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Revista de Histéria das Ideias, Vol. 4 - Tome I (1982) JOS# BARRETO * O DISCURSO POLITICO FALSAMENTE ATRIBUIDO AO MARQUES DE POMBAL Introdugao Ja no principio deste século J. Litcio de Azevedo havia escrito, contra a corrente da historiografia pombalina até en- tao dominante: «Pombal, que passa por encarnar a oposicao firme ao absorvente domf{nio [dos irigleses], mostrou-se, sem embargo de algumas veleidades e ocasionais resisténcias, pro- pugnador da amizade britanica e decidido cultor dela, por one- rosa que As vezes a considerasse. Foi politica sua constante manter a todo o custo a protecgao da Inglaterra; ao mesmo tempo emancipar-se da tutela comercial e coarctar o que havia de exagerado nas regalias de que gozavam os stibditos da na- cdo amigas (+). Apesar dos posteriores ¢ decisivos esclareci- mentos da questao por alguns historiadores contemy wancos, ainda hoje se nao desvaneceu, contuda, em torno da figura de Pombal a fama de adversario intransigente dos ingleses. A oposicao pretensamente votada & nacéo britanica pelo primeiro ministro de D. José estaria patente, em particular, ha sua politica econémica, cujo objectivo principal teria sido libertar Portugal da «dominagao» ou «dependéncia», de carac- ter mais ou menos «colonial», em que se encontraria «subme- tido» por parte de Inglaterra. Pode-se certamente discutir, sem incorrer em anacronis- mos ou erros historicos, se a posic¢do de Portugal face a Ingla- terra no século XVIII, nos planos politico e econémico, era ou nao de dependéncia, A questao da dependéncia econémica j4 era posta alids, e com toda a realidade, no tempo de D. Joao v * Instituto de Citncias Sociais da Universidade de Lisboa. ©) © Margués de Pombal e a sua Epoca, 2.* ed., Rio de Janeiro, 1922, pp. 210-211 as 385 O Marqués de Pombal e D. José. E no eram apenas «estrangeirados» ou diplomatas distantes da governaciio a levantarem a questio. O préprio Cardeal da Mota, por exemplo, falava em 1734— em plena sore. de prosperidade brasileira — da «sujeic¢fio» ¢ da «depen- incia», relativamente a outras nagdes, dos pafses que nao possuiam fabricas, que assim viviam «pobres e reduzidos a uma extrema decadéncia» (*). Nao foi com certeza a historiografia contemporanea, nem a do século passado, nem mesmo a dou- trina do «despotismo esclarecido» quem descobriu ou engen- drou o conceito de dependéncia econémica. Mostrou J. Borges de Macedo — criticando uma excessiva acentuacdo do aspecto da dependéncia portuguesa nas relagdes luso-britanicas —que a ligacéo de Portugal atlantico. com In- glaterra reflectia antes de mais uma vasta coincidéncia de in- teresses polfticos e comerciais (*), Isto nado invalida, porém, que nem todos os interesses portugueses coincidiam com os ingleses, como é notério no respeitante ao desenvolvimento das nossas manufacturas, navegacdo, exportagées, etc, E certo que no Portugal dos séculos XVII e XVIII as tentativas de reactivagaéo do comércio, manufacturas, etc., surgiam guase sempre nos perfodos de escassez de poder de compra nacional e que, pelo contrario, nos perfodos florescentes de exportacao de produtos ultramarinos ou da mineracao dos metais precio- sos e diamantes, se apagava aquele estimulo decisivo 4 produ- ¢&o nacional das mercadorias que se importavam (‘). Esta falta de estimulo (nao considerando travées de outra ordem), combinada com o forte interesse dos ingleses pelo mercado de Portugal e seus dominios — aonde conseguiam nao sé colo- car grande quantidade de mereadorias como ainda obter avul- tado excedente pago em ouro—viria porém a resultar, sob a égide de uma ligacao politica e comercial privilegiada entre os dois paises, numa situagdo a longo prazo bastante desfavora- vel para a economia portuguesa. Ora muito antes ainda da ©) Parecer do Cardeat da Mota sobre a instalagao em Lisboa de uma manufactura de sedas, in Jorge Borges de Macedo, . Interessa também referir aqui que Sebastido José nao mostrava j4 grande apreco pelo proprio Tratado dos Limites, assinado em Janeiro desse mesmo ano de 1750, meses antes da sua chegada ao poder. Com efeito, em Outubro, afirmava nao Ihe fazer «o mais leve receio» que, segundo a ameaca de Gus- mo, o ministro espanhol D. José de Carvajal resolvesse nao dar execugiio ao Tratado dos Limites do Brasil em caso de se ae as negociac6es do tratado de comércio luso-espa- nhol ("*). Nem antes da sua chegada ao governo, nem no momento critico do comego do reinado de D. José, nem nos movimen- tados 27 anos que se seguiram veremos jamais Pombal adepto do «partido» franco-espanhol ou empenhado numa politica antiinglesa. Nao ha divida que nas relagdes com Inglaterra procurou sempre salvaguardar os interesses ¢ a dignidade na- cionais, teve negociagées dificeis com o governo Pritdnico @ conflitos por vezes muito acesos com os negociantes ingleses estabelecidos em Portugal, muito privilegiados e arrogantes. Mas uma politica anti-inglesa sé poderia ter significado, na época em questao, um estreitar de relagées nos campos poli- tico e comercial com a Franca e a Espanha e o consequente abandono da antiga alianca ¢ dos tratados com Inglaterra. O que nao poderia ter deixado de se traduzir, por sua vez, num decréscimo proporcional do comércio Iuso-inglés, numa dete- rioragao evidente da situacZo dos negociantes britanicos de Lisboa e Porto e, em tiltima andlise, no afastamento da nave- gacao inglesa dos nossos portos. Teoricamente, tudo isto tera estado ao alcance do governo de Pombal, ainda que fosse legi- timo pér as mais sérias reservas 4 viabilidade e ao sucesso de tal politica, nomeadamente tendo em conta a vulnerabilidade da navegagio e dos dominios ultramarinos portugueses, que passariam a ter de recear a cobica e a hostilidade da primeira (*) Idem, p, 227, 390 O «Discurso Politicor poténcia maritima mundial. Os factos atestam que nunca Pom- bal enveredou por esse caminho, mesmo que se tenha servido ds algumas ameacas veladas para pressionar o gabinete lon- 0. A mais forte razdo de queixa do governo portugués con- tra o de Londres residiu, tanto no reinado de D. Joao V como no de D. José, na hesitacéo, demora e, por vezes, recusa dos in- gleses em corresponderem aos pedidos de socorro do aliado, quase sempre contra as ameacas ou pretensdes espanholas. Personalidades houve, com maior ou menor influéncia sobre D. Joao V, como Alexandre de Gusmiio e D. Luis da Cunha, que perante a tibieza do auxilio ou as escusas inglesas ao cumpri- mento da alianca, encararam e sustentaram uma alteracao da politica externa. Mais tarde o préprio Pombal se tera confron- tado com essa hipétese. Mas 0 auxilio inglés nao faltou quando da mais grave ameaga espanhola que durante o reinado de D. José pesou sobre Portugal, em 1762 (**). Quanto a politica pombalina das companhias monopolis- ticas, ja Borges de Macedo tentou demonstrar que ela nao visava o comércio inglés, sendo essencialmente interno o seu objectivo. A simples andlise do movimento de navios no porto de Lisboa entre 1746 e 1780 também é uma prova insofismavel de que as sdlidas garantias de que o comércio inglés dispunha em Portugal nao Giminuiram ("), 86 a {4 referida contraccao dos meios de pagamento a partir da primeira metade da déca- da de 1760 faria baixar sensivelmente as importagdes de Ingla- terra e, consequentemente, o excedente a favor deste pais, o que todavia nao pode imputar-se a medidas pombalinas. Contudo, sem nunca perder de vista a ampla coincidéncia de interesses entre Portugal e Inglaterra, Pombal também tra- balhou para a emancipagiio econdémica do seu pais, inclusive ao arrepio de interesses ingleses divergentes ou opostos aos nossos, E o caso, por exemplo, da politica de fomento indus- trial realizada a partir da depressao da década de sessenta, intervengdo que de resto correspondia mais & pressao das cir- () Mesmo ent&o, a demora do socorro inglés levara Sebastigo José a aprestar uma forte esquadra, com o intuite de se embarear a familia real para o Rio de Janeiro assim que os espanhdis atravessas— sem a fronteira portuguesa Esta solugéo (plancada cerea de meio sé- culo antes da fuga de D. Joao VI para o Brasil) nao chegou a ser ne- cessaria, mais pela «vagarosa lentidaéo dos nossos vizinhos» do que pela prontidao dos socorros briténicos, segundo relatou Pombal. Vejam- “se as Cartas do Margués de Pombal (1777-1780), pref. e notas de José Menuel de Noronha, Lisboa, 1916, p. 83. (“) «Portugal e a economia ‘pombalina’—temas ¢ hipéteses», Revista de Histéria de S. Paulo, n.