresponde uma di- visao dos materiais préprios a cada campo. Aos textos “documentais” que, submetidos a uma justa critica, revelam 0 que era a realidade antiga, opor-se-iam 0s textos “literdrios”, cujo estatuto é aquele da fic- cdo e que nao podem, pois, ser considerados como testemunhas de realidade. Essa divisao fundamental nao foi alterada nem pela cons- trucdo em forma de séries estatisticas dos “documentos” antigos, o que nao faz senao acentuar seu valor de verdade, nem pela recente utili- zacao de textos literarios pelos historiadores, visto que, neste caso, eles perdem sua natureza literdria para serem reduzidos ao estatuto de documentos, cabiveis porque dizendo, de um outro modo, 0 que a andlise social estabeleceu por meio de seus proprios procedimentos. O texto individual torna-se ilustragao “vivida” da leis da quantidade. Sao essas divis6es demasiado simples que, hoje em dia, os histo- riadores a escuta da critica literaria contemporanea*’ ou da sociolo- 4” Cf. Jean Marie Goulemot, “Histoire littéraire”, La Nouvelle Histoire, op. cit., p.308-313. 55 gia questionam. E claro que nenhum texto, mesmo o mais aparente- mente documental, mesmo 0 mais “objetivo” (por exemplo, um qua- dro estatistico estabelecido por uma administracaéo), mantém uma relacdo transparente com a realidade que ele apreende. Jamais 0 tex- to, literério ou documental, pode anular-se como texto, isto €, como um sistema construido segundo categorias, esquemas de percepcao e de apreciacao, regras de funcionamento, que remetem as suas pro- prias condicées de produco. A relacao do texto com o real constr6i- se de acordo com modelos discursivos e recortes intelectuais préprios a cada situacao de escritura. O que leva a nao tratar as ficcoes como meros documentos, supostos reflexos da realidade histérica, mas a estabelecer sua especificidade enquanto texto situado em relacao a outros textos e cuja organizacdo e forma visam a produzir algo dife- rente de uma descricdo. O que conduz, a seguir, a considerar que os “materiais-documentos” obedecem, eles também, a procedimentos de construcdo onde se investem os conceitos € as obsessGes de seus pro- dutores e onde se marcam regras de escritura particulares ao género de que fazem parte. Sao essas categorias de pensamento e esses prin- cipios de escritura que se deve, portanto, fazer sobressair previamen- te a toda leitura “positiva” do documento. O real assume assim um novo sentido: o que é real, de fato, nao é somente a realidade visada pelo texto, mas a propria maneira como ele a visa, na historicidade de sua producdo e na estratégia de sua escritura. CONCLUIR? A tinica definicao atualmente aceitavel da hist6ria intelectual ou cultural parece, entao, ser aquela dada por Carl Schorske, na medida em que ele nao lhe atribui nem metodologia particular nem conceitos obrigatérios, indicando apenas a dupla dimensao de um trabalho: The historian seeks to locate and interpret the artifact temporally in a field where two lines intersect. One line is vertical, or diachronic, by which he establishes the relation of a text or a system of thought to previous expression in the same branch 56 of cultural activity (paintings, politics, etc.). The other is horizontal, ou synchro- nic; by it he assesses the relation of the content of the intellectual object to whtat is appearing in other branches or aspects of a culture at the same time®* {O historiador busca situar e interpretar a obra no tempo e inscrevé-la no cruzamento de duas linhas de forga: uma vertical, diacrénica, pela qual ele relaciona um texto ou um sistema de pensamento a tudo o que os precedeu em um mesmo ramo de atividade cultural (pintura, politica, etc.); a outra, horizontal, sincronica, pela qual o historiador estabelece uma relacdo entre o contetido do objeto intelectual e¢ o que se faz em outras dreas na mesma época]. E evidentemente uma mesma concepcao da tarefa do historiador inte- lectual que compartilha Hayden White, propondolhe um duplo mo- delo e um duplo questiondrio: Gombrich and Kuhn have given us models of how to write the histories of genres, styles and disciplines; Goldman shows us how to unite them on the broader canvases provided by soctal, political, and eco- nomic historians [Gombrich e Kuhn forneceram-nos os modelos para escrever a hist6ria dos géneros, dos estilos e das disciplinas; Goldman mostra-nos como reuni-los nos quadros mais amplos fornecidos pelos historiadores da sociedade, da politica e da economia]. Sem forgosa- mente dizé-lo, aqueles que na Franca tentam compreender os “objetos intelectuais” (retomando a expressao de Schorske) concordam com essa definicdo do espaco cultural (e, portanto, de seu proprio campo de estudo) como um espaco de duas dimens6es, o que permite pensar uma producdo intelectual ou artistica na especificidade da histéria de seu género ou de sua disciplina, e também em sua relacgao com as outras producoes culturais que lhe sao contemporaneas € em suas relagdes com diferentes referentes situados em outros campos da totalidade social (so- cioeconémica ou politica). Ler um texto ou decifrar um sistema de pen- samento consiste, pois, em manter juntas essas diferentes questoes que constituem, em sua articulacdo, o que se pode considerar como 0 obje- to mesmo da histéria intelectual. *® Carl Schorske, Fin-de-siécle Vienna. Politics and Culture, New York, Cambridge Universi- ty Press, 1979, p.XXL-XXII (trad. fr. Vienne fin de siécle, Politique et culture, Paris, Seuil, 1981, p-13 [traducdo revisada]). ® Hayden White, “The Tasks of Intellectual History”, The Monist, vol. 53, n. 4, outubro 1969, p.606-630 (citacdo p.626). 57 No entanto, por detrds de sua forca de evidéncia, essa defini- cdo encerra ainda muitas armadilhas. De fato, dois conceitos cau- sam problema € podem induzir ao erro: o de objeto intelectual (in- tellectual object) ¢ 0 de cultura. Apés Foucault, é bastante claro, com cfcito, que nao se pode considerar esses “objetos intelectuais” como “objetos naturais”, cujas modalidades histéricas de existéncia seriam as Uinicas a mudar. A loucura, a medicina, o Estado nao sao catego- rias pensdaveis sobre o modo do universal e cujo contetido cada épo- ca particularizaria. Por detrés da permanéncia enganosa de nosso | vocabulario, deye-se reconhecer ngo objetos, mas objetivacges que constroem a cada vez uma figura original. Como escreve muito ben. Paul Veyne, cujo comentario seguimos aqui: “neste mundo, nao se joga xadrez com figuras eternas, 0 rei, 0 louco: as figuras sao o que as configurac6es sucessivas sobre o tabuleiro fazem delas”.” Sao, portanto, as relag6es com os objetos que os constituem, de um modo especifico e de acordo com agrupamentos e distribuigdes sempre singulares. A histéria intelectual nao deve cair na armadilha das pa- lavras que podem dar a ilusdo de que os diferentes campos de dis- cursos ou de praticas estdo constituidos de uma vez por todas, re- cortando objetos, cujos contornos, sendo os contetidos, nao variam; bem ao contrario, ela deve estabelecer como centrais as descontinui- dades que fazem com que se designem, se agreguem e se dispersem, de maneiras diferentes ou contraditérias conforme as épocas, os sa- beres e os atos. Este é seu objeto, ou seja, “relacionar os pretensos objetos naturais as praticas datadas e raras que os objetivam e expli- car essas praticas, ndo a partir de um motor nico, mas a partir de todas as praticas vizinhas sobre as quais clas se ancoram”.*' O que € resgatar, sob as praticas visiveis ou os discursos conscientes, a grama- tica “oculta” ou “imersa” (como escreve Veyne) que os justifica. E identificando as divis6es e as relagdes que constituiram o objeto que quer apreender que a histéria (das idéias, das formacées ideoldgi- cas, das praticas discursivas — pouco importa a designacdo) poder ® Paul Veyne, “Foucault révolutionne histoire”, Comment on écrit Uhisloire, seguido de Foucault révolutionne Uhistoire, Paris, Editions du Seuil, 1978, p.236. 