Vous êtes sur la page 1sur 42
Linguagem e mente Noam Chomsky a aa i | i =a FUNDACAO UNIVERSIDADE DE BRASILIA Reitor Lauro Morhy Noam Chomsky Vice-Reitor Timothy Martin Mulholland EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA Diretor Linguagem e mente Alexandre Lima | Pensamentos atuais sobre antigos proble- CONSELHO EDITORIAL oe Presidente Emanuel Araijo Alexandre Lima Alvaro Tamayo — Dall’Igna Rodrigues Tradugdo jourimar Nunes de Moura Liicia Enbato Emanuel Aratjo Euridice Carvalho de Sardinha Ferro Lucio Benedito Reno Salomon Marcel Auguste Dardenne Revisao ee Sylvia Ficher Mark Ridd Vilma de Mendonga Figueiredo Volnei Garrafa tn wy “ KR i EDITORA NA | UnB Direitos exclusivos para esta edigao: EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA SCS Q. 02 Bloco C N® 78 Ed. OK 2° andar 70300-500 Brasilia — DF Fax: (061) 225-5611 Copyright © 1998 by Editora Universidade de Brasilia Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicagéo podera ser armaze- nada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizagao por escrito da Editora. Impresso no Brasil SupERVISAO EDITORIAL AIRTON LUGARINHO PREPARACAO DE ORIGINAIS E REVISAO WILMA GONCALVES ROSAS SALTARELLI EDITORAGAO ELETRONICA RAIMUNDA DIAS Capa PATRICIA CAMPOS DE SOUZA SUPERVISAO GRAFICA ELMANO RODRIGUES PINHEIRO ISBN: 85-230-0508-0 Ficha catalografica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia Chomsky, Noam C518 Linguagem e mente : pensamentos atuais sobre antigos pro- blemas / Noam Chomsky, tradugdo de Liicia Lobato; revisao de Mark Ridd. — Brasilia : Editora Universidade de Brasilia, 1998. 83 p. Tradugao de : Language and mind. 1. Lingiifstica. I. Lobato, Licia. II. Ridd, Mark. III. Titulo. CDU 800.1 Sumario Prefacio, 7 Primeira Palestra, 17 Segunda Palestra, 39 DiscussGes, 61 Referéncias, 77 Indice Tematico, 79 Prefacio A Universidade de Brasilia teve a honra de ser, nos dias 25 e 26 de novembro de 1996, anfitria do lingiiista americano Noam Chomsky, professor do Departamento de Lingiiistica e Filosofia do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e um dos mais res- peitados pensadores da atualidade. A sua vinda a Brasilia se inte- grou num circuito que fez pela América do Sul, acompanhado de sua mulher Garol Chomsky, quando visitou pela primeira vez a Argentina, Chile e Brasil, tendo o trecho brasileiro incluido Rio de Janeiro, Sao Paulo, Brasilia, Recife, Maceié e Belém e sido patro- cinado pelo CNPq. Essa visita a Brasilia foi promovida e organi- zada pelo Departamento de Lingiifstica, Linguas Classicas e Vernacula (LIV) do Instituto de Letras (IL) da UnB, com apoio do Cespe/UnB, Editora Universidade de Brasilia ¢ CIP/UnB e colabo- ragao da UFRJ, cujo pedido de ajuda ao CNPq compreendeu passa- gens e didrias relativas a Brasilia, do DNER, que cedeu suas instalag6es para a ultima palestra politica e a noite de autégrafos, e da Embaixada do Canada, que forneceu uma cépia de video do filme Consenso Fabricado (Manufacturing Consent) para projecao interna. O LIV e a Comissao Organizadora do evento agradecem aos patrocinadores (CNPq, Cespe e Editora), que viabilizaram a visita, e aos diferentes colaboradores externos, ja citados, por sua ajuda especifica. Em meu préprio nome, dirijo um agradecimento especial a Lucilia Garcez e Lurdes Jorge, membros da Comissao Organizadora, que dedicaram nao somente tempo e esforgo a pre- paragio e desenvolvimento da visita, mas sobretudo carinho. A Comissao expressa sua gratidao pelo envolvimento pessoal de cada um dos demais que, dentro da UnB, se empenharam nessa organizagao ¢ na garantia do bom transcurso da visita, incluindo af 8 Noam Chomsky os professores e funciondrios atuantes na época no gabinete do Reitor, no CIP, no IL € no LIV e a diregao e funcionarios da Editora e do Cespe. Em Brasilia, Chomsky cumpriu uma agenda que constou de duas palestras lingiifsticas (Linguagem e mente: pensamentos atu- ais sobre antigos problemas. Parte | e Parte I), duas palestras politicas (Perspectivas para a democracia e neoliberalismo, libe- ralismo e mercados: doutrinas e realidade) e uma noite de auto- grafos, quando foi langada a tradugio em portugués de O que o Tio Sam realmente quer e relangada a de A minoria préspera e a mul- tiddo inquieta, pela Editora Universidade de Brasilia. Além dessas atividades, durante 0 seu perfodo de permanéncia em Brasilia (24 a 27.11.96), participou de outras, mais estritas, como um encontro com os professores do Departamento anfitrido, um encontro com professores de outros Departamentos com interesses comuns, um encontro com os bispos da Pastoral Episcopal da CNBB, por coin- cidéncia reunidos em Brasilia na semana da visita, e entrevistas com a imprensa. A presente obra € a publicagao das duas palestras lingiifsticas e das discussdes que a elas se seguiram. , Chomsky tem sido uma das figuras mais proeminentes da lin- giiistica do século XX. Fez ressurgir, nesta segunda metade do século, 0 interesse por um tema que ja tinha sido objeto de estudo em séculos anteriores: a questio de haver uma gramatica universal. Posicionou-se a favor da existéncia nao s6 de idéias inatas, mas de toda uma estrutura sintdtica inata, relativa 4 linguagem. Tornou clara a hip6tese de a gramatica universal corresponder a uma mar- cacao genética na espécie humana. Foi além de considerag6es filo- séficas sobre 0 assunto e ofereceu uma proposta tedrica, a Gramatica Gerativa, para o desenvolvimento de pesquisas sobre linguas dentro de uma linha de aceitagio da marcagdo genética relativa 4 linguagem. Conseguiu manter uma rede de associados ao longo dos anos, o que deu um carater colaborativo ao trabalho na A tradugao das duas palestras foi revista por Mark Ridd. Gentilmente, Lurdes Jorge reviu a primeira palestra, parte da segunda e as discussGes e Yara Duarte, 0 texto integral. Varios colegas e alunos comentaram diferentes pontos especi- ficos, incluindo termos técnicos. Sou grata a todos pelas sugestdes, muito per- tinentes. Como fiz a opgio final, cabe a mim a responsabilidade pelas inadequagées que por ventura restaram. (N. do T.) Linguagem e mente 9 teoria e, em conseqiiéncia, levou a um avanco alucinante da com- preensaio dos fendmenos lingiiisticos na perspectiva do conheci- mento gramatical internalizado. A partir des trabalho colaborativo, tem feito sucessivas modificagdes no arcabougo ted- rico inicial, que costuma ser datado de 1965, ano da publicagio de Aspects of the Theory of Syntax, sempre com 0 objetivo de elimi- nar inadequag6es € incorporar novas descobertas. Apesar da varie- dade sucessiva do aparato técnico, nesse trabalho lingiifstico teorico duas caracteristicas tém se mantido constantes — a preo- cupagdo de que esse aparato seja capaz de gerar as seqiiéncias bem-formadas nas linguas, e s6 elas, e o desejo de que se insira numa perspectiva que relacione linguagem e mente, refletindo a tese central de que hd um componente da mente humana consagra- do a linguagem e interagindo com outros sistemas mentais. A mai- or variagdo se deu na passagem de um modelo de regras para um modelo de princfpios e parametros: as primeiras verses eram for- temente marcadas pela presenga de regras — por exemplo, regras produtoras da ordem linear das palavras e da hierarquia entre elas, chamadas regras sintagmiaticas, e regras produtoras de certas construgdes, tais como interrogativas, relativas, passivas, chama- das regras transformacionais — ; a inadequagio do sistema de regras levou a busca de principios gerais, a qual se fortificou com 0 avango da pesquisa, ten-do-se chegado a uma proposta em que as regras cederam lugar a principios e pardmetros. A primeira versio dessa nova tendéncia foi a teoria de Principios-e-Parimetros. O programa de pesquisa atual (programa, ¢ nao teoria ou modelo), o minimalismo, € uma continuagdo dessa tendéncia. * Certamente, a proeminéncia de Chomsky na lingiiistica, em especial, e na ciéncia contemporinea, em geral, se deve muito a esse persistente e incansivel trabalho de elaboracao tedrica para incorporar numa perspectiva cientifica moderna temas tradicionais a respeito da linguagem que tinham sido hd muito esquecidos. Relativamente 4 lingiifstica, o estudo gramatical atual, em qualquer teoria que seja, ficou decididamente marcado por suas propostas. Alguns conceitos que introduziu tornaram-se parte do vocabulério gramatical comum (estrutura profunda/estrutura de superficie ¢ gramaticalidade/aceitabilidade, por_exemplo). Suas posigdes sio ponto de referéncia dentro de outros arcabougos. E outras teorias 10 Noam Chomsky gramaticais surgiram, subsididrias das suas hipoteses sobre a estru- {ura lingiiistica. Com relag’o a ciéncia contemporanea em geral, a volta a uma visao cognitiva de linguagem resultou num redirecio- namento da pesquisa cientifica sobre linguagem e linguas neste século, mesmo fora dos circulos de pesquisa estritamente gramati- cal. Esse redirecionamento levou a uma perspectiva de andlise muito mais ampla e ambiciosa dos fendmenos de linguagem € con- cretizou-se no surgimento de um novo campo de pesquisa: 0 da investigagao sobre as relagdes linguagem/mente. Tal campo in- cluiu inicialmente a psicologia cognitiva, mas hoje € mais vasto € variado, abrangendo as ciéncias da mente em geral e a rea de educagao e ensino de ciéncias, e extrapolando os limites da teoria. Nesse campo, seus posicionamentos teéricos sao ponto de referén- cia mesmo para defensores de idéias divergentes dentro de outros arcabougos (como é 0 caso de sua hipdtese de que as linguas trabalham com propriedades minimas distintivas, denominadas tragos). / Mas essa proeminéncia seguramente se deveu também ao fato de a investigacio sobre linguagem e linguas ter se tornado um empreendimento coletivo. De fato, como fruto do trabalho na 4rea, surgiu uma complexa rede internacional de investigadores, com formacio de fortes polos de pesquisa fora dos Estados Unidos, inicialmente na Franca, Holanda e Italia, tendo a sua produgio contribuido para a propria evolugao da teoria. No Brasil, diversas Universidades vém desenvolvendo pesquisa em Gramiatica Gerati- va, € constata-se uma crescente integragao desses grupos brasilei- ros nessa rede internacional. Por outro lado, diferentes centros internacionais