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O rio e seu discurso Donaldo Schiller VIGILIA E SONO Hericlito ao dizer que 0 ordculo de Delfos nao declara nem oculta, mas ica, define, com certeza, o seu proprio discurso. Sentindo a insuficiéneia do ingiiistico para desvendar 0 mistério do mundo, desenvolveu uma fagem ambigua, alusiva, multissignificativa, apta a apanhar a complexidade ibre distancias em que os significados cambiantes se movem, cavando Icitos previstos no fluir universal. Entremos no jogo sem deté-lo, sem receio de ‘izes, mas com a firme determinagao do lance adequado. Embora seja este o discurso, sempre, os homens tardam, ndo sé antes de ouvi-lo, como logo que 0 ouviram; pots, mesmo que todas as coisas acontegam de acordo com este discurso, mostram-se semelhantes a inexperientes ao experimentarem tais palavras e atos que eu exponho seguindo a natureza, distinguindo cada coisa e dizendo como ela é. Mas os outros homens ignoram o que fazem depois de acordarem, como esquecem o que fazem dormindo.(B 1) Que discurso € esse que nao redime os homens da ignorancia? Que fazer ‘bio aei (scmpre)? Os homens sempre tardam ou o discurso scmpre 6? or que decidir 0 que Herdclito quer indeciso? Conscrvemos "sempre" na ndecisio; na indccisto "sempre" declara a continuidade do acontecer ¢ 0 rmanecer aquém. Afinal, que discurso é este? E 0 universal ou ¢ 0 de Herdclito? yrocesso de organizacao. Na impossibilidade ¢ na obstinagdo de os alcancar, \duzimos novos discursos, que no excesso tém o destino dos primciros, ¢ JMdo Schiiler é Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do CNPq. LS, H. e KRANZ, W. (1966), em cuja obra nos baseamos para a transcrigao dos textos de Herdclito, Olam, sob a letra B, os fragmentos considerados auténtices. eee ee eA eee © yntinuamos irremissivelmente imersos no acontecer da ignorancia. Tardos. fieontecemos na ignordncia e fazemos a ignorncia acontecer, 0 nosso inapclavel caminho, Chegamos a estas reflexdes, derivando 0 adjetivo aksynetos (tardo), de «eskyn-iemi (no ir com, nao acompanhar, ficar aquém da verdade, ouvir 0 apelo do discurso scm entendé-lo). Como "sempre", "discurso" ¢ ambiguo, tanto pode sor 0 discurso dos discursos como pode designar um dos discursos, 0 de Heraclito, por exemplo. Observe-se, entretanto, a diferenga entre um discurso ¢ o discurso Um discurso e ¢ discurso nao coincidem, nem se repelem. O discurso atravessa ‘cada um dos disc sos; neles 0 vemos ¢ 0 perdemos. Nao acontecemos apenas nés, {umbém as coisas acontecem de acordo com o/um discurso, um acordo que ndo ¢ ima coincidéncia, um acordo que vem de desacordos sem os quais nenhum acordo He Veria celcbrado. ‘A inexperiéncia no discurso nao significa a falta de iniciagéo em qualquer discurso. O apego indevido a discursos retarda 0 acesso ao discurso, Ha iliscursos que prendem, fecham a passagem a outros discursos. Sao assim os discursos miticos na vigéncia do mito. Heraclito pensa, quem sabe, nos devotos 44 mundos criados por Homero ¢ Hesiodo. Palavras (epea) sdo epopéias? Atos (ego) silo ritos através dos quais 0 homem procura passagem ao que o excede? O diseurso de Heraclito agride como exposigdo, pde fora 0 que outros discursos vodam, Se discursos t&m a virtude de expor, nao thes falta a tenebrosa qualidade de impor, contradi¢do no bojo de todo discurso. Nenhum discurso retém a exponigilo sem prejuizo. Hericlito ataca a crosta endurecida de discursos que, Hogandos deseneadear 0 que vive nas sombras. a natureza que