3 [bid., p.241. 58 ts pensda-lo sem reduzi-lo a apenas uma figura circunstanciada de uma categoria supostamente universal. Tao arriscado quanto o de objeto intelectual, o conceito de cultu- ra. Sua discussao nao é aceitavel aqui. No maximo, pode-se observar que uma representacao comum, particularmente sensivel na afirmacao de uma “hist6éria serial do terceiro nivel”, constréi a cultura como uma ins- tancia da totalidade social, situada “acima” da economia e do social que supostamente constituem os dois primeiros niveis do arcabougo. Essa triparticdo, utilizada como uma comodidade entre os historiadores ' quantitativistas para delimitar diferentes campos de aplicagao do trata- mento serial, reproduz na verdade 0 recorte marxista tal como sistema- tizado por Louis Althusser. Essa divisao que postula, de um lado, que uma das instancias — a econdmica — é determinante e, de outro, que 0 cultural ou o ideolégico forma um nivel 4 parte (claramente identifi- cavel e confinado em limites reconheciveis) da totalidade social, nao parece mais concebivel. Na verdade, o que se deve pensar é como to- das as relacoées, inclusive aquelas que designamos como relacdes eco- ndémicas ou sociais, organizam-se segundo légicas que colocam em jogo, em acao, os esquemas de percepcao e de apreciacao dos diferentes su- jeitos sociais, portanto, as representagdes constitutivas do que se pode chamar de uma “cultura”, quer seja comum a toda uma sociedade, quer seja propria a um grupo determinado. O mais grave na acep¢ao habi- tual da palavra cultura n4o é tanto o fato de que recobre geralmente apenas as producées intelectuais ou artisticas de uma elite, mas que leva a supor que o “cultural” nao se investe senado em um campo particular de praticas ou de produgées. Pensar diferentemente a cultura e, por- tanto, o préprio campo da historia intelectual, exige concebé-la como um conjunto de significagdes que se enunciam nos discursos ou nas condutas aparentemente menos “culturais”, como faz Clifford Geertz: The culture concept to which I adhere [...] denotes an historically transmitted pattern of meanings embodied in symbols, a system of inherited conceptions ex- pressed in symbolic forms by means of which men communicate, perpetuate, and develop their knowledge about and attitudes towards life” [O conceito de cul- * Clifford Geertz, The Interpretation of Culture, New York, Basic Books Inc., 1973, p.89. 59 tura ao qual adiro [...] designa um conjunto de significag6es historica- mente transmitido e inscrito em simbolos, um sistema de concepc¢des herdadas expressas nestas formas simbdlicas por meio das quais os ho- mens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu saber sobre a vida e suas atitudes diante dela]. Portanto, 6 uma nova articulacdo entre cul- tural structure e social structure que se deve construir sem nela projetar nem a imagem do espelho, que faz de uma 0 reflexo da outra, nem a da engrenagem, onde cada uma das engrenagens repercute o movimen- to primordial que afeta o primeiro elo da cadeia. 2. O mundo como representacao O editorial da primavera de 1988 da revista Annales conclama- va os historiadores a uma reflexdo a partir de uma dupla constata- ¢ao. Por um lado, ele afirmava a existéncia de uma “crise geral das ciéncias sociais”, percebida no abandono dos sistemas globais de interpretacao, destes paradigmas dominantes que haviam sido, uma €poca, o estruturalismo ou o marxismo, assim como na rejei¢ao pro- clamada das ideologias que haviam sustentado seu sucesso (enten- damos a adesdo a um modelo de transformacao socialista das socie- dades ocidentais capitalistas e liberais). Por outro lado, o texto nao aplicava a historia a integralidade de um tal diagnostico, jd que con- cluia: “Nao nos parece chegado o momento de uma crise da hist6- ria, cuja hipétese, com demasiada comodidade, alguns aceitam”. A historia era entao vista como uma disciplina ainda sadia e vigo- rosa, atravessada, no entanto, por incertezas devido ao esgotamento de suas aliadas tradicionais (com a geografia, a etnologia, a socio- logia) e ao apagamento das técnicas de tratamento como modos de inteligibilidade que davam unidade a seus objetos e a seus pro- cedimentos. O estado de indecisao que a caracterizava seria, por- tanto, como que o préprio inverso de uma vitalidade que, de ma- neira livre e desordenada, multiplicou os campos de trabalho, as experiéncias, os encontros. 61 UM DIAGNOSTICO REVOGADO EM DUVIDA Por que esse ponto de partida que postula simultaneamente a crise geral das ciéncias sociais e a vitalidade mantida, mesmo que seja ao prego de um ecletismo um tanto anarquico, da historia? Aestraté- gia em aco no texto (o termo é aqui tomado nao no sentido de um calculo racional e consciente, mas designando um ajuste mais ou menos automatico a uma situacdo dada) parece-me comandada pela preocupacao de preservar a disciplina em uma conjuntura percebi- da como marcada pelo declinio radical das teorias e dos saberes so- bre os quais ela sustentara seus progressos nas décadas de 1960 1970. O desafio fora entao lancado pelas disciplinas mais recentemente ins- titucionalizadas e mais dominadoras intelectualmente: a lingiiistica, a sociologia ou a etnologia. O assalto contra a historia pode assumir formas diversas, algumas estruturalistas e outras nao, mas todas elas questionavam a disciplina em seus objetos — ou seja, 0 primado dado ao estudo das conjunturas, econdémicas ou demograficas, e das estru- turas sociais — e em suas certezas metodolégicas, considerados como mal assegurados em relacao as novas exigéncias tedricas. ; , Propondo objetos de estudo que haviam permanecido até en- tao largamente estrangeiros a uma histéria destinada macicamente a exploracao do econémico e do social, propondo normas de cien- tificidade e modos de trabalho demarcados das ciéncias exatas (por exemplo, a formalizacéo e a modelizacao, a explicitacao das hipote- ses, a pesquisa em equipe), as ciéncias sociais solapavam a posicao dominante mantida pela histéria no campo universitario. A impor- tacdo de novos principios de legitimacéo no dominio das discipli- nas “literarias” desqualificava o empirismo historico ao mesmo tem- po que visava a converter a fragilidade institucional das novas disci- plinas em hegemonia intelectual." 'Os dados que dizem respeito as transformaces morfol6gicas (peso numérico, capital escolar e capital social dos professores) das disciplinares universitarias durante a déca- da de 1960 foram reunidos por Pierre Bourdieu, Luc Boltanski ¢ P. Maldidier, “La deé- fense du corps”, Information sur les sciences sociales, X, 4, 1971, p.45-86. Eles constituem a base estatistica do livro de Pierre Bourdieu, Homo academicus, Paris, Editions de Minuit, col. Le sens commun, 1984. 