sem divida tiveram o seu papel na consolidagao dos atuais centros em nosso pais. Nao vou tentar apresentar uma hist6- ria desse papel, a fim de evitar 0 perigo de omissdes inadvertidas. Simplesmente cito, em ordem cronolégica, os principais centros produtores de pesquisa na teoria no Brasil, no momento: UFMG, UFRJ (Museu Nacional e Faculdade de Letras), Unicamp, UnB, USP e UFSC. O inicio da investigagio e produgao na UFMG, PUC- SP e UFRJ foi praticamente simultanea; a PUC-SP foi de grande importancia durante um certo perfodo, mas deixou de desenvolver pesquisa na teoria. Linguagem e mente li Diversas vezes, Chomsky tem repetido, em entrevistas por exemplo, que nado sabe explicar qual a relagdo entre seu trabalho politico e seu trabalho lingiifstico, a nao ser por linhas muito ge- rais. Parece-me que essas relagdes, se bem que realmente em li- nhas gerais, sao bem claras. Em primeiro lugar, ambos os trabalhos decorrem de um extraordindrio poder aglutinador, de uma enorme capacidade de interagao, de modo que em nenhum dos dois se trata de uma tarefa individual. Em segundo lugar, os dois tipos de ativi- dade mostram uma aguda percepgao do papel que pode desenvol- ver no seu tempo — o de contribuir para a evolugio do conhecimento sobre a natureza humana em termos das proprieda- des da mente/cérebro, em conseqiiéncia de sua atividade lingiiisti- ca, eo de contribuir para a evolucio das condigées efetivas de vida na terra, em conseqiiéncia de sua atividade politica. Nessa segunda caracteristica em comum entre as duas faces de seu trabalho, vé-se, pois, uma preocupagio integral com o homem — com 0 conheci- mento de sua natureza e com as suas condigdes de vida —, de tal modo que uma face completa a outra. A relagao do seu fazer como lingiiista e do seu fazer como ativista politico parece entao ser de complementariedade, na diregdo da colocagio em pratica dessa preocupagao integral com o ser humano. Mais do que ninguém, dada sua integragao no seu tempo e no seu espaco, ele poderia ser qualificado de intelectual organico. Essa caracteristica foi percebi- da pelo piblico em Brasilia, como demonstrado pelos inimeros depoimentos sobre 0 intelectual e a pessoa humana do visitante, quanto a seu envolvimento com a realidade contemporanea e sua postura diante dos semelhantes, da parte de alunos,“professores e outros estudiosos, todos sob o impacto da visita e do que Tepre- sentava em termos de conhecimento a respeito do estigio evoluti- vo da ciéncia atual e de suas perspectivas. Nas palestras e discussdes publicadas neste livro, Chomsky caracteriza 0 aspecto internalista da abordagem gerativa, examina © relacionamento da linguagem com outras partes da mente e com o mundo externo e descreve 0 panorama geral da situagéo atual do minimalismo. Na primeira palestra, inicialmente apresenta distingdes basicas cruciais para a sua teoria: propriedades gerais da linguagem, ca- racterizagao da faculdade de linguagem como um 6rgio da lingua- 12 Noam Chomsky gem, ponto de vista cognitivo da gramatica gerativa, tensdo entre a condigéo de adequacao descritiva e a condigéo de adequagao ex- plicativa, uso do conceito de parametro na tentativa de explicagao da variacao translingiifstica. Em seguida, trata de questdes sobre o relacionamento da linguagem com o mundo externo: questées sobre a relagio mente/cérebro € questdes sobre o uso da lingua. Ao examinar as primeiras, caracteriza a abordagem internalista da linguagem como tendo o objetivo de “descobrir as propriedades do estado inicial da faculdade de linguagem e os estados que este assume sob a influéncia da experiéncia” e especifica que 0 estado inicial e o estado atingido sio “estados do cérebro em primeiro lugar, mas descritos abstratamente, nao em termos de células, mas em termos de propriedades que os mecanismos do cérebro tém de satisfazer de algum modo”. A fim de tornar mais explicito seu pensamento, rebate a critica de Searle a essa abordagem interna- lista. Nessa resposta, estende-se sobre a questao do dualismo mente/corpo, que tem ocupado a atengio de investigadores desde séculos passados e ainda permanece sem solugdo. O estudo abs- trato da linguagem, como diz Chomsky, é problematico exata- mente porque “parece se situar no lado mental da partigao”. O problema que a teoria lingiifstica enfrenta é, enfim, o mesmo da fisica e da quimica, que até hoje nao conseguem explicar as pro- ptiedades das particulas em movimento e as afinidades quimicas. Quanto a quest6es sobre o uso da lingua, examina, por meio da andlise do uso de algumas palavras isoladas, a questo de como as interpretamos. Aponta propriedades curiosas dos significados das palavras, concluindo a favor da idéia de Hume de que “a “‘identi- dade que atribuimos’ as coisas é ‘apenas ficticia’, estabelecida pelo entendimento humano, um quadro desenvolvido mais além por Kant, Schopenhauer e outros”. Nas discuss6es referentes a essa primeira palestra, Chomsky acrescenta a sua visio sobre o papel do contexto e da cultura no estudo da linguagem, sobre a compreensao tedrica atual a respeito do texto, e sobre a relacdo entre sentido e palavra. Retorna a questao da dicotomia mente/corpo, agora dizendo que “o universo inteiro € espiritual”, ao retomar o termo usado na pergunta, que caracteriza a sua postura te6rica como “uma postura espiritualista diante da realidade”. Enfatiza que nao € anti-reducionista, esclare- Linguagem e mente 13 cendo que o reducionismo nao € uma questéo em ciéncia. Torna clara sua divergéncia em relagao a teoria funcionalista. Argumenta novamente a favor da existéncia da gramatica universal. Por fim, ao responder a ultima pergunta, mostra-se convicto de que “as teorias contempordneas da gramiatica universal estao erradas. Se vocé olhar para a hist6éria das ciéncias, tudo tem estado errado. Vocé chega mais perto da verdade, mas no ha muitos cientistas que estejam dispostos a acreditar que a alcangamos”. Na segunda palestra, Chomsky deixa 0 tom geral da conferén- cia do dia anterior e examina questdes mais especificas sobre a configuragéo da faculdade de linguagem. A grande pergunta que norteia a palestra é: Até que ponto a linguagem 6 bem- configurada? A abordagem teérica em que a resposta se desenvol- ve € a do programa minimalista — um programa, ele esclarece, e nao uma teoria. Antes de entrar nos detalhes da configuracao geral, discute uma questéo correlata e de grande atualidade: a de como surgiu a faculdade de linguagem no contexto da evolugao da espé- cie. Inicia a sua caracterizagéo das propriedades da linguagem segundo o programa minimalista esclarecendo que a “faculdade de linguagem se encaixa dentro da arquitetura mais ampla da men- te/cérebro”, onde “interage com outros sistemas, que impGem con- digdes” que ela tem de satisfazer “se ela é para ser utilizavel de qualquer modo que seja”. Essas condigdes, chamadas “condicdes de saida nuas” (bare output conditions) na linguagem técnica, sao “condigoes de legibilidade”: “Os sistemas dentro dos quais a fa- culdade de linguagem se encaixa tém de ser capazes de ‘ler’ as expressoes da lingua e usd-las como ‘instrugdes’ Para o pensa- mento e a agdo.” Os sistemas sensorimotores leem as instrucGes e fornecem expressGes com a “representagio fonética” apropriada. O “sistema conceitual e outros que fazem uso dos recursos da fa- culdade de linguagem” “tém suas propriedades intrinsecas, que requerem que as expressdes geradas pela lingua tenham certos tipos de ‘representagdes semanticas’ e nao outros”. Para cada ex- pressao lingiifstica sera gerada “uma representagao fonética, que é legivel para os sistemas sensorimotores, e uma representagao se- mantica, que é legivel para o sistema conceitual e outros sistemas do pensamento e da agao”. 14 Noam Chomsky Toma como pressupostos os fatos (i) de haver unidades do tipo de palavras, (ii) de esses itens lexicais se organizarem em expressdes maiores e (iii) de esses itens terem propriedades de som e significado, chamadas “tragos”. Os tragos sao usados para mon- tar os itens lexicais, que, por sua vez, sio as unidades “atémicas” usadas para construir expressGes mais complexas. Entre os tragos, privilegia na palestra os tragos flexionais, que desempenham “um papel central na computagio” e€ se distinguem dos tragos fonéticos e semanticos intrinsecos aos itens. Chega assim a uma divisdo tripartite entre tragos: (i) tragos semanticos, (ii) tragos fonéticos e (iii) tragos formais, que nao séo nem semanticos nem fonéticos. Portanto, ao contrério dos dois primeiros, estes Ultimos sao inin- terpretaveis, sendo usados “pelas operagées computacionais que constroem a derivagio de uma expressio”. Propde a hipdtese de que sé os tragos flexionais sao tragos formais. Segundo sua visao, “numa lingua dada, montam-se itens lexicais com tragos, e entao as operagdes computacionais, fixas e invariantes, constroem repre- sentagdes seminticas a partir daqueles de maneira uniforme. Em algum ponto na derivagio, 0 componente fonoldgico acessa a deri- vagiio, despindo e retirando os tragos fonéticos e convertendo o objeto sintético em forma fonética, enquanto 0 residuo prossegue para a representagao semantica por operagdes encobertas”. Voltando a se perguntar até que ponto a linguagem é bem- contigurada, aponta duas imperfeicdes aparentes. Uma € 0 préprio fato de haver tragos ininterpretdveis: “Numa linguagem configura- da perfeitamente, cada trago seria semantico ou fonético, nao me- ramente um dispositivo para criar uma posigao ou para facilitar uma computagao.” Uma outra, mais dramatica segundo ele, é a propriedade de deslocamento: “os sintagmas sao interpretados como se estivessem em uma posicao diferente na expressao, onde itens semelhantes algumas vezes efetivamente aparecem e sao interpretados em termos de relagdes locais naturais”. Entre as ope- ragdes computacionais, pressupde duas. Uma é a operacgio Con- fluir, que anexa dois objetos ja formados um ao outro, “formando um objeto maior com exatamente as propriedades do alvo da ane- xacio”.. Essa operagao substitui inteiramente as regras sintagmati- cas de modelos anteriores. Dado 0 novo carater da geragao de estrutura sintagmatica, denomina essa estrutura de “estrutura sin- Linguagem e mente 15 tagmatica