acontece ¢ faz aconteccr. discurso de Heraclito tem a vantagem de vencer as frontciras do diseurio particular em diregdo ao discurso que excede todos os discursos ¢ os {wndamenta, discurso oculto na natureza que oculta. Atento a esse discurso. sulmnete tudo a exame, tanto o ja muitas vezes dito como 0 ainda nao proferido. Controntado com o discurso dos discursos, discurso nenhum pode pretender a puaigo de absoluto. O discurso da naturcza gera tudo 0 que €e tudo o que se diz. Herando, restaura o movimento daquilo que pretende endurecer em rigidez letal Outros homens, ndo despertos como Herdclito, dormem no sono ¢ na Vigilin, Se despertam, esquecem as visdes da noite © as trevas se adensam. Avordados, agem como se nada vissem. Ainda que despertos, movem-se como se wndassem de olhos vendados, dormindo. Herdclito, cultivado em contradigées, jlenta para as imagens que desfilam na sombra ¢ para as sombras que ndo se extinguem na luz, Esse discurso acolhe farrapos da noite nos lugares cm que ‘oulvos discuros ndo mostram mais que corpos iluminados, despertando imagens ‘olaras nas regides que outros discursos relegam ao siléncio das trevas. O conflito dos discursos nao visa a silenciar nenhuma voz. O confronto proves os discursos, fazendo-os reviver Todos os discursos ingressam cm eonvergente divergéncia. 16 como tais, tendem a absolutizar-se, evadidos do fluxo. O pensador afvonta as couracas para surpreender o que elas encobrem. Faz-se obscuro para O COM-UM E 0 COMUM © conflito dos discursos nao visa a silenciar nenhuma voz, O confronto provoca os discursos, fazendo-os reviver. Todos os discursos ingressam em convergente divergéncia. Por isso convém seguir 0 comu-um, pois 0 com-um é 0 geral. No entanto, embora o discurso seja com-um vivem as multiddes como se tivessem conhecimento particular.(B 2) Comum? Como havemos de entendé-lo? Se tivermos a ousadia de desdobrar comum em com-um, cometeremos violéncia ao corpo da linguagem, benéfica, entretanto, por desvendar o sentido. Com-um recupera ksyn-on: ksyn (com), on (participio presente do verbo eimi - ser). Com-um: ser conjuntamente um. Onde? No discurso. discurso desencadeia uma longa historia, que se confunde com a tradico ocidental desde as origens. Queremos recolher em “discurso" o sentido do substantive logos. Logos designa muitas coisas, Homero emprega 0 verbo /ego, da mesma raiz de logos, para 0 processo de recolher alimentos, armas € 0ssos, para rcunir homens, Cada uma dessas operacdcs implica comportamento racional; ndo se reimem armas, por exemplo, scm as distinguir de outros objetos. Concomitantemente, logos significa uma reunido de coisas sob determinado critério, Armas misturadas com ossos sem critério algum nao fomariam /ogos, provocariam sentimento de desordem, caos. Logos corresponde, portanto, ao com-um, nao de palavras apenas mas tabém de seres. (0 que devemos entender por um’? © um é 0 cosmos. O um, no principio ndo tem nome. A unidade, antes de ser nomeada, foi intuida ou vagamente designada por um adjetivo. Nos tempos miticos, a unidade se revela no divino, que se desdobra na diversidade existente sem excluir os deuses. Kosmos significava adorno, objetos artesanais, reunindo as acepgdes de beleza e ordem. Pitagoras clevou o termo kosmos a totalidade do universo, no que foi seguido por Herdclito. O kosmos conjugado ao logos forma 0 com-um, o discurso com-um, va ld a esclarecedora tautologia. Logos néo se restringe, entretanto, a ordenagao dos seres, ele estende vinculos, com 