° 19, 1954. 391 O Marqués de Pombal cunstancias econdémicas do que a Preocupacao abstracta de de. senvolvimento, Na verdade, Pombal ficou muito Jonge das rea- Tapes por ele desejadas neste capitulo na longinqua data le i A ideia mitica da politica «antiinglesa» de Pombal pare. ce-me essencialmente uma reputacao engendrada ou opulari- zada muitos anos apés a morte do ministro. Na Poctnae> dessa ideia teve a meu ver a maior responsabilidade a atribui- cao fraudulenta a Pombal da autoria de varios textos, na rea- lidade contrarios a politica que ele préprio conduziu. No final do século XVIII e principios do século XIX, uma das caracte- risticas salientes da vida politica portuguesa era a luta entre os «partidos» francés e inglés, confronto em que se inscreve © recurso a figura de Pombal para fins propagandisticos. Entre aqueles textos avulta o caso do conhecido Discurso Politico, de que me proponho tratar no presente artigo (**). Quero porém sublinhar desde ja que nao se tratara aqui de uma vulgar autoria apécrifa, semelhante a tantas outras e sem mais alcance que o de uma curiosidade bibliografica. Por um lado, a larga ‘divuleacdo © aceitagao da falsa autoria, consti- tuindo-a num dos suportes da historia mitolégica pombalina, projectam-na bastante além das preocupacdes do mero erudi- tismo. Por outro lado, a obra em questdo nao foi relegada, nas épocas em que se publicou, para a sombra e o bafio de algumas bibliotecas de letrados, tendo sido lancada, pelo contrério, em sucessivos momentos e diferentes locais como uma auténtica pega de combate, 1. Um libelo anti-inglés surgido apds o terramoto de 1755 A noticia do terramoto do 1.° de Novembro de 1755 cha- mou a atengao de um vastissimo publico para Portugal. Um més depois da catastrofe comegava a surgir por toda a Europa grande quantidade de folhetos, livros, estampas, etc., contendo relag6es, descrigdes e testemunhos presenciais do terramoto lisboeta, satisfazendo a avidez de noticias. As informagGes mais contraditérias e exageradas viam a luz do dia, chegando aléa expalhanse 6 boxto de que Lisboa fata submergida, desa- parecendo completamente. Filésofos, escritores e artistas de- brugar-se-iam igualmente sobre 0 acontecido, Kant consagrou- @) Concluida a minha investigag%o sobre este caso, soube pela lcitura de uma nota no artigo de L. Ferrand de Almeida atrds citado gue j4 cm 1976 um historiador brasileiro, J. Ribeiro Junior, havia afir- mado que a autoria do Discurso Politico nao pertencia a Pombal. 392 O Discurso Politico» -lhe uns ensaios cientificos. Voltaire escreveu, ainda em 1755, © Poéme sur le désastre de Lisbonne e, em 1759, localizaria uma parte do Candide em Lisboa durante o terramoto. Em Londres, particularmente afectada pela noticia do desastre, que significava a ruina de muitos negociantes ingleses, o Ca- valeiro de Oliveira aproveitou a ocasido e publicou em Janeiro de 1756 0 seu Discours Pathétique au sujet des calamités pré- sentes arrivées en Portugal, simultineo de uma versdo em in- glés, obra em que investe contra a Inquisi¢dio e a «supersticao» religiosa dos portugueses (7°). ‘Um terramoto com aquelas proporcdes e consequéncias tornava-se ao mesmo tempo num acontecimento politico de primeira ordem, numa espécie de «revolug&o», como ent&o se escreven, isto é, num dado com repercuss6es possiveis até no «equilibrio europeu» — nogiio j4 muito em voga nos meados do século XVIII, particularmente oportuna nas vésperas da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Tendo de acudir, numa si- tuacao de grande desorganizacio e consternag4o, a mi] e uma emergéncias e necessidades, Portugal nao estaria proximamen- te em condicdes de responder eficazmente a qualquer host! dade, mormente por parte de Espanha—eventualidade na- quela data bastante remota ¢ improvavel, diga-se. No plano interno, por sua vez, era natural que a crescente oposigao ao predominante ministro de D. José agarrasse a oportunidade para se manifestar mais abertamente, procurando ao mesmo tempo tirar partido facil de qualquer deficiéncia, suposta ou real, na acco governativa pés-terramoto e, em ultima anilise, obter ou forcar junto do rei o afastamento de Sebastiao José de Carvalho (*"). Enfim, as principais poténcias europeias, vi- () Sobre o interesse suscitado no estrangeiro pelo terramoto de Lisboa, especialmente no tocante a obras entéo publicadas, vejam- -se: A. Goncalves Rodrigues, O Protestante Lusitano, Coimbra, 1950, pp. 220-247; Brito Aranha, Diciondrio Bibliogrdfico Portugués, to- mo XVII, Lisboa, 1906, pp. 246-256; ¢ José Augusto Franca, Lisboa Pombalina e o Huminismo, Lisboa, 1977, eapitulo II e respectivas notas. (") Imediatamente surgiram acusagées ao rei e a0 sen minis- tro de nao se importarem muito com o socorro das vitimas, permitindo ame as freiras andassem «pelas ruas e campos de Lisboa a’ rédea solta, pedindo esmolass. O rei, recusando-se a dar audiéneias, passaria o seu tempo divertindo-se com 0 seu misico Caffarello e outros (ANTT, ‘MINE, caixa 33, mago 30, 1.° 170). Veja-se também 0 principal texto oposicionista daquele periado, Copia de uma carta que se escreveu de Portugal aum grande de Espanha como resposta a outra sua, in Brot ria, Junho-Jntho de 1930. Eserita em 25 de Fevereiro de 1756, 6 da au- toria de Francisco Xavier Teixeira de Mendonca, advogado da Casa da Suplicaco. adversdrio de Schastidio de Carvalho ¢ um dos impli- cados na «conspiracdos contra ele (1756) que ficou conhecida pelo nome de Junta da Providéncia. 393 O Marqués de Pombal vamente interessadas no evoluir dos acontecimentos, ofere- ciam, num gesto tao solidério como politico, importantes so- corros materiais, altivamente recusados por Portugal no caso da Franca (e da Espanha, segundo alguns autores). Pelo con- trario, os socorros ingleses, em valor entdo estimade em mais de um milhao de cruzados, foram aceites e bem-vindos. A vaga de reflexdo suscitada no estrangeiro pelo terra- moto de Lisboa viria a produzir, entre as muitas outras, uma obra impressa em francés nos primeiros meses de 1756, inti- tulada Relation historique du Tremblement de Terre survenu @ Lisbonne le premier Novembre 1755 [...] précedée d'un Dis- cours politique sur les avantages que le Portugal pourrait reti- rer de son malheur, dans lequel l'Auteur développe les mayens que l'Angleterre avait mis jusque-la pour ruiner cette Monar- chie (#8). O livro, de 216 paginas em formato pequeno, dizia-se impresso em Haia e nao trazia indicacdo de autor nem de tipo- grafia. A falta desta ultima, indicava uma oficina fantasiosa: Chez Philanthrope, a la Vérité. Trata-se de um libelo anti-in- glés, em que se sugere a oportunidade, fornecida pelo terra- moto, de Portugal se libertar da ruinosa dependéncia em que Inglaterra o haveria colocado. Esta libertacio obter-seia, no- meadamente, por intermédio da Franga que, «dando a mao a Portugal», o faria «renascer das cinzas» —o que aparece ja em contradig&o com a referida recusa de Portugal em aceitar uma importante oferta francesa de socorros. 0 texto do Discours politique, que se segue ao Prefacio ocupa as primeiras 180 paginas, constitui o miolo da obra, apesar de relegado para segundo plano no titulo do livro. Em apéndice, de paginas 181 a 216, segue-se a Relation historique du Tremblement de Terre, que é uma breve (e pouco valiosa) descrigfo dos prejuizos causados pelo terramoto, embora assi- nalada em primeiro lugar no titulo, certamente para chamar mais a aten¢3o do publico. © imediato sucesso do livro parece comprovado pelo facto de pelo menos duas novas edicgées (*°) se lhe terem se- guido, sempre em 1756. Destas duas novas edigées, uma ape- Nas acrescentava uma errata ¢ pouco mais. A outra— que me parece, pois, a terceira edicfo da obra—continha ja varias diferengas importantes, No local de impressao, declarava-se feita 4 Lisbonne —o que se podera entender como mera pro- C) Erontispicio aqui reproduzido em anexo. (*) _@ possivel que ainda uma quarta edicdo se tenha feito nesse ano sob 0 titulo Discours politique sur le commerce des analais en Por- tugal, Paris, 1756, conforme indica a Nouvelle Biographie Générale (Paris, 1857), embora se possa tratar de um mal-entendido. 