62 A resposta dos historiadores foi dupla. Eles puseram em aco uma estratégia de captacado lancando-se nas frentes abertas por ou- tros. De onde 0 aparecimento de novos objetos em seu questiona- mento: as atitudes diante da vida e da morte, os rituais e as cren¢as, as estruturas de parentesco, as formas de sociabilidade, os funcio- namentos escolares, etc. — 0 que significava constituir os novos ter- ritorios do historiador por meio da anexacdo dos territérios dos outros (etndlogos, socidlogos, demégrafos). Razdo, corolariamen- te, do retorno macico a uma das inspiracg6es fundadoras dos primei- ros Annales, aqueles dos anos 1930: o estudo das aparelhagens men- tais que a dominacao da historia das sociedades havia relegado um pouco ao segundo plano. Sob o termo histéria das mentalidades ou, as vezes, psicologia histérica, era delimitado um campo de pesquisa, distinto tanto da velha hist6ria das idéias quanto daquela das con- junturas e das estruturas. Sobre esses objetos novos (ou reencontra- dos) podiam ser postos 4 prova modos inéditos de tratamento, ex- traidos das disciplinas vizinhas: as técnicas da andlise lingtistica e semantica, as ferramentas estatisticas da sociologia ou certos mode- los da antropologia. Porém, essa captacao (dos territérios, das técnicas, das marcas de cientificidade) s6 podia ser plenamente aproveitada com a con- dicao de que nao se abandonasse nada do que fundara a forca da disciplina, dada pelo tratamento quantitativo de fontes macicas e Seriais (registros paroquiais, tabelas semanais de precos, certidées de tabelionatos, etc.). Em suas formas majoritarias, a historia das mentalidades construiu-se, pois, aplicando a novos objetos os prin- cipios de inteligibilidade previamente testados na historia das eco- nomias e das sociedades. De onde suas caracteristicas especificas: a preferéncia dada a maioria, portanto a investigac4o da cultura con- siderada popular, a confianga na cifra e na série, 0 gosto pela longa duracado, a primazia concedida ao recorte socioprofissional. Os tra- ¢os proprios da historia cultural assim definida, que articula a cons- lituigao de novos campos de pesquisa com a fidelidade aos postula- dos da hist6ria social, sao a traducdo da estratégia da disciplina que estabelecia para si uma legitimidade cientifica renovada — garantia da manutencdo de sua centralidade institucional — recuperando para seu beneficio as armas que deveriam té-la vencido. A operacao foi, como se sabe, um franco sucesso, estabelecendo uma alianca estrei- (a entre a historia e as disciplinas que, numa época, haviam pareci- do suas mais perigosas concorrentes. O desafio lancado 4 histéria nestes Ultimos anos é como que 0 inverso do anterior. Ele nado se ancora mais em uma critica dos ha- bitos da disciplina em nome das inovacées das ciéncias sociais, mas em uma critica dos postulados das proprias ciéncias sociais. Os fun- damentos intelectuais da ofensiva sao claros: de um lado, o retorno a uma filosofia do sujeito que recusa a forca das determinagées co- letivas ¢ dos condicionamentos sociais e que pretende reabilitar “a parte explicita e refletida da acdo”; de outro, a primazia concedida ao politico, que supostamente constitui o “nivel mais globalizante” da organizacao das sociedades, e, para isso, fornece uma “nova cha- ve para a arquitetura da totalidade.? A hist6ria é entao chamada a reformular seus objetos (recompostos a partir de uma interrogacao sobre a propria natureza do politico), suas referéncias (sendo privi- legiado o didlogo travado com a ciéncia politica e a teoria do direi- to) e, mais fundamentalmente ainda, seu principio de inteligibili- dade, destacado do “paradigma critico” e redefinido por uma filo- sofia da consciéncia. Em tal perspectiva, o mais urgente é entao se- parar tao nitidamente quanto possivel a disciplina histérica (salva- vel ao preco de “lancinantes revisoes”) das ciéncias sociais outrora dominantes (a sociologia e a etnologia), condenadas por seu apego majoritario a um paradigma obsoleto. De mancira discreta e eufémica, o diagnéstico feito pelo edito- rial dos Annales, através de seu tratamento diferenciado da hist6ria, que se encontraria em uma “reviravolta critica”, e das ciéncias sociais, que passariam por uma “crise geral”, parece-me compartilhar algo dessa posicdo. O porqué de uma questao.preliminar: a constatagao proposta pode ser aceita sem reservas? Proclamar, depois de muitos 2 Para uma formulacdo coerente € radical dessas proposicées, em forma de constata- cao, ver Marcel Gauchet, “Changement de paradigme en sciences sociales?”, Le Débat, 50, maio-agosto 1988, p.165-170. 64 outros, que as ciéncias sociais estao em crise nao basta para estabe- lecé-lo. O refluxo do marxismo e do estruturalismo nao significa por si mesmo a crise da sociologia e da etnologia, j4 que, no campo in- telectual francés, foi justamente a distancia das representacdes ob- Jetivistas propostas por essas duas teorias referenciais que se cons- truiram as pesquisas mais fundamentais, lembrando contra as deter- minac6es imediatas das estruturas as capacidades inventivas dos agen- tes, € contraa submissdo mecanica a regra as estratégias préprias da pratica. A mesma observacao vale a fortiori para a histéria que per maneceu muito recalcitrante (exceto algumas grandes excegdes) ao emprego dos modelos de compreensao forjados pelo marxismo ou pelo estruturalismo. Do mesmo modo, nao parece que o efeito “re- torno de China”, evocado para designar os desencantos e os aban- donos ideolégicos da década de 1980, tenha contribuido muito para inquietar e modificar a pratica dos historiadores, pois bem poucos foram os que fizeram a viagem de Pequim. Sem duvida, a situacao era bem distinta nos anos 1960 para a geracao de historiadores que retornando de Moscou, opunha a abordagem dogmatica de um marxismo ortodoxo 0 projeto novo — hoje em dia recusado — de uma historia social quantitativa. TRES MUDANGAS EM FORMA DE RENUNCIA Eu gostaria entao de sugerir que as verdadeiras mutagdes do trabalho hist6rico nestes Ultimos anos nao foram produzidas por uma “crise geral das ciéncias sociais” (que deveria ser mais demons- trada do que proclamada) ou por uma “mudanga de paradigma” (que nao se tornou realidade sé por ser ardentemente desejada por alguns), mas que elas estao ligadas 4 distancia tomada, nas préprias praticas de pesquisa, em relacao aos princfpios de inteligibilidade que haviam governado o método hist6rico nos tltimos vinte ou trinta anos. Trés eram essenciais: o projeto de uma histéria global, capaz de articular em uma mesma apreensao os diferentes niveis da totali- dade social; a defini¢ao territorial dos objetos de pesquisa, geralmen- te identificados 4 descrigao de uma sociedade instalada em um es- 65 paso particular (uma cidade, um “pais”, uma regiao) — 0 que eraa condicéo para que fossem possiveis a coleta e o tratamento dos da- dos exigidos pela hist6ria total; a primazia dada ao recorte social considerado apto a organizar a compreensao das diferenciacoes e das divisées culturais. Ora, esse conjunto de certezas esboroou-se progressivamente, deixando o campo livre a uma pluralidade de abordagens e de compreensoes. Renunciando, de fato, a descricdo da totalidade social e ao modelo braudeliano, que se tornou intimidante, os historiadores tentaram pensar os funcionamentos sociais fora de uma divisao ri- gidamente hierarquizada das praticas e das temporalidades (econd- micas, sociais, culturais, politicas) e sem que primado fosse dado a um conjunto particular de determinagées (quer fossem técnicas, economicas ou demogrAficas). Dai, as tentativas feitas para decifrar diferentemente as sociedades, penetrando o dédalo das relacoes e das tensdes que as constituem a partir de um ponto de entrada par- ticular (um acontecimento, obscuro ou maior, 0 relato de uma vida, uma rede de praticas especificas) e considerando que nao ha prati- ca ou estrutura que nao seja produzida pelas representacdes, con- traditorias e afrontadas, pelas quais os individuos e os grupos dao sentido a seu mundo. Renunciando a considerar as diferencia¢Ges territoriais como os Ambitos obrigatérios de sua pesquisa, os historiadores franceses tira- ram de sua disciplina o procedimento de inventario que ela havia re- cebido da escola de geografia humana. A cartografia das particulari- dades, cuja razdo devia ser encontrada na diversidade das condigées geograficas, foi substituida pela busca das regularidades — 0 que sig- nifica reatar com a tradigdo, recusada pelos Annales dos anos 1930, da sociologia durkheimiana e preferir 0 estabelecimento de leis ge- rais, como queria a morfologia social, 4 descricao das singularidades regionais.’ Mas como pensar 0 acesso do geral quando ele nao € mais considerado como a soma acumulada das constatac¢Ges particulares? Conhece-se a extrema diversidade das respostas dadas, desde aquelas * Roger Chartier, “Science sociale et découpage régional. Note sur deux débats 1820- 1920”, Actes de la recherche en sciences sociales, 35, novembro, 1980, p.27-36. 