0 mesmo vigor, entre palavras. Surge assim o discurso verbal. Sem. Jogos nio ha discurso; hé, quando muito, amontoado cadtico de palavras. Sem discurso verbal, estariamos desamparados de recursos para nos referir ao discurso cosmico. Embora o discurso cdsmico ultrapasse em riqueza e significado o discurso verbal, nao se oferecem cursos a sua exploracdo sendo este. O discurso verbal abre-se em acesso ¢ fecha-se em limite. Traduz 0 com-um scm prendé-lo. Insere-se no com-um sem confundir-se com ele. Prender 0 discurso cosmico no tecido verbal esteve sempre na mira dos homens para prejuizo da verdade. ‘Ainda surpreendemos 0 Jogos no interior de nés mesmos, quando 17 eee aaaa compreensivamente voltados para 0 espetaculo do mundo. O /ogos-razao crescenta-se aos outros dois no mesmo movimento de com-unidade, Mantemos teste lucrativo didlogo entre as ruinas da modernidade. J4 hd muito desistimos de derivar intcligibilidade das nossas circunsténcias. Refugiados cm nés proprios, fragmentamos em estilhagos 0 que Heraclito queria uno. © caos néo poupou as hhossas criagées artisticas, em que a desordem abalou os fundamentos do belo. A conversa com o remoto pensador de Efeso nos é benéfica por nos dar a medida da nossa queda, dissociando cautelosamente do termo todo juizo de valor. Seguir 0 com-um significa reprovar a disperstio ¢ aderir 4 unidade, recolher os estilhagos ¢ ordend-los em um, ndo consentir na dissolugao. Como distinguir "conhecimento particular" e "discurso com-um"? ‘onhecimento particular” traduz o substantivo phronesis, derivado de phren (diafragama), ¢ designa o conhecimento que se adquire através dos sentidos, 0 fiber pritico, Heraclito ndo despreza a informagao dos sentidos. Veremos a insisténcia com que se refere a cles. Condena, entretanto, aqueles — e constituem 4 maioria — que, nao conseguindo erguer-se acima dos sentidos, vegetam gnredados no turbilhao cadtico das informagdes sensoriais. Como a impressao sensorial, por ser unica, é intransferivel, cada um constr6i 0 seu préprio territério de sensagdes. Os sentidos se validam quando acolhidos no discurso com-um. Estd claro que 0 com-um ndo exclui 0 comum, 0 ordinario. O com-um € supinamente ordinario, porque oferecido a todos. Se no o percebemos, € por embotamento légico. O discurso com-um se desdobra em discurso ordindrio. muitas observagdes procedem do dia-a-dia. TRADUGAO Poderiamos, ao traduzir Hericlito, manter Jogos em grifo, declarando a {ndig6ncia da nossa lingua ante a riqueza dos recursos verbais do povo que se filoja nas origens da cultura ocidental. Em vez dessa opgaio melancdlica, preferimos manter didlogo distante com textos que a tradigdo nos legou ¢ 0 fiemos, no caso vertente, através de Joao Cabral de Melo Neto. Entendemos que lis dofinigdes de discurso ensaiadas pelo poeta em "Rio sem discurso” cm parte ja eolhidas nas consideragées precedents, podem levar A absorgiio de logos, fayendo-o fluir, transfigurado, na lingua portuguesa. Vamos ao poema de Cabral Quando um rio corta, corta-se de vez O discurso-rio de agua que ele fazia; cortado, a dgua se quebra em pedacos, em pogos de gua, em agua paralitica, Ey situagdo de pogo, a agua equivale ‘a uma palavra em situagao diciondria: isolada, estanque no pogo dela mesma, € porque assim estanque, estancada; 1 e mais: porque assim estancada, muda, muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, 0 fio de dgua por que ele discorria. O discurso de um rio, seu discurso-rio, chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de