394 © «Discurso Politicos vocagao, aliada a uma cautela do autor, protegendo o seu ano- nimato ou precavendo-se contra protestos diplomaticos portu- gueses pela publicacao do livro. Na minha opiniao, com efeito, o livro ter4 realmente sido impresso em Franca (Avinhao ou Paris). No titulo, esta terceira edigao de 1756 dava o merecido destaque ao Discours politique, que aparecia j4 em primeiro lugar, seguindo-selhe a relacao sobre o terramoto. Enfim, o texto havia sido revisto e aumentado, incluindo pela primeira vez um ataque violento 4 Inquisig&io — entrando assim em fla- grante mas voluntaria contradigéo com a indicagao de Lisboa como local de impressao do livro. As trés edigdes em francés de 1756, que acabo de referir, coincidiram grosso modo com o inicio da Guerra dos Sete Anos, marcado pela declaracao de guerra (Maio) entre a Ingla- terra e a Franca. No mesmo ano, Voltaire publicava o Essai sur les moeurs, aonde a dado passo afirmava: «E para a Ingla- terra, com efcito, que os Portugueses tém trabalhado na Amé- rica». Uma alus&o ao ouro das minas do Brasil que ia afluindo a Inglaterra, compensando um comércio largamente exceden- tério com Portugal. Esta «sangria» do ouro vindo do Brasil constitui também um dos temas centrais do Discours politique, ilustrando a dependéncia a que os ingleses viriam sujeitando Portugal, para assim enriquecerem 2 custa da sua estagnacfio ¢ empobrecimento. Para o autor do Discours politigue, o terramoto aparecia como um dado inesperado mas decisivo, verdadeiramente pro- videncial para todos os patses ameacados pelo poderio brita- nico, mas também para Portugal, considerado vitima primei ra da cobica britinica apesar de aliado. Avaliando em 64 mi- IhGes de cruzados (25600 contos de réis) as perdas inglesas causadas pelo terramoto de Lisboa—soma provavelmente muito exagerada—o autor afirma depois que esse prejuizo, agravado pela interrupeao verificada no comércio anglo-por- tugués, teria causado a Inglaterra um atraso nao reeuperavel antes de cem anos! Partindo de tao absurdo exagero, conclui em seguida que o terramoto havia diminuido radicalmente o poderio da Inglaterra, permitindo assim restabelecer-se o equi- librio entre as nagGes da Europa. Sem esse auxilio do Céu, nenhuma poténcia adversaria de Inglaterra estaria entaéo em condic6es de conseguir tal resultado, Haveria porém que lan- car mao do imprevisto acontecimento e tirar dele 0 maximo proveito, jogando até ao fim com o factor portugués nos pra- tos da balanca europeia. «La France, surtout, a un plus grand intérét d’entrer dans les vues de cet événement et de tendre la main A ce royaume [Portugal], abimé moins par le fléau dont il a été frappé, que par son mauyais systéme politique, 305 O Marqués de Pombal et par Ja le faire renaitre de ses cendres» (*). Como em todo o restante texto, o autor discorre e analisa segundo uma éptica francesa que nao procura sequer dissimular, Nao se podia ser mais claro; «La Cour de Versailles doit profiter de cet événe- ment pour achever de tirer cette monarchie [Portugal] des mains des anglais» (*). No centro das suas preocupagoes, 0 destino futuro do ouro do Brasil: «Avec lor que produisent les mines du Brésil, les Portugais peuvent facilement remédier a leurs calamités présentes; mais il faut empécher que la plus grande partie de cet or ne passe dans les coffres des an- glais» (*), Ou seja, era necessdrio que a Franca reclamasse, na sequéncia do terramoto, o seu quinhiio no comércio de Por. tugal e na reparticao do ouro do Brasil. A finalizar o Discours politique, o autor lanca um alerta & Europa contra as inten- ges inglesas de fazer reverter a seu favor o desastre portu- gués: «Des avis secrets de Londres assurent qu'il y a un projet sur le tapis pour envoyer, du consentement du Portugal, une flotte anglaise au Brésil, sous prétexte que ce royaume depuis son malheur n’est point en ¢tat de quelque temps d’expédier les siennes» (**). Em suma, o Discours politique aparece desde ja como um escrito panflet4rio oportuno, sustentando osten- sivamente os interesses de Franca (e, subsidiariamente, os de outros paises europeus) contra Inglaterra no comeco de uma guerra envolvendo as principais poténcias, reflectindo perti- nentemente sobre o papel e a importancia de Portugal no evo- Tuir imediato das relacées de forgas na Europa. tendo em con- ta as possiveis consequéncias do terramoto. Para Portugal, o desastre do 1.° de Novembro do ano an- terior néo constituiria, segundo o autor, um acontecimento menos providencial que para Franca e outros adversdrios de Inglaterra. Todos os prejufzos portugueses seriam, com efeito. ligeiros ou fictfcios: umas tantas pedras fora do sitio habi- morte de uns tantos vassalos ociosos (no teria havido, segundo o autor, nem artifices nem lavradores entre as viti- mas); mercadorias pertencentes, na sua maioria, a estrangei- ros; alguns méveis ¢ bens pessoais perdidos no incéndio, etc. Portugal nao teria a lamentar senfio abiectos de luxo que, «lon- ge de serem causa da grandeza do Estado, eram, pelo contra- rio, a fonte da sua ruina». Oue podiam significar tais perdas. comparadas com a oportunidade tinica de sacudir 0 jugo e a (") Diseours politique sur les avantages que le Portugal pour- vait retirer de son maiheur [...], 1756, 3.* edicio, p. 63, (") Idem, p. 64, (2) Idem, p. 209. ©) Idem, p. 175. 396 O de tecidos de algodao e linho, ligava-se com o desenvolvimento das plantagées de algodao no Brasil, que para breve se previa poderem fornecer toda a ma- téria prima necessdria, Criacao em Portugal de manufacturas transformadoras de matérias primas coloniais, venda dos pro- dutos manufacturados para os dominios ultramarinos e, se Ppossivel, para os paises europeus— cis uma boa parte do seu Programa enunciado desde 1741, inspirado pela admiragaio que lhe merecia o sistema comercial, industrial e colonial inglés. A localizacio das «fabricas» em pequenos centros do interior buscava, por seu turno, a méo-de-obra abundante e barata, mas ainda relativamente facil de instruir. Além disso, as qua- tro vilas citadas nao se distanciavam excessivamente da costa ¢ talvez fossem vantajosas também do ponto de vista de meios de comunicacao para a circulacio de mercadorias —o que eu suponho com base apenas num exame de mapas coevos. En- fim, os produtos escolhidos para serem manufacturados nao eram artigos de luxo e contavam com um grande mercado Potencial ¢ exigiam, pela quantidade em que cram necessarios, emprego de muita gente que se arrancaria A inacgfio eA mi- séria, como Pombal imaginava ja na Relagdo dos Gravames, em 1741. As especiais caracteristicas dos produtos poderiam ainda torna-los exportaveis para a Europa — dai a vinda para Portugal de Goudar, como o seu suposto «segredo exclusivo» das mussclinas e chitas vermelhas. Talvez 0 projecto fosse megalémano e irrealista—sobre- tudo quando o imaginamos delineado ou dirigido por um duvi- doso escritor e aventureiro francés, sem pratica de industria ou de negécios. Mas talvez raz6es de outra ordem tenham feito adiar ou perturbado definitivamente a prossecucdo do plano, ja que bons administradores, mestres ou artistas se poderiam sempre arranjar no estrangeiro, embora néo demasiado facil- mente. A clarificagao da Iuta pela lideranga do governo, o ter ramoto, a participagao forgada na Guerra dos Sete Anos terio provavelmente contribuido para o adiamento desta politica de industrializacao que, como vimos j4, sé arrancou realmente no final da década de 60, em circunstancias muito condiciona- das pela escassez de meios de pagamento das importacées. 406 O «Discurso Politico» No sao, porém, de excluir eventuais pressdes inglesas, entre 1750 e 1755, para sufocar as primeiras tentativas. © rasto portugués de Ange Goudar perde-se em 1752. Terao os colaboradores de Sebastido José, ou o proprio minis- tro, concluido pela sua incompeténcia pratica? Terd todo o projecto sido abandonado por razGes alheias ao negécio e, consequentemente, Goudar sido despedido? Tera Goudar sido expulso do pais por excessivamente curioso ou por ter susci- tado qualquer desconfianga? No maximo, o francés ter-se-d demorado por ca dois ou trés anos. Em 1755 nao se encontrava ja em Portugal, tendo reatado a sua actividade como escritor em Franca, aonde nesse ano publicava dois livros. Consequentemente, nao podia ter presenciado o terramoto do 1.