nua” (bare phrase structure), implicando essa expressao a total auséncia de rétulos categoriais e sintagmaticos. A outra operacao € a envolvida na propriedade de deslocamento, tratada anteriormente como uma tnica operagio Mover, “basicamente, mover qualquer coisa para qualquer lugar, sem propriedades espe- cificas de linguas ou de certas construgdes”. Procura chegar a uma unificagdo entre as duas “imperfeigdes” apontadas: os tragos for- mais ininterpretaveis seriam “de fato 0 mecanismo que implementa a propriedade de deslocamento”. Como a propriedade de desloca- mento pode ser motivada pelas condigées de legibilidade impostas pelos sistemas externos, conclui que “as duas imperfeigdes sio eliminadas completamente e a linguagem acaba sendo, afinal, 6ti- ma: tragos formais ininterpretados sio exigidos como um meca- nismo para satisfazer as condigdes de legibilidade impostas pela arquitetura geral da mente/cérebro, pelas propriedades do aparato de processamento e pelos sistemas do pensamento”. Explora a idéia de que, numa relagdo de concordancia, o elemento que de- termina a concordancia contém tragos combinantes (matching fea- tures) € 0 que concorda contém tracos infratores — tragos que sao ininterpretaveis e tém, por isso, de ser apagados. Por sua vez, 0 apagamento exige uma relacao local entre 0 trago infrator e 0 trago combinante. Assim, numa frase como Clinton seems to have been elected, “a interpretagao semAntica exige que elect e Clinton estejam relacionados localizadamente no sintagma elect Clinton para a construgdo ser interpretada apropriadamente, como se a sentenga fosse realmente seems to have been elected Clinton”, Mas, por outro lado, seems contém tragos infratore$, que “tém de ser apagados para a expressio ser legivel na interface semantica”; como 0 apagamento sé se faz numa relagao local, os tragos combi- nantes do sintagma Clinton “sao atrafdos pelos tracos infratores do verbo principal seems, que séo entéo apagados sob combinagio local”. A operagao Mover se reduz, assim, 4 operagio Atrair. Da- das essas conclusdes, uma lingua particular é apresentada como consistindo em “um léxico, um sistema fonoldgico e duas opera- goes computacionais: Confluir e Atrair”, Como Atrair diz respeito a tragos, surge uma nova questéo: Por que todo o sintagma Clinton se desloca, se somente os tragos sao atraidos? A proposta € que, apesar de somente os tragos das palavras serem atraidos, 0 movi- 16 Noam Chomsky mento manifestamente visivel ocorre (i.e, 0 sintagma pleno se mo- vimenta) em virtude da “pobreza do sistema sensorimotor, que é incapaz de ‘pronunciar’ ou ‘ouvir’ tragos isolados separados das palavras das quais sao parte”. No caso de movimento encoberto, s6 os tragos se atraem, sem desencadearem 0 movimento visivel de sintagmas. Nas discussdes ao final desta palestra, dois temas gerais sao tratados: a questao de a variagao translingiifstica na expressio de nogGes espaciais e temporais ser apenas aparente e a questo da contribuigéo dos avangos em gramiatica gerativa para o ensino gramatical nas escolas. Quanto a temas mais especificos, varios sao abordados. Esclarece como a dicotomia entre tragos fortes e fracos, expressa em obras anteriores, pode ser eliminada. Diz que 0 processo de checagem de tragos (postulado em obras anteriores e que corrresponde, grosso modo, 4 operagaéo Atrair) € motivado pela necessidade de se eliminar um traco que nao pode ser lido pelo sistema semantico. Observa que nao ha lugar para a nogio de operagao de adjungdo no modelo minimalista. Aponta que os ad- vérbios nao tém a propriedade de deslocamento, mas sua posigao é uma questao ainda em aberto. Finalmente, afirma que a idéia de que som e significado sio desconectados pode estar errada, dado que 0 “modo como as coisas sio ditas — mesmo 0 som que tém — se relaciona de fato com 0 modo como sao interpretadas”, Esperamos que esta publicagao alcance no Brasil um grande efeito: que consiga difundir a um vasto piblico uma visio bem clara do estagio atual da pesquisa lingiiistica cientifica e dos pro- blemas que as ciéncias em geral atualmente enfrentam, despertan- do novas vocag6es cientificas. A visita de Chomsky tera tido um sucesso além da expectativa se for um incentivo ao avango da ci- éncia no Brasil. A excitagdo que sua presenga despertou em Brasi- lia, nao somente no meio académico ja estabelecido, mas também entre jovens, e os depoimentos espontaneos sobre o valor e a im- portancia da visita nos dao a esperanga de isso ser possivel. Lucia Lobato. Primeira Palestra O estudo da linguagem é um dos ramos mais antigos da inves- tigacao sistematica, remontando a India e a Grécia classicas, com uma intensa e fértil historia de realizagdes. Sob outro ponto de vista, € bem jovem. (Os principais empreendimentos de pesquisa de hoje ganharam forma somente cerca de quarenta anos atras, quando algumas das idéias predominantes na tradicdo foram reto- madas e reconstruidas, abrindo caminho para uma investigacao que se tem comprovado muito produtiva. Nao € surpreendente que_a linguagem tenha exercido tanto fascinio no correr dos anos. (A faculdade humana de linguagem parece ser uma verdadeira “propriedade da espécie”, variando pouco entre as pessoas € sem um correlato significative em qual- quer outra parte. Provavelmente, os correlatos mais préximos se encontrem em insetos, a uma distancia evolucionaria de um bilhao de anos. O sistema de comunicagio das abelhas, por exemplo, partilha com a linguagem humana a propriedade de “referéncia deslocada”, nossa habilidade de falar sobre algo que esteja distante de nds no espago e no tempo; as abelhas usam uma intrincada “danga” para comunicar a direcao, distancia e desiderabilidade de uma fonte distante de mel. Nao se conhece nada semelhante em qualquer outra parte da natureza. Mesmo nesse caso, a analogia é muito fraca. A aprendizagem vocal evoluiu nos passaros, mas em trés grupos nao-relacionados, e independentemente, presume-se; aqui as analogias com a linguagem humana sao ainda mais super- Ficiais. A linguagem humana parece estar biologicamente isolada em suas propriedades essenciais e ser um desenvolvimento na verdade recente sob uma perspectiva evolucionista. Nao ha hoje nenhuma 18 Noam Chomsky razAo séria para se desatiar a visio cartesiana de que a habilidade de usar signos lingiifsticos para expressar pensamentos formados livremente marque “a verdadeira distingdo entre o homem e o ani- mal” ou a maquina, quer se entendam por “maquina” os autématos que ocuparam a imaginagao dos séculos XVII e XVII ou os que hoje estao fornecendo um estimulo ao pensamento e a imaginagao. ~ Além disso, a faculdade de linguagem entra de modo crucial em cada um dos aspectos da vida, do pensamento e da interagao humanos. Ela é, em grande parte, responsavel pelo fato de, sozi- nhos no universo bioldégico, os seres humanos terem uma hist6ria, uma diversidade e evolugio cultural de alguma complexidade e riqueza, e mesmo sucesso bioldgico, no sentido técnico de seu ntimero ser enorme. Um cientista marciano que observasse as es- tranhas ocorréncias na Terra dificilmente poderia deixar de ficar impressionado com 0 surgimento e a importncia dessa forma de organizagao intelectual aparentemente tinica. E ainda mais natural que o tépico, com seus varios mistérios, tenha estimulado a curio- sidade dos que procuram entender a sua prépria natureza e 0 seu lugar no universo mais amplo. A linguagem humana se baseia numa propriedade elementar que também parece ser uma propriedade biologicamente isolada: a propriedade da infinidade discreta, manifestada na sua forma mais pura pelos nimeros naturais 1, 2, 3, ... As criangas nao aprendem essa propriedade do sistema numeral. A menos que a mente Ja possua os principios basicus, nenhuma quantidade de evidéncia poderia fornecé-los; e eles estao completamente além dos limites intelectuais dos outros organismos. Do mesmo modo, nenhuma crianga tem de aprender que ha sentengas de trés palavras e sen- tengas de quatro palavras, mas nao sentengas de trés palavras meia, e que é sempre possivel construir uma mais complexa, com uma forma e um significado definidos. Tal conhecimento tem de nos chegar pela “mao original da natureza” (the original hand of nature), segundo a expressio de David Hume, como parte do nos- so dote bioldgico. Essa propriedade intrigou Galileu, que via a descoberta de um meio de comunicar nossos “pensamentos mais secretos a qualquer outra pessoa com 24 pequenos caracteres” como a maior de todas as invengdes humanas. A invengdo € bem-sucedida porque reflete Linguagem e mente 19 a infinidade discreta da linguagem que € representada pelo uso desses caracteres. Pouco tempo depois, os autores da Gramatica de Port Royal impressionaram-se com a “invengio maravilhosa” de um meio de construir, a partir de umas poucas diizias de sons, uma infinidade de expressdes que nos capacitam a revelar aos outros, de um ponto de vista contemporaneo, o que pensamos e imaginamos e sentimos; nio uma “invengdo”, mas nao menos “ma- ravilhoso” como um produto da evolugio biolégica, sobre o qual praticamente nada se sabe, nesse caso. E razodvel considerar a faculdade de linguagem como um “6r- gao da linguagem”, no sentido em que os cientistas falam de um sistema visual ou sistema imunoldgico ou sistema circulatorio como érgaos do corpo. Compreendido desse modo, um 6rgao nado é algo que possa ser removido do corpo, deixando o resto intacto, & um subsistema de uma estrutura mais complexa. Esperamos com- preender a complexidade total investigando partes que tém carac- teristicas distintivas e suas interagdes. O estudo da faculdade de linguagem procede da mesma forma. Pressupomos ainda que 0 érgao da linguagem é como outros, no sentido de que seu carater basico € uma expressao dos genes. Como isso acontece € algo que permanece uma possibilidade de pesquisa para o futuro distante, mas podemos investigar de outras maneiras 0 “estado inicial”, geneticamente determinado, da facul- dade de linguagem. Evidentemente, cada lingua é o resultado da atuagao reciproca de dois fatores: 0 estado inicial e 0 curso da experiéncia. Podemos imaginar 0 estado inicial como um “dispo- sitivo de aquisigao de lingua” que toma a experiéncta como “dado