66 que permanecem fiéis a uma determinacao estatistica das correlacGes ¢ das constantes até aquelas que pleiteiam pela exemplaridade da va- riacao e que, manipulando a nocao paradoxal de “excepcional nor- mal”, buscam o mais comum no menos ordinario.! Enfim, renunciando ao primado tiranico do recorte social para dar conta das variac6es culturais, a histéria em seus ultimos avan¢os mostrou, conjuntamente, que é impossivel qualificar os motivos, os objetos ou as praticas culturais em termos imediatamen- te sociolégicos e que sua distribuicao e seus usos em uma socieda- de dada nao se organizam necessariamente de acordo com divisées sociais prévias, identificadas a partir das diferencas de estado e de fortuna. As novas perspectivas abertas para pensar outros modos de articulacao entre as obras ou as praticas e o mundo social sao, pois, sensiveis ao mesmo tempo 4 pluralidade das clivagens que atravessam uma sociedade e 4 diversidade dos empregos de mate- riais ou de cédigos partilhados. DE HISTORIA SOCIAL DA CULTURA A UMA HISTORIA CULTURAL DO SOCIAL Em concordancia com essas trés mudancas, liberadoras em re- lacao a tradicdo institufida, mas também produtoras de incertezas pelo fato de nao constitufrem por si mesmas um sistema unificado de compreensao, eu gostaria agora de formular algumas proposicdes organizadas em torno de uma histéria das apropriacées. Essa no¢ao parece central para a hist6ria cultural com a condi- ¢ao, todavia, de ser reformulada. Essa reformulacao, que enfatiza a pluralidade dos empregos e das compreensé¢s e a liberdade criado- ra — mesmo que seja regrada — dos agentes que nem os textos nem as normas imp6em, distancia-se, em primeiro lugar, do sentido que Mi- chel Foucault da ao conceito, considerando a “apropriacao social dos discursos” como um dos procedimentos maiores pelos quais os dis- cursos sao assujeitados e confiscados pelos individuos ou pelas insti- “E. Grendi, “Micro-analisi e storia sociale”, Quaderni Storici, 35, 1972, p-506-520. 67 tides que se arrogam seu controle exclusivo.’ Ela também se distan- cia do sentido que a hermenéutica da a apropriacao, pensada como 6 momento em que a “aplicagao” de uma configuracao narrativa par- ticular A situacdo do leitor refigura sua compreensao de sie do mun- do, portanto sua experiéncia fenomenologica.® A apropriacao tal como a entendemos visa uma histéria social dos usos e das interpre- tacdes, relacionados as suas determinacdes fundamentais e inscritos nas praticas especificas que os produzem.’ Dar assim atencdo as con- dicdes € aos processos que, muito concretamente, sustentam as ope- racoes de construcao do sentido (na relacao de leitura mas também em muitas outras) é reconhecer, contra a antiga historia intelectual, que nem as inteligéncias nem as idéias so desencarnadas e, contra os pensamentos do universal, que as categorias dadas como invarian- tes, quer sejam filosdficas ou fenomenolégicas, devem ser construi- das na descontinuidade das trajetdrias histéricas. O procedimento sup6e que distancia seja tomada em relacgao aos principios que fundavam a hist6ria social da cultura em sua acep¢ao classica. Uma primeira variacao foi marcada ante uma concepcao es- treitamente sociografica que postula que as clivagens culturais sao organizadas necessariamente de acordo com um recorte social cons- truido previamente. E necessario, creio, recusar essa dependéncia que relaciona as diferencas nos habitos culturais a oposicées sociais dadas a priori, seja na escala de contrastes macroscépicos (entre as elites € 0 povo, entre os dominadores € os dominados), seja na escala de dife- renciacées menores (por exemplo, entre os grupos sociais hierarqui- zados pelos niveis de fortuna e as atividades profissionais). Com efeito, as divisées culturais nao se ordenam obrigatoriamen- te segundo uma grade tinica do recorte social, que supostamente co- manda a desigual presenca dos objetos como as diferencas nas con- dutas. A perspectiva deve entao ser invertida e delinear, primeiramen- te, a drea social (freqttentemente compésita) onde circulam um cor- 5Michel Foucault, L’Ordre du discours, Paris, Gallimard, p.45-47. Paul Ricoeur, Temps et récit, t. II, Le ‘Temps raconté, Paris, Editions du Seuil, 1985, p.229. 7Essa perspectiva deve muito ao trabalho de Michel de Certeau, em particular, a seu livro LInvention du quotidien, t. 1, Arts de faire, Paris, U.GE., col. 10/18, 1980. 68 ean ae men pus de textos, uma classe de impressos, uma producao ou uma nor ma cultural. Partir assim dos objetos, das formas, dos cédigos, e nao dos grupos, leva a considerar que a historia sociocultural viveu por tempo demais sobre uma concep¢ao mutilada do social. Privilegian- do apenas a classificacao socioprofissional, ela esqueceu que outros principios de diferenciacao, também plenamente sociais, podiam jus- tificar, com mais pertinéncia, as variag6es culturais. E 0 caso das per- tencas sexuais ou geracionais, as ades6es religiosas, as tradicoes edu- cativas, as solidariedades territoriais, os habitos profissionais. Por outro lado, a operacao que visa a caraterizar as configura- c6es culturais a partir de materiais que supostamente lhes sao espe- cificos (exemplo classico, a identificacao feita entre literatura de vulgarizacao e cultura popular) parece hoje em dia duplamente re- dutora. De um lado, ela assimila o reconhecimento das diferengas apenas as desigualdades de distribuicao; de outro, ignora o proces- so pelo qual um texto, uma f6rmula, uma norma fazem sentido para aqueles que deles se apropriam ou os recebem. Vejamos 0 exemplo da circulacdo dos textos impressos nas so- ciedades do Antigo Regime. Compreendé-la exige um duplo deslo- camento em relacdo as abordagens iniciais. O primeiro situa o re- conhecimento das variacdes mais socialmente enraizadas nos usos contrastados de materiais compartilhados. Mais do que se escreveu por muito tempo, os textos sio os mesmos para os leitores popula- res e para aqueles que nao o sao. Ou leitores de condicao humilde so postos em posse de livros que nao Ihes eram especificamente destinados (é 0 caso de Menocchio, o moleiro de Friuli, leitor das Voyages de Mandeville, do Decameron ou do Fioretto della Bibbia, ou de Ménétra, o vidreiro parisiense, fervoroso admirador de Rousseau) ,® ou entao livreiros-editores inventivos e experientes colocam ao al- cance de uma ampla clientela textos que s6 circulavam no mundo estrito dos letrados (é 0 caso da férmula editorial conhecida sob o | *Carlo Ginzburg, Il formaggio ei vermi. I cosmo di un mugnaio del’500, Turim, Giulio Ei- naudi Fditore, 1976 (traducdo francesa Le Formage et les Vers. Lunivers d’un meunier du XVF siécle, Paris, Flammarion, 1980). Journal de ma vie. Jacques-Louis Ménétra, compagnon vitrier au XVHF siécle, apresentado por Daniel Roche, Paris, Montalba, 1982. 