° de Novembro, acerca do qual publicaria no comeco de 1756 uma Relacao, em apéndice ao Discurso Politico. Nessa descric&o do terramoto, longinqua e impessoal—contrariamente ao que seria de esperar de al- guém que tivesse vivido a catastrofe—Goudar nao pretende sequer dar a impressao de ter sido testemunha presencial. Pelo contrario, refere-se expressamente aos «relatos que vie- ram de Lisboa» —n&o se sabe se directamente enviados para ele, No Discurso Politico dara ent&o desenvolvida (¢ livre) ex- press&o a varias reflexdes aqui deixadas nos planos e memé- rias apresentadas ao governo. A forma violenta como no seu livro ataca e responsabiliza os ingleses pelo atraso industrial portugués néio estard directamente relacionada com 0 malosro da tentativa de estabelecimento de manufacturas de alsodao, projecto em que destacadamente participou? Uma historia que conta no seu livro, em que podemos acreditar ou nao, passada no reinado de D. Jofio V em meados da década de 30, tera possivelmente alzuma semelhanca com a histéria da sua propria experiéncia falhada em Portugal. Conta Goudar que um habil ministro daquele rei (o Cardeal da Mota?) teria re- solvido estabelecer manufacturas de tecidos de 14, tendo to- mado todas as medidas preparatérias nesse sentido e vencido todos os obstaculos a realizac&o da ideia. Porém, «dois mil gui- néus dados oportunamente pelo governo inglés» —afirma Goudar sem precisar a quem tinha sido dado o dinheiro— frustaram o plano, saindo ent&o vitoriosa a teoria de que o cli- ma portugués era impréprio para o estabelecimento daquelas actividades. No seu caso—em que realmente desconhecgo o que se tera passado— talvez Goudar preferisse culpar a cobi- ca ¢ a intriga niglesa a confessar a sua propria incapacidade, 407 O Marqués de Pombal 3. Proibiedo pela Inquisictio 0 livro de Goudar penetrou rapidamente em Portucal chegando também em pouco tempo ao Brasil (#7). Pelos multi. plos motives acima expostos, 0 Discurso Politico nao podia deixar de ter sido objecto de medidas persecutérias; Plenamen- te persuadido desse facto, parti A procura de uma referéncia ou do presumivel texto proibitério. Em abono da verdade, a tarefa teria sido bastante ingrata se uma referéncia num livro do Dr. Joaquim de Carvalho me no tivesse langado na pista provavel, dada a inexisténcia de listas completas dos livros proibidos no século XVIII até & criacéio da Real Mesa Censé- ria, em 1768. Ora nesta tltima data 44 @ Dircurso Politico ha- via sido publicado ha 12 anos (°). Até 1768, a censura era exer- cida pelo Conselho Geral do Santo Offcio da Inquisicao (aue, evidentemente, designava os seus qualificadores), ou ainda. adicionalmente, pela autoridade eclesidstica na sua diocese (o chamado Ordindrio) e pelo Desembargo do Paco. Nao existe ainda actialmente uma relacéo dos editais de livros proibi- dos emanados pela Inquisicdo no referido periodo do sécu- lo XVII, quando era essa a censura predominante. Um tanto incompreensivelmente, também, a censura do perfodo pom- balino tem até hoje sido estudada, quase que exclusivamente, s6 a partir da instituigaéo da Real Mesa Censéria — quando ja haviam decorrido 18 anos do reinado de D. José, restando en- t&o apenas 9 anos até A morte do monarca e afastamento do seu ministro (*), Acabei por encontrar a proibicao cuja existéncia presn- mia na copia de um edital do Consclho Geral do Santo Offcio de 8 de Outubro de 1756, que chamara a minha atencio preci- (") Existe na Biblioteca da Academia das Ciéneias de Lisboa ma taducho portuguesa do Discours politique (ms, série azul, n° 1908), privada do Preficio e do apéndice sobre os prejuizos to ter- famoto, acompanhada de uma carta autégrafa do tradutor, rubricada ® datada do Kio de Janeiro, a 25 de Maio de 1757. Esta itaducdo foi Posteriormente muitas vezes copiada, como se pode verificar pelo con- ironto com numerosos manuscritos existentes em varios arquivos @ bibliotecas. ©) Adiante veremos que a Real Mesa Censéria também teve que Se pronunciar sobre esta obra em Agosto de 1777, ou scja, 44 no reinado de D. Maria I. (“) Veiam-se J, Timéteo da Silva Bastos, Histéria da Censura Intelectual em Portugal, Coimbra, 1028; Anténio Ferrao, A Censure Lin terdria durante 0 Governo Pombalino, sep. do Bol. da Segunda Classe da Acad. das Ciéncias de Lisboa, Coimbra, 1927; M, A. Salvador Mar. ques, A Real Mesa Censéria ea Cultura Nacional, Coimbra, 1964. 408 O «Discurso Politico» samente pela sua data ("). Na parte ainda inédita deste edi- tal —apenas conhecido pela primeira parte, em que se proibe 0 Discurso Patético do Cavaleiro de Oliveira — lé-se o seguinte: «[Nés, 0s do Conselho Geral do Santo Offcio] fomos também informados que nesta cidade se tinha introduzido um livrinho em 8.°, impresso na lingua francesa, em Haia, neste presente ano de 1756, e tem por titulo: Relation Historique du Tremble- ment de Terre survenu & Lisbonne le premier Novembre 1755 etc. (*), 0 qual é principalmente sedicioso, amotinador e per- turbador da paz e unido entre a Nacio Portuguesa ¢ outras da Europa, B juntamente um libelo famoso (*), injurioso e infa- matérie da mesma Nacdo, porque a trata com expressdes cheias de muitas injtirias e desprezos, e é também escandaloso pelos.vicios ¢ maus habitos que imputa & dita Nac&o, de quem diz que conserva os costumes dos mouros (™) € outras seme- Thantes injurias». No final do documento. as proibigGes, inti- maces e enumeracio de penas habituais contra os leitores e possuidores de livros interditos— tudo de forma igual que para o Discurso Patético do Cavaleiro de Oliveira (outro curio- so laco entre as duas «almas gémeas»), Duma s6 cajadada, atingiam-se dois inimigos da ordem religiosa e politica portu- guesa: o herege portugués passado para as hostes do culto anglicano, cujos escritos eram apadrinhados e subsidiados em Inglaterra e, por outro lado, 0 anénimo autor do «sedicioso e amotinador» libelo anti-inglés. Obediente jA & m&o de Sebastiaio José de Carvalho, o Santo Officio fazia, no caso do livro de Goudar, censura régia, isto é, censura de Estado, censura politica. Sob o comando «regalista» de Sebastiao José, e desde muito cedo, tudo se ver- gava a supremacia do poder real, veiculada pela autoridade do () A cépia deste edital, talvex pe¢a tmica, encontra-se na go de manuscritos da Biblioteca da Universidade de Coimbra, cédice 497, fls, 147-148. O documento fora ja parcialmente divulgado, apenas na ‘parte respeitante ao Cavaleiro de Oliveira, pelo Dr. Joaquim de Carvalho, em Discours Pathétique [...] par le Chevalier d’Oliveyra — Nova edicio seguida duma noticia bibliogrdfica, Coimbra, 1922, supra capitulo 1) (8) Trata-se, pois, da 1." ou 2 digo do Discours politique (vd. supra capitulo 1). (©) Libelo famoso = libelo difamatério. | (®) Como Goudar nao disse tal, us mouros aparecem aqui, a meu ver, apenas para dar A proibigo uma molécula de carécter reli- gioso. Nada nas duas primeiras edigdes do livro poderia servir de pre- texto aos inquisidores para acusarem o autor de irreligido. 409 O Marqués de Pombal governo. Eis porque me parece errado atribuir exclusivamente a criacdo da Real Mesa Censdria, na fase quase final do go- verno pombalino, a mudanga na orientagéo da censura em Portugal. Na realidade, Sebastiéo José de Carvalho servira-se da Inquisicaéo (e da censura) desde a década de 50, vindo mes- mo a coloc4-la sob a sua tutela directa (™). Dois dos deputa- dos do Conselho Geral do Santo Oficio que assinaram o edital proibitivo dos livros de Oliveira e Goudar, em 1756, assina- riam também o assento da Inquisicio entregando o jesuita Malagrida & fogueira da justica secular, em 1761. No final do ano de 1756, publica ainda Goudar a 3° edi- 40 do Discurso Polttico (vd. supra, cap. 1), supostamente im- pressa a Lisborne, conservando 0 anonimato do autor, e com © seguinte acrescento final, no apéndice sobre os prejuizos do terramoto: «Le batiment de l'Inquisition a été renversé [pelo terramoto]; il serait A souhaiter qu'il ne restat plus aucun ves- tige de cet affreux tribunal . L'Inquisition a causé plus de dem- mage au Portugal que tous les tremblements de terre. C'est I'Inquisition qui étouffe l'industrie, qui arréte les progres de sciences et qui met obstacle a la population. [...] Mon zéle pour les intéréts