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Parte PRiMeIRA JURISDICAO PENAL 1 CONCEITO DE JURISDICAO SUMARIO: 1.1 Poder-dever de reatizagiio de justiga estatal ~ 1.2 Juris- digo como atividade substitutiva ~ 1.3 Turisdigao dita contenciosa ¢ a denominada jurisdicfo voluntéria ~ 1.4 Irrelevancia processual da lide, em processo penal ~ 1.5 Caracteres do processo penal ~ 1.6 Jurisdicionalizagao da pena ~ 1.7 Peculiatidades da jurisdi¢ao penal ~ 1.8 Conceituagao de jurisdigao penal. 11 Poder-dever de realizaciio de justiga estatal Jurisdigdo é, segundo generalizado e correto entendimento da doutri- na processual, fungao estatal, especifica do Poder Judiciari Una, qualquer que seja o campo de atuacdo de seus membros e ér- gaos, consiste, tal como precisa JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA,' no poder-dever, por eles assumido ao serem investidos na fungiio judicante, de realizagao de justia,’ consubstanciada na atividade ‘concernente ao respectivo exercicio: “A jurisdigdo — funcao especifica do Poder Judiciario ~ encara-se, em poténcia, como poder-dever de fazer jus- © JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, Processo penal, acdo ¢ jurisdi- ao, Sio Paulo, RT, 1975, p. 7 ess, Justiga estatal, 4 evidéncia, e como mais detidamente explicitado no texto. V., também, a respeito, MARCOS AFONSO BORGES, Jurisdigiio H, Enciclopédia Saraiva de Direito 47(1980):83, So Paulo; ¢, no mesmo sentido, ¢ por ele igual- mente citados, AMILCAR DE CASTRO, Reparos sobre a jurisdigdo e a ago, Revista Brasileira de Direito Processual \(1975).15, Uberaba; JOAO BONUMA, Direite processuat civil, Séo Paulo, Saraiva, 1946, vol. 1, p.303-304; WALDEMAR MARIZ DE OLIVEIRA JUNIOR, Curso de direito processual civil, So Paulo, RT, 1971, vol. I, p. 97. . a u | ! Se ee as Se Te 18 TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL tiga estatal, e em ato, como a atividade mesma de a exercerem seus agen- tes, que sio as jutzes © os tribunais”. Trata-se, com efeito, de um poder-dever de categorizados e especiali- zados funcionarios do Estado, que se realiza mediante atividade substitu- tiva? a dos membros da comunhao social. E isso, certa e necessariamente, em virtude da assunco monopolistica, por ele - Estado -, da administra- Gio da justiga, e conseqiiente vedagao, em regra, de atuagao autodefensiva, por aqueles, de seus afirmados direitos subjetivos.* ~™ Essa, alls, é regra imemorial, como jé patenteavam os romanos,' ao asserit que “nao deve ser permitide a um particular fazer justiga a si mes- mo, isto 6, fazer 0 que no é permitido sendo ao magistrado, pela autorida- de ptiblica que seu cargo the da; pois, se assim nao fosse, no resultariam sendo desordens e violéncias” (D. 50.17.176 (Paulo, liber ter. dec. ad Plautium):"Non est singulis concedendum, quod permagistratum publicum possit ieri, ne occasio sit maioris tumultus faciendi’). Assim é que, proibida a efetuagao de justiga de mao propria, individu- almente, pelos componentes da coletividade, asstiine 0 Estado, correlata € monopolisticamente — j4 agora no dizer de HUGO ALSINA‘ -, a respec- tiva administragaio.” Ora, como esse exclusivismo (a exemplo de toda situagio em que conferido um poder de vontade pata efetivagdo de determinado interesse) © Cf., sobre a afiancada substitutividade, e niio obstante respeitdveis opiniGes em antagdnico senso, GIUSEPPE CHIOVENDA, Principit di diritto processuale civile, 3, ed., Napoles, Jovene, 1923, p. 296; PIERO CALAMANDRETL, Limite fra giurisdizione e amministrazione nella sentenza civile, Opere giuridiche, Na- poles, Morano, 1965, vol. I, p. 66; UGO ROCCO, L’autorité della cosa giudicata esuoi limite soggettive, Roma, Athenaeum, 1917, p. 222-223; ALFREDO ROCCO, La sentenza civile, Milao, Giuffr, 1962 (rist. da 1.° ed. de 1906), p. 8, MARCO. TULLIO ZANZUCCHI, Diritto processuale civile, 6. ed., Milio, Giuffre, 1964, vol. I, p. 13-14; J. RAMIRO PODETTL, Teoria y técnica del proceso civil ytrilogia estructural de la ciencia del proceso civil, Buenos Aires, Ediar, 1963, p. 353. Cf. nosso Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro, So Paulo, Saraiva, 1978, p. 136-137; lastreado em HUGO PEREIRA, La cosa juzgade formal en el procedimiento civil chileno, Santiago, Editorial Juridica de Chile, 1954, p. 17; e MARCO TULLIO ZANZUCCHI, Diritto processuale civile, cit. vol. I, p. 13-14. , com vigor, enfatizou AMILCAR DE CASTRO, Reparos sobre a jutisdigio € a ago, cit., p. 15. HUGO ALSINA, Tratado teérico prdctico de derecho procesal civil y comercial, 2, ed., Buenos Aires, Ediar, 1957, t. IL, p. 418. Assumindo, portanto, 0 correspondente dever, por sua vez correlacionado, como veremios logo em seguida, com 0 diteito & jurisdigio ¢ a aco. c 0) « t CONCEITO DE JURISDICAO 19 se consubstancia num direito subjetivo, 4 evidéncia que, no relacionamen- to juridico do Estado monopolizador com o membro da comunidade inibi- do de fazé-la por si proprio, exsurgem, concomitantemente, 0 dever de realizado de justica, por aquele, e 0 direito destes de obté-la, mediante a utilizagdo de meio adequado ~ a agdo ~, em que se concretiza 0 exercicio do direito a jurisdigdo. Emboraas respectivas nogdes devam ser mais detidamente examina- das adiante, reclamam, desde logo, algumas considerag6es, a saber: a) segundo CARNELUTTI,°a de inferessecorresponde a “posigao favoravel & satisfag&o de uma necessidade” (“posizicne favorevole al soddisfamento di un bisogno”); a de direito subjetivo, a ‘um poder concedido a vontade de uma pessoa para a prevaléncia de seu interesse” (‘un potlere attribuitd alla volonta di una persona per la prevalenza di un suo interesse"); a de dever (do mesmo modo que a de obrigago%), a "um vinculo imposto a voritade para a subordinacdo de um interesse” (“un vincolo imposto alla volonia per fasubordinazione di un interesse"); b) a de direita 2 jurisdi¢do, por sua vez, resultante da explicitada inibig&o de realizagdo de justica por si prépria,pela pessoa fisica ou juridica integrante da coletividade, diz com a permissibili- dade (que Ihes é outorgada pelo ordenamento juridice dos povos civiliza- dos abstrata, genérica e incondicionadamente") de obtengdiode prestag&o jurisdicional, emanada de érgdo estatal competente; ¢ ¢) a de agdo, ade concreg&o desse direito subjetivo, consistente no respective exercicio, com a solicitagao, ao Poder Judiciario, de tutela de outro direlto."* Tem-se, destarte, a jurisdigao,'* a par do mencionado dever; como o poder conferido a determinados agentes estatais para solucionar os confli- ® o 19) ap «2 FRANCESCO CARNELUTTI, Sistema di diritto processuale civile, Padua, Ce- dam, 1936, t. I, p. 7, 25 ¢ 26. Referente, tio-s6, restritamente, a direitos patrimoniais, de natureza econdmica, como precisa ALVARO VILLACA AZEVEDO, Dever de coabitagdo, S40 Paulo, Bushatsky, 1976, p. 185 ¢ ss., a0 estabelecer a diferenca entre dever e obrigagéo. V,, arespeito, de JOSE ROGERIO CRUZ E TUCCIe nosso, Constituigdo de 1983 e processo. Regramentos e garantias constitucionais do processo, Sie Paulo, Saraiva, 1989, p. 12-13; com expressa referéncia & preceituagéio contida no inc. XXXYV do art. 5.° da Carta Magna brasileira, assim redigido: “A lei nfo excluira da apteciagiio do Poder Judiciério lesio ou ameaca a diteito”; e a pertinente dou- trinago de ENRICO TULLIO LIEBMAN, no lavor intitulado L’azione nella te- oria del processo civile, Seritti giuridici in onore di Francesco Carnelutti, Padua, Cedam, 1950, vol. IL, p. 445. Direito (também subjetivo) material, certamente — permitimo-nos aditar a0 em seguida focalizado magistério de HUGO ALSINA. Cf., ainda, HUGO ALSINA, Tratado tedrico practico de derecho procesal civil y comercial, cit. , t. U1, p. 418. 20 TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL, tos de interesses que Ihes sejam submetidos & apreciagdo, bern como para fazer cumprir suas proprias resolugées.'* Realmente, cuidando o Estado, como visto com exclusividade, da administragao da justiga, por certo que se tornava indispensdvel a institui- Go, no campo de ag&o do correspondente setor de sua soberania, de ér- giios destinados & aplicagao do diteito objetivo, com relagdo aos conflitos intersubjetivos de interesses, cuja soluctio néo possa, por diversificados motivos, operar-se, de modo direto, pelos membros da comunhio social. Aludidos 6rgios, integrantes do Poder Judiciario, exercem, destarte, e como também j4 aventado, fungdo especifica, no ambito desse importan- tissimo poder, precisado por CELSO NEVES" como poder de tutela juri- dica processual, essenciai 4 scberania do Egtado, e ao qual corresponde a fungdo de tutela juridica, exsurgente em exercicio no processo como ativi- dade;'* e consiste - permitimo-nos aduzir—, a0 mesmo tempo, num dever, verificdvel em trés diferenciados aspectos, e a saber: “dever de declarar 0 direito, dever de satisfazer o direito derivante do declarado, ¢ dever de assegurar 0 direito cuja declaragao, ou satisfagiio, é invocada”.'® Em suma, a atividade desenvolvida pelos érgaos do Poder Judiciario, com a finalidade de declarar o direito aplicdvel a um caso concreto, & de praticizar, quando necessdrio, tal declaracio, constitui o desempenho de uma fungiio do Estado, decorrente do poder de fazé-lo, titulado, tradicio- nalmente, de jurisdigdo. Esta, de resto, e complementando 0 exposto, na esteira de formulacao de CHIOVENDA” (“funcdo do Estado que tem por escopo a atuagao da « V,, também, a esse respeito, HUMBERTO THEODORO JUNIOR, Processo de conhecimento, Rio de Janeiro, Forense, 1978, t. 1, p. 45-46; & Curso de direito processual civil, 18. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, vol. I, p. 34-37 ~ com a nossa respeitosa ressalva para a confusio nestas estabelecida entre os conceitos de poder, fungdo e atividade. 09 CELSONEVES, Jurisdigaoe-execugiio, Estudos juridicos em homenagema Vicente Rédo, Sao Paulo, Resenha Universitacia, 1976, p. 313. “9 Como observa JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, A “liberdade juridica” no direito € no proceso, Estudos juridicos em homenagem a Vicente Réo, cit. p. 290, “toda atividade supde uma forga ou poder de agit ¢ uma funcao que 6 seu fim; ao poder e & atividade judicidria ~ de processar ¢ julgar causas juridicas ~ cotresponde, pot Fungo especifica, a jurisdigdo (instrugto, notio, ¢ julgamento, iudicium)”. «6 Cf, ainda, em parte, nosso Do corpo de delito no direito processual penal brasi- leiro, cit. p. 137. 6) GIUSEPPE CHIOVENDA, Instituigdes de direito processual civil, 2. ed., trad. portuguesa de J. Guimardies Menegale, Sio Paulo, Saraiva, 1965, vol. Il, p. 3. CONCEITO DE JURISDICAQ 21 vontade concreta da lei por meio da substituicdo, pela atividade de érgaos publicos, da atividade de particulares ou de outros érgdos ptiblicos, j4 no afirmar a existéncia da vontade da lei, j4 no tornd-la, praticamente, efe- tiva”), pode ser assim conceituada: jurisdigdo é uma fungao estatal ine- rente ao poder-dever de realizagao de justiga, mediante atividade substitutiva de agentes do Poder Judiciario ~ jufzes e tribunais —, concre- tizada na aplicagfo do direito objetivo a uma relag%o juridica, com a respectiva declaragao, e 0 conseqiiente reconhecimento, satisfacio ou assecuracio do direito subjetivo material de um dos titulares das situagdes {ativa e passiva) que a compdem. Por outras mais simplificadas palavras, e em apertada sintese, a juris- di¢do consiste num poder-dever de realizagdo de justica estatal, mediante aplicagio de normas disciplinadoras da conduta dos membros da comu- nhio social, incidentes sobre determinada relacéo juridica, com a conse- qilente finalidade de declaragdo, satisfagdo ou assecuragdo de direito subjetivo material de um de seus destinatarios. 