69 termo gen€rico de Bibliothéque bleue, proposta aos mais humildes dos leitores desde o final do século XVI pelos editores de Troyes). O es- sencial é, portanto, compreender como os mesmos textos — em for- mas impressas possivelmente diferentes — podem ser diversamente apreendidos, manipulados, compreendidos. Razao da necessidade de um segundo deslocamento sobre as redes de praticas que organizam os modos, histérica e socialmen- te diferenciados, da relacao com os textos. A leitura nao é somen- te uma operacao abstrata de inteleccao: ela é uso do corpo, inscri- cdo em um espaco, relacao consigo ou com 0 outro. E por essa ra- zo que devem ser reconstruidas as maneiras de ler proprias a cada comunidade de leitores, a cada uma dessas interpretive communities de que fala Stanley Fish.? Uma histéria da leitura nao pode limi- tar-se apenas a genealogia de nossas maneiras de ler, em siléncio € com os olhos; ela tem a tarefa de resgatar os gestos esquecidos, os habitos desaparecidos. O empreendimento é capital, jd que revela nao somente a distante estranheza de praticas outrora comuns, mas também as ordenacées especificas de textos compostos para os usos que nao sao aqueles de seus leitores atuais. Assim, nos séculos XVI e XVII, freqiientemente ainda, a leitura implicita do texto, litera- rio ou nao, é construida como uma oralizagao, e seu leitor, como um leitor em voz alta que se dirige a um ptblico de ouvintes. Des- tinada tanto aos ouvidos quando aos olhos, a obra joga com for- mas e com procedimentos aptos a submeter 0 texto escrito as exi- géncias préprias da performance oral. Dos motivos manipulados por Dom Quixote as estruturas dos livros que constituem a Bibliothéque bleue, intimeros s4o os exemplos do vinculo tardiamente mantido entre 0 texto € a voz. Whatever they may do, authors do not write books. Books are not writ- ten at all. They are manufactured by scribes and other artisans, by mecha- nics and other engineers, and by printing presses and other machines” [O * Stanley Fish, Js There a Text in This Class? The Autority of Interpretive Communities, Cam- bridge (Mass.), Harvard University Press, 1980, p.1-17. }R. Stoddard, “Morphology and the Book from an American Perspective”, Printing His- tory, 17, 1987, p. 2-14. 70 que quer que facam, os autores nao escrevem 0s livros. Os livros nao sao absolutamente escritos. Sao produzidos por copistas e outros artesdos, por operarios e outros técnicos, pelas maquinas de impri- mir e outras m4quinas]. A observac¢ao pode levar a uma outra revi- sao. Contra a representacao, elaborada pela propria literatura, se- gundo a qual 0 texto existe em si mesmo, independente de qualquer materialidade, deve-se lembrar que nao ha texto fora do suporte que o daa ler (oua ouvir) e que nao ha compreensao de um escrito, seja ' qual for, que nao dependa das formas nas quais ele chega ao seu lei- tor. Por isso, a distincdo indispensavel entre dois conjuntos de dis- positivos: aqueles que dizem respeito as estratégias de escritura e as intencgoes do autor, aqueles que resultam de uma decisao de editor ou de uma imposicao de oficina." Os autores nao escrevem livros: nao, eles escrevem textos que outros transformam em objetos impressos. A distancia, que é justa- mente 0 espaco no qual se constréi o sentido — ou os sentidos -, foi esquecida com demasiada freqiéncia, nao somente pela historia li- terdria classica, que pensa a obra em si mesma como um texto abs- trato, cujas formas tipogrdficas nao importam, mas também pela Rezeptionsdsthetik que postula, apesar de seu desejo de historicizar a experiéncia que os leitores tém das obras, uma relacdo pura e ime- diata entre os “sinais” emitidos pelo texto — que jogam com as con- vencées literdrias aceitas — e o “horizonte de expectativa” do publi- co ao qual sao enderecadas. Em tal perspectiva; o “efeito produzi- do” nao depende absolutamente das formas materiais que susten- tam o texto.'? No entanto, elas também contribuem plenamente para modelar as antecipagées do leitor face ao texto e para atrair novos publicos ou usos inéditos. "Roger Chartier, “Texts, Printing, Readings”, The New Cultural History, editado com uma introducao de Lynn Hunt, Berkeley, University of California Press, 1989, p.154-175. '? Hans Robert Jauss, Literaturgeschichte als Provokation, Francfort-sur-le-Main, Suhrkamp Verlag, 1970, p. 144-207 (traducdo francesa Pour une esthétique de la réception, Paris, Galli- mard, 1978. p.21-80). : a REPRESENTACOES COLETIVAS E IDENTIDADES SOCIAIS A partir desse exemplo onde se enodam 0 texto, 0 livro ea leitu- ra, varias proposicdes podem ser formuladas, articulando de manei- ra nova os recortes sociais € as praticas culturais. A primeira delas es- pera eliminar os falsos debates engajados em torno da divisao, dada como universal, entre a objetividade das estruturas (que seria o terri- trio da historia mais segura, aquela que, manipulando documentos macicos, seriais, quantificaveis, reconstréi as sociedades tal como eram verdadeiramente) e a subjetividade das representacGes (a qual se li- garia uma outra histéria, destinada aos discursos e situada a distancia do real). Tal clivagem atravessou profundamente a historia, mas tam- bém outras ciéncias sociais como a sociologia ou a etnologia, opon- do abordagens estruturalistas e procedimentos fenomenologicos, aquelas trabalhando em grande escala sobre as posicdes e as relacdes dos diferentes grupos, freqiientemente identificados a classes, estas privilegiando o estudo dos valores e dos comportamentos de comu- nidades mais restritas, muitas vezes consideradas homogéneas.” Tentar superdla exige, primeiramente, considerar os esquemas geradores dos sistemas de classificacao e de percepcéo como verdadei- ras “instituicdes sociais”, incorporando sob a forma de representacoes coletivas as divis6es da organizacao social -— “As primeiras categorias 16- gicas foram categorias sociais; as primeiras classes de coisas foram clas- ses de homens nas quais essas coisas foram integradas”'*—, mas também considerar, corolariamente, essas representagdes coletivas como as matrizes de praticas que constroem o préprio mundo social - “Mesmo as representacGes coletivas mais elevadas nao tém existéncia, nao sao ” 15 realmente tais sendo na medida em que comandam atos”. Pierre Bourdiéu, Choses dites, Paris, Editions de Minuit, 1987, p.47-71. Emile Durkheim e Marcel Mauss, “De quelques formes primitives de classification. Contribution a l’étude des représentations collectives”, Année sociologique, 1903, retomado em Marcel Mauss, Ocuvres completes, 2, Représentations collectives et diversité des civilisations, Paris, Editions de Minuit, 1969, p.13-89 (citagao p.83). 's Marcel Mauss, “Divisions et proportions de la sociologie”, Année sociologique, 1927, re- tomado em Marcel Mauss, Oeuures complates, 3, Cohésion sociale et divisions de la sociologie, Paris, Editions de Minuit, 1969, p.178-245 (citacéo p.210). 72 Esse retorno a Marcel Mauss e Emile Durkheim e 4 no¢ao de “re- presentacao coletiva” autoriza a articular, sem diivida melhor do que 0 conceito de mentalidade, trés modalidades da relacaéo com o mundo social: primeiro, o trabalho de classificagao e de recorte que produz as configurac6es intelectuais multiplas pelas quais a realidade é contradi- toriamente construida pelos diferentes grupos que compoem uma so- ciedade; em seguida, as praticas que visam a fazer reconhecer uma iden- tidade social, a exibir uma maneira prépria de estar no mundo, a signi- ficar simbolicamente um estatuto e uma posi¢ao; enfim, as formas ins- titucionalizadas e objetivadas gracas ds quais “representantes” (instan- cias coletivas ou individuos singulares) marcam de modo visivel e per- petuado a existéncia do grupo, da comunidade ou da classe. Uma dupla via é assim aberta: uma que pensa a construcao das identidades sociais como resultando sempre de uma relagao de for- ¢a entre as representac6es impostas por aqueles que tém poder de classificar e de nomear e¢ a definicdo, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesma;'* a outra que considera o recorte social objetivado como a traducio do crédito concedido a representacdo que cada grupo faz de si mesmo, portanto, a sua ca- pacidade de fazer com que se reconheca sua existéncia a partir de uma exibicdo de unidade."” Trabalhando sobre as lutas de represen- tacdes, cujo objetivo é a ordenacao da prépria estrutura social, a his- t6ria cultural afasta-se sem dtivida de uma dependéncia demasiado estrita em relacaio a uma histéria social fadada apenas ao estudo das lutas econdmicas, mas também faz retorno util sobre o social, jé que dedica atencdo 4s estratégias simbdlicas que determinam posicdes e relacdes € que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um “ser-percebido” constitutivo de sua identidade. Para o historiador das sociedades do Antigo Regime, construir a nocdo de representacao como o instrumento essencial da anilise cul- '6 A titulo de exemple, cf. Carlo Ginzburg, 7 Benandanti. Stregoneria e culti agrari tra Cin- quecento e Seicento, Turim, Giulio Einaudi Editore, 1966 (traducdo francesa Les Batailles nocturnes. Sorcellerie et rituels agraires en Frioul, XVF-XVIIF siécle, Lagrasse, Verdier, 1980). '7A titulo de exemplo, cf. Luc Boltanski, Les Cadres. La formation d'un groupe social, Paris, Les Editions de Minuit, 1982. 