d’ume nation malheureuse m’a suggéré toutes ces réflexions en faveur des Portugais. Quelle en serait la compense, si j’étais 4 Lisbonne? Je le demande aux inqui teurs», S6 compreendo este acrescento, numa obra cujas pré vias edicSes nAo continham uma sé palavra contra a religiao ou a Igreja portuguesa, como a resposta imediata e provocaté- ria de Goudar A condenacao do seu livro pela Inquisicao. Alis, a condenacdo aumentava fambém a publicidade do livro, quer no estrangeiro quer em Portugal. (*) Sebastiio José de Carvalho e Melo foi admitido como fami- liar do Santo Oficio em 1738, imediatamente antes de partir para Lon- dros como enviado extraordinario de Portugal, Era sobrinho-neto de um gualificador do Santo Oficio e filho, sobrinho, neto paterno, irmao, pai e sogro de familiares do Santo Officio. Seu irmao Paulo de Carva— Iho e Mendonga, foi feito deputado do Conselho Geral do Santo Oficio em 1759, e de 1760 até & morte, em 1770, desempenhon de facto as fun— gdes de Inquisidor-Geral, na vacatura deste cargo. Pombal serviu-se da Inquisieio nomeadamente na luta contra os jesuitas (expulsos em 1759). Dotou o Santo Oficio de um novo Regimento (1774), 0 qual con- tinuou a incluir os Autos da Fé e os «tormentos». Por alvara régio de Maio de 1769, a Inguisic&o recebia o caracter de tribunal régio (que j8 era na pratiea), sendo ordenado entdo que se lhe desse o tratamento de Magestade. (Veja-se Jordio de Freitas, O Marqués de Pombal e 0 Santo Ojicio da Inquisi¢do, Lisboa, 1916). 410 O «Discurso Politico> 4. Uma carta misteriosa de Goudar para Sebasti&o José de Carvalho Alguns meses depois da condenacdo do livro pela Inqui- sigdo, em Abril de 1757, Ange Goudar escreveu de Avinhao uma enigmatica carta para Sebastido José de Carvalho (*). Identificava-se nessa missiva, assinada por «D'Angé Goudar», como aquele Danget que o ministro chamara de Londres a Lis- boa em 1751, para o estabelecimento de manufacturas. O pre- tendido objectivo da sua carta era alertar o governante portu- pués para um desconhecido que tencionava envenend-lo. O and- nimo envenenador—conta a carta—teria abordado Goudar em Avinhio, falando com sotaaue portugués e afirmando co- nhecé-lo de vista das ruas de Lisboa. Depois de, a pedido do francés, The ter dado detalhes sobre o terramoto, o suposto personagem teria comecado a falar contra o governo portu- gués, elogiando em contrapartida um anterior secretario de Es- tado de D, José que havia sido recentemente demitido e des- terrado ("). Teria depois revelado ao francés os planos que haveria em Portugal para assassinar Sebastiao José de Car- valho e provocar uma grande alteracio no governo. Em segui- da. 9 desconhecido teria inavirido Gondar sobre 0 modo de adquirir no local um veneno «bem subtils, para entrar na com- posicio de um medicamento, razao pela qual se teria deslo- cado de Portugal até Aquela regifio do Sul de Franca, célebre pelos seus boticdrios. Goudar suspeitou... Vinha pois chamar a atencao de Sebastian de Carvalho, nor quem conservava mui- ta afeicao, ¢ lembrar-Jhe as precaucdes a tomar contra 0 pos- sivel conspirador, inclusive no manuseamento da correspon- cia os seus préstimes para localizar e desmascarar 0 envene- nada com um veneno «muito subtil», Por fim, o francés ofere- cia os seus préstimos para localizar e desmarcarar o envene- nador, se fosse caso disso. Sem excluir de todo outras hipéteses, esta carta de Gou- dar pareceme uma imaginosa mas ingénua tentativa de de- monstrar a sua lealdade a Sebastifio José e, por essa via, iludir guaisquer desconfiancas que o ministro portugués tivesse a ©) Vd. supra notas 20, 30 e 35. @) _Alusdo a Diogo de’ Mondonga Corte-Real, secretério de Es- tado da Marinha e Ultramar desde 1750, que Sebastiao José de Carva- tho conseguiu enviar para o degredo em 1756, Muito mais tarde, numa carta a seu filho datada de 4 de Margo de 1778, 0 deposto Pombal acu- saria Diogo de Mendonca, entao ja falecido, de ter conduzido uma poli tlea scestelhanas (Cartas do Marqués de Pombal— 1777-1780, op. eit, pp. 43-46). 411 O Marqués de Pombal seu respeito, nomeadamente no tocante a autoria do Discurso Politico. Talvez menos por temer alguma represdlia do governo portugués (vai dizendo, na carta a Sebastiao José, que renun- ciara para sempre a voltar a Portugal...) do que por temer nao poder voltar a Inglaterra, aonde pelas mesmas razdes lhe in- teressava manter o segredo da autoria do seu livro. . Numa outra encenagao desta histéria, a meu ver menos provavel, Goudar poderia ter sido realmente abordado, por um portugués em AvinhZo, conforme relata na sua carta. Ha: veria nesse caso que encarar varias hipéteses acerca do portu- gués desconhecido: poderia tratar-se de um espido enviado pelo ministro de D. José ou, pelo contrario, de um auténtico conspirador tal qual ¢ descrito na carta, etc. De qualquer ma- neira, esta enigmatica carta permitiu-me conhecer, a partir da identificaczo Dangé = Goudar, 0 motivo da sua vinda em 1751 2 Portugal e, dai em diante, os detalhes da sua estadia neste pais. Ao servieo de Espanha Alguns anos depois, em 1762. as tronas espanholas entra. ram_em Portugal. Os monarcas da casa de Bourbon, Lufs XV de Franca e Carlos III de Espanha, encontravam-se ligados pelo inicialmente secreto Pacto de Famflia (1761) e vinculados pela convenciio de 12 de Fevereiro de 1762, firmada respectiva- mente pelo Duque de Choiseul e pelo Maraués de Grimaldi. em que se estabelecia a dado nasso a necessidade de persuadir Portugal a juntar-se aquelas duas coroas na luta contra Ingla- terra. Entrava-se entao na fase final da Guerra dos Sefe Anos. Apoiada pois pela Franca. a Espanha vinha tentat deslizar pe- la forea Portugal da alianca que este mantinha com Inslaterra, ia aue todos os esforcos de persuasio entretanto desenvolvi- dos haviam sido firmemente repelidos pelo rei D. José e 0 seu governo. Portugal insistia em manter-se fora do conflito euro- peu (no que Goudar também achara motivo de critica. no seu Discurso Politico), mas Luis XV e Carlos III viam nesta neu- tralidade um alinhamento efectivo vela Inglaterra. Em Franca — escreveu 0 Marqués de Pombal apés a sua saida do governo — desde Luis XIV se acreditava que um meio seguro de arrui- nar o poderio inglés consistiria em subtrairlhe os portos e 0 comércio de Portugal. Sem o ouro proveniente do seu comér- cio excedentario, Inglaterra nao estaria em condigées de finan- er guerras e comprar aliados — escreveu, por seu turno, Gou- 412 O «Discurso Politicos | Simultancamente com a invasio de Portugal (principios de Maio), a corte de Madrid decidiu publicar varios documen- tos e manifestos que a seu ver legitimavam a accao militar. Primeiramente, um livrinho intitulado: Razon de entrar en Por- tugal las Tropas Espatiolas como Amigas, y sin-ragon de reci- birlas como Enemigas: Manifiesto, reducido a las Memorias presentadas de Parte a Parte, Afto de 1762, De orden del Rey nuestro Seftor, en Madrid, En la Imprenta de la Gaceta (*). Este livrinho contém a coleccdo de memérias apresentadas ao governo de D, José pelo embaixador espanhol Torrero e pelo ministro plenipotencidrio francés O'Dunne, acompanhadas das respectivas respostas do governo portugués, assinadas pelo secretario de Estado D. Luis da Cunha Manuel. A «imparciali- dade» deste curioso livro, cujo titulo'o transformava num ma- nifesto pré-espanhol, fez com que o governo portugués rea- gisse publicando imediatamente a mesma colecgao de mem6- rias, debaixo do titulo rigorosamente posto: Sem razdo de en- trarem em Portugal as tropas Castelhanas como amigas, E ra- zéo de serem recebidas como inimigas. Manifesto reduzido as Memeérias presentadas de parte a parte. Arno de 1762. Impres- so em Madrid De ordem daquela Corte Nas duas linguas Por- tuguesa e Castelhana, e Reimpresso em Lisboa Na lingua Por- tuguesa (*). Por esta mesma altura, publicou-se em Espanha um ou- tro livro, intitulado: Profecia politica, Verificada en lo que esta sucediendo a los Portugueses por su ciega aficion a los Ingleses: Hecha luego despues del terremoto del afio de 1755. Arto de 1762. Con licencia del Rey nuestro Senor. En Madrid, en la Imprenta de la Gaceta (*). No interior, 0 que se encontra € uma versio espanhola do Discurso Politico de Goudar, com al- gumas alteragées de circunstancia (“"), seguido em apéndice da mesma relacao dos efeitos do terramoto, abreviada. O livro inclui um «aviso do impressor espanhol» em que significativa- mente se considera 0 Discurso Politico uma boa demonstragao das razGes invocadas pelo governo espanhol num manifesto pouco antes mandado publicar pela corte de Madrid (que é 0 livro acima indicado). A traducdo da obra de Goudar, com ou Frontispicio aqui reproduzido em anexo. ©) Frontispicio aqui reproduzide em anexo. ©) Frontispicio aqui reproduzido em anexo. () Como a tradue%o foi feita a partir da 3.