1.2. Jurisdi¢do como atividade substitutiva Das controvérsias ocorrentes a respeito da conceituagio inicialmente estabelecida, faz por merecer destaque, de logo, a referente 4 considera- gio da jurisdigdo como atividade substitutiva da dos membros da comu- nh&o social, pelo Estado, mediante a agdo judicidria, ou seja, a atuagio dos agentes do Poder Judiciario — jufzes e tribunais —, com a finalidade, diuturnamente colimada, de aplicagdo das normas do ordenamento juridi- CO aos casos concretos submetidos A sua cogni¢iio. Intuiu-a CHIOVENDA, " asserindo ser essa a peculiaridade marcante da fungo jurisdicional, verbis: “A noi sembra che cid é caratteristico nella funzione giurisdizionale sia la sostituzione di un’ attivita pubblica ad una attivita altrui”, CALAMANDREI,” a seu turno, conferiu-Ihe, no nosso entender, a indispensdvel preciso conceitual, ao indicar como principais caracteres da fungdo jurisdicional os de apresentar-se ela como atividade secunddria e da natureza declaratéria da sentenga. E, particularizado 4 primeira de tais caracteristicas, esclarecendo que “con questa formula si vuol dire que in ogni atto giurisdizionale si trova costantemente la sostituzione della ® GIUSEPPE CHIOVENDA, Principit di diritto processuale civile, cit., p. 296. © PIERO CALAMANDREI, Limite fra giurisdizione e amministrazione nella sentenza civile, cit,, p. 65 e ss. (in p. 66). 22 ‘TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL, attivita de un organo dello Stato ad una attivita che avrebbe dovuto essere esercitata dai soggetti del rapporto giuridico sottoposto a decisione”. Essas formulagdes dos renomados processualistas italianos podem ser, assim, livremente traduzidas:"Parece-nos constituira caracteristica da fun- cdo jurisdicional a substituigao da atividade de outrem por uma atividade publica”: ¢, ...) com esta formula se quer dizer que em todo ato jurisdicio- nai se encontra, constantemente, a substituigao, por um 6rgao do Estado, de uma atividade que deveria ser exercida pelos sujeltos da relagdo juridica submetida a decisdo” (grifos nossos). Em que pese, todavia, 0 posicionamento assemelhado de outros jurisperitos, inclusive peninsulares, como UGO ROCCO,” ALFREDO ROCCO?! e ZANZUCCHI,” esse entendimento tem sido refutado por igualmente notéveis e acatados especialistas. MICHELLI,” por exemplo, considera inexato 0 estabelecimento da distingdo entre jurisdigdo ¢ administragao a partir do carter substitutivo daquela, & falta do subseqtiente esclarecimento, por ele feito, de encon- trar-se na imparcialidade do érgao estatal, referentemente ao efeito jurfdi- co obtido, o seu elemento preponderante: “Non mi sembra, pertanto, esatto jndividuare nella ‘sostituzione’ il carattere discretivo tra giurisdizione e amministrazione, quando poi non si chiarisca, come qui si @ fatto, che Felemento saliente sta nell’imparzialita dell’ organo rispetto all’effetto giuridico conseguito”. Atranscrita proposigao pode ser, também livremente, traduzida, verbis: “Nao me parece, portanto, correto situarna substituieaoo carater distintivo entre jurisdigdo e administrag&o, até porque no se esciarece, como ora é efetuado, que o elemento prevalecente dizcom a: imparcialidade do érgao, em relagdo ao efeito juridico obtido” (grifo nosso). BERS cose 3 UGO ROCCO, L’autorita della cosa giudicata ¢ suoi limiti soggettivi, cit. p. 222-223. 1 @) ALFREDO ROCCO, La sentenza civile, cit., p. 8, asserindo que: “... essa ¢ una J] aitivita dello Stato, sostituita all’ attivita di coforo a cui lanorma giuridica prescrive, per la tutela di determinati interessi, una detterminata condotta, da essi non osservata” (em tradug&o também livre: “... essa é uma atividade do Estado, em i substituig&o & atividade daqueles a quem a norma juridica prescreve, para a tutela de certos interesses, uma determinada conduta, por cles nao observada”), ( © MARCO TULLIO ZANZUCCHL, Diritto processuale civile, cit., vol. 1, p. 13-14. | @ GIAN ANTONIO MICHELLL Per una revisione della nozione di giurisdizione n volontatia, Rivista di Diritto Processuate 1(1947-1):18 € 88. (p. 31), Padua, Cedam. ) Beer ssa a sett RE: CONCEITO DE JURISDIGAO 23 A imparcialidade do 6rgo também é tida por CARNELUTTI* como determinante do critério diferenciador® entre 0 exercicio da fungio judi- cidriae o da administrativa. Daf por que, no seu entender, €a contraposig¢do da Administracdo Publica, como parte no processo, ao érg&o ao qual con- ferido o reexame, como juiz, que se constitui no fulero da distingao. Essa postura, de resto (e para ndo alongar, desnecessariamente, a ex- posigdo) foi assumida, entre nds, por jurisconsultos do porte de LUIS EULALIO DE BUENO VIDIGAL e, mais recentemente, GALENO. LACERDA. O saudoso e emérito mestre das Arcadas, em tese de concurso, admi- tindo, também, expressamente, o critério orgdnico, aduz, apenas, restri- ¢do consistente na certeza de que “os juizes e tribunais também exercem atividade n&o jurisdicional”. Isso, alids, apés asseverar que, nas agdes em que o Estado é parte, “nao se encontra substituigao alguma nas sentengas” proferidas pelos agentes do Poder Judiciario.”° Mais enfiitico, ainda, é GALENO LACERDA,” ao ressaltar a preca- riedade do conceito de jurisdigdo, lastreado nas concepgdes de CHIOVENDA e ALFREDO ROCCO, entendendo que “a esséncia da ati- vidade jurisdicional consistiria em seu cardter substitutivo e secundario, jé que as partes, direta e primariamente, deveriam saber cumprir por si mes- mas as regras norteadoras de sua conduta”. Além do que, complementa: "Essa tese absolutamente insatisfatérianao s6n&o explica a natureza jurisdicional dos pracessas mais relevantes, que tiverem por objeto conflitos sobre valores indisponiveis, cuja solugao nao se pode aleancar pela atividade direta das partes (processo penal, proces- 0 civil inquisitério~ex.:nutidade de casamento), sendo que deixa in albis também o porqué da natureza jurisdicional das decis6es sobre questdode processo, especialmente daquelas que dizem respeito a propria atividade do juiz, como as relativas & competéncia e suspeigao, onde jamais se pode- © FRANCESCO CARNELUTTI, Sistema di diritto processuale civile, cit., vol. I, p. 226, ©) Critério organico, evidentemente, cuja valia sofreu conhecida e, a nosso ver, insu- perdvel critica de CALAMANDREI (v., deste, Istituzioni di diritto processuate civile secondo il nuovo Codice, Opere giuridiche, cit., 1970, vol. IV, p. 79, em que afirma que tal maneira de distinguir se apresenta como um mero jogo de palavras...). ©) Y, LUIS BULALIO DE BUENO VIDIGAL, Do mandado de seguranga, Direito processual civil, Si0 Paulo, Saraiva, 1965, p. 39 © 36, nota 8. ©) GALENO LACERDA, Comenidrios ao Cédigo de Proceso Civil, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1981, vol. VIII, t. 1, p. 22-23. 24 THORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL r4 visiumbrar qualquer trago de ‘substitutividade’a uma atuac&o originaria, direta e prépria das partes”,* A primeira objegao, veementizada, como visto, por VIDIGAL, com a afiancada impossibilidade de substituiedo nas agdes em que 0 Estado € parte, respondeu, por antecipago, ZANZUCCHI,” lembrando que o in- teresse que o Estado-juiz realiza ndo the € prdprio, mas de outrem, inclu- sive da Administracao Publica. E, além disso, a substituigdo nfo deve ser considerada em si mesma, porém em relagéio ao fim ao qual se direciona: “B evidente poi che l’elemento delia sostituzione non va considerato a sé, ma in relazione al fine a cui 8 preordinato”.° Alids, essa afirmagéo ganha maior dimensfo no campo penal, em que vigorante o cfnone nuila poena sine iudicio, a pat do concernente a nullum crimen nulla poena sine praevia lege, colocando-se como “auto-limitagao da funcdo punitiva do Estado”, do mesmo modo que limite 4 vontade do membro da comunhio social, a quem é negada, até, a “faculdade de sujei- tar-se & pena”.™! Com efeito, como observa MANZINI,” 0 Direito Penal nao se apre- senta sendo como um “direito de coergdo indireta”, em virtude de o poder de punir nfo ser dotado de atuagao imediata. Ou, por outras palavras, nos- sas, a imposicao de sangGo ao infrator da norma penal material nao pode ser imposta imediata e diretamente, mas, tHo-sé, por meio do processo, com estrita observancia de todas as formalidades em lei prescritas. Precisa, nesse mesmo ponto, é a doutrinagao de JOSE FREDERICO MARQUES,” ao versar 0 tema ora exposto, no sentido de que: “Embora tendente a proteger o bem geral e a coletividade, o poder de punir do Esta- do nao é auto-executdvel, pois nfo se exerce administrativamente, ou por coagao direta, e sim depois de pronunciamento jurisdicional. O Estado 2 V, também, transcrevendo parte do texto, e parecendo, por isso, adotar a opiniio de seu gaticho conterrineo, ATHOS GUSMAO CARNEIRO, Jurisdigdo e com- peténcia, 3. ed., Sio Paulo, Saraiva, 1989, p. 10. ©) MARCO TULLIO ZANZUCCHL, Diritto processuale civile, cit, vol. I, p. 14, nota b 6 Coma seguinte e livre tradugdo: “E evidente, portanto, que o elemento da substitui- ¢io ndo é considerado em si préprio, mas em relagdo ao fim ao qual pré-ordenado”. @” Cf, jf agora, GIOVANNI LEONE, Trattato di diritto processuale penale, Népo- les, Jovene, 1961, vol. I, p. 6-7. 62 VINCENZOMANZINI, Trattato di diritto processuale penale italiano, 6.4. atual, por Giovanni Conso ¢ Gian Domenico Pisapia, Turim, UTET, 1967, vol. I, p. 83. JOSE FREDERICO MARQUES, Tratado de direito processual penal, Sao Paulo, Saraiva, 1980, vol. 1, p. 5. g CONCEITO DE JURISDICAO. 25 chamou a si a funcao de punir. Mas nao a exerce com a imediata aplicagao da pena, porquanto, no caso, a ordem jurfdica nao reage com a imposi¢aio automética das sangGes”. Por isso que, sendo exclusivos do Estado 0 poder-dever de punir e 0 poder-dever de tutela juridica processual, torna-se necessario o desdobra- mento em Estado-Administragdo, como titular do interesse punitivo, e em Estado-Jurisdigéo, ou, mais simplesmente, Estado-juiz,4 como titular de potestade-encargo jurisdicional. Trés sdo, por via de conseqUéncia, os pontos de reflexao que a exposigac desenvolvida sugere: a) 0 de que poder-dever de punir apre- senta-se, induvidosamente, como dicg&o mais apropriada A designagao do propalado ius puniendi, até porque 0 Estado, a par do poder de punir, tem o dever de, por intermédio dos drg4os jurisdicionais, impor a sangao atinente & infragdo praticada pelo violador da norma penal; b) a sangao penal somente pode ser imposta ao final de precesso regularmente formado e desenvolvido, isto 6, realizado com observancia do due process of law, elevado, expressamente, pela Carta Magna de 1988, & eminéncia constitucional, e que se especifica, no campo de atuag&o juridico ora abordado, no devido processo penat; e c} da distingao estabelecida entre Estado-Administragao e Estado-Jurisdi¢ao, ou Estado-juiz, tem-se, tam- bém inequivocamente, que, por ser aquele interessado, no ambito da relag&o juridica materia submetida a definigao judicial, integra o respec- tivo processo come sujeito parcial ao passo que este, Estado-juiz, corporificado em érgo jurisdicional, ostenta-se come sujeito imparcialno relacionamento procedimental estabelecido com a incoagao da segunda fase da persecutio criminis. E, assim sendo, impondo-se ao Estado-Administragdo a indicada autolimitagao, no tocante A consecugio do interesse punitive, somente mediante a agdo judicidria dos juizes e tribunais é que poderd ser realiza- do o Direito Penal. Por via de conseqtiéncia, a atividade desempenhada por tais agentes do Poder Judiciario, com esse objetivo, é, sem divida alguna, substitutiva da dos érgdos da Administrag&o, que, impedidos de efetiva-la diretamen- te, devem pleitear, pela via de processo adequado, a aplicagdo das normas © CF, ainda, JOSE FREDERICO MARQUES, Tratado de direito processual penal, cit, vol. f, p. 7. © V,, a respeito, nosso Direitos e garantias individuais no processo penal brasilei- ro, Sio Paulo, Saraiva, 1993, p. 69 e ss.; com supedanco, também, na monografia de PEDRO J. BERTOLINO, E! debido proceso penal, La Plata, Platense, 1986, p21, 2e3sess, 26 TBORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL, penais materiais:** 0 que uns ndo podem fazer, outros fazem por eles, isto é, substituem-nos na declaragio da vontade e na