73 (ural é investir de uma pertinéncia operatéria um dos conceitos cen- trais manipulados nessas préprias sociedades. A operacao de conheci- mento € assim relacionada 4 aparelhagem nocional que os contempo- rineos utilizavam para tornar sua propria sociedade menos opacaa seu entendimento. Nas definicées antigas (por exemplo, aquela do Dictionnaire universel de Furetiére em sua edicao de 1727),!8 as entradas da palavra “representacdo” atestam duas familias de sentido aparente- mente contraditrias: de um lado, a representacdo manifesta uma au- séncia, o que supée uma clara distingao entre o que representa € 0 que é representado; de outro, a representacao éa exibicao de uma presen- _ ca, a apresentacdo ptiblica de uma coisa ou de uma pessoa. Na primeira acepc¢ao, a representagao é o instrumento de um conhecimento mediato que revela um objeto ausente, substituindo- © por uma “imagem” capaz de trazé-lo 4 memoria e “pinta-lo” tal como é. A relacao de representacao, assim entendida como correlacao de uma imagem presente e de um objeto ausente, uma valendo pelo outro, sustenta toda a teoria do signo do pensamento classico, elabo- rada em sua maior complexidade pelos légicos de Port-Royal. Por um lado, so suas modalidades varidveis que permitem discriminar diferentes categorias de signos (certos ou provaveis, naturais ou insti- tuidos, aderentes a ou separados do que é representado, etc.) € ca racterizar o simbolo por sua diferenca de outros signos.” Por outro, identificando as duas condicées necessarias para que tal relacdo seja I8Furetiére, Dictionnaire universel, contenant généralement tous les mots francais tant vieux que modernes et les termes des sciences et des arts, corrigido por M. Basnage dé Bauval e revisto por M. Brutel de la Riviére, Haia, 1727, verbete Représentation [representacao]. 19 Antoine Amauld e Pierre Nicole, La Logique ou VArt de penser, Paris, P.U.F, 1965. Sobre a teoria do signo em Port-Royal, ver o estudo fundamental de Louis Marin, La Critique du dis- cours. Etude sur la Logique de Port-Royal et les Pensées de Pascal, Paris, Editions de Minuit, 1975. 20 Antoine Amnauld ¢ Pierre Nicole, op. cit., livro I, cap. IV, p.52-54, Para uma discussao so- bre a definicao do simbélico, ver a série de artigos publicados em Journal of Modern History depois da publicacao do livro de Robert Darnton, The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History, New York, Basic Books, 1984 (tradu¢ao francesa Le Grand Massa- cre des chats. Attitudes et croyances dans Vancienne France, Paris, Robert Laffont, 1985): Roger Chartier, “Texts, Symbols and Frenchness”, Journal of Modern History, 57, 1985, p.682-685, Robert Darnton, “The Symbolic Element in History”, Journal of Modern History, 58, 1986, p.218-234, D. La Capra, “Chartier, Darnton and the Great Symbol Massacre”, Journal of Modern History, 60, 1988, p.95-112, J. Fernandez, “Historians Tell Tales: of Cartesian Cats and Gallic Cockfights”, Journal of Modern History, 60, 1988, p.113-127. 74 inteligivel (ou seja, o conhecimento do signo como signo, em sua dis- tancia da coisa significada, e a existéncia de convengdes regulando a relacdo do signo com a coisa), a Logique de Port-Royal estabelece os termos de uma questo fundamental: aquela das possiveis incompre- ensoes da representacao, seja por falta de “preparo” do leitor (0 que remete as formas e aos modos de inculca¢ao das conveng¢ées), seja devido A “extravagancia” de uma relacao arbitraria entre o signo € 0 significado (o que levanta a questao das proprias condi¢ées de pro- ducdo das equivaléncias admitidas e compartilhadas) .?! De uma perversao da relacao de representacao, as formas de teatralizacio da vida social na sociedade do Antigo Regime dao 0 exemplo mais manifesto. Todas visam, com efeito, a fazer com que a coisa no tenha existéncia senao na imagem que a exibe, com que a representacao mascare ao invés de designar adequadamente o que éseu referente. A relacdo de representacao é assim turvada pela fra- gilidade da imaginacao, que faz com que se tome 0 engodo pela ver dade, que considera os sinais visiveis como indicios seguros de uma realidade que nao existe. Assim desviada, a representacao transfor- ma-se em maquina de fabricar respeito e submissao, em um instru- mento que produz uma imposicao interiorizada, necessaria ld onde falta o possivel recurso a forca bruta. Toda reflexao sobre as sociedades do Antigo Regime sé pode inscrever-se na perspectiva assim tracada, duplamente pertinen- te: pelo fato de considerar a posicao “objetiva” de cada individuo como dependente do crédito que concedem a representacao que ele faz de si mesmo aqueles de quem espera reconhecimento; pelo fato de compreender as formas de dominacao simbélica como 0 corolario da auséncia ou do apagamento da violéncia imediata. E, portanto, no processo de longa duracao de erradicacao da vio- léncia, que se tornou monopélio do Estado absolutista,” que se 21 Antoine Arnaud e Pierre Nicole, op. cit., livro II, capitulo XIV, p.156-160. ® Norbert Elias, Uber den Prozess der Zivilisation. Soziogenetische und psychogenetische Untersu- chungen, Berna, Verlag Francke AG, 1969, e Francfort-sur-le-Main, Suhrkamp, 1979, vol. U, “Entwurt zur einer Theorie der Zivilisation” (traducdo francesa La Dynamique de V’Occident, Paris, Calmann-Lévy, 1975, “Esquisse d’une théorie de la civilisation”, p.187-324). 75 deve inscrever a importancia crescente assumida pelas lutas de re- presentacées cujo desafio € a hierarquizacao da propria estrutu- ra social. O SENTIDO DAS FORMAS A constatacao pode levar a uma segunda proposta que visa a determinar as distancias mais socialmente enraizadas nas diferen- cas mais formais. E isso, por duas raz6es possivelmente contradi- torias. De um lado, os dispositivos formais ~ textuais ou materiais — inscrevem em suas préprias estruturas as expectativas e as com- peténcias do ptiblico que visam, portanto, organizam-se a partir de uma representagao da diferenciacdo social. De outro, as obras e os objetos produzem sua 4rea social de recepcao bem mais do que sao produzidos por divis6es cristalizadas € prévias. Recentemente, Lawrence W. Levine fez uma demonstracao disso, mostrando que a maneira como eram representadas as pecas de Shakespeare na América do século XIX (isto é, mescladas a multiplas outras for- mas de espetdculo como a farsa, o melodrama, o balé, 0 circo) ti- nha criado um ptiblico muito amplo, ruidoso e turbulento, que excedia em muito a elite burguesa e letrada.* Esses dispositivos de representacao do drama shakespeariano sao da mesma ordem que as transformacées “tipograficas” operadas pelos editores da Biblio- théque bleue sobre as obras que colocam em seu catalogo: ambos vi- sam, com efeito, a inscrever o texto em uma matriz cultural que néio é aquela de seus destinatdrios primeiros ea permitir assim uma pluralidade de apropriacoes. Os dois exemplos levam a considerar as diferenciacées cultu- rais, nado como a traducao de divisées estaticas e iméveis, mas como o efeito de processos dinamicos. De um lado, a transformacao das formas através das quais um texto € proposto autoriza recepcdes inéditas, portanto, cria novos publicos € novos usos. De outro, a Lawrence W. Levine, Highbrow-Lowbrow. The Emergence of Cultural Hierarchy in America, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1988, p.1 1-81. 