agua para refazer 0 fio antigo que o fez. Salvo a grandilogiténcia de uma cheia Ihe impondo interina outra linguagem, um rio precisa de muita dgua em fios para que todos os pogos se enfrasem: se reatando, de um para outro pogo, em frases curtas, entao frase a frase, até a sentenga-rio do discurso tinico em que se tem voz a sede ele combate.” Como se vé, o pocta ressemantiza um termo que 0 uso banalizou, despertando os significados correr, fluir, contidos no substantivo "curso", que entra na composi¢ao de "discurso". Iluminada a metafora, 0 discurso de faz "curso de um rio", e ao correr/discorrer, as frases refazem 0 fluxo cortado pelas palavras estagnadas nas definigdes rijas do dicionario. O discurso-rio, ao reatar, reunir, recolher, enfrasar, organizar, dispor, reativa alguns dos signifcados de /ogos. Provocando a confluéncia do rio heraclitiano com 0 rio de Jodo Cabral, podemos abrir 0 didlogo com a lingua antiga, solicitar novas associagées e dizer "discurso" sem a estranheza de sotaque estrangciro. AOS SURDOS __Ha os presos ao sistema em que esto inseridos, estanques em gua paralitica, surdos. Por considerarem absoluto 0 discurso restrito, a dgua cortada em pogos, nao atendem ao apelo com-um, em que seriam uma voz entre muitas. Paralisados no discurso privado, perdem acesso ao que abrange a totalidade. Caraterizada esta a falta de entendimento: Os desprovidos de (entendi)(movi)mento, ao escutarem, parecem surdos: um ditado diz a respeito deles que esto ‘ausentes, mesmo quando presentes, (B 34) Queremos indicar com os parénteses os significados sobrepostos 2 \{ELO NETO, Jodo Cabral de. Poesias Completas (1940-1965). Rio de Janeiro, Sabid, 1968. 19 a aera aaa eniendimento © movimento, presentes no adjetivo aksynetos, ja analisado. A segunda acepgao define a primeira. Desprovidos de entendimento sdo os que ndo fe poem em movimento com outros, destinatarios do mesmo apelo. © apelo vem de fora do sujeito ¢ dos sistemas. Os seres se organizam em signos do discurso que os compreende ¢ os excede. A sabedoria consiste no onfinsar sem prejuizo de peculiaridades. S6 entao estamos na sentenga-rio do discurso tinico, que precisa de muita 4gua para que todos os pogos se enfrasem. 0s surdos ao apelo no percebem outra voz. além da que Ihes é familiar. Obstinados na recusa ao teatamento do proprio com o alheio, perdem no s6 a {nieligibilidade do todo como também se obscurece a luz privada que os alumia. 0 jue tem por luz faz-se escuriddo. No intuito de manter vivo 0 pensamento, Honielito ataca as paralisias. O saber resulta dos que andam, atentos ao mesmo fipelo, CCOMUNIDADE A presenga fisica no estabelece comunidade. O discurso ¢ 0 leito em que (liseorrem apelo ¢ resposta. Se os fios do discurso se cortam, se em lugar do rio jogos se isolam, sofre-se o flagelo da seca, a voz emudece, a vida nao tesiste a jnorie. © apelo soa no interesse da totalidade; ata os fios que no conjunto formam 4 corente do grande rio. No discurso, auséncias enfrasadas fazem-se presengas ofetivan, Do discurso com o qual assiduamente convivem, pois governa tudo, deste se afastam, e as coisas com as quals se defrontam todos os dias, estas thes parecem estranhas. (B72) O discurso profere-se a si mesmo. Ainda que esquecido, desprezado ou ignorado, 0 discurso governa o universo. Articulado em nés ¢ fora de nés, nele Vivemos © convivemos, Atando ¢ reatando, ele se contri, Como entender, doaliformados de sua sintaxe? Desinformados dele, onde buscar o