pratica de atos indispen- sdveis A satisfag%io do direito subjetivo feito valer em jufzo.” Do mesmo moda, e inequivocamente, no processo civil hd a afiangada substitutividade, especialmente nas causas em que sobrelevada a inquisitoriedade da atuagio do érgio jurisdicional. Deve ser lembrada, também nesse derradeiro enfoque, com CALAMANDREI,® a semelhanga do processo civil inquisitério com o processo penal, particularmeate no tocante A vinculagdo do julgador & perquirigdo da verdade material,” independentemente da iniciativa ou de acordo das partes. E isso, tendo em vista, obviamente, a inafastavel distingdo entre pro- cedimento inguisitério, cuja concepgao atende As formas ou esquemas formais em que 0 processo se exterioriza; e inquisitividade da atuagao dos agentes estatais, relativamente & verificagdo da realidade dos fatos ti- dos como pertinentes e relevantes para a instrugiio e julgamento de uma causa" submetida a apreciagaio do Poder Judiciério. &® Alids, do mesmo modo que os membros da comunhdo social, aos quais ¢ dado formular qualquer pleito relativo ao ius iibertatis somente pela via do processo penal. ® ssa percepgdio faltou também, como facil de verificar, a NICETO ALCALA- ZAMORA Y CASTILLO, Notas relativas al concepto de jurisdiccién, Estudios de teorfa general ¢ historia del proceso (1945-1972), México, Unam, 1974, t. 1, p. 47-49; que se prende, confusamente, & diversidade das penas ¢ & conotagao dita também administrativa da execugio penal. V., no mesmo sentido, ainda, NICETO ALCALA-ZAMORA ¥ CASTILLO ¢ RICARDO LEVENE, HIJO, Derecho procesal penal, Buenos Aires, Guillermo Kraft, 1945, t.1, p. 189-191. ° PIERO CALAMANDREL, Linee fondamentali del processo civile inquisitorio, Opere giuridiche, cit., vol. I, p. 160 € ss. ¢ 167 ess. © Qu atingivel, isto é, a verdade que os meios e métodos processuais de verificagfo permitem atingir (v., a respeito, nosso Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro, cit., p. 91 & ss.). E.g., escrita ou oral, publica ou secreta, cf. EUGENIO FLORIAN, Elementos de derecho procesal penal, trad. castelhana de Leonardo Prieto Castro, Barcelona, Bosch, sem data, p. 71. Deve ser relembrado que 0 conceito de causa é mais abrangente do que o de acdo: em todo procedimento judicial no quat se aprecie e decida acerca de direito de litigante ou de interessado, h4 uma causa; ainda que, formalmente, possa ndo ter sido aforada uma agio, cuja propositura se dé por iniciativa de um dos sujeitos da relagio juridica material, ou por quem possa representé-lo ou substitut-lo (cf. nosso Curso de direito processual civil, Sio Paulo, Saraiva, 1989, vol. Hl, p. 347-348; 2 uo CONCEITO DE JURISDIGAO 27 Diferem, certamente, como anota, com a habitual precistio, JOAQUIM CANUTOMENDES ALMEIDA,” 0 praceaimanto “ex officio"de érgao julgador, quanto a iniciativa da agdo, implicativa de atuagdo unilateral, e a inquisitoriedade insita ao poder de perquirira verdade material, ou atingivel, que deve ser perseguida incessantemenie, de sorte a propiciar a consecu- G40 da finalidade do processo, qual seja a de um julgamentoimparcial e justo. Na realidade—e nao obstante a confusao, pelo nosso mestre enfatizada como reinante, a respeito, na doutrina e na jurisprudéncia patrias—, mos- tra-se uniforme o entendimento universal acerca da distingao entre proces- so panal inquisitério, originado do Direito Penal Romano e aperfeigoado segundo o modelo canénico, e a inquisitividade insita ao processo penal moderno, consubstanciada no poder conferido ao julgador de perquirir, até a exaustdo, a verdade dos fatos levados & sua cognicéo,* E, de resto, quanto aos atos decisdrios sobre questdes processuais, principalmente os referentes 4 prépria atividade do juiz ou tribunal, como as alusivas & competéncia e 4 suspeigdo, por certo que eles nao se prestam para o confronto imaginado. Comefeito, as normas processuais apresentam-se, precipuamente, com incontestavel carater instrumental, destinando-se a regulamentar a atua- cio desses agentes da realizagdo do direito, das partes e dos demais in- fegrantes e participantes do processo, em todo o seu desenvolvimento. Todavia, mesmo sendo essa a sua natureza, quando se tornam objeto de questo formulada por sujeito parcial, ou que deva ser conhecida ex officio, o 6rg&o jurisdicional, ao decidi-la, substitui uma das partes, decla- rando o direito aplicavel; vale dizer, definindo o regramento estabelecido, no seu entender, para a respectiva solugao. Nio ha, portanto, segundo cremos, como acolher qualquer das obje- gdes assinaladas. Na aguda assergao de J. RAMIRO PODETTI,™ é “tao fundamental ¢ bdsico” a jurisdigdo esse cardter substitutivo, que ela prescinde de sua in- clusio na respectiva definigio. Além do que — complementa -, “falar de com supedineo no magistério de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, Do recurso extraordindrio, Justitia 21(1958):24, Sao Paulo). 2 JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, Processo penal, agdo e jurisdi- ¢ao, cit., p. 193. ®) Y,, arespeito, nosso Indispensabilidade de contraditério em procedimento recursal, Persecugdo penal, prisdo e liberdade, Sao Paulo, Saraiva, 1980, p. 207-208; com a respectiva indicagio bibliogrifica. “) J, RAMIRO PODETTI, Teoria y técnica del proceso civil y trilogia estructural de la ciencia del proceso civil, cit. p. 353; com destaques, em itilico, nossos. 28 ‘TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL, juizes, de poder jurisdicional, de processo, de sentenga, é falar de uma atividade substitutiva, é falar do juizo de um terceiro”. 1.3 Jurisdigdo dita contenciosa e a denominada jurisdicao voluntaria Como observa JOSE ALBERTO DOS REIS,* vem de remota época “q distingdo entre jurisdigio voluntaria ¢ jurisdig’o contenciosa; mas a doutrina no conseguiu fixar com nitidez a linha de demarcagdo entre as duas espécies”. A idéia mais difundida entre os processualistas em geral fixava-se, tra- dicionalmente, em que a jurisdigdo denominada voluntdria se exerce inter volentes, enquanto a dita contenciosa opera inter invictos, ou inter nolentes. MARCO TULLIO ZANZUCCHI* anota, a esse respeito, que a nomea- da jurisdig&o voluntaria traduz-se, destarie, num conceito resultante das fungdes habitualmente desenvolvidas pelos 6rgos jurisdicionais, apresen- tando-se, outrossim, como aquela cuja atuacdo se efetiva perante, apenas, um interessado, ou acerca do acordo (ou-permitimo-nos aduzir—, objetivo comum) de varios interessados, em contraposigao a propria e verdadetra jurisdigo, qualificada come contenciosa. Cuidava-se, entdo, de contemplar um critério formal, de todo insatisfatério, a ponto de ensejar a formulacao de diversificadas teorias, das quais faz por merecer destaque a de CHIOVENDA,” lastreado em WACH, e seguido por intimeros outros jurisperitos, dentre os quais ZANZUCCHL,* CALAMANDREL,” REDENTI® e, também, renomados «JOSE ALBERTO DOS REIS, Processos especiais, Coimbra, Ed, Coimbra, 1956, vol. If, p. 397. «®) MARCO TULLIO ZANZUCCHI, Diritto processuale civile, cit. vol. I, p. 45. “GIUSEPPE CHIOVENDA, Principii di diritto processuale civile, cit., p. 316; com © topico logo a seguir transcrito Hivremente traduzido, e assim no original: “La giurisdizione volontaria ha invece sempre uno scopo costitutivo: gli atti di ginrisdizione volontaria tendono sempre alla costituzione di stati giuridici nuovi, © cooperano allo svolgimento di rapporti esistenti. Invece la giurisdizione vera e propria mira all’ artazione di rapporti esistenti, Esto 8 il concetto de WACH che noi accettiamo nella sua sostanza”. #) MARCO TULLIO ZANZUCCHL, Diritto processuale civile, cit., vol. I, p. 46. “9 PIERO CALAMANDREI, Lince fondamentali del processo civile inquisitorio, cit,, p. 155; com apoio, também, em FRANCESCO CARNELUTIL, Lezioni di diritto processuale civile, Padua, La Litotipo, 1920, vol. If, p. 202; e ANTONIO CICU (v., deste, Il diritto di famiglia (Teoria generale), Roma, Atheneum, 1914, p. 197 ess... 6® ENRICO REDENTI, Profili pratict del diritto processuale civile, Milio, Giuffré, 1938, p. 244-246. CONCEITO DE JURISDIGAO 29 processualistas brasileiros:*! “A jurisdi¢ao voluntaria tem (noutro senso) um escopo constitutive: os atos de jurisdigao voluntéria tendem sempre & constitui¢do de estados juridicos novos, ou cooperam com o desenvolvi- mento das relagdes existentes. Pelo contedtio, a jurisdigio verdadeira e propria temem vista a atuagdo de relagSes existentes. Esse é 0 conceito de WACH, que aceitamos em sua essencialidade”. B isso, sem deixar de anotar, também, que, na formulago de outros adeptos dessa doutrinagao, como Jt JOSE ALBERTO DOS REIS, “a juris- dig&o voluntaria implica o exercicio de atividade substancialmente admi- nistrativa, a jurisdig&o contenciosa implica o exercicio de atividade ver- dadeiramente jurisdicionat”. Autores ha, entretanto, como ANTONIO VISCO® e FAZZALARL™ que afiangam carecerem de exatidio ¢ definitividade os critérios distinti- vos cogitados pelos processualistas que se ocuparam do tema, salientando 0 tiltimo ser verdade, enunciata in limine, a respeito, que “una costruzione sistematica della giurisdizione volontaria sia ancora da fare”. CRISTOFOLINI,® a seu turno, assevera que o critério determinante da distingao entre jurisdigdo contenciosa e jurisdigdo voluntdria se en- contra, precipuamente, * ‘no terreno da natureza material da atividade de- senvolvida pelo érgio jurisdicional”. V,, também, JOSE FREDERICO MARQUES, Ensaio sobre a jurisdigdo vo- luntaria, 2, ed., $40 Paulo, Saraiva, 1959, p. 72-73; endossando o magistério de REDENTI c enfatizando a exatid’io com que a caracterizou o mestre italiano, apds expressar que “a atuagio estatal é af substancialmente constitutiva”. 0 Como, além do saudoso jurisconsulto paulista citado na precedente nota 50, GABRIEL JOSE DE REZENDE FILHO, Curso de direito processual civil, 3. ¢d., Siio Paulo, Saraiva, 1952, vol. I, p. 107-111; e MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras linhas de direito processual civil, 14. ed., Sk Paulo, Saraiva, 1990, vol. 1, p. 81-82. ©» JOS# ALBERTO DOS REIS, Processos especiais, cit., vol, U1, p. 397. 9 ANTONIO VISCO, / procedimenti di giurisdizione volontaria, 3. ed., Miléo, Giuffre, 1952, p, 18. BLIO FAZZALARI, La giurisdizione volontaria (Profilo sistematico), Padua, Cedam, 1953, p. 41; com a seguinte e livre tradugio para o t6pico por tiltimo trans- crito: “uma constragao sistemdtica da jurisdigao voluntéria est4, ainda, para ser feita”. GIOVANNI CRISTOFOLINI, Efficacia dei provvedimenti di giurisdizione volontaria emessi da giudice incompetente, Studi di diritto processuale in onore di Giuseppe Chiovenda, Pidua, Cedam, 1927, p. 381 ¢ ss., ¢ 391-392; ¢ com 0 tépico em seguida transcrito assim no original: “... sul terreno della natura materiale dell’ attivita esplicata dall’ organo giurisdizionale”. , também, acolhendo sua doutrinagio, LUIS EULALIO DE BUENO VIDIGAL, Do mandado de seguranga, cit, p. 42-44. 