de entrada” e fornece a lingua como um “dado de saida” — um “dado de saida” que € internamente representado na men- te/cérebro, Os dados de entrada e os dados de sada estao ambos sujeilos a exame; podemos esiudar 0 curso da experiéncia e as propriedades das linguas que sao adquiridas. O que se aprende desse modo pode nos dizer muito sobre 0 estado inicial que medeia entre eles. Além disso, ha fortes razdes para se acreditar que o estado inicial € comum a espécie: se meus filhos tivessem crescido em Téquio, eles falariam Japonés. Isso significa que evidéncias do japonés se relacionam diretamente com © que se tem pressuposto relativamente ao estado inicial para o 20 Noam Chomsky inglés. O estado inicial compartilhado tem de ser bastante comple- xo para produzir cada lingua, dada a experiéncia apropriada,; mas nao tao complexo que exclua alguma lingua que os humanos pos- sam atingir. Podemos estabelecer condig6es empiricas fortes que a teoria do estado inicial tem de satisfazer, e propor varios proble- mas para a biologia da linguagem: Como os genes determinam o estado inicial e quais sao os mecanismos cerebrais envolvidos nos estados que o 6rgao da linguagem assume? Estes sao problemas dificeis, até para sistemas muito mais simples onde experimentos diretos sao possiveis, mas alguns podem estar no horizonte da pesquisa. Para podermos continuar, deveriamos ser mais claros sobre o que entendemos por “uma lingua”. Tem havido muita controvérsia acalorada sobre a resposta certa para essa questao e, mais generi- camente, para a questéo de como as linguas deveriam ser estuda- das. A controvérsia nao tem sentido, porque nado existe uma resposta certa. Se estamos interessados no modo como as abelhas se comunicam, tentamos aprender algo sobre a sua natureza inter- na, a sua forma de organizagao social e o seu ambiente fisico. Es- sas abordagens nao se conflitam; elas se beneficiam mutuamente. O mesmo é verdadeiro a respeito do estudo da linguagem humana: ela pode ser investigada do ponto de vista biolégico e de inimeros outros. Cada abordagem define 0 objeto de sua investigagao a luz de suas preocupagées especiais; e cada uma deveria tentar apren- der 0 que pode com as outras. Por que tais questdes suscitam gran- de emogao no estudo dos seres humanos talvez seja uma pergunta interessante, mas vou deixé-la de lado no momento. A abordagem puramente internalista que estive delineando preocupa-se com a faculdade de linguagem: seu estado inicial e os estados que ela assume. Suponhamos que o 6rgiao de linguagem de Pedro esteja no estado L. Podemos imaginar L como a lingua de Pedro; quando falo de uma lingua aqui, é isso que quero dizer. Assim compreendida, a lingua é algo como “o modo como falamos € compreendemos”, uma concepgio tradicional de lingua. A teoria da lingua de Pedro é freqiientemente chamada de “gramatica” de sua lingua e a teoria do estado inicial da faculdade de linguagem é chamada “gramatica universal”, numa adaptagao de termos tradi- cionais a um arcabougo distinto. A lingua de Pedro determina um Linguagem e mente 21 leque infinito de expressdes, cada uma com seu som e seu signifi- cado. Em termos técnicos, a lingua de Pedro “gera” as expressdes da lingua dele. A teoria da lingua dele € entéo chamada uma gra- matica gerativa. Cada expressio é um complexo de propriedades, que fornecem “instrugGes” para os sistemas de desempenho de Pedro: seu aparato articulatério, seus modos de organizar os pen- samentos, e assim por diante. Com a sua lingua e os sistemas de desempenho associados nos seus devidos lugares, Pedro tem uma vasta quantidade de conhecimento sobre 0 som e 0 significado de express6es € uma correspondente capacidade de interpretar 0 que ouve, de expressar os seus pensamentos e de usar a sua lingua de inimeras outras maneiras. A gramitica gerativa surgiu no contexto do que € freqiiente- mente chamado de “a revolugao cognitiva” dos anos 50 e foi um fator importante em seu desenvolvimento. Pode ser questionado se 0 termo “revolugéo” € apropriado ou nao, mas houve uma impor- tante mudanga de perspectiva: do estudo do comportamento e seus produtos (textos, por exemplo) para os mecanismos internos usa- dos pelo pensamento ¢ pela agao humanos. A perspectiva cognitiva vé 0 comportamento e seus produtos nao como 0 objeto de investi- gagao, mas como dados que podem fornecer evidéncias sobre os mecanismos internos da mente e os modos como esses mecanis- Mos operam ao executar agGes e interpretar a experiéncia. As pro- priedades e padres que eram o foco de atengdo na lingiifstica estrutural encontram seu lugar, mas como fendmenos a serem ex- plicados juntamente com intimeros outros, em termos dos meca- nismos internos que geram expressdes. ‘ A “revolugao cognitiva” renovou e reformulou muitos dos in- sights, das realizag6es e das incertezas do que podemos chamar “a primeira revolugao cognitiva”, dos séculos XVII e XVIII, que foi parte da revolugao cientifica que modificou tao radicalmente a nossa compreensio do mundo. Reconheceu-se naquela época que a linguagem envolve “o uso infinito de meios finitos”, na expres- sao de von Humboldt; mas esse insight s6 pode se desenvolver de modo limitado, porque as idéias basicas permaneciam vagas e obscuras. Em meados do século XX, os avangos nas ciéncias for- mais tinham fornecido conceitos apropriados e numa forma muito exata € clara, tornando possivel dar uma explicagdo precisa dos 22 Noam Chomsky principios computacionais que geram as expressGes de uma lingua. Outros avangos também abriram caminho para a investigagao de quest6es tradicionais com maior esperanga de sucesso. O estudo da mudanga_ lingiifstica tinha registrado importantes realizagées. A lingiiistica antropolégica forneceu uma compreensao muito mais profunda da natureza e variedade das linguas, também minando muitos estereétipos. E certos topicos, sobretudo 0 estudo dos sis- temas de som, foram muito desenvolvidos pela lingiiistica estrutu- ral do século XX. O tltimo herdeiro proeminente da tradigio, antes de ela ter sido eliminada pela varredura das correntes estruturalista e beha- viorista, foi o lingiiista dinamarqués Otto Jespersen. Ele argumen- tou, 75 anos atras, que o objetivo fundamental da lingilistica ¢ descobrir a “nogdo de estrutura” que esta na mente do falante, capacitando-o a produzir e entender ‘expressdes livres” que sdo novas para o falante e o ouvinte ou mesmo para a histéria da lin- gua, uma ocorréncia costumeira da vida cotidiana. A “nogac de estrutura” de Jespersen € semelhante em espirito ao que chamei de “uma lingua”. O objetivo de uma teoria da lingua € trazer a luz alguns dos fatores que entram na habilidade de produzir e entender “expressées livres”. Somente alguns dos fatores, entretanto, em paralelo com assim como o estudo dos mecanismos computacio- nais, que claramente nao consegue alcangar seu objetivo de captar a idéia do “uso infinito de meios finitos’, nem o de tratar das questées que eram fundamentais para a primeira revolucgdo cogni- tiva, uma questao a qual retornarei. As primeiras tentativas de executar 0 programa da gramatica gerativa, cerca de quarenta anos atras, logo revelaram que, mesmo nas linguas mais bem estudadas, propriedades elementares tinham passado despercebidas e que os dicionarios e gramiticas tradicio- nais mais abrangentes somente tocam a superficie. As proprieda- des basicas das linguas particulares e da faculdade geral de linguagem sao inconscientemente pressupostas por toda parte, sem serem reconhecidas nem serem expressas. Isso é bastante apropri- ado se 0 objetivo é ajudar as pessoas a aprender uma segunda lin- gua, a encontrar o sentido e a prontincia convencionais das palavras ou a ter alguma idéia geral de como as linguas diferem. Mas, se nosso objetivo é entender a faculdade de linguagem e os Linguagem e mente 23 estados que ela assume, nio podemos pressupor tacitamente “a inteligéncia do leitor”. Antes, esse é 0 objeto de pesquisa. O estudo da aquisigaéo de lingua leva & mesma conclusio. Um exame atento da interpretagao das expressdes logo revela que des- de os primeiros estdgios a crianga conhece imensamente mais do que a experiéncia prové. Isso é verdadeiro mesmo para simples palavras. As criangas pequenas adquirem palavras numa proporgao de cerca de uma para cada hora acordada, com exposigao extre- mamente limitada e em condigGes altamente ambiguas. As pala- vras sio compreendidas de modos sutis e intrincados que vao muito além do alcance de qualquer diciondrio e estio somente comegando a ser investigados. Quando se vai além das palavras isoladas, a conclusao se torna ainda mais dramatica. A aquisigio de lingua se parece muito com o crescimento dos 6rgios em geral; € algo que acontece com a crianga e nao algo que a crianga faz. E, embora o meio ambiente importe claramente, 0 curso geral do desenvolvimento e os tragos basicos do que emerge sao _pré- determinados pelo estado inicial. Mas 0 estado inicial é uma posse comum aos homens. Tem de ser entdo que, em suas propriedades essenciais, as linguas sio moldadas na mesma forma. O cientista marciano poderia concluir sensatamente que ha uma nica lingua humana, com diferengas somente nas margens. Com relagdo a nossas vidas, as pequenas diferengas sio 0 que importa, néo as esmagadoras semelhangas, que sio inconsciente- mente tomadas por certas. Sem diivida, ras olham outras ras do mesmo modo. Mas, se queremos entender que tipo décriatura nos somos, temos de adotar um ponto de vista muito diferente, basica- mente 0 do marciano estudando os seres humanos. Este é, na ver- dade, o ponto de vista que adotamos quando estudamos outros organismos, ou mesmo os seres humanos afora os seus aspectos mentais — seres humanos “do pescogo para baixo”, para falar metaforicamente, Nao ha por que nao estudar 0 que esta acima do pescogo da mesma maneira. A medida que as linguas foram mais cuidadosamente investi- gadas do ponto de vista da gramatica gerativa, tornou-se claro que sua diversidade tinha sido subestimada tao radicalmente quanto sua complexidade, Ao mesmo tempo, sabemos que a diver- 24 Noam Chomsky sidade e a complexidade podem ser nada mais do que aparéncia superficial. As conclus6es sao paradoxais, mas inegaveis. Elas colocam