sentido do que sentinios? Resguardada fica a distancia estratégica, essa que tomamos para ‘obseryar melhor. Mas a adverténcia vale para a dispersdo, 0 recuo sem rctorno. © mundo abre-se em enigma. Constaté-lo na ponta dos dedos, degusta-lo 414 lingua, bailar ao ritmo dos sons, participar da festa das cores ndo basta. Os que yecusam 0 convite ao simpdsio do discurso obstinam-se a viver em pogos de agua enlanque, DISCURSO EXCEDENTE Perdlemos a nogiio do discurso com-um quando permitimos que 0 saber se a0 parta em pogos. Nao convém alicergar hipotética unidade em certo discurso acreditado, mesmo que seja o de Herdclito. O discurso peculiar nao cleva ao todo. Tampouco atingimos a totalidade plantados os pés em alguma das nossas provincias: psicologia, etnologia, sociologia, historia, linguistica, filosofia... O discurso com-um excede os dialetos, recolhendo-os na trama das relagées. A trama € ele, as palavras enfrasadas. Herdclito ndo é mais do que uma voz no discurso com-um, razo por que importa estar atento polifonia dos falantes: Tendo ouvido ndo a mim mas 0 discurso, sibio é 0 concurso: todas as coisas sao um s6(B 50) © golpe desferido por Zeus no andrégino primitive mostra hoje sua inteira gravidade. Vagamos castrados, incuravelmente enfermos. Desamparados da unidade, instalamo-nos em precdrio ¢ inconveniente sucedaneo, a ideologia Concordes na unidade estariamos se tolerdssemos que o discurso de cada um soasse no concurso com-um. © discurso com-um, na sua elevagdo, é contra-ideolégico. Chama dos abrigos a praca, é de todos sem ser de ninguém, est4 no lugar em que todos convém, Herdclito brinca com logos ¢ homologein(homologar, concordar, convir). Aproximando "discurso" ¢ "concurso, respondemos ao brinquedo. Seja concurso 0 homologar que nao anula a divergéncia, 0 concordar que estimula discordancias, 6 convir que favorece 0 cruzamento de caminhos ESQUIVANCAS Os que recordam O banquete de Platéo sabem 0 quanto 0 buscado se esquiva, o divino, 0 que na oferta se retrai. Das coisas divinas a maior parte, por falta de confianga,escapa ao conhecimento. (B 86) Ninguém ignora de todo. A mera informagdo dos sentidos, embora precdria, ainda é saber. Todo saber est mesclado de ndo-saber. Se ignorassemos inteiramente o que buscamos, como nos poriamos a caminho? Os que amam o saber surpreendem-se infelizes muito antes de Platio. O ardor dirigido ao que foge a todos agita-se na mescla do desencorajamento ¢ da esperanga. A falta de confianga nao é subtragao sem resto, assim como a evasao do divino nado é abandono scm vestigio. O filésofo é um amante infeliz; para manter acesa a chama do desejo, precisa lutar contra a sua propria desconfianga O discurso com-um, 0 divino, é 0 que se busca. Enquanto estamos a caminho, proferimos estes discursos parciais, necessdrios por serem eles que nos mantém no caminho; precarios porque o ndo-dito supera em muito o que se diz. Os irremissivelmente desesperados, por cansago, decretam definitivo 0 precario. 