0 69 30 ‘TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL, Assim é que, no &mbito daquela, este age visando “a tutela do interes- se coletive & composigao dos conflitos”, iste é, aplicando a lei sem nenhu- ma preocupagao quanto a vantagem ou prejuizo que sua decisao possa ocasionar a parte. De outra banda, na chamada jurisdigao voluniaria, pelo contrario, tem ele em vista a tutela de um interesse diferente do concernente a composi- go dos conflitos. E, além disso, as vezes efetiva “a atuagaio de um direito preexistente”, nao obstante faltem ao respective procedimento duaspartes —em regime de contraposigao, uma a outra (6 de acrescentar). Jé para NICETO ALCALA-ZAMORA Y CASTILLO, numa incisi- va proposicéio, devem ser levados em conta 0 pressuposto, a atividade desenvolvida e a definigdo de cada uma delas. Segundo a sua ensinanga, apresentam-se como excelentes pontos de partida, para tal finalidade distintiva, litigio e negdcio, sendo certo que, na denominada jurisdigdo voluntdria,” “o litigio esta ausente, as vezes la- tente... mas, nunca presente”, A segunda referéncia — prossegue -- deve ser a atinente & natureza ju- risdicional, quer positiva, para determinar os caracteres da verdadeira ju- risdig&o; quer negativa, para, fixada “a nogao da genuina jurisdigao, isto é, a contenciosa, excluir-se dela a chamada voluntaria”** Ea terceira ~ completa — diz com a coisa julgada, meta do processo contencioso e totalmente estranha a jurisdigdo voluntéria, De resto, nessa mesma linha de raciocinio, tem-se asserido, amitide,? que a jurisdigio dita contenciosa se caracteriza: 69 NICETOALCALA-ZAMORA Y CASTILLO, indole de lajurisdiccién voluntaria, Studi in onore de Enrico Redenti, Milio, Giuffre, 1952, vol. I, p. 51-54; e Estudios de teoria general y historia del proceso (1945-1972), cit., t. I, p. 157-160. &D Alids, segundo o mesmo autor, respectivamente as p. 6 ¢ 117-118 das obras indicadas na precedente nota 56, nem uma coisa, nem outra: “No es jurisdiccién, porque en la variadissima lista de negocios que {a integran ser dificil encontrar algano que satisfaga fines jurisdicionales en estricto sentido; y mucho menos es voluntaria, porque con frecuencia Ja intervencién judicial resulta para los interesados en promoverla tan necesaria o més que en la jurisdiccién contencio- $a, en la que, al menos cuando se trata de procesos civiles dispositivos, a diferen- cia de los inquisitorios, las partes pueden eludir el juicio, ponerle término o substituirlo por medios autocompositivos y hasta defensivos”. Y,, também, a respeito, EDSON PRATA, Jurisdigdo voluntdria, Séo Paulo, EUD, 1979, p. 17, redargiiindo, afinal, que, nao obstante a impropriedade da expressio, seus criticos “nio encontraram outra até agora para substituf-la ...”. © Cf, ainda, NICETO ALCALA-ZAMORA Y CASTILLO, indole de la jurisdiccién voluntaria, cit., respectivamente as p. 52 e 159. ©) ¥. MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras linhas de direito processual civil, cit, vol. 1, p. 76-77 e 81-82; e Jurisdig&o civil, Enciclopédia Saraiva de Direito, oat: ie ~--CONCEITO DE JURISDICAO 3h FUNDAGKO EscOLA SUPERIOR DO MrsT Pig 00 oF teeardeos a) pela existéncia de partes, em posigdes contrastantes nas res- pectivas situagées abrangidas pela relagdo juridica que as vincula, e, dada a controvérsia, a contenciosidade ocorrente, com a dinamizagao do conflito de interesses, tornada litigiosa; isto é, reveladora de uma lide, ou litigio, que constitui objeto do processo indispensdvel 4 res- pectiva composigio; b) pela possibilidade de contraditério, que se perfaz com o regular chamamento do réu a jufzo, a fim de tomar conhecimento da ago propos- ta, e, se de seu desejo, defender-se; e c) pelo fato de, com a preclusao dos prazos para recursos, formar-se a coisa julgada material, peculiar, exclusivamente, aos atos decisérios con- cernentes ao meritum causae™ Diferentemente, a denominada jurisdig¢Go voluntdria “versa sobre in- teresses nao em conflito”, constituindo mera “adiministragdo de interesses privados pelos drgdos jurisdicionais”; de interesses de pessoas que no esto contendendo, “nao estio litigando” (nao havendo, por isso, como falar em partes, mas, apenas, em interessados). Precisa, nesse derradeiro enfoque, MOACYR AMARAL SANTOS" que “og atos de jurisdi¢do voluntaria visam a constituigao de estados juridicos novos ou cooperam para o desenvolvimento de estados juridicos existen- tes. Quer dizer que a finalidade da jurisdigdo voluntaria é eminentemente constitutiva. Na jurisdigdo voluntaria nao hd pedido de uma parte contra outra ou em relagao & outra, isto 6, nao hd duas partes, autor e réu, mas apenas interessados". cit, 47(1981):96-97 e 100-101; e, praticamente no mesmo senso, JOSE FREDERICO MARQUES, Instituigdes de direito processual civil, 4. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1971, vol. 1, p. 258-259; e Manual de direito processual civil, 10. ed., So Paulo, Saraiva, 1983, vol. 1, p. 86-88; e MARCOS AFONSO BORGES, Jurisdigio If, cit. p. 86-89. «) Y,, a respeito da coisa julgada material, nosso Curso de direito processual civil, cit., vol. I, p. 91-93; em que sobrelevado o respectivo conceito como a concernente ao “contetido da sentenga definitiva e consistente na sua imutabilidade e indiscutibilidade, mesmo porque a salvo de qualquer securso, ordinério ou extraordinario”. ) MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras linhas de direito processual civil, cit., vol. 1, p. 82; € nao obstante precedente equivoco, p: 77, a0 diversificar os concei- tos de litigio e lide, nos seguintes termes: “... posto de lado o sentido gramatical da denominagio, a jurisdigdo contenciosa nao se caracteriza por versar sobre li- tigios. Bla se exerce em face de conflitos de interesses qualificados por uma pre- tensio, isto é, seu objeto sao as lides a serem compostas”. l ( 32 TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL, Nela, ademais, e por isso mesmo, é incogitdvel a contraditoriedade, daf por que descartavel, até, a possibilidade de contraditério. E, em lugar da pacificacao social, com a composigio do litigio, objetiva-se a tutela de determinado interesse, com a protegdo do interessado.? Por outras, e sintéticas palavras, tradicionalizou-se em doutrina pro- cessual a afirmacio de que, na chamada jurisdigdo volunidria, nada mais ha do que um “processo sem lide”. Asse respeito, ha autores que se mostram até enfaticos. Assim, por exemplo, FERNANDOLUSO SOARES," asserindo queo por ele denomina- do processo voluntario, isto 6, o “vulgar e tradicionalmente chamado proces- so de jurisdig&o voluntaria’, ndo é “jurisdicionalpela tazao muitissimo sim- ples de ser um processo sem lide”. E complementa, verbis:“Ele é um proces- so impréprio porque, no final de contas, a sua fungao é administrativa’. Esse, outrossim, e derradeiramente, 6 o motivo pelo qual se tem, nos respectivos procedimentos, a constituigdo, tio-s6, de coisa julgada for- mal, com a possibilidade de futura revisio do decidido, ante a alterag&o das circunstincias faticas que basificaram 0 ato decisdrio ent&o proferido. 1.4 Irrelevancia processual da lide, em processo penal Fixados, na forma exposta, os pontos tidos como diferenciadores das denominadas jurisdic¢do contenciosa e jurisdigdo voluntdria, apresenta- se ao analista do tema, em nosso campo de atuagao, o fascinante dilema de relaciond-los com o processo penal. E isso sem olvidar que as opinides dos mais autorizados doutrinado- res ndo se tém afinado, entendendo uns, como o logo acima citado FERNANDO LUSO SOARES,* ser a penal jurisdigdo voluntdria; e ou- Deve ser aduzido que essa mesma grave falha de percepgio vem se generali- zando, como pode ser notado em obras mais recentes, como a. de SERGIO LUIZ DE SOUZA ARAUIO, Teoria geral do processo penal, Belo Horizonte, Manda- mentos, 1999, p. 35-36, ao referendar a equivoca proposicaio de HELIO BASTOS TORNAGHI, A relagdo processual penal, 2. ed., Sao Paulo, Saraiva, 1987, p. 242, segundo a qual a “lide é parte do litigio ... levada & decisiio dos jufzes por uma das partes conflitantes”. 2 Cf, ainda, MOACYR AMARAL SANTOS, nas obras e locais indicados na nota 59, supra. . ) FERNANDO LUSO SOARES, 0 pracesso penal como jurisdigdo voluntdria, Coimbra, Almedina, 1981, p. 48. © préprio titulo da obra citada na anterior nota 63, expressivamente, o indica. CONCEITO DE JURISDICAO. 33 tros, dentre os quais destacdvel, por todos, JOSE FREDERICO MAR- QUES,® tendo-a como contenciosa, a0 asserir que a jurisdigao ordindria (rectius: comum) se divide em penal e civil, tendo por objeto, respectiva- mente, litigios penais e nao-penais. Embora o magistério do ilustre mestre, também das Arcadas, revele, no nosse entender, manifesto equivoco, é de transcrever, para melhor compreensdo da exposigao ora desenvolvida, o seguinte topico, verbis:“A jurisdigdo ordindtia divide-se em penale civil. Aquela tem por objeto a reso- lugdo de litigios penais; esta, a de litigios nao-penais. Lide penal se define, primeiramente, como aquela derivada de uma pretensdo punitiva do Esta- do, que é sempre uma pretensao insatisfeita, uma vez que a penando pode seraplicada sem controle jurisdicional a prioride Poder Judicidrio. Também 6 lide penai, por idéntico motivo, a surgida da pretensdo estatal que tenha por objeto impor medida de seguranga”. E, com efeito, nao resiste ele, sequer, a simpies verificagao da irrelevancia processual da lide, em processo penal, quer pelo fatode esta- fem em jogo neste, sempre, interesses indisponiveis; quer pela conceituagdo carneluttiana de lide e de pretensao, a ele, certamente, inajustaveis, como procuraremos demonstrar, em seguida, e também mais adiante, nodesen- voivimento deste sistematico estudo."” Alias, a respeito dessa irrelevancia processual da lide, em processo penal, desde ha muitos anos, tivemos j4 a oportunidade de nos pronunci- ar, com lastro em ponderosas observagdes de LUCIANO MARQUES LEITE,® e, especialmente, CALAMANDREI,” sendo de destacar as des- 8) JOSE FREDERICO MARQUES, Elementos de direito processual penal, 2. ed. atual. por Eduardo Reale Ferrati, Campinas, Millennium, 2000, vol. 1, p. 197; com lastro em magistérios de ARMANDO LEONE e CALAMANDREL ‘® Infelizmente, seguido, na sua maior parte, ¢ até sem minimo senso critico, por igualmente acatados processualistas penais da atualidade, tem 11.5, infra. No escrito intitulado Indispensabilidade de contraditétio em procedimento recursal, cit,, p. 199-203, ©) LUCIANO MARQUES LEITE, O conceito de “tide” no processo penal ~ um tema de teoria geral do processo, Justitia 70(1970):186, Séo Paulo. © PIEROCALAMANDREI, Il concetto di “lite” nel perisiero di Francesco Camelutti, Opere giuridiche, cit,, vol. 1, p. 212; eassim no original: “Il processo penale, infatti, non ha lo scopo di rimuovere un disaccordo esistente tra accusatore ed accusato intorno all’esistenza del reato ¢ alla misura della pena, sicch® il processo perda la sua ragion d’essere 1a dove questo disaccordo sia amichevolmente composto tra idue ‘litiganti’; ma ha luogo perch’, nel nostro ordinamento giuridico, la punizione def colpevole non pud avenire che attraverso la pronuncia giurisdizionale. Il 34 ‘TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL, te, em livre tradugdo, e a saber: “O processo penal n&o tem, de fato, 0 es- copo de remover um desacordo existente entre acusador ¢ acusado a res- peito da existéncia do crime ou da medida da pena, de sorte a perder sua razao de ser onde tal desacordo seja amigavelmente composto entre os dois ‘litigantes’; mas tem lugar porque, em nosso ordenamento juridico, a pu- nig&o do culpado sé pode ocorrer mediante pronunciamento jurisdicional. O processo penal tem, portanto, em qualquer caso, para atingir o efeito jurfdico da punigao do réu, aquele mesmo cardter de necessidade (nulla poena sine judicio), que, no campo civil, para obter efeitos juridicos que as partes n&o podem conseguiz através de contrato, € préprio do processo de tipo inquisitério”.” Daf por que ~ aduzimos, entio —, e decorrentemente da impessoalida- de dos interesses contrapostos (ou, acrescentamos agora, justapostos), determinante da inquisitoriedade que caracteriza toda a persecutio criminis, e, por isso mesmo, da indispensabilidade de contraditério, como forma tinica de atingir o dado mais relevante do fundamento do proceso penal” (qual seja a apuracdo da verdade material, ou atingivel), a destinago deste para a resolugao de um importante conflito de interesses piiblices (algu- mas vezes revelado, até, na lide, mas que, geralmente, com cla n&o se con- funde), originado de “uma determinada mutagio jurfdica de especial rele- vancia social”.” Deve ser feita, ainda, breve referéncia ao entendimento de alguns auto- res, como NICOLA JAEGER,” no sentido de que, excogitavel a existéncia de lide no pracesso penal, contempiaria ele, entao, uma controversia. processo penale ha dunque in ogni caso, per raggiungere l’effetto giuridico della punizione del reo, quello stesso carattere di necesita (nulla poena sine judicio) che nel campo civile, per raggiungere effetti giuridici non conseguibile dalle par- ti atravverso il contratto, & proprio del processo a tipo inquisitorio”. ©) Nao somente no tocante & punigiio do acusado ~ permitimo-nos complementar —, mas, igualmente, para afirmago do jus libertatis do indiciado, do acusado ou do condenado. Induvidosamente, a liberdade juridica, em especial fisica, do ser humano, mem- bro da comunidade. Cf, ainda, PERO CALAMANDREI, Il concetto di ‘lite’ nef pensiero di Francesco Carnelutti, cit., p. 214-215. % NICOLA JAEGER, Proceso, lite, controversia penale, Scritti giuridici in onore di Francesco Carnelutti, cit., vol. U, p. 417 e ss. V., também, entre nés, e em as- semelhado senso, ANTONIO CARLOS DE ARAUJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CANDIDO RANGEL DINAMARCO, Teoria ge- ral do processo, 13. ed., S40 Paulo, Malheiros, 1997, p. 132 ¢ 258-259. ™) @ CONCEITO DE JURISDICAO. 