° edigfio francesa de 1758, uma das principals alteragées introduzidas por esta edigao madri- lena’ foi a supressdo da parte final, em que o autor atacava violenta~ mente a Inquisicao. 413 O Marqués de Pombai sem o conhecimento do autor, tinha sido julgada oportuna, para fins Obvios de autojustificago e propaganda. Com o eficaz, embora demorado, auxilio inglés e 0 co mando militar do Conde reinante de Schaumburg-Lippe, vindo para Portugal a solicitacao do rei britanico, a invasdo espa- nhola foi repelida. Em 1763, enfim, era assinada a paz entre todas as poténcias beligerantes pelo Tratado de Paris, que nomeadamente obrigava os espanhdis a devolucao dos terri- térios sul-americanos ocupados, pertencentes A coroa portu- guesa, Mas em 1764 chegavam a Lisboa noticias de novas hos- tilidades espanholas contra esses territérios (Coldénia do Sa- cramento, Rio Grande do Sul). Data de esta altura um escrito mandado fazer, corrigido e anotado pelo punho do entao Con- de de Ociras, existente na Biblioteca Nacional ("), EB um dos rarissimos documentos, segundo penso, em que Sebastiao José de Carvalho se refere ao Discurso Politico —chamando-lhe embora Profecia Politica, que era o titulo da edicio espanhola de 1762. Passo a transcrever textualmente um passo deste es- crito —até hoje inédito e desconhecido pelo menos em Portu- gal—a partir do seu 4.° paragrafo: «4. No systema das clan- destinas e (no seu tempo) secretissimas confederacio e unido establecidas contra a Gro Bretanha pelo Pacto de Familia, assignado em Pariz no dia 15 e logo depois ratificado em Ma- drid no dia 25 de Agosto de 1761, se manifestou poucos mezes depois que [havia a ideya] de ndo sé fazer apartar Portugal da antiga e importante Allianga que conservava com Inglater- ra havia mais de hum seculo [com reciproco interesse e mutua satisfagao de ambas as NagGes]; mas tao-bem que o meyo que se pertendeo applicar a este fim consistio em se pintarem os Inglezes ao mesmo Portugal com taes cores, que os fizessem odiozos ¢ insuportaveis oppressores na movida e agitada ima- ginacao dos Povos Portuguezes. 5, Assim o manifestou a todo G publico da Europa o libello famazo impresso e publicado em Madrid [para se introduzir e espalhar pelas suas fronteiras] no principio do anno de 1762, com o titulo de = Profecia Poli- tica verificada en lo que esta sucediendo a los Portugueses por su ciega aficion a los Ingleses = . 6. Libello que bem desempe- (") BN, Col. Pombalina, cod. 636, fls; 3-4, 70, 71, 77-80. & um rascunho, aparentemente inacabado, de um texto destinado & publica- go no periddico inglés London Chronicle como sendo da autoria de um cidadao britanico anénimo, «retirado no campos e «amante da verda- de», Este texto procurava fazer ver ao governo inglés a raz4o que assistia aos portugueses no conflito sul-americano com Espanha, rea- gindo também a campanha de intrigas levada a cabo pelos espanhois em Londres, com o fim de indispor os ingleses contra Portugal. Nao sei se este texto chegou a ser publicado no dito periddico londrino. 414 O «Discurso Politicos nhou este sediciozo titulo e bem fez ver que os objectos com que se escreveo foi o de denegrir ambas a sNagées (Portugue- zae Tage) eo de fazer a segunda dellas horroroza e insu- portavel & primeira» (etc.) (°*). Doze anos depois, num documento apresentado em 1776 pelo embaixador portugués em Londres, Luis Pinto de Sousa, ao governo britanico, possivelmente redigido pelo Marqués de Pombal (*), diz-se a certa altura, numa referéncia ao conflito luso-espanhol da década anterior (que ainda se prolongava): «O Marqués de Grimaldi [ministro de Carlos [II de Espanha] e os jesuitas seus associados fizeram divulgar em Lisboa e no Porto um libelo difamatério, intitulado Prefecia Politica, no qual se tratava de persuadir que os ingleses oprimiam os por- tugueses e os tratavam como escravos [...]» Além da afirma- ¢@o de que os jesuitas teriam colaborado na divulgagéo da traducdo espanhola do Discurso Politico —n&o havia nada de gue Pombal nao acusasse a Sociedade de Jesus —é de ressal- tar aqui a alusio & divulgacado do texto nas duas principais cidades portuguesas. O Disczrso Politico foi certamente um dos textos de referéncia da oposicao a Pombal durante o seu go- verno, texto cuja importancia lhe é conferida tanto pelas ideias que exprimia como pela consideravel divulgagao que teve en- tre os leitores portugueses. Além da entrada clandestina no pais e ultramar das edicdes francesas e espanholas (parece que houve também uma edicéo mexicana), o Discurso Politico circulou também em cépias manuscritas, muito numerosas a avaliar pela quantidade invulgar hoje existente em muitas bi- bliotecas e arquivos portugueses, 6. Proibigéo e ordem de sequestro pela Real Mesa Censéria Depois da proibicdo inquisitorial de 1756, o livro de Ange Goudar voltaré ao exame da censura em Agosto de 1777, no principio do reinado de D. Maria I, com Pombal ja no exilio. Por ordem da rainha, datada de Junho desse ano, o deputado da Real Mesa Censdria Frei Joaquim de Sant'Ana e Silva (para esse cargo nomeado por Pombal em 1768) examinou e emitiu parecer sobre a 3.* edicao francesa de 1756 do Discours politi- que, que se declarava impressa em Lisboa. O censor foi de opi- (*) Entre parénteses rectos transcrevo fragmentos abandona- dos do primeiro para o segundo rascunho ou riscados. () Compéndio analitico das negociacées entre as cortes de Lis~ boa e Madrid desde 1759 até ao fim do ano de 1775, O resumo deste documento encontra-se no Quadro Elementar, 18.° vol., pp. 393 e segs. 415 O Marqués de Pombal niao que se proibisse de correr a obra e que, para «castigo do atrevimento de se assinar nele Lisboa como lugar de impres. sao, Fiquem sequestrados todos os seus exemplares; e que em diante se sequestrem todos os que vierem a Casa da Revisio deste Tribunal» (**). A censura comega por declarar falso ter sido o Discours politique impresso em Lisboa, nao s6 por naio ostentar as indispensdveis licencas prévias, mas sobretudo porque «nem nesta Corte nem em outra qualquer parte do Rei- no se permitiria o estampar-se um livro que ¢ uma satira fa- mosa & Nagido Portuguesa. Nele se diz que os Portugueses fa- zem uma Nacao entregue & mais grosscira supersticao; que hos costumes se parecem com os barbaros; que ¢ um Estado governado pelos costumes asidsticos; nao tendo de Europeu mais que o nome; nao tendo de Monarquia mais que a forma; n&o tendo de Poder mais que a sombra, Todo @ empenho do autor (que é anénimo) ¢ querer persuadir que os Portugueses estéio oprimidos ¢ dominados pelos Ingleses, es quais sio os verdadeiros senhores de toda a riqueza deste Reino e suas conquistas [...]; que Portugal, tendo sacudido o jugo de Espa- nha, se tinha sujeitado a outro maior, que é€ 0 de Inglaterra [...] Pretendendo por fim o autor deste livro que Portugal se livre e nao consinta sobre si a que ele chama dominacao e opressao inglesa». A finalizar, o censor adverte que também a relacio sobre os efeitos do terramoto, apensa ao livro, esta «cheia de muitas e evidentes falsidades», Esta ultima afirma- Ao néio ¢ a menos interessante do censor, pois que da funda: mental obra de F. L. Pereira de Sousa sobre o terramoto de 1755 até Lisboa Pombalina e o Tluminismo, de José Augusto Franca, se tem recorrido frequentemente a esta relacdo do de- sastre, escrita por Goudar a muitissimas milhas de’ Lisboa, com base provavelmente em informacées de segunda mao — se as nao recebeu directamente de Lisboa. Normalmente, o exame pela Mesa Censdria era suscitado por requisicGes de mercadores de livros, impressores ou livrei- Tos interessados na venda, impresséo ou edicao de qualquer obra, tendo obrigatoriamente de solicitar a licenga da Mesa. Outras vezes eram dentincias que ocasionavam o exame. No caso aqui em questao, tratava-se de uma simples ordem, sem outro esclarecimento, comunicada ao censor pelo presidente da Mesa nestes termos: «Manda a Rainha Nossa Senhora...», etc. Ter4 algum livreiro tentado aproveitar o clima de mudan- ¢a politica da «Viradeira» para Jancar no mercado 0 Discurso Politico? E o que se pode depreender das palavras do censor (4) ANTT, Mesa Censéria, censuras, 1777, n.