de forma cabal 0 que se tornou o problema central do estudo moderno da linguagem: Como podemos mostrar que todas as linguas sao variagGes de um mesmo tema e, simultaneamente, registrar fiel- mente suas intrincadas propriedades de som e significado, superfi- cialmente diversas? Uma genuina teoria da linguagem humana tem de safisfazer duas condigées: “adequagao descritiva” e “adequagao explicativa”. A condigéo de adequagao descritiva vigora para a gramatica de uma lingua particular. A gramatica satisfaz essa con- digdo na medida em que da uma explicagéo completa e exata das propriedades da lingua, daquilo que o falante da lingua sabe. A condigao de adequagao explicativa vigora para a teoria geral da linguagem, a gramatica universal. Para satisfazer essa condigao, a gtamdatica universal tem de mostrar que cada lingua particular é uma manifestagdo especifica do estado inicial uniforme, dele deri- vada sob as “condigées de fronteira”, cujas opgdes sao fixadas pela experiéncia. Poderfamos entao ter uma explicagaéo das proprieda- des das linguas em um nivel mais profundo. Na medida em que a gramatica universal satisfaz a condigéo de adequagio explicativa, ela oferece uma solugio para o que é as vezes chamado “o proble- ma ldgico da aquisigéo de lingua”. Ela mostra como esse problema pode ser resolvido em principio, e entéo fornece um arcaboucgo para o estudo de como o processo realmente ocorre. Ha uma séria tensdo entre essas duas tarefas de pesquisa. A procura da adequagio descritiva parece levar a uma complexi- dade e a uma variedade sempre maiores de sistemas de regras, ao passo que a procura da adequagao explicativa exige que a estrutura da lingua seja, em grande parte, invariante. E essa tensio que tem quase sempre fixado as pautas de pesquisa. O modo natural de resolver a tensao é desafiar 0 pressuposto tradicional, que se man- teve no inicio da gramatica gerativa, de que a lingua é um sistema complexo de regras, cada regra sendo especifica de linguas parti- culares e construgdes gramaticais particulares: regras para formar oragées relativas em hindi, sintagmas verbais em bantu, passivas em japonés, e assim por diante. Considerag6es de adequagao ex- plicativa indicam que isso nao pode estar correto. Linguagem e mente 25 O problema foi enfrentado com tentativas de encontrar pro- priedades gerais de sistemas de regras que podem ser atribufdas 4 propria faculdade de linguagem, na esperanga de o residuo se mostrar mais simples e uniforme. Cerca de 15 anos atras, esses esforgos se cristalizaram numa abordagem 4 linguagem que diver- giu muito mais radicalmente da tradigao do que a gramatica gerati- va anterior. Essa abordagem de “Principios-e-Parimetros”, como tem sido chamada, rejeitou inteiramente o conceito de regra e construgao gramatical: nao ha regras para formar oragGes relativas em hindi, sintagmas verbais em bantu, passivas em japonés, e as- sim por diante, As construg6es gramaticais familiares sio conside- radas artefatos taxondémicos, titeis talvez para a descrigéo informal, mas sem uma posigao dentro da teoria. Elas tém um status pareci- do com o de “mamifero terrestre” ou “animal caseiro de estima- cao”. E as regras sio decompostas em principios gerais da faculdade de linguagem, que interagem para produzir as proprie- dades das expressdes. Podemos imaginar 0 estado inicial da facul- dade de linguagem como uma rede de relagées fixa conectada a um painel de controle; a rede de relagdes € constituida pelos principios da linguagem, enquanto os controles séo as opgdes a serem deter- minadas pela experiéncia. Quando os controles estado fixados de um modo, temos o bantu; quando estao fixados de outro modo, temos 0 japonés. Cada lingua humana possivel € identificada como uma fixagao particular dos controles — uma fixagéo de parame- tros, na terminologia técnica. Se 0 programa de pesquisa for bem- sucedido, deverfamos ser literalmente capazes de deduzir o bantu a partir de uma certa escolha de fixagées, o japonés de Sutra, e assim por diante, para todas as linguas que os seres humanos podem ad- quirir. As condigdes empiricas de aquisigao de lingua exigem que os controles possam ser fixados com base na informagao muito limitada de que a crianga dispde. Observe-se que pequenas mudan- gas na fixagdo dos controles podem levar a uma grande variedade aparente nos dados de saida, ja que os efeitos proliferam através do sistema. Essas sio as propriedades gerais da linguagem que qualquer teoria genuina tem de captar, seja como for. Trata-se, € claro, de um programa, longe de ser um produto acabado. B provavel que as conclusdes alcangadas de modo con- jetural nao permanegam em sua forma atual; e, nem € preciso di- 26 Noam Chomsky zer, ndo se pode ter certeza de que a abordagem como um todo esteja no caminho certo. Como um programa de pesquisa, entre- tanto, tem sido altamente bem-sucedido, levando a uma verdadeira explosio de investigagdes empiricas sobre linguas de uma gama tipolégica muito ampla, a novas questOes que sequer poderiam ter sido formuladas antes e a muitas respostas intrigantes. Questdes de aquisigao, processamento, patologia e outras também tomaram novas formas, que se revelaram igualmente muito produtivas. Além disso, qualquer que seja seu destino, 0 programa sugere como a teoria da linguagem poderia satisfazer as condigdes con- flitantes de adequagao descritiva e explicativa. Ele dé pelo menos um delineamento de uma verdadeira teoria da linguagem, real- mente pela primeira vez. No Ambito desse programa de pesquisa, a tarefa principal é descobrir os principios e parametros. Embora muito permaneca obscuro, tem havido progresso suficiente para se considerar algu- mas quest6es novas e de maior alcance sobre a configuracao geral da linguagem. Em especial, podemos perguntar até que ponto essa configuracao geral é boa. Até que ponto a linguagem chega perto do que algum superengenheiro pode construir, dadas as condigées que a faculdade de linguagem tem de satisfazer? Quao “perfeita” & a linguagem, para colocar a questao de forma pitoresca? Esta questo nos leva diretamente as fronteiras da investiga- ao atual, que tem dado certa razao para crer que a resposta seja: “surpreendentemente perfeita” — surpreendente por diversas ra- z6es, as quais retornarei. Neste ponto, € dificil continuar sem mai- or aparato técnico. Deixarei este tema de lado até amanha e me voltarei agora para alguns outros t6picos de natureza mais geral, que dizem respeito ao modo pelo qual o estudo internalista da lin- guagem se relaciona com 0 mundo externo. Essas questdes se inserem em duas categorias: primeiro, rela- goes entre mente e cérebro; segundo, questdes de uso da lingua. Comecemos com a primeira. O estudo internalista da linguagem tenta descobrir as proprie- dades do estado inicial da faculdade de linguagem e os estados que este assume sob a influéncia da experiéncia. Os estados inicial e atingido sao estados do cérebro em primeiro lugar, mas descritos abstratamente, nao em termos de células, mas em termos de pro- Linguagem e mente 27 priedades que os mecanismos do cérebro tém de satistazer de al- gum modo. Argumenta-se com muita freqiiéncia que esse quadro € mal- orientado em principio. A critica basica tem sido apresentada mais claramente pelo filésofo John Searle: A faculdade de linguagem &é de fato “inata nos cérebros humanos”, ele escreve, mas a evidéncia que tem sido usada para atribuir propriedades e principios a essa faculdade inata “€ explicada muito mais simplesmente pela [...} hi- potese” de que ha “um nivel de explicagio com base no hardware, em termos da estrutura do dispositivo”. Exatamente 0 que esté em jogo? A existéncia do nivel de hardware nao esté em questao, se por isso entendemos que ha células envolvidas na “estrutura do dispo- sitivo” que € “inato nos cérebros humanos”. Mas resta descobrir a estrutura do dispositivo, suas propriedades e principios. A tinica questao tem a ver com o status da teoria que expressa essas pro- priedades. Seafle diz que nao haveria “poder preditor ou explicati- vo adicional” por se dizer que hi um nivel de principios “inconscientes e profundos” da faculdade de linguagem. Isso é bem verdade. Da mesma forma, a quimica é desinteressante se diz somente que existem propriedades estruturais profundas da maté- ria. Mas a quimica nao é nada desinteressante se propde teorias sobre essas propriedades, e 0 mesmo é verdadeiro com relagao ao estudo da linguagem. E, em ambos os casos, tomam-se as entida- des e os principios postulados como verdadeiros, porque nao te- mos outro conceito de realidade. Nao hé nenhum problema, apenas uma séria confusdo que permeia a discussao dos aspectos mentais do mundo. Uma analogia com a quimica é instrutiva. Durante toda a sua historia moderna, a quimica tentou descobrir propriedades de ob- jetos complexos no universo, oferecendo uma explicagio em ter- mos de elementos quimicos do tipo postulado por Lavoisier, atomos e moléculas, valéncia, f6rmulas estruturais para compostos organicos, leis que regem a combinagio desses objetos, e assim por diante. As entidades e principios postulados eram abstratos, no sentido de que nao havia modo de explicd-los em termos de meca- nismos fisicos conhecidos. Houve debate através dos séculos sobre © status desses construtos hipotéticos: Sao eles reais? Sio apenas 28 Noam Chomsky dispositivos de calculo? Podem ser reduzidos a fisica? O debate continuou até o principio deste século. Agora se compreende ter sido completamente sem sentido. Sucedeu que, na verdade, a qui- mica nao era redutivel a fisica, porque os pressupostos da fisica elementar estavam errados. Com a revolucéo quantica, foi possivel proceder 4 unificagao da quimica e da fisica, cerca de sessenta anos atrés. Agora a quimica é considerada uma parte da fisica, embora nao tenha sido reduzida a fisica. Teria sido irracional se se tivesse afirmado durante séculos que a quimica estava enganada porque seus principios sao “expli- cados de forma muito mais simples por um nivel de explicagao com base no hardware, em termos das entidades e principios pos- tulados pelos fisicos”; e, como sabemos, a afirmagao teria sido nao somente irracional, mas também falsa. Pela mesma razao, teria sido irracional