35 Trata-se, por certo, com essa acepcao, da tentativa de solugdo mera- mente terminoidgica, nao técnico-cientitica, que, todavia, esbarra, de pron- to, no conceito de controvérsia, a saber: discussdo, debate, disputa ou po- lémica acerca de assunto (literario, artistico, cientifico ete.), agao, proposta ou questo “sobre a qual muitos divergem”; contestagao, impugnagao, embate, choque de cpostos.’* E, por isso, com o devido respeito, nao faz por merecer mais alentadas consideragdes. E, de resto, de todo inadequada e (por que nao dizer?) inaceitavel, delineia-se a transposi¢aio do conceito civilistico de pretensdo para o pro- cesso penal, Com efeito, apresentando-se ela como elemento caracterizador da ocorréncia de lide ~ seja pela resisténcia oposta pelo sujeito passivo da relagdo juridica, cuja defini¢do constitui a meta do processo extrapenal de conhecimento; seja pela insatisfagao do direito neste reconhecido, ou reconhecivel, dada a omissao ou, mesmo, atuagio da parte vencida ou demandada ~, é, igualmente, irrelevante no Ambito do processo pe- nal, para cuja existéncia” se mostra suficiente a ocorréncia (suposta que seja) de infragfo, por membro da comunidade, a norma penal ma- terial. Ademais, e como também logo adiante sera iguaimente explicitado,” é a pretensdo, na realidade, uma declaragio de vontade impositiva, formulada em face de outrem, a fim de obter-se a satisfa- cdo de um interesse,” e, portanto, somente verificdvel concretamente, isto é, corno fato da vida, ocorrente entre duas ou mais pessoas, com efetivas atuagdo (“exig&ncia de subordinagdo de interesse de outrem ao proprio”, na necessariamente relembrada e insuperada formulagio de CARNELUTTI”) de uma das partes e negaciio da outra. E isso, obviamente, como explicitado ao final do pardgrafo anterior, naio acon- tece em mbito penal. & Cf. Novo diciondrio da lingua portuguesa - Aurélio, 1. ed., 3. reimpr,, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975, p. 378; Diciondrio Houaiss da lingua portuguesa, 1. ed,, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 825. 9 Assim como da persecutio criminis. © Também item 11.5, infra. ® CE, a respeito, nosso Do julgamento conforme o estado do processo, 3. ed., $0 Paulo, Saraiva, 1988, p. 3. Reaimente, por mais que os processualistas, em todo o universo, ao versar a con- cepeio cameluttiana de lide & pretenséo, tenham tentado modificé-la, ela sempre permaneceu intangfvel na sua parte fulcral. o% 4 t S 36 TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL Alls, o proprio CARN! ELUTTI° velo a reconhecero erro por ele come- tido, ao determinar, como contetido da agao de natureza condenatoria, de titularidade do Ministério Publico, a pretensdo penal, dita pretensdo puniti- va; aduzindo, verbis: ..Esta primeira observagae ...induz-me acorrigir um erro, no quai eu préprio havia caldo, ainda depois de jaterafirmado o. carater voluntario do processo penal; uma afirmagao da qua! em principio eu no lograra tirar todas as conseqiiéncias. Ora 0 erro consistiu em eu ter posto, como con- tetido da demanda do Ministério Puiblico, a pretensdo, penal... Oconceito de pretensdo, téo diversamente entendido, havia sido por mim detinido, depois de algumas vacilagdes, como exigéncia da satisfagao de um interesse prdprio perante um interesse atheio; como tal, apretensao éum elemente da lide. E no primeiro intento de estudo de processo penal adaptel, a este, tal conceito, definindo a pretensdo penalcomo a exigéncia da sujei¢do de alguém a uma pena. Masisto valeu como um erro por varias razdes: em primeiro lugar, porque uma ‘exigéncia’ sé se coloca face a ou- trem que a deva satisfazer, enquanto o Ministério Publico, que esta investi- dono magistério punitivo, naotem motivo nem possibilidade de exigiroseu exercicio, de alguma outra pessoa, e menos ainda do imputado; em segun- do lugar porque, admitindo-se mesmo que 0 castigo do culpado satisiaz um interesse da sociedade, personificada no Estado, tal satisfagdo nao estda cargo do imputade, o qual, até pelo contrario, enquanto culpado tem um interesse, soliddrio com o Estado, em ser castigado”. Acrescendo mais ~ permitimo-nos complementat de vez, e ainda com © renomado mestre peninsular ~, que o autor da agéo penal condenatéria nao efetiva nenhuma exigéncia, em face de quem quer que seja (nem an- tes, nem quando da propositura e no desenrolar do respectivo proceso), mas, apenas, requer a imposigo de sangao penal ao processado; por certo que os conceitos de pretensdo ‘punitiva, ou, ainda, de pretensdo executoria, niio se adequam ao processo penal, sendo-lhe de todo estranhas. Nesse mesmo sentido, outrossim, tivemos a oportunidade de deixar assentado, a par do expendido no derradeiro pardgrafo, e completando-o, que “a execugao penal é inafastdvel, dadas as regras que the s&o inerentes, 6 FRANCESCO CARNELUTTI, Lezioni sul processo penale, Roma, Ateneo, 1946, vol. 1, p. 129 e 130; e Principios det proceso penal, trad. castelhana de Santiago Sent(s Melendo, Buenos Aires: Ejea, 1971, p. 94-95. A tradugo constante do texto € de FERNANDO LUSO SOARES, 0 proceso penal como jurisdigéo voluntdria, cit., p. 75-16. ©” Embora exagerada a proposigfo nessa sua parte final (até porque raramente, na pritica, o envolvido na persecutio criminis admite a imputacto...), contém ela a exceléncia do reconhecimento (também raro, sarissimo) de erro precedentemen- te cometido. CONCEITO DE JURISDIGAO. 37 da inevitabilidade, da necessariedade e da obrigatoriedade”; e, ainda, que, “enquanto no processo extrapenal, especialmente 0 civil, a agdo judicid- ria somente se desenrola & instincia de uma das partes da relacdo juridica tornada litigiosa (agdo da parte — autor; 4 qual corresponde a reagdo da outra — réu), no penal, pode ela acontecer espontaneamente, procedendo o 6rgao jurisdicional ex officio (e.g., no processo de execucao penal, sempre por ele iniciado, sem solicitagiio de quem quer que seja)”."? Ante o expendido, por certo que nao constituira demasia apontar, tam- bém com o devido respeito, o equivoco contido nas formulagées de autori- zados autores brasileiros, insistindo na proposigado de um s6 contexto pro- cessuai, nos ambitos civil e penal, dada a identidade ou semelhanga de alguns institutos, e, conseqtientemente, na existéncia de lide penal, ainda que sui generis.® Nao resistem elas, com efeito, a mais perfunctéria andlise, sobretudo quando confrontadas com as dos jurisperitos precedentemente citados, cujos magistérios rebatem superiormente, por antecipacao, os argumen- tos por eles desenvolvidos. 1.5 Caracteres do processo penal Também por isso, alids, reafirmamos nossa convicgdo acerca da inad- missibilidade do traslado do conceito carneluttiano de lide para o proces- so penal. Como anota, na mesma linha de raciocfnio, FERNANDO LUSO SO- ARES, nao ha, no processo penal, “pretensdo alguma — nem, portanto, 0 réu tem direito de resistir a essa pretensa pretensio”. Tanto que, em segui- da adita, a ago penal, “efectivamente, é 6 um ius ut procedatur”. E, com efeito, deve ter-se na devida conta — na expressio, jd agora, de FRANCISCO RAMOS MENDEZ,® por ele também citado -, que a finalidade “da jurisdigio penal é a de concretizar o fato delituoso, e © V, nosso Consideragées acerca da inadmissibilidade de uma teoria geral do pro- cesso, Direito criminal, Belo Horizonte, Del Rey, 2001, p. 98. © Como assere, ¢.g., FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, Manuat de proceso penal, 3. ed., Sio Paulo, Saraiva, 2001, p. 7-8; e afiangam, dentre ou- tros, SERGIO LUIZ DE SOUZA ARAUIO, Teoria geral do processo penal, cit. p. 35 e ss.; e MARCOS AFONSO BORGES, A agiio ¢ a reaciio no processo, Re- vista Juridica 284(2001):26 e ss., Porto Alegre. 9) FERNANDO LUSO SOARES, @ processo penal como jurisdigao voluntaria, cit., p. 57-58. © FRANCISCO RAMOS MENDEZ, Derecho y proceso, Barcelona, Bosch, 1978, p.3il. 38 ‘TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL nao a de satisfazer um interesse de terceiras entidades, distintas do is cuius re agitur”. Conseqiientemente, nao h4 como cogitar, no processo penal, de par- tes sendo em sentido processual, dado o fato de tornar-se necessaria a as- sungdo de forma acusatéria para, em regime de inafastdvel atuagdo con- traditoria dos sujeitos parciais, apurar-se a verdade material, ou atingi- vel: “,.. inobstante se apresente necessariamente inquisitive 0 processo penal, na segunda fase da persecutio criminis, correspondente & da instru- ¢ao criminal, ou, mais especificamente, da agdo penal, ele se realiza sob a forma acusatéria, assemelhando-se a um processo de partes... Verifica- se, dessarte, que o processo penal moderno delineia-se inquisitério, subs- tancialmente, na sua essencialidade; ao tempo em que é, formalmente, no tocante ao procedimento, acusatério.® Alias, isso significa que 0 contraditdrio (real e indisponivel) se faz inerente ao processo penal; “indeclindvel injungao legal” a defesa técnica do acusado, nada, nem mesmo a sua auséncia,” “exclui a garantia consti- tucional da contrariedade no processo”. A efetivagiio dessa defesa ha de ser continua ¢ contraditéria A acusagio, de sorte a atender as “exigéncias comunitérias inscritas no Estado de direito”, & “esséncia do Direito como tarefa do homem”, e “ao espfrito do Processo, como ‘com-participagao’ de todos os interessados na criagHo da decisio”.* Por derradeiro, diferentemente do que acontece no processo extrapenal (particularmente, no civil) de caréter contencioso, a exigéncia de irrevoga- bilidade do ato decisério de mértito nao se faz absoluta no processo penal. Embora atrelando-se aos procedimentos da denominada jurisdigao voluntaria, precisa é a anotag4o, nesse sentido, de FERNANDO LUSO SOARES, asserindo que 0 “processo contencioso conduz ao caso julga- do-isto é, a uma situago que tem, relativamente a lide, uma eficdcia su- perior (porque concreta) a da prépria lel. O caso julgado (material) é indis- «9 Cf., uma vez mais, nosso Indispensabilidade de contraditério em procedimento recursal, cit., p. 208-209; com lastroem JULIO B. J. MAIER, La investigacion penal preparatoria del Ministerio Piblico, Buenos Aires, Lerner, 1975, p. 13 ess. © Auséncia (situagdio do acusado que, tendo comparecido, abandona o proceso, cf. art. 367 do Cédigo de Processo Penal, com a redagiio dada pela Lei 9.271, de 17.04.1996), certamente; e no, como muitos equivocadamente alvitram, reve- lia, posto que inexistente em processo penal. Cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito processual penal, Coimbra, Ed. Coimbra, 1974, vol. 1, p. 158. © FERNANDO LUSO SOARES, @ processo penal como jurisdigéo voluntdria, cit, p. 81. os) CONCEITO Dé JURISDICAO. 