21 aan Deles a historia apresenta notérios exemplos. Para se curar da deseperanca fifundam-se no desespero, declarando tudo o bem pouco que tém. O INDIZIVEL Os discursos nunca so 0 discurso. O nosso falar prossegue em tentativas frustradas de aprisionar nas redes da sintaxe 0 que se declara hostil a quaisquer confinamentos. Sc lograssemos surpreender 0 nucleo do indizivel, profeririamos a iillima palavra, que decretaria o fim de todo falar. O sdbio é decididamente mais do que o dito. O que nos discursos sdbios seduz brilha como reflexo do sabio jusente. O oculto é muito mais do que o que se mostra. De quantos owvi discursos, ninguém chega a compreender que 0 sdbio esta separado de todos. (B 108) ¥E ambicdo de muitos identificar 0 discurso com-um com 0 dizer de um. Se 0 irrcalizével se realizasse, a busca seria assaltada pelo ditado, o didlogo se fonderia ao monélogo, a linguagem adquiriria a fixidez dos recursos que jnyentamos para nossa sobrevivéncia. O sébio separa-se por sua propria natureza, assegurando que nao € coisa entre coisas, nem coisa além das coisas. Nao sendo coisa, ele arma relagdes entre we coisas, indica a fungao das palavras na sintaxe. E coesdo, sentido ndo- jubstancial do que aparece. O sibio se recusa a nds, os falantes, para nos instituir gomo diferentes, Excluidos, participamos ¢, nesse caréter, falamos. Procuramos inlerpretar em nossas verses os enigmas de sua linguagem. O texto original, fofundido em outras versdes, seduz como inatingivel e assim ilumina. Esta jprovente, nao estando. A declaragdo de fidelidade nao abafa a dissonante vor da {rnigilo, Separado de todos, 0 sdbio nos torna solidarios na caréncia. Apoiamo-nos jutuamente na busca. Procuramos em outros horizontes 0 que nao colhemos em Nowso territério, OBJETOS E PROJETOS 0 discurso da psique nao coincide com o discurso pleno que fundamenta © mundo, Houvesse coincidéncia, a realidade se apresentaria Iuminosa, Nao ¢ assim, Ha na psique uma zona de sombra, um ndo-saber. Para alcangar 0 saber, importa ao ndo-saber tender ao scu proprio aniquilamento, ato impossivel a homens que ignoram suas deficiéncias ¢ possibilidades. Os que sabem que sabem, ‘encerrados em sua propria suficiéncia, ndo suportam crescimento. Consciente da propria precariedade, o discurso da psique ndo aumenta na wolidiio, Cresce 4 medida que o raio de suas preocupacées sc dilata. O discurso, siuando © falante no todo, n&o provoca aumento cumulati relaciona. 2 Movimenta as relagdes 4 medida que se movimenta, O dizer de cada um acontece no tecido com-um. Na mobilidade cumpre definir. © novo vem do ja proferido, prolongando-o ou repelindo-o. Nao impclido por geragao cega, cumpre indagar- Ihe as razBes. © crescimento sendo sem fim, sobre si mesmo se dobra; novo principio ergue-se em cada fim. Da psique é 0 discurso que se robustece a si ‘mesmo. (B 115) Nao contemplamos 0 mundo de fora, como se assistissemos a um espeticulo, sentados na platéia. Nosso discurso ¢ 0 discurso do mundo se interpenetram. Acontecemos ¢ fazemos acontecer. Nosso fazer repercute, ¢ somos afetados por alheio fazer. O mundo, guardando objeto e projetos, nao se reduz a objeto do saber. Organizando, organizamo-nos, entretecidos que somos. IMBECIS : Ha os que amam a sabedoria. Esses néo se excitam. Submetem 0 insélito a paciente exame. Habituados a afrontar certezas, 0 mundo inteiro torna-se-Ihes estranho, mesmo os rincdes familiares. Provocadores de mistérios, nao poupam esforcos para desencanta-los mesmo que 0 trabalho abra distancias. r Os imbecis escolhem o extremo oposto. Vivem excitados por sonhos, visdes, contos, cantos, falas: O imbecil ama excitar-se por qualquer dicurso. (B 87) ‘A excitagdo nao acontece aos imbecis inopinadamente. Por Ihes causar prazer, eles a buscam. Fontes de excitagdo: o timbre da voz, a harmonia dos gestos, o brilho dos olhos, a agilidade da argumentagao, 0 embalo do ritmo... Para esses nao ha remissdo. O homem ponderado, avisado dos riscos, se resguarda. Visto que 0 discurso se derrama nos