sustentar que se pode prescindir de uma teoria da linguagem em favor de uma explicagéo em termos de 4tomos ou neur6nios, mesmo se houvesse muito a dizer nesse nivel. De fato, nao ha, o que nao deve causar surpresa. Com relagio as ciéncias do cérebro, 0 estudo abstrato de esta- dos do cérebro fornece diretrizes para a pesquisa: elas procuram descobrir que tipos de mecanismos podem ter essas propriedades. Os mecanismos podem, no final, ser bem diferentes de tudo que se contemplou até hoje, como foi o caso durante toda a histéria da ciéncia. Nao se faz avangar as ciéncias do cérebro propondo-se parar de tentar encontrar as propriedades dos estados do cérebro, ou pressupondo-se, dogmaticamente, que 0 pouco que se conhece sobre o cérebro tem de fornecer as respostas, ou dizendo que po- demos procurar as propriedades, mas nao devemos ir adiante e atribui-las ao cérebro e seus estados — “regras inconscientes e profundas”, se isso é 0 que a melhor teoria conclui. No segundo plano encontra-se 0 que parece ser um problema mais inescrutavel: 0 problema do dualismo; i.e., da mente e do corpo. O estudo abstrato da linguagem parece se situar no lado mental da partigao, dai ser altamente problematico. Ele poe em divida a “premissa materialista basica” de que “Toda realidade é fisica”, para citar um estudo recente da “realidade mental” por Galen Strawson, 0 mais sofisticado e valioso estudo que conhego Linguagem e mente 29 do problema do materialismo, que € comumente considerado fun- damental para 0 pensamento contemporaneo. Strawson salienta que o problema “veio a parecer eritico” nos séculos XVI-XVII, com 0 surgimento de “uma concepgao cientifica da fisica como nada mais do que particulas em movimento”. Isso & verdade, mas 0 modo como esse conceito se formou levanta algu- mas questées sobre a premissa materialista e a busca de uma “linha diviséria clara entre 0 mental e o nao-mental”, que Strawson e outros consideram critica para a filosofia da mente. A “concepgio cientifica” ganhou forma como “a filosofia me- canica”, baseada no principio de que a matéria é inerte e as intera- goes se dao pelo contato, sem “qualidades ocultas” do tipo postulado pela doutrina escoldstica. Essas foram postas de lado como “um Absurdo tao grande que eu acredito que nenhum Ho- mem que tenha, em matérias filosGficas, uma Faculdade compe- tente de raciocinio pode jamais nele incorrer”. Essas_palavras foram de Newton, mas se referem nao as qualidades ocultas do Escolasticismo que estavam em tal descrédito, mas a sua propria surpreendente conclusio de que a gravidade, embora niéo menos mistica, “realmente existe”. Historiadores da ciéncia salientam que “Newton nao tinha nenhuma explicagao fisica da gravidade”. um problema sério para ele e eminentes contemporaneos, que correta- mente “o acusaram de reintroduzir as qualidades ocultas”, sem “substrato material, fisico” que “seres humanos podem compreen- der”. Até o fim da sua vida, Newton procurou escapar desse absur- do, como também Euler, D’Alembert, ¢ muitos outros desde entio, mas em vao. Nada enfraqueceu a forga do julgamehto de David Hume de que, refutando a auto-evidente filosofia mecanica, Newton “reintegrou os segredos fundamentais [da Natureza| a essa obscuridade na qual sempre permaneceram e sempre permanece- rao”. E verdade que a “concepgao cientifica da matéria fisica” in- corporou “particulas em movimento”, mas sem a “compreensio humana”, no sentido do empreendimento anterior; antes, com re- curso aos “absurdos” newtonianos e, pior, deixando-nos “ignoran- tes da natureza da matéria fisica de aleum modo fundamental”. Estou citando a referéncia de Strawson aos problemas centrais da mente, mas esses nao sao tnicos a esse respeito. As propriedades 30 Noam Chomsky das particulas em movimento também ultrapassam o entendimento humano, apesar de que “nos habituamos 4 nogio abstrata de forgas ou, antes, a uma nogao que flutua numa obscuridade mistica entre a compreensao concreta € a abstragao”, salienta Friedrich Langes, ao examinar esse “momento decisivo” em seu contexto hist6rico, em seu classico ¢ douto estudo do materialismo, que reduz signifi- cativamente a importancia da doutrina. As ciéncias vieram a acei- tar a conclusio de que “uma fisica puramente materialista ou mecanicista” é “impossivel” (Alexander Koyré). Das ciéncias hard as ciéncias soft, a investigagio nao pode fazer mais do que procu- rar a melhor explicagdo tedrica, na esperanga de unificagéo, se possivel, embora, como, ninguém pode dizer de antemao. Em termos da filosofia mecanica, Descartes tinha sido capaz de formular uma versao bastante inteligivel do problema men- te/corpo, o problema do “fantasma na maquina”, como tem sido chamado algumas vezes. Mas Newton mostrou que a m4quina nao existe, embora tenha deixado o fantasma intacto. Com a demons- tragao de Newton de que nao havia corpos em nenhuma acepgao parecida com a que se pressupunha, a versao vigente do problema mente/corpo entrou em colapso. O mesmo se aplica a qualquer outra, até que alguma nova nogéo de corpo seja proposta. Mas as ciéncias nao oferecem nenhuma: hé um mundo, com estranhas propriedades, quaisquer que sejam elas, incluindo seus aspectos 6ticos, quimicos, organicos, mentais e outros, que tentamos desco- brir. Todos sao parte da natureza. Este parece ter sido o ponto de vista de Newton. Até os seus Ultimos dias, ele procurou algum “espirito sutil” que pudesse ex- plicar uma ampla gama de fendmenos que pareciam estar inacessi- veis @ explicagao em termos verdadeiramente compreensiveis aos humanos, incluindo a interagéo de corpos, atragéo e repulsao elé- tricas, luz, sensagao e 0 modo como “membros dos corpos de ani- mais se movem ao comando da vontade”. O quimico Joseph Black recomendou que “as afinidades quimicas sejam recebidas como um primeiro principio, que nao podemos explicar, como tampouco Newton conseguiu explicar a gravitagéo, e adiemos a explicagao das leis da afinidade, até que tenhamos estabelecido um tal corpo de doutrina tal como Newton estabeleceu relativamente A lei da gravitagao”. A quimica prosseguiu até estabelecer um complexo Linguagem e mente 31 corpo de doutrina, alcangando seus “triunfos [...] em separado da recém-emergente ciéncia da fisica”, salienta um importante histo- riador da quimica. Como mencionei, a unificagdo foi finalmente alcangada, bastante recentemente, embora nao por redugio. Deixando de lado seu arcabougo teolégico, nao houve, desde Newton, nenhuma alternativa razodvel 4 sugestio de John Locke de que Deus pode ter escolhido “superadicionar 4 matéria a facul- dade de pensar” exatamente como ele “anexou efeitos ao movi- mento, efeitos que ndo podemos de nenhum modo conceber que 0 movimento seja capaz de produzir’. Como 0 quimico do século XVII Joseph Priestley acrescentou mais tarde, temos de ver as propriedades “rotuladas mentais” como o resultado de “uma es- trutura organica tal como a do cérebro”, superadicionada a outras, nenhuma das quais precisa ser compreensivel no sentido buscado pela ciéncia de antes. Isso inclui 0 estudo da linguagem, que tenta desenvolver corpos de doutrina com construtos e principios que podem ser aptopriadamente “rotulados mentais” e tomados como “o resultado de estrutura organica” — de que modo, ainda esta por ser descoberto. A abordagem é “mentalista”, mas no que deve- ria ser um sentido nao-controverso. Ela se incumbe de estudar um objeto real no mundo natural — 0 cérebro, seus estados e fungdes —, e entao deslocar 0 estudo da mente em direg&o a uma eventual integragéo com as ciéncias bioldgicas. Seria til mencionar que na maior parte tais problemas perma- necem sem solugéo, mesmo para sistemas muito mais simples, onde a experimentagio direta € possivel. Um dos casos mais bem estudados € 0 dos nematédeos, pequenos vermes com um periodo de maturagao de trés dias, com um diagrama elétrico que j4 foi integralmente analisado. Foi sé muito recentemente que se conse- guiu algum entendimento da base neuronal de seu comportamento, e isso permanece limitado e controverso. Uma outra questao da mesma categoria tem a ver com 0 modo como os genes expressam as propriedades do estado inicial. Esse também é um problema muito dificil, pouco compreendido, mesmo em casos muito mais simples. As “leis epigenéticas” que transfor- mam os genes em organismos desenvolvidos sao, na sua maior parte, desconhecidas, uma grande lacuna na teoria evolucionista, como os cientistas tém salientado com freqiiéncia, porque a teoria 32 Noam Chomsky requer uma compreensio da correspondéncia gendtipo-fendtipo, ie., da gama de organismos que pode se desenvolver a partir de algum complexo de genes. Menciono esses fatos somente a guisa de adverténcia sobre as estranhas conclusées que tém sido expres- sas, freqiientemente com grande paixao de novo, acerca de obser- vagées sobre o isolamento biolégico da linguagem e a riqueza do estado inicial. Ha muito mais a dizer sobre esse topico, que é muito estimulante hoje, mas o deixarei de lado e passarei para a segunda categoria de questGes, sobre 0 emprego que a linguagem faz do mundo: questées de uso da lingua. Por uma questéo de simplicidade, vamos nos ater a palavras, e palavras simples. Suponhamos que “livro” seja uma palavra do léxico de Pedro. A palavra € um complexo de propriedades: no jargao técnico, tracos fonéticos e seminticos. Os sistemas senso- rimotores usam as propriedades fonéticas para a articulagéo e a percepgao, relacionando-as a eventos externos — movimentos de moléculas, por exemplo. Outros sistemas da mente usam as pro- priedades seminticas da palavra quando Pedro fala sobre 0 mundo e interpreta 0 que os outros dizem sobre o mesmo. Nao ha nenhuma controvérsia significativa sobre como proce- der no campo do som, mas no campo do significado ha profundas discordancias. Os estudos orientados empiricamente parecem abordar os problemas do significado basicamente do mesmo modo como estudam o som. Tentam encontrar as propriedades fonéticas da palavra “livro” que sio usadas pelos sistemas articulatério e perceptual. E, de forma semelhante, tentam encontrar as proprie- dades semanticas da palavra “livro” que sao usadas pelos outros sistemas da mente/cérebro: que é nominal e nao verbal, usada