39 pensdvel para quea lide se diga composta’.Jéna jurisdigdopenal—aduzimos ~, como logo mais sera evidenciado, somente ha lugar para a coisa julgada materialquando 0 julgamento favoravel ao envoivido na persecutiocriminis for de meritis ou de extingdo da punibilidade. No mais, tem-se apenasa coisa julgada formal. Como bem intuiu, também a esse respeito, CARNELUTTI,” “el pro- blema de la revocabilidad de la autorizacién y, por tanto, de su modificabilidad, se plantea en cuanto al proceso penal en los mismos tér- minos que para las otras formas de proceso voluntario civil. Respecto de esto, un limite para la revocacién puede ser exigido por la conveniencia de garantizar Ja estabilidad de situaciones juridicas, constituidas como consecuencia de la autorizacién concedida. Se trata de saber se una conyeniencia semejante se presenta también, y cuando se presenta, en orden al proceso penal; y, se entiende, al proceso penal puro, liberado de toda contaminacién con el proceso civil contencioso”. Com efeito, sobre nao se dever confundir (até porque os respectivos conceitos sio, A evidéncia, distintos) contraditoriedade com a contenciosidade -- que, embora “caminhem juntas, com freqiiéncia, no desenrolar do processo, nao significa que sejam insepardveis”! —, hd sen- tengas penais, de natureza condenatéria, que transitam erm julgado apenas formalmente, podendo ser revogadas em qualquer tempo e em variegadas circunstancias.” Observa, a propésito, o mesmo CARNELUTTI® que o processo pe- nal de conhecimento (certamente o de cardter condenatério —, permitimo- nos acrescentar) se apresenta, a rigor, como introdugdo ao processo éxe- cutivo: quando o juiz absolve o acusado, mais do que afirmar que 0 pro- cesso nao deve prosseguir, esté reconhecendo que ele nao deve comegar; e quando o condena dispée, justamente, sobre o seu prosseguimento.™ ® FRANCESCO CARNELUTTI, Principios del proceso penal, cit., p. 277. 0 Até porque a contenciosidade ostenta “como caracteristica especial e diferenciadora, um valor de que carece” a contraditoriedade, cf. NICETO ALCALA-ZAMORA Y CASTILLO, indole dela jurisdiccién voluntaria, nas obras supracitadas, respectivamente as p. 16 © 126. Mediante acolhimento de habeas corpus ou de pleito de revisio criminal, cer- tamente. FRANCESCO CARNELUTTI, Contro il giudicato penale, Rivista di Dirittto Processuale, cit., VI(1951-1):293. Determinada, destarte, a imposigio da coagio estatal ao condenado, pela senten- ga de acolhimento da acusagio, tinica forma de liberd-la, como enfatiza JOA- QUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, A “liberdade juridica” no direito e no proceso, cit., p. 297-298. co g g 40 ‘TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL, Ora -— continua 0 saudoso jurisperito idealizador do conceito de lide --, isso significa que o ato decisério penal, “seja de prosseguimento do feito, seja de condenagio, ostenta natureza puramente processual”. Daf por que, em matéria penal, seria preferfvel falar em preclusdo, em vez de em coisa julgada, tal como, ainda que vagamente, intuido por penalistas que, “para explicar a autorictas iudicati, recorrem, preferencialmente, ao ne bis in idem”. Dentre esses, é de ser lembrado, a tal propdsito, o difundido magisté- rio de VINCENZO MANZINI,™ segundo 0 qual a regra “ne bis in idem (ou bis de eadem re ne sit actio) representa um dos efeitos inerentes a forca preclusiva da autoridade da coisa julgada; efeito que, alids, nao é, necess4- ria e exclusivamente, préprio da sentenga passada em julgado”. Tem-se, contudo, na realidade do processo penal (que os menciona- dos mestres, nesse ponto, sequer imaginaram...), a verificagaio de duas si- tuagdes bem distintas, em relagiio a coisa julgada: quando se tratar de sen- tenca absolutéria, ou de exting&o da punibilidade, por jamais poder ser modificado © seu contetido,” com a preclusio dos prazos para recursos forma-se a coisa julgada de autoridade absoluta, porém, se a sentenga for condenatéria ~ mutdvel, como visto,” por natureza e destinagao, em qual- quer tempo e em diversas circunstAnciass —, ver-se- tutelada, apenas, pela coisa julgada de natureza relativa. Essa diversificagaio — insita, ta0-somente, ao processo penal -, con- substancia-se, por certo, numa peculiaridade tal, que conota e distingue a coisa julgada como bivalente, e, conseqiientemente, incompardvel com a formada em qualquer outra espécie procedimental extrapenal; vale dizer, sui generis, propria da jurisdigdo penal. L6 Jurisdicionalizagao da pena Tecidas essas consideragdes, que nos pareceram imprescindfveis, ¢ partindo delas, devemos centrar 0 estudo em desenvolvimento, j4 agora, na tematica objetivada, qual seja a jurisdigéo penal. © VINCENZO MANZINI, Trattato di diritto processuale penale italiano, cit., 1972, vol. IV, p. 586; assim no original: “... ne bis in idem (0 bis de eadem re ne sit actio), rappresenti uno degli effetti inerenti alla forza preclusiva dell’ autorith della cosa giudicata; effetto che peraltro non & necessariamente ed esclusivamente proprio delle sentenze passate in giudicato”. (8 Sob pena, af sim, de operar-se um bis in idem. © Y. nota 92, supra. CONCEITO DE JURISDICAO. AL Ao fazé-lo, procurando guardar a coeréncia inerente a lavor técnico- cientffico, ao qual dedicada grande parte de atuagao universitaria no ulti- mo quartel do sécuio XX, adstringir-nos-emos a pesquisa e conclusdes ao longo do tempo estabelecidas — sob nossa reg@ncia e supervistio, perma- nente e proficua assisténcia do Prof. SERGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO, e co-participagao de alunos matriculados na disciplina Direi- to Processual Penal (médulos III ¢ IV), do Curso de Pés-Graduagio da Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo, durante sucessivos periodos, a partir de 1981 ~, e que, inclusive, se fizeram documentadas, em linha de principio, na monografia intitulada Principio e regras orienta- doras do nove processo penal brasileiro.* Como, ent&o, e em parte, salientamos, e ora reiteramos, na Parte Ter- ceira, infra, 0 processo penal apresenta-se, na realidade, como instrumen- to técnico, piiblico, politico e ético, do exercicio da jurisdigao. E, no ambito da justiga criminal, é concebido, em regra, para a viabilizagaio de pronunciamento acerca de fato tido como relevante para 0 Direito Penal, apurdvel na sua materialidade e respectiva pratica, median- te regulamentada investigacdo e paritdria contraditoriedade entre 6rgio estatal e o indigitado autor;” vale dizer, para a aplicagdo de norma jurfdica penal material a um caso concreto. Dai o seu carater, a par de ptblico, eminentemente judicidrio. Até porque, como anotam GASTON STEFANI ¢ GEORGES LEVASSEUR,'” © Concretizada, como se frisou, em co-autoria de ROGERIO LAURIA TUCCI, SERGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO, AFONSO CELSO NOGUEIRA BRAS, ALCIDES LEOPOLDO E SILVA JUNIOR, ANTONIO JOSE MATTOS NETO, ANTONIO S. PACHECO MERCIER, CARLOS ALBERTO MARCHIDE QUEIROS, CARLOS LUIZ BIANCO, CLAUDIO BROCCHETTO FILHO, CLAUDIONOR MENDONCA DOS SANTOS, DAVID TEIXEIRA AZEVEDO, ELIANA LEONEL FERREIRA, JOAO BATISTA RODRIGUES DE ANDRA- DE, JOSE CARLOS G, XAVIER DE AQUINO, JOSE FRANCISCO L. DE MIRANDA LEAO, JOSE HENRIQUE PIERANGELL JOSE LUIZ DE OLIVEI- RA, JURANDYR EDUARDO DE BRITTO, LUIZ FLAVIO GOMES, MARIA BERNADETE SPIGARIEL, MILTON DA SILVA GIMENEZ, MOZAR COSTA DE OLIVEIRA, NILVANIR AMADO PEREIRA, OSCARLINO MOELLER, RUTH KICIS TORRENTS PEREIRA e VANDERLEY APARECIDO BORGES; 2 com a cooperagio de varios outros alunos. Veja-se bem: contraditoriedade real, indisponfvel ou indispositiva; ¢ efetivavel, ainda, consoante necessétia disposigao legal vigente, entre ofendido, ou seu re~ presentante legal, ¢ o ofensor. «160 GASTON STEFANI e GEORGES LEVASSEUR, Droit pénal général et procedure penale, 9. ed., Paris, Dalloz, 1975, t. Il, p. 1; e assim no original: “La réaction de ta société n’ est pas instinctive, arbitraire et avengle; elle est réfléchie, réglementée, essentiellément judiciaire”. g 42 TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL “a reacdo da sociedade nao ¢ instintiva, arbitraria ¢ irrefletida; ela é pon- derada, regulamentada, essencialmente judicidria”. Conseqitentemente, desponta a regra da inevitabilidade do processo penal, segundo a qual a toda pratica criminosa!™ “deve seguir a agdo” judi- cidria penal correspondente;'” e, com ela, 0 coroldrio da necessidade do processo penal, dada a inadmissibilidade de irrogagao da pena, ou de me- dida de seguranca, sem que 0 seja no bojo deste~nulla poenasine iudicio. Nesse particular, alias, e veramente, nao constituird demasia a reafirmagio™ de que a imposigao de qualquer dessas espécies de san¢io s6 pode efetivar-se processualmente, ou seja, por meio de processo no qual tenha lugar a ago judicidria — atuagio de drgao do Poder Judiciario, regu- larmente investido no exercicio da jurisdig&o penal: “... Se nao existe cri- me sem prévia cominacao legal, também nao hd pena sem sentenga con- denatéria. O nullun crimen sine lege e 0 nulla poena sine judicio sao prin- cfpios que se completam nos Estados onde impera o direito. O jus puniendi, portanto, é um direito de coagao indireta, podendo a norma penal ser apli- cada apenas jurisdicionalmente e através do processo”.!* Apresenta-se, dessa maneira, a jurisdicionalizagao da pena como uma verdadeira garantia da pessoa tida como infratora da norma penal, pois, inadmitida sua imposic&o imediata, substitui-se “o impéric da violéncia privada pelo regime do Direito”. E essa, como veementiza JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA," apés o derradeiro destaque, “é tarefa judicidria”; tarefa que 0 Qu contravencional, em pafses cuja legislagio, como a brasileira, contemple, tam- bém, as contravengées penais. 0 V,, a respeito, ALBERTO DOMENICO TOLOMEL, / principi fondamentali del processo penale, Padua, Cedam, 1931, p. 79. 0 A ser repristinada, outrossim, mais adiante, no item 11.2, infra. 09 CF. nosso Persecugao penal: b) Fase da instruco criminal — III — Outros aspectos relevantes, Persecugo penal, prisdo e liberdade, cit., p. 101; com supedaneo no magistério de JOSE FREDERICO MARQUES, Elementos de direito processual penal, cit., vol. I, p. 7 (por sua vez, lastreado nos de VINCENZO MANZINI, Trattato di diritto processuale penale italiano, cit., vol. I, p. 83; ALBERTO DOMENICO TOLOMEI, / principi fondamentali del processo penale, cit., p. 80- 81; e JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, Agdo penal (andlises e confrontos), Sao Paulo, Saraiva, 1938, p. 20-21). V., ainda, no mesmo sentido, GIOVANNI LEONE, Manuale di diritto processuale penale, 8. ed., Napoles, Jovene, 1971, p. 26. ue) Cf, JOSE FREDERICO MARQUES, Elementos de direito processual penal, cit., vol. I, p. 7-8. « JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, Processo penal, agdo e jurisdi- ¢ao, cit., p. 1. CONCEITO DE JURISDICAO. 43 se traduz — permitimo-nos aduzir — em auténtica garantia (garantia ju- risdicional, constitucionalmente assegurada a todos os membros da co- munhfo social), universalmente concebida,'” de estabelecer-se a justa aplicagéo do mandamento sancionador em lei penal prescrito ao caso concreto submetido 4 cognigdo de érgéo competente do Poder Judicidrio. Ora, tal finalidade, para ser atingida, exige, a evidéncia, “um prévio e regular julgamento”. 