76 partilha dos mesmos bens culturais pelos diferentes grupos que comp6em uma sociedade suscita a busca de novas disting6es, ap- tas a marcar as distancias mantidas. A trajetéria do livro no Antigo Regime francés testemunha isso. Tudo se passa como se as diferen- ciacées entre as maneiras de ler se tivessem multiplicado e afina- do 4 medida que 0 escrito impresso se tornava menos raro, MENnos confiscado, mais comum. Embora, por muito tempo, sé a posse do livro ja significasse uma superioridade cultural, sao os usos do li- vro, legitimos ou selvagens, e a.qualidade dos objetos tipograficos, cuidados ou vulgares, que se acham progressivamente investidos de uma tal fungao. Foisem diivida essa atenc4o atribuida as “formalidades das pra- ticas” (segundo a expressao de Michel de Certeau), quer se refe- rissem 4 producao ou a recep¢ao, que mais alterou uma maneira classica de escrever a hist6ria das mentalidades. Primeiramente, obrigando-a a considerar os discursos em seus préprios dispositi- vos, suas articulacées retéricas ou narrativas, suas estratégias per- suasivas ou demonstrativas. As organizacoes discursivas e as cate- gorias que as fundam — sistemas de classificacao, critérios de recor- te, modos de representacées — ndo sao redutiveis as idéias que elas enunciam ou aos temas que sustentam. Elas tém sua légica propria —e uma légica que pode muito bem ser contraditéria em seus efei- tos com a letra da mensagem. Segunda exigéncia: tratar os discur- sos em sua descontinuidade e sua discordancia. Por muito tempo, pareceu facil o caminho que fazia concluir da andlise tematica de um conjunto de textos a caracterizacdo de uma “mentalidade” (ou de uma “visio do mundo” ou de uma “ideologia”), e depois fazia passar desta a uma atribuicdo social univoca. A tarefa parece me- nos simples quando cada série de discursos deve ser compreendi- da em sua especificidade, isto é, inscrita em seus lugares (e meios) de producdo e em suas condicoes de possibilidade, relacionada aos principios de regulacdo que a ordenam € a controlam, e interro- gada em seus modos de abonacao e de veracidade. Reintroduzir assim no coracao da critica histérica o questionamento estabeleci- do por Foucault para o tratamento das “séries de discursos” € cer- 77 tamente mutilar a ambicao totalizadora da historia cultural, preo- cupada com reconstrucoes globais. Mas é também a condicdo para que os textos, quaisquer que sejam, que o historiador constitui em arquivos sejam subtraidos as reducées ideoldgicas e documentais que os destrufam enquanto “praticas descontinuas”.** FIGURAS DO PODER E PRATICAS CULTURAIS Nossa tiltima proposta visa a compreender a partir das muta- ¢6es no modo de exercicio do poder (geradoras de formacgées so- ciais inéditas) tanto as transformacoes das estruturas da personali- dade quanto aquelas das instituicdes e das regras que governam a producao das obras e a organizacao das praticas. O vinculo estabe- lecido por Elias entre, de um lado, a racionalidade de corte — en- tendida como uma economia psiquica especifica, produzida pelas exigéncias de uma nova forma social, necessaria ao absolutismo — e, de outro, os tracos préprios a literatura classica - em termos de hie- rarquia dos géneros, de caracteristicas estilisticas, de convenc6es es- téticas — designa com acuidade o lugar de um trabalho possivel.** Mas é também a partir das divisdes instauradas pelo poder (por exem- plo, entre os séculos XVI e XVIII, entre razao de Estado e conscién- cia moral, entre patronato estatal e liberdade do foro fntimo) que devem ser apreciadas a emergéncia de uma esfera literdria aut6no- ma € aconstituicao de um mercado dos bens simbédlicos e dos julga- mentos intelectuais ou estéticos.” Estabelece-se, deste modo, um espaco de critica livre, onde se opera uma progressiva politizacao, contra a monarquia do Antigo Regime, de praticas culturais que o Michel Foucault, L’Ordre du discours, op. cit., p.54. * Norbert Elias, Die héfische Gesellschaft. Untersuchungen zur Soziologie des Kénigtums und der héfischen Aristokratie mit einer Einleitung: Soziologie und Geschichtswissenchaft, Darmstadt-Neu- wied, Luchterhand, 1969 (traducdo francesa La société de cour, Paris, Flammarion,1985, p-108-110). * Reinhart Koselleck, Kritih und Krise: cine Studie zur Pathogenese der biirgerlichen Welt, Fri- burgo, Verlag Karl Albert, 1959, e Frankfurt, Suhrkamp, 1976. (traducao francesa Le Régne de la critique, Paris, Editions de Minuit, 1979). 78 Estado captara em um periodo para seu proveito — ou que nasceram em reacao a sua influéncia, na esfera do privado. Em um momento em que, freqientemente, encontra-se recusa- da a pertinéncia da interpretacao social, que nao se tome essas pou- cas reflexGes e proposicdes como o indicio de uma afiliagao a essa posicao. Bem ao contrario, na fidelidade critica 4 tradicao dos Anna- les, elas desejariam ajudar a reformular a mancira de apoiar a com- preensao das obras, das representac6es e das praticas nas divisoes do mundo social que, conjuntamente, elas significam € constroem. 79 3. A histéria entre narrativa e conhecimento » « » «& “Tempo de incerteza”, “crise epistemol6gica”, “reviravolta criti- ca”: esses sao os diagnésticos, geralmente inquietos, feitos nos tltimos anos sobre a historia. Basta lembrar duas constatacées que abriram o caminho a uma ampla reflexao coletiva. De um lado, aquela propos- ta pelo editorial de marco-abril de 1988 dos Annales, que afirmava: Hoje em dia, parece chegado o tempo das incertezas. A redistribuicao das disciplinas transforma a paisagem cientifica, questiona primados es- tabelecidos, atinge as vias tradicionais pelas quais circulava a inovacdo. Os paradigmas dominantes, que se iam buscar nos marxismos ou nos estruturalismos, bem como nos usos confiantes da quantificacdo, perdem suas capacidades estruturantes [...] A historia, que estabelecera uma boa parte de seu dinamismo sobre uma ambicao federalista, nao é poupada por essa crise geral das ciéncias sociais.' Segunda constatacao, muito diferente em suas razOes, mas semelhante em suas conclus6es: aquela feita em 1989 por David Harlan em um artigo da American Historical Review, que suscitou uma discussio que perdura até hoje: The return of literature has plunged historical studies into '*Histoire et sciences sociales. Un tournant critique?”, Annales E.S.C., 1988, p.291-293 (citacdo p.291-292). 81 an extended epistemological crisis. It has questioned our belief in a fixed and determinable past, compromised the possibility of historical representation, and undermined our ability to locate ourselves in time [O retorno 4 literatura mergulhou a historia em uma grave crise epistemolégica. Ele questio- nou nossa crenca em um passado fixado e determinavel, comprome- teu a possibilidade da prépria representagao hist6rica, e minou nos- sa capacidade de nos situarmos no tempo]. O que indicam tais diagndsticos, que parecem ter algo de pa- radoxal em uma €poca em que a edicao de histéria demonstra uma bela vitalidade e uma inventividade mantida, traduzidas na continu- aco das grandes obras coletivas, no lancamento de colecées euro- péias, no aumento do ntiimero das traducées, no eco intelectual encontrado por alguns livros maiores? Eles designam, creio, esta mutacdo maior que é o apagamento dos modelos de compreensao, dos principios de inteligibilidade que tinham sido aceitos de comum acordo pelos historiadores (ou, pelo menos, pela maioria deles) a partir dos anos 60. A historia conquistadora repousava entao sobre dois projetos. Em primeiro lugar, a aplicacdo aos estudos das sociedades antigas ou contemporaneas do paradigma estruturalista, abertamente rei- vindicado ou implicitamente praticado. Tratava-se, antes de mais nada, de identificar as estruturas e as relacées que, independente- mente das percepcoes e das intengées dos individuos, comandam os mecanismos econémicos, organizam as relag6es sociais, engen- dram as formas do discurso. Conseqientemente, a afirmacao de uma radical separacdo entre o objeto do conhecimento hist6rico ea cons- ciéncia subjetiva dos atores. Segunda exigéncia: submeter a histéria aos procedimentos do ntimero e da série ou, melhor dizendo, inscrevé-la em um paradig- ma do saber que Carlo Ginzburg, em um artigo célebre,’ designou 2 David Harlan, “Intellectual History and the Return of Literature”, American Historical Review, 94, junho 1989, p.879-907 (citacao p.881). "Carlo Ginzburg, “Spie. Radici di un paradigma indiziario”, in Mit, emblemi, spre. Morfo- logia e storia, Turim, Einaudi, 1986, p.158-209 (traducdo francesa “Traces. Racines d’un paradigme indiciaire”, in Mythes, emblemes, traces, Morphologie et histoire, Paris, Flammarion, 1989, p.139-180). 