para referéncia a um artefato e€ nao a uma substincia como dgua ou a uma abstragaéo como satide, e assim por diante. Pode-se perguntar se essas propriedades sao parte do significado da palavra “livro” ou do conceito associado a palavra; nao esta claro como distinguir essas propriedades, mas talvez uma questao empirica possa ser trazida 4 luz. De um modo ou de outro, alguns tragos do item lexi- cal “livro”, que sio internos a ele, determinam os modos de inter- pretacao, do tipo que acabei de mencionar. Ao investigar o uso da lingua, descobrimos que as palavras sao interpretadas em termos de fatores tais como constituigao ma- Linguagem e mente 33 terial, configuragao geral, uso caracteristico e pretendido, papel institucional, e assim por diante. As nogdes podem ser rastreadas até sua origem aristotélica, salientou o filésofo Julius Moravesik num trabalho muito interessante. As coisas sao identificadas e atribuidas a categorias em termos de tais propriedades, que estou tomando como tragos semanticos, em paridade com os tragos fo- néticos que determinam 0 seu som. O uso da lingua pode levar em consideragao esses tragos semanticos de varios modos. Suponha- mos que a biblioteca tenha dois exemplares de Guerra e Paz de Tolstoi e que Pedro pegue emprestado um e Joao 0 outro. Pedro e Joao pegaram 0 mesmo livro ou livros diferentes? Se atentamos para o fator material do item lexical, pegaram livros diferentes; se focalizamos seu componente abstrato, pegaram o mesmo livro. Podemos atentar para ambos os fatores, material e abstrato, simul- taneamente, como quando dizemos que 0 livro dele esta em todas as livrarias do pais, ou que o livro que ele esta planejando vai pe- sar pelo mends dois quilos, caso ele 0 escreva. De modo andlogo, podemos pintar a porta de branco e passar por ela, usando o pro- nome “ela” para nos referir ambigiiamente & figura e ao espaco. Podemos relatar que houve a quebra do banco depois que ele au- mentou a taxa de juros, ou que ele aumentou a taxa para evitar que sofresse a quebra. Aqui 0 pronome “ele” e a “categoria vazia” que € sujeito de “sofresse a quebra”, simultaneamente, adotam ambos os fatores material e institucional. O mesmo € verdadeiro se minha casa é destrufda e eu a re- construa, talvez em outro lugar; nao é a mesma casa, mesmo que eu use os mesmos materiais, embora eu a re-construa. Os termos referenciais “a” e “re” cruzam a fronteira. Cidades sao ainda dife- rentes. Londres poderia ser destruida pelo fogo e ela poderia ser reconstruida em algum outro lugar, com materiais completamente diferentes e parecendo bem diferente, mas assim mesmo seria Londres. Cartago poderia ser reconstruida hoje, e ainda ser Carta- go. Considere-se a cidade que € vista como sagrada pelas fés que remontam ao Antigo Testamento. O mundo islémico a chama “Al- Quds”; Israel usa um nome diferente, como o faz o mundo cristio: “Jerusalém”, em portugués. Ha muito conflito sobre essa cidade. O New York Times acaba de oferecer 0 que chama de “solugio 34 Noam Chomsky promissora”. Israel deveria ficar com Jerusalém inteira, mas “Al- Quds” seria reconstrufda fora das atuais fronteiras de Jerusalém. A proposta € perfeitamente inteligivel — razio por que desperta considerdvel indignagdo fora dos circulos nos quais a doutrina dos poderosos reina inconteste. E o plano poderia ser implementado. A que cidade estaremos entdo nos referindo ao dizer que ela foi deixada onde estava, embora deslocada para algum outro lugar? Os significados das palavras t@m outras propriedades curiosas. Assim, se digo a vocé que pintei minha casa de marrom, quero fazer vocé compreender que passei a tinta sobre a superficie exte- rior, nao a superficie interior. Se quero que vocé entenda que foi a superficie interior, tenho de dizer que pintei a casa de marrom por dentro. Na terminologia técnica, ha um uso marcado e outro nao- marcado; sem indicagdes especfficas, damos 4s palavras a sua in- terpretagio nao-marcada. Essas sio propriedades de casas, nao somente da palavra “pintar”. Assim, se vejo a casa, vejo sua super- ficie exterior, embora, se eu estiver sentado dentro, eu possa ver as paredes interiores. Apesar de as interpretagGes nao-marcadas sele- cionarem a superficie exterior, eu seguramente nao vejo a casa somente como uma superficie. Se vocé e eu estamos fora da casa, vocé pode estar mais préximo dela do que eu; mas se estamos am- bos na casa, este nao pode ser 0 caso, mesmo que vocé esteja mais proximo da superficie. Nenhum de nés esta perto da casa. Logo, vemos a casa como uma superficie exterior, mas com um interior também. Se decido usar minha casa para guardar meu carro, mo- rando em outro lugar, nao é mais uma casa, é antes uma garagem, embora a constituigao material nado tenha mudado. Tais proprieda- des vigoram de maneira bem geral, mesmo para objetos inventa- dos, mesmo objetos impossiveis. Se pinto meu cubo esférico de marrom, pintei o exterior da superficie de marrom. Tais propriedades nao se limitam a artefatos. Chamamos a In- glaterra de ilha, mas, se 0 nivel do mar caisse bastante, seria uma montanha, em virtude das faculdades da mente. A substancia sim- ples prototfpica € a 4gua. Mas, mesmo aqui, fatores imateriais en- tram na individuagéo. Suponhamos que uma xicara esteja cheia de H,0 e eu coloque um saquinho de cha dentro dela. Fica entao sen- do cha, nao agua. Suponhamos que uma segunda xicara tenha sido enchida num rio. Seu contetido poderia ser quimicamente idéntico Linguagem e mente 35 ao da primeira xicara, talvez um navio tenha despejado milhares de saquinhos de cha no rio. Mas € agua, nao cha, e assim é que eu chamaria, mesmo se soubesse de todos esses fatos. O que as pes- soas chamam de “agua” correlaciona-se com 0 contetido H,O, mas s6 tenuamente, estudos experimentais j4 comprovaram. Sem dtivi- da, nesse caso extremo, a constitui¢ao € 0 fator principal para se decidir se algo é Agua, mas, mesmo aqui, nao 0 Gnico. Como ja mencionei, as observagdes se estendem aos elementos referenciais mais simples e aos dependentes referencialmente; e aos nomes proprios, que tém propriedades semantico-conceituais complexas. Algo é designado como uma pessoa, um rio, uma cidade, com a complexidade de compreenséo que acompanha essas categorias. A linguagem nao tem logicamente nomes préprios, despidos de tais propriedades, como bem salientou 0 fildsofo oxfordiano Peter Strawson muitos anos atrds. Os fatos sobre tais assuntos sao freqiientemente claros, mas nao triviais. Tais propriedades podem ser investigadas de varios modos: aquisigaéo de lingua, generalidade entre linguas, formas inventadas, etc. O que descobrimos € surpreendentemente intrin- cado; e, nao surpreendentemente, é em grande parte sabido antes de qualquer evidéncia, daf que compartilhado entre as Iinguas. Nao ha razdo a priori para se esperar que a linguagem humana tenha tais propriedades; a lingua marciana poderia ser diferente. Os sis- temas simb6licos da ciéncia e da matematica seguramente sio. As vezes sugere-se que essas sao, exclusivamente, coisas que sabemos pela experiéncia com livros, cidades, casas, pessoas, e assim por diante. Isso € em parte correto, mas escatioteia a ques- tao. Sabemos tudo isso sobre partes da nossa experiéncia que construimos como livros, ou cidades, e assim por diante, em virtu- de da configurago geral de nossa lingua e de nossa organizagao mental. Tomando emprestada a terminologia da revolugao cogniti- va do século XVII, 0 que os sentidos veiculam dé 4 mente “uma ocasiao de exercitar sua propria atividade” para construir “idéias inteligiveis e concepgdes de coisas a partir dela prdpria”, como “regras”, “padrdes”, “exemplares” e “antecipagdes” que produzem propriedades gestalticas e outras, e “uma idéia abrangente do todo”. Ha boas razGes para se adotar-o principio de Hume de que a “identidade que atribuimos” as coisas é “apenas ficticia”, estabele- 36 Noam Chomsky cida pelo entendimento humano, um quadro desenvolvido mais além por Kant, Schopenhauer e outros. As pessoas pensam e falam sobre o mundo em termos de perspectivas tornadas disponiveis pelos recursos da mente, incluindo os significados dos termos nos quais seus pensamentos sao expressos. A comparacio com a inter- pretagao fonética nao € desarrazoada. Uma grande parte da filosofia contemporanea da linguagem e da mente segue um curso diferente. Ela pergunta a que uma pala- vra se refere, dando varias respostas. Mas a pergunta nao tem um significado claro. Faz pouco sentido perguntar a que coisa a ex- pressao “Guerra e Paz de Tolstoi” se refere. A resposta depende de como os tragos semanticos sao usados quando pensamos e fa- lamos, de um modo ou de outro. Em geral, uma palavra, mesmo do tipo mais simples, nao escolhe uma entidade do mundo, ou do nosso “espago de crenga” — o que nao significa negar, é claro, que haja livros e bancos, ou que estejamos falando sobre algo se dis- cutimos o destino da Terra e concluimos que ele é sombrio. Mas deveriamos seguir 0 bom conselho de Thomas Reid, filésofo do século XVIII, e seus sucessores modernos, Wittgenstein e outros, e nao tirar conclusdes injustificadas do uso comum. Podemos, se quisermos, dizer que a palavra “livro” se refere a livros, “céu” ao céu, “satide” a satide, e assim por diante. Tais convengGes expressam basicamente a falta de interesse nas pro- priedades semanticas das palavras e na maneira como sao usadas para falar das coisas. Poderiamos igualmente evitar as questdes de fonética actistica e articulatéria. Dizer isso nao € criticar a decisio; qualquer investigagao focaliza certas questdes e ignora outras. Tem havido uma grande quantidade de trabalhos estimulantes so- bre aspectos da linguagem que se relacionam com a interpretagio fonética e a interpretagdo semantica, mas seria mais apropriado chamar isso de sintaxe, em minha opiniao, um estudo das opera- goes da faculdade de linguagem, parte da mente. Os modos como a linguagem é usada para empregar o mundo se situam além. A esse respeito, voltemos ao meu comentario de que a grama- lica gerativa buscou dedicar-se a preocupagGes que estimularam a tradigao, em particular, 4 idéia cartesiana de que “a verdadeira distingao” entre os seres humanos e as outras criaturas ou maqui- nas € a