17 Peculiaridades da jurisdicée penal Tida a jurisdigGo como poder-dever de realizagSo de justiga estatal, mediante declaracio, satisfagéo ou assecuragao do direito declarado, por Orgios estatais, integrantes do Poder Judiciario,'* afigura-se, outrossim, relevante 8 complementagdo do estudo ora desenvolvido a verificagao das peculiaridades da jurisdigéo penal. Em primeiro lugar, é de ter-se presente, obviamente, que esta — a ju- risdigdo penal — consubstancia-se na agao judicidria, isto é, na atuagio do Estado, por intermédio de categorizados e especializados funcionarios, agentes do Poder Judiciario (jufzes e tribunais), com a finalidade de apli- cagdo das nermas juridicas penais materiais positivas. a um caso con- creio, levado & sua cognigao por uma das formas em lei previstas. Nesse enfoque, deve ser afastada, no nosso entender, a improprieda- de com que alguns dos nossos mais acatados processtalistas atém, como o “poder de dizer o direito": assim, e, e.g., EDGARD MAGALHAES: NORONHA'"® (para quem “Jurisdico tout courté o poder de dizer o direito. «on Y,, e.g., GIUSEPPE SABATINI, Principii costituzionali del processo penale, Na- poles, Jovens, 1976, p. 20; reportando-se, expressamente, a concepgiio de VINCENZO MANZINI, “especificando que o Direito Penal é um direito de coer- io indireta porque nfo permite a imediata aplicagdio da san¢io, reclamando, pelo contririo, a intervencio da garantia jurisdicional com a finalidade de estabelecer que a sangdo seja justamente aplicada no caso concrete, isto é, exigindo um prévio ¢ regular jullgamento” (como por nds repetido no texto); € assim no original: “... specificando che il diritto penale & un diritto di coercizione indiretta perché non consente la immediata applicazione della sanzione, richiedendo, invece, lo intervento della garanzia giurisdizionale al fine de stabilire se la sanzione sia giustamente applicabite nel caso concreto, esigendocio® un previo regolare giudizio”. oo) Cf item 1.1, supra. (le Ou, em linguagem mais técnica, Direito Penal normativo. 1 BDGARD MAGALHAES NORONHA, Jurisdigiio penal (nogdes gerais), Enci- clopédia Saraiva de Direito, cit., 47(1981):133; com destaques, em itélico, nossos. 44 ‘TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL A prépria palavra, de jus, juris e dico, is, dixi, dictum, dicere, i.é, direitoe dizer, da sua nogao”); ¢ HELIO TORNAGHI"" (ao asserir que: “Se existe duivida sobre que é direito fazer em determinado caso, alguém tem de dizé-lo, para acabar com a hesitagao, assegurando, ao mesmo tempo, os legitimos interesses de particulares e a tranqiiilidade geral”"). Com efeito, niio havendo lugar, no 4mbito da jurisdigdo penal, para qualquer criatividade do direito, restringem-se os drgaos da Justiga Crimi- nal a aplicagao do ius positum, até porque o fato aprecidvel em processo penal, para ser ifpico, e, portanto, relevante, deve enquadrar-se, com todos os respectivos elementos, em modelo legal.'? Nao ha falar, por isso, como fazem muitos e renomados autores, inciusi- ‘ve e especialmente brasileiros, na esteira do mesmo equivocado posiciona- mentode JOSE FREDERICO MARQUES," que a jurisdigaopenaldeve ser compreendida como poder, fungiio e atividade cuja destinagao 6 a de aplica- 40d direito objetivoa uma pretensdo deduzid2 em juizo:"Najurisdigao penal, aplica-se 0 direito penal objetivo em conexé&o com uma pretensao punitiva ou ‘com uma pretensao baseada no direito de liberdade penal”. Fosse assim, poderia a sentenga penal condenatéria lastrear-se num “principio gera! de direito”, ou num uso ou costume. Por outro lado, conferido a tais 6rgaos esse poder de aplicagao de pre- ceito do direito penal material contemplative do caso levado a sua cognicao, por certo que essa atribuigao consiste, também, num dever — dever funcio- nal, posto que de funciondrio priblico. Vale dizer, configura um poder-dever de processar é julgar as causas criminais. Alids, nesse particular é de ter-se na devida conta que esse poder-de- ver nao se delineia — como, primo ictu oculi, pretende fazer crer a maioria dos analistas do tema -, dirigido, apenas, & apuragdo da “violagio ou peri- go de violagdo de um direito piiblico ou privado, para declaragao da von- tace da lei ¢ aplicagao coativa das conseqiiéncias cominadas para a infra- ao ou das medidas destinadas a preveni-las”; ou seja, concedido aos juizes e tribunais para aplicar “a lei, com o fim de sujeitar o réu a sangdo penal, absolvé-lo ou declarar extinta a punibilidade”.""4 () HELIO TORNAGHI, dnstituigdes de processo penal, 2. ed., Sio Paulo, Saraiva, 1977, vol. 1, p. 215; com destaques, em itdlico, também nossos. 2) Y., a respeito, nosso Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro, cit., p. LI. 1 JOSE FREDERICO MARQUES, Elementos de direito processual penal, cit., vol. Lp. 196. «1 Cf, uma vez mais, EDGARD MAGALHAES NORONHA, Surisdigdo penal (nogées gerais), cit., p. 133-134; colacionando o ensinamento de ALFREDO CONCEITO DE JURISDICAO 45 Muito pelo contrario, como se faz notério, e nao obstante o maior numero de causas penais se desenrole no de conhecimento de carater con- denatério, em que visada a imposigao da sang%o em lei prescrita ao infra- tor da respectiva norma, 0 processo penal abrange, também, as ages que tém como escopo o reconhecimento, e conseqiiente afirmagio, da preva- léncia-do ius libertatis'* do membro da comunidade envolvido, de algum modo, na persecutio criminis.'"6 Finalmente, e por via de conseqiiéncia, como a tal poder-dever cor- responde “a fungdo de tutela juridica, que, no processo, aparece em exer- cicio, como atividade”,!” representam eles — 0 poder-dever jurisdicional de processar ¢ julgar as causas penais, a fungdo de administrar a justiga criminal, ¢ a atividade em que o exercicio desta se efetiva, no Ambito do processo penal --, num sélido e inquebrantével conjunto, o préprio conteu- do da jurisdigdo penal.'* Como tivemos ja a oportunidade de deixar assentado, em precedente escrito,'*? nesse contetido se integram, necessaria e“efetivamente, nao so aqueles poderes ¢ deveres decorrentes da atividade jurisdicional dos 6r- gaos do Poder Judiciario stricto sensuconcebida, isto é, relacionados com a notioe o iudicium (iurisdictio = notio + iudicium), correspondentes ao po- der-dever de cogni¢ao, instrugéio e decisao; mas, ainda, os referidos & co- eredo (coertitio), ou coacao estatal, sobrelevada no imperium, cujo campo apropriado abrange, obviamenie, o processo penal”. DE MARSICO, Lezioni di diritto processuale penale, 3. ed., Napoles, Jovene, 1952, p. 28. 1) Sobre o ius puniendi, obviamente. © Como, por exemplo, as levadas ao conhecimento dos érgiios jurisdicionais me- diante ago de habeas corpus ou de revisdo criminal. “1D Cf, CELSO NEVES, Jurisdicdo ¢ execugio, cit., p. 313. «19 V, nosso Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro, cit., p. 137- 138; com apoio em MARCO TULLIO ZANZUCCHI, Diritto processuale civile, cit., vol. I, p. 15; GIUSEPPE CHIOVENDA, Principii di diritto processuale civile, cit., p. 379-386; e JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, A “liberdade juridica” no direito e no processo, cit., p. 291, > Cf, ainda, nosso Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro, cit, p. 137-138; aduzindo o poder-dever de documentagio de todo 0 ocorride durante 0 processamento da causa penal. V., também, no mesmo sentido, JAVIER ARTURO TORRES VERA, Jurisdiecién y cautela, Santiago do Chile, Editorial Juridica de Chile, 1965, p. 11-12. 46 ‘TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL, 1.8 Conceituacio de jurisdig&o penal Isso tudo, devida e necessariamente, expendido, faz-se mister, com- pletando, ja agora, o estudo desenvolvido, estabelecer 0 conceito de juris- digdo penal. Verifica-se, de pronto ~e nao pode haver margem para qualquer diivi- da, a esse respeito ~, que ela se apresenta como uma espécie da jurisdigdo, genericamente concebida, na forma supra-explicitada,!° como poder-de- ver de realizagdo de justiga estatal, por 6rgdos especializados do Estado. Assim também, segundo nosso j4 manifestado entendimento, que, apesar de estruturalmente identificadas, evidente mostra-se a diversidade entre a jurisdigdo penal e a extrapenal, especialmente a jurisdigdo civil, nas suas respectivas essencialidades. Em primeiro lugar, porque € de todo inaceitével a concepcdo dos especialistas que, como FERNANDO LUSO SOARES,"! asserem haver m “tinico interesse em jogo no Processo Penal” — 0 do acusado; e, por via de conseqiiéncia, este conteria “um contraste de opinides a respeito de um mesmo interesse ~e que € 0 interesse tinico e exclusivo do imputado”. Vale dizer, e em suma, seria o penal um processo da denominada jurisdigdo voluntdria, Como enfatiza CALAMANDRE!,'™ em trecho supratranscrito,'? destina-se 0 processo penal, muito pelo contrdrio, 4 resolugdo de impor- tante conflito de interesses piblicos, com 0 escopo de remover eventual desacordo, entre acusador e acusado (rectius: entre o Estado e o membro. da comunidade envolvido em'persecugao penal), a respeito da existéncia de infragao penal, da sua autoria, e da medida da correspondente sangao, em lei prescrita. Aludido conflito ~ permitimo-nos aditar — abrange dois interesses contrastantes (porém, justapostos), quais sejam, de um lado, o do Estado, na puni¢ao do culpado; e, de outro, o da pessoa a quem atribufda a pratica de fato penalmente relevante, na assecuragdo, fundamentalmente estabe- lecida nas legislagdes dos.povos cultos, do direito de liberdade. (2 Trem 1.1, supra. (2) FERNANDO LUSO SOARES, O processo penal como jurisdigéo voluntdria, cit., p. 58660. 2) PIERO CALAMANDRE}, I concette di “lite” nel pensiero di Francesco Carnelutti, cit, p. 212. 2) 'V, item 1.4, supra, CC CONCEITO DE JURISDICAO 47 N&o podemos deixar de anotar, neste passo, os graves equivocos co- metidos por autores, como JOAO GUALBERTO GARCEZ RAMOS, '™ que nao dever ter lido ou, se leram, nao entenderam nosso declarado posicio- namento, que de hd muito se consolidou, na monografia intitulada Jurisdi- 40, aco e processo penal, editada pelo Cejup — Centro de Estudos Juridi- cos do Para, no ano de 1984. Com efeito, cometendo lamentavel erro histérico, e demonstrando des- conhecimento dos precedentes doutrinarlos, ao expressarem que arecusa & denominada teoria geral do processo teve a sua primeira atitude capita- neada pelo ilustre processualista paranaense JACINTHO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, na monografiaintitulada A lide e ocontetido do pro- cesso penal, vindaalume em 1989;fazem, na realidade, porignorar a nos- sa caminhada, nesse sentido, que teve inicio ja ha mais de vinte anos, no livro Persecugao penal, prisdo e liberdade,'*5 e prosseguiu, destacadamente, na monogratia escrita em co-autoria com o Prof. SERGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO e alunos matriaulados na disciptina Direito Processual Penal do Curso de Pés-Graduagaio da Faculdade de Direito da Universida- de de S&o Paulo, Principio e regras orientadoras do novo processo penal brasileiro."*° E, mais lamentavelmente, outrassim, incorrendo em grave erro doutri- nario, asserem, e.g., que o concelte carneluttiano de lide é por nés aceito, ainda que “de forma menos declarada” da propagada pelo pranteado jurisconsulto paulista JOSE FREDERICO MARQUES, ao definirmos “o contetido do processo penal como um ‘contlito de interesses (punitivoe de liberdade) de alta relevancia social”. Revela-se al, realmente, e sem minima ativida, Inaceitavel confuséo conceptual entre confiito de interessese lide, sem a necessaria percepgao de que aquele pode ocorrer, sem que haja litigio..."” E, por viade conseqi- €ncia, o desconhecimento, também, da antiga proposta de CALAMANDREI acerca da irrelevancia do conceite de lide no processo penal, que endossa- mos, cultivamos e, j4, como visto, hd longo tempo, complementamos e te- mos propagado. «2 JOAO GUALBERTO GARCEZ RAMOS, A tutela de urgéncia no proceso, penal brasileiro, Belo Horizonte, Del Rey, 1998, Nota do Autor, seqiiente ao Prefacio, «25 Editado em Sao Paulo, pela Saraiva, no ano de 1980; e contendo, as p. 12 ¢ ss., ensaio titulndo Lide penal: proposiggo inaceitdvel. (29 Elaborada na forma delineada na nota 98, supra, ¢ editada pela Forense, Rio de Janeiro, em 1986. (2 Alias, esse equivoco comete, também, 0 indicado JACINTHO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, A lide e 0 contetido do processo penal, Curitiba, Jurua, 1989, p. 126-127, ao asserir, na conclusio da andlise de nosso entendimento, que “o conflito de interesses ptiblicos de que fafa TUCCI, ainda amparado em CALAMANDREL, € uma lide, assim chamada mais tarde. B a lide penal”. Mais adiante, em sede oportuna, procuraremos evidenciar o desacerto dessa precipita- da formulagio. 