82 como “galileano”. Tratava-se entao, gracas 4 quantificacdo dos fend- menos, a construcao de séries e aos tratamentos estatisticos, de for- mular rigorosamente as relacoes estruturais que eram 0 objeto mes- mo da hist6ria. Deslocando a formula de Galileu em Il Saggiatore, o historiador supunha que o mundo social “é escrito em linguagem matemiatica” e dedicava-se a estabelecer suas leis. Os efeitos dessa dupla revolucao da histéria, estruturalista e “ga- lileana”, nao foram poucos. Gragas a ela, a disciplina pode assim rea- tar coma ambicao que fundara no inicio deste século a ciéncia social, em particular em sua versao sociologica e durkheimiana: ou seja, iden- tificar estruturas e regularidades, portanto, formular relacdes gerais. Ao mesmo tempo, a historia liberava-se da “bem magra idéia do real” — expressao de Michel Foucault — que a habitara por muito tempo, ja que considerava que os sistemas de relacdes que organizam o mundo social sao tao “reais” quanto os dados materiais, fisicos, corporais, apre- endidos no imediato da experiéncia sensivel. Essa “nova hist6ria” es- tava entao fortemente apoiada, além da diversidade dos objetos, dos territérios e das maneiras, sobre os principios mesmos que sustenta- vam as ambic6es e as conquistas das outras ciéncias sociais. AS CERTEZAS ABALADAS Nos dez primeiros anos, foram essas certezas, por muito tem- po amplamente compartilhadas, que vacilaram. Inicialmente sensi- veis a novas abordagens antropolégicas ou sociolégicas, os historia- dores quiseram restaurar o papel dos individuos na construcdo dos lagos sociais. De onde varios deslocamentos fundamenitais: das es- truturas as redes, dos sistemas de posicoes as situacées vividas, das normas coletivas as estratégias singulares. A “microhistoria’, italia- na e depois espanhola,' ofereceu a tradu¢do mais viva da transfor 4Giovanni Levi, Leredita immateriale, Carriera di un esorcista nel Piemonte del seicento, Tarim, Einaudi, 1985 (traducao francesa Le Pouvoir au village, Histoire d’un exorciste dans le Pié- mont du XVIF siécle, Paris, Gallimard, 1989); Jaime Contreras, Sotos contra Riquelmes. Regi- dores, inquisidores y criptojudios, Madri, Anaya/ Mario Muchnik, 1992 (traduc¢ao francesa Pouvoir et Inquisition en Espagne au XVIe siécle, Paris, Aubier, 1997). 83 macdo desse procedimento hist6rico inspirado pelo recurso a mo- delos interacionistas ou etnometodologicos. Radicalmente diferen- ciada da monografia tradicional, cada microstoria pretende recons- truir, a partir de uma situac4o particular, normal porque excepcio- nal, a maneira como os individuos produzem 0 mundo social, por meio de suas aliancas e confrontos, através das dependéncias que os ligam ou dos conflitos que os opdem. O objeto da histéria nao sdo, portanto, ou nao sao mais, as estruturas € os mecanismos que regulam, independentemente de qualquer influéncia objetiva, as relacdes sociais, mas as racionalidades e as estratégias executadas pelas comunidades, parentelas, familias, individuos. Uma forma inédita de hist6ria social e cultural afirmou-se, as- sim, centrada nas variacées e discordancias existentes, de um lado, entre os diferentes sistemas de normas de uma sociedade e, de ou- tro, no interior de cada um deles. O olhar deslocou-se das regras impostas a seus usos inventivos, das condutas obrigatérias as deci- sdes permitidas pelos recursos préprios de cada um: seu poder so- cial, seu poder econémico, seu acesso a informacao. Habituada a es- tabelecer hierarquias e a construir coletivos (categorias socioprofis- sionais, classes, grupos), a historia das sociedades estabeleceu novos objetos para si, estudados em pequena escala. Como, por exemplo, a biografia comum, ja que, como escreveu Giovanni Levi: Nenhum sistema normativo €, de fato, suficientemente estruturado para eliminar toda possibilidade de escolha consciente, de manipulacao ou de interpretacao das regras, de negociacao. Parece-me que a biografia constitui, por essa razAo, o lugar ideal para verificar o carater intersticial - contudo importante — da liberdade de que dispdem os agentes, assim como para observar a maneira como funcionam concretamente sistemas normativos que nao sao jamais isentos de contradicées.° Assim, a reconstituicado dos processos dinamicos (negociacoes, tran- sacoes, intercambios, conflitos, etc.) que desenham de maneira movel, instavel, as relacdes sociais ao mesmo tempo que coincidem * Giovanni Levi, “Les usages de la biographie”, Annales E.S.C., 1989, p.1325-1336 (cita- ¢ao p.1333-1334), 84 com os espacos abertos as estratégias individuais. Jaime Contreras diz isso muito bem em seu livro recente Sotos contra Riquelmes: Los grupos no anulaban a los individuos y la objetividad de las fuerzas de aqué- os no impedia ejercer une trayectoria personal. Las familias [...] desplegaron sus estrategias para ampliar sus esferas de solidaridad de influencia, pero sus hombres, individualmente, también jugaron su papel. Si la llamada de la san- grey el peso de los linajes eran intensos, también lo eran el deseo y las posibilida- des de crear espacios personales. En aquel drama que cre6 el fantasma de la he- rejia — una “creacién” personal de un inquisidor ambicioso — se jugaron, en duro envite, intereses colectivos y aun concepciones diferentes del propio mundo, pero también cada individuo pudo reaccionar personalmente desde su propia trama- z6n original® [Os grupos nao anulavam os individuos, e a objetividade das forcas de que dispunham nao impedia as trajetérias pessoais. As familias [...] em- pregaram suas estratégias a fim de aumentar suas esferas de solidarieda- de e de influéncia, mas os homens que as compunham desempenharam, eles também, seu papel. Se o apelo do sangue e o peso das linhagens eram poderosos, também o eram o desejo e as possibilidades de criar espacos pessoais. Nesse drama que o fantasma da heresia criou — uma “criagao” pessoal de um inquisidor ambicioso — estavam em jogo, em um duro con- fronto, interesses coletivos e mesmo concep¢ées diferentes do mundo, mas cada individuo podia também reagir pessoalmente a partir da tra- ma de sua prépria histéria]J. Uma segunda razao, mais profunda, abalou as antigas certezas: a tomada de consciéncia dos historiadores de que seu discurso, seja qual for sua forma, é sempre uma narrativa. As reflexdes pioneiras de Michel de Certeau,’ depois 0 grande livro de Paul Ricoeur* e, mais recentemente, a aplicacao 4 histéria de uma “poética do saber”, que tem por objeto, conforme a definigao de Jacques Ranciére, “o con- junto dos procedimentos literarios pelos quais um discurso subtrai-se a literatura, estabelece para si um estatuto de ciéncia ¢ o significa”, obrigaram-nos, quer quisessem ou nao, a reconhecer a perten¢a da *Jaime Contreras, Sotos contra Riquelmes, op. cit., p.30. ™Michel de Certeau, L’Ecriture de Vhistoire, Paris. Gallimard, 1975. *Paul Ricoeur, Temps et récit, Paris, Editions du Seuil, 1983-1985. “Jacques Ranciére, Les Mots de Uhistotre. Essai de poétique du savoir, Paris, Editions du Seuil, 1992, p.21. 85

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