° 69. 416 O Discurso Politicos Frei Joaquim, que na sua censura incluia a proposta de que ficassem «sequestrados todos os seus exemplares», deixando assim entender que se tratava de um lote e nao de um s6 exem- plar. Em todo o caso, nfo deixaria de ser estranha essa tenta- tiva de venda, dado. o contetido do livro, rebarbativo mesmo para os sucessores de Pombal no poder, bem como o facto de a edic&o aqui em causa, a terceira, incluir em acréscimo um violento ataque & Inquisicao. De realcar também a circunstén- cia de Frei Joaquim de Sant'Ana nao se referir na sua censura ao trecho que investe contra a Inquisicao portuguesa. Nao tera reparado nas tiltimas linhas do livro? 7. Ao servico de Napoleio Para que a Histéria volte a confirmar a ja evidente voca- ¢ao do Discurso Politico, sera necessdrio esperar até 1808, data m que vao surgir duas novas edicées, uma em espanhol outra em portugués, Foi a edigao portuguesa traduzida da espanhola, mantendo-se o titulo da versio madrilena de 1762, ou sej Profecia Politica, verificada no que estd sucedendo aos Portu- gueses pela sua cega afeigdo aos Ingleses, escrita depois do ter- ramoto de 1755, etc.("), impressa na tipografia Rollandiana, de Lisboa. Como no passado, a obra permanecia anénima. Os objectivos da reedicao, agora pela primeira yez em portugués, so praticamente os mesmos que em 1762: propaganda de legi- timacao da invasao de Portugal. Desta vez pelos franceses, mas ainda em conivéncia com os espanhdis. Segundo um ajuste secreto entre a Franca de Napoledo e a Espanha de Carlos IV, Portugal e os seus dominios deveriam ser repartidos entre aqueles dois paises, dada a reiterada recusa portuguesa de en- trar em guerra contra a Inglaterra e de fechar os portos & na- vegac&o deste pais. O impressor lisboeta sobre quem recaiu o fabrico do livro foi o francés Rolland, um adepto da Revolu- ¢o Francesa. A iniciativa da edicao, todavia, pode ter sido. das forgas invasoras. 8: Criagéo do mito Apés a Reyolugfio de 1820, a propaganda liberal vai exe- cutar a delicada operacdo que consistiu em recuperar para a sua causa nada menos que o simbolo vivo do «despotismo es- (*) Frontispicio aqui reproduzido em ancxo. Esta ediedio encon- tra~se integralmente reproduzida em Armando Castro, A Dominagdo Inglesa em Portugal, Porto, 1972, 2° ed. 1979. er 4lT O:Marqués: de Pombal clarecido» e do fortalecimento do poder real, o Marqués de Pombal. Manuel Fernandes Toms faria nas Cortes um elogio ditirambico da figura do Marqués. Muito mais tarde seriam os republicanos a apropriarem-se do ministro de D. José para fins propagandisticos, tendo-o mesmo colocado & cabeca de uma galeria de notabilidades republicanas. Ora em 1820, um livreiro Tberal de nome Desidério Mar- ies Lefio resolveu editar umas obras escolhidas do Marqués le Pombal. Para esse efeito, ter ele préprio reunido um mon- tao de cartas, avisos, decretos, alvards, instrugdes, apologias € varios outros escritos, formando um conjunto indigesto, ab- solutamente desarrumado e sem critério (®). O livreiro Desi- dério Leo — que no ano seguinte, em 1821, abriria também tipografia por conta prépria—entregou entdo o duvidoso amontoado para impressao A Tipografia Morandiana, de Jogo Baptista Morando (outro vintista (*), suponho que de origem francesa). O produto enfim lancado no mercado intitulou-se Cartas e outras Obras Selectas do Marqués de Pombal. Diz Ino- céncio que sairam desta obra, sucessivamente, 5 tomos do mesmo formato, e que alguns «foram reimpressos em diversos anos e oficinas» (**). Segundo consegui apurar, as Cartas e ou- tras Obras Selectas terao tido cinco edic6es: 1820, 1822, 1833, 1848-49 e 1861, sendo esta ultima apenas em dois tomas, de maior formato, Pois entre as supostas obras selectas de Sebas- ti&o José de Carvalho ld se encontra o Discurso Politico sobre as vantagens que o Reino de Portugal pode tirar da sua desgra- ¢a por acasiao do terramoto de 1755! Com a lacénica explica- \¢40 prévia de que o manuscrito, pretensamente assinado pelo punho do Marqués, «estava na livraria do erudito desembar- gador Gamboa no ano de 1783», Significativamente, o escrito aparece desembaragado do Prefacio, presente em todas as edi- goes anteriores do Discurso Politico (inclusive a portuguesa de 1808), ¢ no qual Goudar referia ter visitado Portugal em 1752 e fazia algumas observagées chocantes sobre 0 povo, costumes € governo portugueses, Misteriosamente evaporada, também, a relagéo do terramoto que sempre lhe andou apensa. Além disso, o texto— que segue em geral textualmente uma. tradu- (*) Tnocéneio, no Diciondrio Bibliogréfico Portugués, tomo VIL, p. 215, atribui ao livreiro Desidério Ledo a iniciativa da edigdo e reco- Ihe das pegas que a constituem. Nao 6 porém de excluir que a respon- Sabilidade da seleccao dos textos coubesse a outrem. ©) Morando editou ou imprimiu varios jornais a favor’da Re- volueso de 1820, nesse ano e em 1821: A Voz da Razdo, O Liberal, © Patriota, O Pregoeiro Lusitano. (") Op, cit., p. 215, 418 O «Discurso Politicos ao do francés para o portugués feita em 1757, atras ja men- cionada (*), mas adulterando-a em varios pontos —contém uma série de Pequenas alteracdes deliberadamente cometidas gal. Quando 0 original e a traducSo portuguesa manuscrita de 1757 referem «Portugal», as Obras Selectas dizem «neste pafs> ou «neste reino». Os erros de Histéria de Portugal cometidos por Goudar aparecem todos corrigidos nas Obras Selectas, com frases inteiras reescritas e outras até acrescentadas (*). A «as- sinatura» final do Marqués de Pombal completa o quadro. Nao sei quando teré sido cometida a fraude e quem seria, exactamente, 0 seu autor: se o livreiro Desidérig Leo, se o hipotético desembargador Gamboa que posstia 6 manuscrito «autégrafon, se alguma figura liberal destacada, etc. Umas Obras do Marqués de Pombat manuscritas, indatadas, existen- tes no Arquivo da Torre do. Tombo ("), também incluem o Discurso Politico, mas é impossivel apurar, dada a sua incarac. teristica caligrafia, se a comy ilacdo € anterior ou posterior a 1820. O que € certo é que a Biss atribuicao se integra perfei- tamente na conjuntura anti-inglesa da época revoluciondria vintista e na apropriacdo entao verificada do Marqués de Pom- bal para fins de propaganda liberal. O editor das Cartas e outras Obras Selectas de 1861 Gre wltima edieGo), 0 livreiro Borel, disse que as quatro edicSes anteriores «se consumiram com uma rapidez espantosa». A mesma velocidade alastrou a reputagao de um Pombal inimigo los ingleses, 9. Carreira de uma falsa autoria em 160 anos Em 1843, John Smith, secretario privado e, mais tarde, cunhado do Marechal Duque de Saldanha (este tiltimo um ne. to materno de Sebastiao José ‘de Carvalho), publica em Ingla: terra as Memdérias do Marqués de Pombal, contendo extractos dos seus escritos e correspondéncia, que teve tradugao portu- guesa em 1872, Pois 14 vamos encontrar de novo, entre os ex (*) Vd. supra nota 47, 7 (")_ Estes amelhoramentos» também nao existiam na referida traducdo original de 1757, cujo manuscrito se encontta na Biblioteca da Acad. das Ciéncias de’ Lisboa, que reproduz fielmente o conteido da edigao francesa, a parte alguns erros de traducao, 7 ") ANTT, mss, da Livraria, n.° 2223 e n° 294, respectivamente tomo Ie II. 419 O Marqués de Pombal tractos dos pretensos escritos do Marqués de Pombal, trechés do inconfundivel Discurso Politico, desta vez sem qualquer re- feréncia de titulo e origem, o que podera dificultar mas nao iludir a identificagao do texto. John Smith seria depois feito Conde da Carnota, segundo diz Camilo no Perfil do Margqués de Pombal, por haver escrito as ditas Memdrias, «essa obra muito ordindria, incada de incorreccdes cronoldgicas, de cri- tica estélida ¢ de mentiras originais». Camilo, que lamentavel- mente pretendeu reduzir Pombal & imagem de um déspota bronco e sanguinario, tinha razdo nas criticas que fez a este e outros apologetas do Marqués. Camilo refutou também a fa- ma de adversdrio intransigente dos ingleses que haviam colado a Pombal. Entre outras invencdes de John Smith, o roman- cista destrufu com toda a justica a de que teria sido Sebastiéo de Carvalho o introdutor do garfo em Portugal em 1745! Tido &s vezes como uma boa fonte, por ter estado ligado a descendentes de Pombal—e justamente tido, na maioria dos casos, como uma ma fonte— John Smith limitou-se a ir pescar alguns paragrafos do Discurso Politica inserto nas Cartas e ou- tras Obras Selectas, como se pode verificar pelo cotejo desta colecténea (edicaio de 1861, 2.