48 ‘TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL Pena, enfim, que um ieitor menos avisado possa deixar-se induzir por distorgdes como essas, que, com certeza, longe de ostentarem aiguma uti- lidade ou proveito, prestam-se, apenas, para tisnara verdadelrahistériae a mais auténtica orientag&o do moderno processo penal brasileiro... Ademais, retomando 0 fio da meada, e na aguda observagiio de JOSE FREDERICO MARQUES" (que, com a inafastavel restrig&o & exagera- da nfase contida no tépico a seguir transcrito, endossamos), estender-se “ao processo penal o ambito da jurisdig4o voluntaria, de forma a absorver- se nesta toda a atividade jurisdicional do juiz penal, é hipertrofia absurda, e sem fundamento, do conceito de jurisdigdo voluntaria. Além de estar em choque com a realidade histérica, pois transforma em administrativa uma atividade estatal que de maneira alguma pode fugir do campo da jurisdi- go, por forga das garantias de liberdade consagradas pelo Estado de Di- reito, essa construgio jurfdica nem mesmo no campo dogmiatico encontra justificativa séria”, Por outro lado, nao se pode deixar de ter presente que 0 processo pe- nal guarda, em qualquer caso — sem exce¢o, portanto -, o cardter de ne- cessidade,'® tanto para alingir o efeito da puni¢&o do culpado como para preservacao do ius libertatis, livrando-se 0 cidadao, quando indevida, da coagao estatal. Nele, como lembra, com propriedade, JOAQUIM CANUTO MEN- DES DE ALMEIDA," procura o Estado, por intermédio de funciondrios especializados, a justa aplicagaio do Direito Penal normativo. E, nem os encarregados desse ministério péblico, cuja atuagao 6 informada, também, pela legalidade; nem os envolvidos na persecutio criminis, dado 0 vigor da regra da inevitabilidade, podem renunciar ao processo, nao se reconhe- cendo, por isso, nenhuma relevancia “as consideragdes subjetivas dos su- jeitos que parecem personificar os dois interesses contrastantes”. Daf a proclamada irrelevdncia processual da lide, no dmbito da juris- digéo penal," & qual se faz, outrossim, alheia a contenciosidade. Com efeito, inocorrente litigio no processo penal, este cede passo, de vez, 4 contraditoriedade, que, como visto, ndo deve ser confundida coma contenciosidade. Notocante & primeira parte do parégrafo anterior, anotavaj4 MANOEL CAVALEIRO DE FERREIRA, na edigio de 1955 de seu difundido Cur- “8 JOSH FREDERICO MARQUES, Ensaio sobre a jurisdigdo voluntéria,cit., p.255. 0) Decorrente, por certo, de sua inevitabilidade. © JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, Principios fundamentais do processo penal, Sao Paulo, RT, 1973, p. 106. «2h Cf, uma vez mais, item 1.4, supra. CONCEITO DE JURISDICAO. 49 so," que, sendo-lhe despicienda a litigiosidade da relagao juridica que constitui seu objeto, o processo penal ostenta, tio-somente, um “conflito de interesses entendido objetivamente, e ndo contraposigdo subjetiva de duas pretensées”.!? Mais recentemente, na edigdo de 1986, essa assergao foi reiterada pelo acatado autor lusitano, que assim se expressa, verbis:"... Imporla sé acentuar, na seqtiéncia do que jé se afirmou, que ndo podem trasladar-se para o processo penal conceitos delineados em fungao do processo civil. Nem a pretensdo das partes, nem o direito de accdéo™ sao 0 objecto do processo penal. O direito de punir pertence a jurisdigaio e nao a uma das partes noprocesso”, E, logo adiante, complementa:“O fim do processo penaléarealizacao dajusti¢a, ultrapassando o eventual fim subjectivo das partes. O fim objectivo doprocesso pena! nao pode ser limitado em geral pela vontade das partes. Odireito penal deve ser aplicado em processo penal coma colaboracdo das partes, mas nao especialmente em fungao das pretensdes que formulam”.*°5 E quanto a outra, deve ser repristinado 0 destaque que fizemos no item 1.5 supra, de nao se satisfazer a jurisdigdo penal, como ocorre em qual- quer das outras espécies, com a simples possibilidade de contraditério, ou seja, com o chamamento do acionado a juizo, pata, se de seu desejo, res- ponder aos termos do pedido formulado pelo autor e acompanhar a trami- tagaio do procedimento até final, quando da formagao da coisa julgada. (3) MANOEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de processo penal, Lisboa, Danibio, 1955, vol. I, p. 28-29; acrescentando que “a efetivagdo do direito de punir acarreta necessariamente a restrig&o dos interesses do arguido”. 3) Conseqiiente, e certamente, a existéncia de partes apenas em sentido processual, como jd esclarecido no item 1,5, supra; embora o acusado ostente, igualmente, a qualificagao de parte em sentido material, como integrante da relagio juridica cuja definigao, e eventuais assecuragiio ou satisfagao, constitui objeto do proces- so penal. OM Cf, ainda, MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de processo penal, cit, vol. f, p. 18-19. (9 Rectius: direito & jurisdigie. (89 Faz por merecer transcrigo, também, o tépico final da p. 148 dessa mesma obra e volume citados, por derradeiro, na nota 132, verbis: “... B, assim, a actuagiio no processo como parte nao implica, por sua natureza, a titularidade de um interesse Juridico proprio; a qualidade de parte no processo no coincide necessariamente com a qualidade de sujeito da relagao jurfdica a dirimir no processo. Este concei- to de parte 6 0 Gnico admissivel em processo penal. O arguido poderd considerar- se, também, como titular do direito de defesa, parte em sentido material. O Mi- nistério Publico s6 serd parte em sentido formal”. AE a Ro 50 TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL Bem ao reverso, reclama o processo penal de cardter condenatério, na segunda fase da persecutio criminis (denominada, entre nés, da agdo penal, ou da instrugGo criminal), 0 contraditério efetivo, real, indisponivel ou indispositivo, a fim de que, perquirida ao extremo a verdade material, ou atingtvel, reste devidamente assegurada a liberdade juridica do acusado. Por outras, ¢ sempre atuais, palavras, o direito deste 4 contraditorie- dade real, assumindo a natureza de indispositivo, dada, precipuamente, a indisponibilidade dos interesses em conjlito, apresenta-se como auténtica expressdo de sua liberdade juridica, tal como antes também buscamos dei- xar assentado, a saber: “... com o conferir-se ao acusado 0 direito a juris- digdo penal, exercida por meio de um processo no qual se the assegura ampla defesa, sobretudo em razio de atividade marcantemente contradi- toria, efetivada por érgio técnico ~, define-se a respectiva defesa como expressGo da liberdade juridica, inerente ao seu status libertatis e, mais especificamente, ao ius libertatis” Acrescente-se que esse apontado direito decorre, em nosso ius positum, de preceituagdes contidas nos incs. LIV e LV do art. 5.° da Carta Magna de nossa Repiblica Federativa (respectivamente: “ninguém sera privado da liberdade ou de seus bens sem 0 devido processo legal”; ¢, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em ge- ral sio assegurados 0 contraditério e ampla defesa, com os meios ¢ recur- sos a ela inerentes”); especificadas no art. 261 do CPP, segundo o qual, verbis: “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, serd processa- do ou julgado sem defensor”. E, por derradeiro, que, irrelevante, como visto, a concepgio de lide, e, correlatamente, inccorrente a contenciosidade, no processo penal; a coisa julgada tutelar do ato decisério de mérito ou de extingdo da punibilidade, nos respectivos autos proferida, somente pode referir-se & causa que cons- titui seu objeto, ou seja, a verificagdo e definigdo de uma relacio juridica de Direito Penal normativo submetida a apreciagio de jufzo ou tribunal criminal. Dois pontos fazem por merecer destaque, a esse propésito: Oprimeiro diz com a necessidade de fixar bem, corretamente, os con tornos da coisa julgada, no processo penal, que se diversificam ante ava- riagdo da natureza juridica do ato decisério por ela tutelado: se final, de absolvigdo do acusado ou de extingdo da punibilidade, torna-se ele perene- mente imutavel; e, se condenatsério, terminativo ou interlocutério, a coisa julgada opera, apenas, formaimente, consistindo no impedimento de as «3 Y, nosso Defesa do acusado ¢ julgamento prévio em nosso novo processo penal, Ciéncia Penal 1(1976-I11):38, Séo Paulo; e Persecugdo penal, prisdo ¢ liberdade, cit., p. 160. CONCEITO DE JURISDICAO 5h partes discutirem e 0 juiz versar novamente sobre as questées decididas, dada a imodificabilidade da sentenga, ou decisdo, como ato processual, ¢ conseqtiente preclusdio ou exaurimento da fungdio de drgao jurisdicional em determinado processo."% Ooutro, a acepgZo de causa, que, reclamando senso ampto, mais abran- gente do que o de ado, pode ser considerado, com PEREIRA E SOUZA," como “a espécie juridica, de que se trata em cada um dos processos”. E isso com a adverténcla de que, na jurisdigdo penal, esse conceito deve corresponder, necessdria e estritamente, ao de caso submetido A cognicz0 de drgao competente da justiga criminal. Esse, alids, 6 0 entendimento manifestado por JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO,” que, entretanto, parece distinguir, despicienda- mente, entre causa e caso penal... Cogita-se, com efeito, no Ambito da jurisdigdo penal, da resolucao de um conflito intersubjetivo de interesses — interesses, sempre, ptiblicos —, retratados, por um lado, na intencdo punitiva do Estado, insita ao ius puniendi, ¢ tendo como pressuposto a prdatica, pelo membro da comunida- de envolvido na persecutio criminis, de ato tido como penalmente rele- vante, ou a concretizagdo do ius puniendi, j4 sobrelevado em processo cognitivo; e, por outro, no direito civico de liberdade do cidadéo.'"' Esses dois interesses, contrastantes na aparéncia e identificados na esséncia (por isso que justapostos), traduzem, na realidade, ¢ inequivoca- mente, o contetido da causa penal, cingido a verificagdo da materialidade de fato tipico, antijuridico e culpdvel (isto é, considerado pela legislagao (38 CE, a respeito do conceito de coisa julgada, nosso Curso de direito processual civil, cit., vol. I, p. 90 € ss.; ao qual queremos acrescentar, j4 agora, que, como visto, a ittevogabilidade do ato decisdrio condenatdrio, em processo penal, nio corresponde a uma exigéncia absoluta, tanto que ele pode ser modificado ou res- cindido futuramente, sem nenhuma limitagio temporal, e, até mesmo, em deter- minadas circunstancias, 4 instancia de outra pessoa que nfo o condenado. 139 JOSE JOAQUIM CABTANO PEREIRA E SOUZA, Primeiras linhas sobre 0 processo civil, acomodadas ao Foro do Brasil até 0 ano de 1877 por Augusto ‘Teixeira de Freitas, Rio de Janeiro, Garnier, 1907, p, 2. V.,no mesmo sentido, embora se referindo a recurso extraordindrio, WASHING- TON DE BARROS MONTEIRO, Do recurso extraordinario, cit., p. 24; e JOSE FREDERICO MARQUES, lnstituigdes de direito processual civil, cit.,3,ed., 1969, vol. IV, p. 255; Manual de direito processual civil, cit., 7. ed., 1985, vol. IIT, p. 179, « JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, A lide e 0 contetido do proces so penal, cit., p. 134 ¢ ss. «80 Cf. ARMANDO LEONE, Giurisdizione penale, Nuovo digesto italiano, Tarim, UTET, 1938, vol. XVI, p. 395. 52 TEORIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL em vigor como ilicito penal), 4 determinagdo da respectiva autoria, ¢ a incidéncia, ou ndo (até mesmo a sua exclusdo), Aquele, da norma penal material incriminadora. Em suma, abstragdo da existéncia de lide, contraditdrio real e indispositivo, ow indispontvel, e coisa julgada sui generis, referida a cau- sa penal objetivada no processo, mostram, & evidéncia, que a jurisdigao penal nfo se identifica, também, com a jurisdig&o dita contenciosa (pr6- pria do processo extrapenal, especialmente do processo civil), Apresenta-se ela, outrossim, no mundo do processo, autonomamente, como, na verdade, é — jurisdi¢do penal ~, propria do Direito Processual Penal, com a sua determinagio conceptual estabelecida a partir de institu- tos que Ihe so especfficos, e, portanto, com peculiaridades que a conotam com o exclusivismo que, posto ser exigivel, se Ihe ha de reconhecer.

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