discursos, 0 compromisso de quem ama ¢ com 0 discurso. Quem no entusiasmo se deixa arrastar por qualquer discurso se perde no torvelinho das sedugées inconseqiientes. ARETORICA Pitagoras, inventor de verdeiros enganos. (B 81) Pitégoras € apenas um nome de referéncia, que deve estar errado. A divergéncia ¢ agora nao com 0 filsofo, mas com a retérica, que se desenvolve nos estados democraticos. Criada como arte de persuadir, busca influir, mesmo com 0 sacrificio dos fatos. Esse desvio nado pode contar com a anuéncia de Herdclito, a wi empenhado em fazer da palavra um instrumento rigoroso para desvendar os 1966. mistérios do universo. Ao arrepio de seus propésitos, os oradores usam a retorica HEIDEGGER, Martin e FINCK, Eugen. Heraklit, Seminar Wintersemester 1966-77. Frankf para encobrir. A adverténcia de Heraclito nao deteve a multidao dos artificios que ‘eee Ee pacha gen ain fiviltaram as assembléias populares ¢ chamaram a ruina muitos estados. O livre KIRK, GS. A eee pean eeu Ze exercicio da palavra nao ¢ tudo, requer-se ainda a integridade dos que a usam. Se Gulbenkian, 1982 [1966] sofos pré-socraticos. Trad. de Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa, (0 discurso se cleva para abrilhantar 0 orador, obstruido esta o caminho a verdade. LEAO, Emmanuel Carneiro ¢ WRUBLEWSKI, Sérgio. Os pensadores origindrios: Anaximandro, Parménides, Herdclito. Texto e Tradugdo. Petropoli e Trad is, Vozes, 199 MONDOLFO, Rodolfo, Herdclito. Trad. ao espanhol de Oberdan Caletti. México, Siglo XI, 1966. fe none ae aa ea, RONDE; Ewin Piohe: Dart Winearallste Bustgwslastuf. 961 1253] Quem fataria de Priene ou de Tentames, nao tivesse Bias nasci nee SOUZA, José Cavalcante de. Os pré-socréticos. 5.ed, Sao Paulo, Nova Cultural, 1991 Jigar e dese pai? O discurso distingue o lugar em que emerge Provoca fcontecimentos ao acontecer: Em Priene nasceu Bias, filho de Teutames, de mais pleno discurso que o dos demais (B39) Bias acontece no discurso como sujeito e como objeto. Comparado a ultos discursos, 0 de Bias acena pleno. Pleno nao significa terminado, Pleno ¢ 0 discurso robusto ¢ amplo, 0 que traz a luz e se expande em associagdes que fluem f rofluem em novas vagas de sentido. O pleno se abre para o fluxo caudaloso do que vem, Em Bias, o discurso, ao fluir, se faz historia O discurso de Bias se opde aos discursos que definham na insisténcia de formulas, Inertes, nao irrompem em fecundas articulagées. Destituidos de poder, dieles se apoderam os que mandam. Como lembra-los, se optaram pelo partido dos won que se extinguem? Quem profere discurso pleno desperta o falar aprobatério ide outros falantes. No fluxo ¢ refluxo 0 nome se ilustra em renome, nome juilenticado no reflexo. TRADUGAO E TRADICAO Este 6 0 discurso, a convergéncia de muitos cursos, a sobreposicao de worrentes, Os cursos, ao discorrerem, se enredam e desenredam, convergem ¢ diyergem no fluir que se refaz. Traduzir é manter viva a tradigao, é impedir que 0 flo se corte em pogos, que estagne, que morra. Atravessando a lingua de Joao Cabral, Herdclito soa com timbre novo sem esquecer 0 dialcto original. O discurso ‘ei curso requer a tradugio. j REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 4 HOLLACK, Jean ¢ WISMANN, Heinz. Héraclite ou la séparation. Paris, Minuit, 1972. HUBNUT, John, Early Greek Philosophy, 4.04. London, Black, 1963. DIVLH, Honnann.e KRANZ, Walter, Die Fragmente der Vorsokratiker. Dubli’Zuerich, Weidman, ety

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