° volume, pp. 97-187) com a edi- ¢4o portuguesa das Memédrias do Marqués de Pombal (Lisboa, 1872, pp. 37-39 e 52-58). Mas o futuro Conde da Carnota julgou por bem nao desvendar a sua fonte. Com esta insofismavel falsificacdo, cometida segundo tu- do indica pela propaganda vintista e homologada por John Smith, inaugurou-se uma série interminavel de malentendidos que se prolonga até hoje. Ha outras cartas e escritos igual- mente atribuidos a Sebastiao de Carvalho que tém concorrido para idéntico resultado, embora com muito menor ressonan- cia. Susan Schneider, no seu recente trabalho sobre o vinho do Porto e o Maraués de Pombal, pensa que uma dessas cartas geralmente atribufdas ao Maraués também nao passa de uma falsificacio (*). Esta historiadora mostra, alias, que Pombal nao acabou com a direccio inglesa do comércio do vinho do Porto, apesar de a Feitoria Inplesa daquela cidade se ter insis- tentemente queixado de que a:‘Companhia das Vinhas do Alto Douro visava a ruina dos negociantes britanicos ("). (") S. Schneider, O Marqués de Pombal e 0 Vinho do Porto, A Regra do Jogo, Lisboa, 1980, p. 180, nota 44. (®) As medidas pombalinas defenderam, sim, a qualidade e a reputagéo do Vinho do Porto e contribuiram para a revalorizactio do Seu _preco, que no final do reinado de D, Joo V descera verticalmente. J. Borges de Macedo notou que esta defesa do Vinho do Porto se fez essencialmente contra os concorrentes internos (os vinhos dé outras regides de Portugal). 420 -O «Discurso Politi¢os Ao longo dos wltimos 160. anos, a falsa atribuicdo do Dis- curso, Politico ao Marqués de Pombal tem feito uma carreira Rotavel, inquinando muitos escritos de historiadores portu- gueses ¢ estrangeiros, que assentaram as suas andlises na defi- ciente literatura existente, nao procurando dados mais seguros ou indo verificar as fontes ("*), Alguns historiadores houve, to- davia, que nao ligaram importancia a esta obra atribuida a Pombal, possivelmente por duvidarem da sua autenticidade ou porque a consideraram (nao sei se com inteira razio) um simples «texto», sem grande significado ou consequéncias — uma ‘vez que a Histéria pretende ler menos nos textos do que nos factos consumados, nas realidades quantificaveis, nos lar- gos movimentos e tendéncias da economia ou da cultura, ete. Tais excepgées na historiografia pombalina do século XX fo- ram, por exemplo, J. Lucio de Azevedo no principio do século e J. Borges de Macedo na actualidade. Muitos outros autores, porém — inclusive a revelia do resultado das pesquisas dos dois historiadores citados — tem continuado a incorrer no erro da autoria pombalina do Discurso Politico ou a insistir na opo- sigéo a Inglaterra da politica de Pombal. $6 nos ultimes 40 anos, serviram-se daquela obra para analisar a politica e a fi- gura de Pombal, entre outros, Marcus Cheke, o Visconde de Carnaxide, Alfredo Duarte Rodrigues, Allan K. Manchester, J. Calvet de Magalhaes, Sandro Sideri, Armando Castro e André Gunder Frank, até & autora da mais recente biografia ou re- trato biografico de Pombal, Agustina Bessa-Luis, José Calvet de Magalhaes, na sua Histéria do Pensamento Econémico em Portugal (**), considera mesmo o Discurso Po- litico o escrito econémico mais significativo de Pombal, Ar- mando Castro constitui um caso especial, j4 que se divide, é © termo, entre a afirmac&o da autoria de Sebastiio de Carva. No Catalogue de la bibliothéque de M. Fernando Patha, Lis- bonne, 1896, titulo 3413, esté registada a Relation historique du treme blement de terre [...] précedée d'un Diseours politique [...], A la Haye, 1756, com a seguinte indicag&o: «Mr. Goudard [sic] en est Tautou” Nesta informacdo se teré baseado Brito Aranha, que no Diciondvio Bibliogrdfico, tomo XVII, Lisboa, 1906, registou duas edigdes em fran. cés de 1756 e a espanhola de 1762, no Ihe escapando tratar-se da mes. ma obra apesar-dos trés diferentes titulos e locais de impressao. Brito Aranha refere também que a autoria da obra é atribuida a Goudard (sic). Pode-se pois concluir que a autoria do Discurso Politico fol ha muito revelada mesmo em Portugal e ndo apenas em Franga, Nestas circunstancias € espantoso que tal informagao nao se tenha divulgndo ® gue ninguém, inclusive Brito Aranha, tenha tirado a conelusio de que 0 texto atribuide a Pombal nao podia ser da autoria deste! (") Sep. do Bol. de Ciéncias Eeondmieas, vols. VIL-XIt, Coim- bra, 1967. $ 42a O Marqués de Pombal lho (**) ¢ a atribuicao a um andénimo desconhecido (7), 0 que suscita alguma perplexidade, dada a aparente pouca atencdo com que este historiador leu os seus proprios livros. A. K. Manchester (") ¢ A. Gunder Frank (**) citam 0 Discurso Poli. tico como sende de Pombal, o ultimo autor para ilustrar for- mas de resisténcia «burguesa» a divisdo internacional do traba- tho imposta pela Grande Bretanha mercantilista. Enfim, San- dro Sideri, em Comércio e Poder —Colonialismo informal nas relagdes aaglo: porcuguasas (®), cita confiadamente os escritos mbalinos seleccionados por John Smith, levando a sua boa ‘€ ao ponto de encimar um dos capitulos do seu trabalho com uma citago do pseudo-Pombal (%). Quanto ao recente Sebastido José, de Agustina Bessa- -Luis (**), deve dizer-se em seu abono que, embora nao tendo grandes problemas em aceitar o ministro de D. José como au- tor ou divulgador do Discurso Politico (facto que foi prejudi- car 0 contetido do livro), a escritora mostrou ao menos algu- ma relutancia em reconhecer no estilo ligeiro e incisivo oo. quela obra o modo pesado, burocratico e confuso de Pombal se exprimir. (“) Doutrinas Econémicas em Portugal Séc, XVI a XVIII, Biblioteca Breve, Lisboa, 1978. () A Dominagio Inglesa em Portugal, Porto, 1972, 2." ed. em 1979. |_(") British Preeminence in Brazil: its Rise and Fail, cit, pelo se~ fe. () Acumulagiio, Dependéncia e Subdesenvolvimento, Iniciati-_, yas Editoriais, Lisboa, 1977. () Lisboa, 1978. (2 Idem, pp. 144 © 173. (*) Imprensa Nacional, 1981, 422 RELATION HISTORIQUE BU TREMBLEMENT DE TERRE. farvenu a Lifbonne le premier No- vembre 1755, Avec un détail cone tenant la perce en Hommes , Eglifes, Conyens , Palais ; Maifons , Dia- mans, Meubles , Marchandifes, &c. PRECEDE'E DUN DISCOURS Potitique far les auantuges que le Per- tugal ponrvoit retiver de fon malheut, Dans Lequer SB Aureut développe tes moyenc que Vangtererre Qyettmir jefqier-I2 en uage pour fulhte ete Montrchie: a2 A LAHAYE, Chez Puitaxranors, ile Véled, eRe Rees “MDOG LYE WK RAZON DE ENTRAR EN PORTUGAL LAS TROPAS ESPANOLAS, COMO AMIGAS, ¥ SIN-RAZON DE RECIBIRLAS, COMO ENEMIGAS: MANIFIESTO, REDUCIDO A LAS MEMORIAS, prefentadas de Parte 4 Parte. Aito de 1762. DE ORDEN DEL REY NUESTRO SEAOR. ——$_—__—. ——_—___~___. En Madrid : En Ja Impreaca de la Gaceez. SEM RAZAO ENTRAREM EM PORTUGAL AS TROPAS CASTELHANAS Como Amigas , E razad de ferem recebidas como Ini~ migase MANIFESTO REDUZIDO AS MEMORIAS prefentadas de parte a parte Anno de 1762, IMPRESSO EM MADRID De ordem daquella Corte Nas duas linguas Portugueza, e Caftelbana 3 E REIMPRESSO EM LISBOA, Na lingua Portugueza. PROFECIA POLITICA, Verificada en lo que efta fucediendo a los Portuguefes por fw ciega aficion a los Inglefes: Hecha Inego defpues del Terremoto del afto de mil ferecientos cinquenta y cinco. Augurium ratio eft © conjefura futuri. Ovid. Tritt. Lib, 1, Ele g.8- Con Licencta Det Rey nuzstro Stfion? En Madrid , en la Imprenta de la Gacets. PROFECIA POLITICA, Verificada no que estd succedendo aos Portugvezes pela sua céga affeigad. aos Inglezes ; Estrita depois do Terremoto do aitno de 17555 @ publicada por ordene superior no ania de 176 , et Macrid. Trapuzipa Do HzsraNnoL. Augurium ratio est & conjectura futuci. Ovid. Trist. Loa. Eleg. 8. LISBOA, Na Tyrocraria RoLLANDIANA, rBo 8

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