habilidade de agir da maneira que eles tomaram como Linguagem e mente 37 muito claramente ilustrada no uso comum da lingua: sem limites finitos, influenciada mas nao determinada pelo estado interno, apropriada a situagdes mas n&o causada por elas, coerente e evo- cando pensamentos que o ouvinte poderia ter expressado, e assim por diante. Isso € s6 parcialmente correto. O objetivo do trabalho que estive discutindo € trazer 4 luz alguns dos fatores que entram nessa pratica normal. Somente a/guns, entretanto. A gramatica gerativa procura descobrir os mecanismos que sao usados, contribuindo, assim, para o estudo de como sio usados da maneira criativa da vida normal. Como sao usados € 0 problema que intrigou os cartesianos, e isso permanece tio misterioso para nds como era para eles, embora se saiba muito mais hoje sobre os mecanismos que esto envolvidos. Nesse aspecto, 0 estudo da linguagem € de novo tal como o dos outros érgaos. O estudo dos sistemas visual e motor desvendou os mecanismos pelos quais 0 cérebro interpreta estimulos esparsos como um culjo e pelos quais 0 brago se estende para pegar um livro sobre a mesa. Mas esses ramos da ciéncia nao levantam a quest&o de como as pessoas decidem fazer tais coisas, e as espe- culagGes sobre 0 uso dos sistemas visual e motor, ou outros, equi- valem a muito pouco. Sio essas capacidades, manifestadas de forma mais impressionante no uso da lingua, que estao no 4mago das preocupagées tradicionais: para Descartes, elas sao “a coisa mais nobre que podemos ter” e tudo que nos “pertence verdadei- ramente”. Meio século antes de Descartes, o fildsofo-fisico espa- nhol Juan Huarte observou que essa “poténcia gerativa” da compreensio e da agéo humanas ordindrias, embofa estranha aos “animais brutos e plantas”, é somente uma forma inferior de com- preensao.” Ela nao alcanga o nivel do verdadeiro exercicio da ima- ginagao criativa. Mesmo a forma inferior est4 além de nosso alcance te6rico, excluindo-se o estudo dos mecanismos envolvi- dos. Em varias areas, inclusive a linguagem, muito se aprendeu, em anos recentes, sobre esses mecanismos. Os problemas que podem 2 Cf: “una [potencia generativa] com’un con los brutos animales y plantas, y otra participante con Jas substancias espirituales [...].” (Citado em Otero, Car- los. Introducci6n a la lingiiéstica transformacional. México, Siglo XX1, 1970. (6' ed. 1986.) (N. do T.) 38 Noam Chomsky agora ser enfrentados sao dificeis e desafiadores, mas muitos mis- térios ainda se mantém além do alcance da forma de investigagaio humana que chamamos “ciéncia”, 0 que € uma conclusao que nao deverfamos achar surpreendente se consideramos os seres huma- nos como parte do mundo organico, e que talvez tampouco devés- semos achar angustiante. Segunda Palestra Ontem, discuti duas quest6es basicas sobre a linguagem, uma internalista e a outra externalista, A questo internalista indaga que tipo de sistema é a linguagem. A questio externalista indaga como a linguagem se relaciona com as outras partes da mente e com 0 mundo externo, incluindo problemas de unificagio e de uso da lingua. A discussao ficou num nivel muito geral, tentando por em ordem os tipos'de problemas que surgem e os modos de lidar com eles que parecem corretos. Agora eu gostaria de examinar um pou- co mais de perto o pensamento atual sobre a questao internalista. Para rever o contexto, o estudo da linguagem tomou um cami- nho um tanto diferente cerca de quarenta anos atras, como parte da chamada “revolugao cognitiva” dos anos 50, que retomou e refor- mulou quest6es e preocupagées tradicionais sobre muitos tpicos, incluindo a lingua e seu uso e a importincia dessas matérias para 0 estudo da mente humana. Tentativas anteriores de explorar essas quest6es tinham se defrontado com barreiras conceituais e limites de compreensio. Em meados do século, essas barteiras € esses limites tinham sido superados até certo ponto, tornando possivel prosseguir de modo mais proveitoso. O problema basico era en- contrar alguma maneira de resolver a tensio entre as exigéncias conflitantes de adequagao descritiva e explicativa. O programa de pesquisa que se desenvolveu conduziu finalmente a um quadro da linguagem que representa uma considerdvel divergéncia da longa e rica tradigfo: a abordagem de Principios-e-Pardmetros, que se baseia na idéia de que o estado inicial da faculdade de linguagem consiste em principios invariantes e em um leque finito de esco- Ihas quanto ao funcionamento do sistema inteiro. Uma lingua par- ticular é determinada fazendo-se essas escolhas de um modo 40 Noam Chomsky especifico. Temos ai, pelo menos, as linhas gerais de uma verda- deira teoria da linguagem, que talvez seja capaz de satisfazer as condigdes de adequagio descritiva e explicativa e de abordar o problema légico da aquisigao de lingua de modo construtivo. Desde que esse quadro tomou forma cerca de 15 anos atras, 0 esforcgo principal da pesquisa orientou-se para a tentativa de des- cobrir e tornar explicitos os principios e os parametros. A investi- gagdo estendeu-se muito rapidamente tanto em profundidade, em linguas individuais, quanto em ambito, quando idéias semelhantes foram aplicadas a linguas de uma gama tipolégica muito ampla. Os problemas que permanecem sao considerdaveis, para dizer 0 mini- mo. A mente/cérebro do homem € talvez 0 mais complexo objeto no universo, e mal comegamos a compreender os modos como se constitui e funciona. Dentro dela, a linguagem parece ocupar um lugar central, e, pelo menos na superficie, a variedade e a comple- xidade s4o desencorajadoras. No entanto, tem havido muito pro- gresso — o bastante para que parega razoavel considerar algumas quest6es de maior alcance sobre a configuragao geral da lingua- gem, em particular, quest6es sobre a otimidade da configuragio geral. Deixei esta matéria neste ponto ontem, tendo passado para outros tépicos. Vamos voltar a ela, e ver para onde a investigagio sobre essas questées pode conduzir. Estamos agora perguntando até que ponto a linguagem é bem- configurada. Até que ponto a linguagem se parece com 0 que um engenheiro sumamente competente poderia ter construido, dadas certas especificagdes da configuragaéo geral. Para estudar essa questao, temos de explicitar melhor essas especificagdes. Algumas sao internas e gerais, tendo a ver com a naturalidade conceitual e a simplicidade, nogdes que dificilmente sao limpidas, mas que po- dem ser avivadas de varias modos. Outras sao externas e especifi- cas, tendo a ver com as condigGes impostas pelos sistemas da mente/cérebro com que a faculdade de linguagem interage. Sugeri que a resposta a essa questio pode vir a ser que a linguagem € muito bem-configurada, talvez quase “perfeita” quanto a satisfazer condigées externas. Se ha alguma verdade nesta conclusao, é bastante surpreen- dente, por diversas raz6es. Primeiro, as linguas tém sido freqiien- temente pressupostas como objetos téo complexos e defectivos que mal valeria a pena estuda-las sob uma perspectiva teérica rigorosa. Linguagem e mente aL Elas exigem reforma ou sistematizacao, ou substituigio por algo bem diferente, se tém de servir a algum propésito, além dos confu- sos € intrincados assuntos do cotidiano. Essa é a idéia norteadora que inspirou as tentativas tradicionais de inventar uma lingua uni- versal perfeita ou, sob pressupostos teologicos, de recuperar a lingua adimica original, e tem-se aceito algo semelhante em mui- tos trabalhos atuais, de Frege até o presente. Segundo, nao se pode esperar encontrar tais propriedades da configuragao geral em sis- temas bioldgicos, que evolufram no correr de longos periodos por meio de mudangas progressivas, sob circunstincias complicadas e acidentais, tirando o melhor partido possivel de contingéncias dificeis e obscuras. Suponhamos, no entanto, que rejeitemos o ceticismo inicial e tentemos formular algumas questdes razoavelmente claras sobre a otimidade da configuragao geral da linguagem. O “programa mi- nimalista”, como veio a ser chamado, € um esforgo para examinar tais questdes. E gedo demais para oferecer, com alguma seguranga, um julgamento sobre o projeto. Meu proprio julgamento € que os resultados iniciais sio promissores, mas s6 0 tempo dird. Observe-se que o programa minimalista é um programa, nao uma teoria, menos até do que a abordagem de Principios-e- Pardmetros. Ha quest6es minimalistas, mas nao respostas minima- listas especificas. As respostas so 0 que quer que se descubra pela implementagéo do programa: talvez algumas das perguntas nao tenham respostas interessantes, enquanto outras sejam prematuras. Pode nao haver respostas interessantes, porque a linguagem huma- na é um caso do que o laureado com o prémio Nobel francois Ja- cob uma vez chamou de bricolage; a evolugao é oportunista, uma inventora que usa quaisquer utensflios que estejam 4 mao e neles faz remendos, introduzindo pequenas mudangas para que possam funcionar um pouco melhor do que antes. Isso, € claro, serve apenas como uma imagem pitoresca. Ha outros fatores a considerar. Indiscutivelmente, a evolugéo prosse- gue dentro do arcabougo estabelecido pelas leis da fisica e da qui- mica e as propriedades de sistemas complexos, sobre as quais muito pouco se sabe. Dentro desse canal fisico, a selegéo natural desempenha um papel que pode variar de zero a algo bem substan- cial. " AZ Noam Chomsky Do Big Bang as grandes moléculas, a configuragao geral re- sulta da agio de lei fisica: as propriedades do hélio ou dos flocos de neve, por exemplo. Os efeitos da selegao comegam a aparecer com formas orginicas mais complexas, embora a compreensio decline 4 medida que aumenta a complexidade, e tem-se de estar precavido para o que os bidlogos evolucionistas Richard Lewontin, Stuart Kauffman, e outros, chamaram de “Histérias Assim, Assim” (Just So Stories) — histérias sobre como as coisas poderiam ter acontecido, ou nao. Kauffman, por exemplo, argumentou que muitas das propriedades do “sistema regulatério gendmico que compele os padrées de atividade genética a um comportamento util” durante o crescimento dos organismos “sao tragos auto- organizados, espontdneos, de sistemas de controle complexo que nao exigem quase nenhuma selegdo”, sugerindo que “temos de repensar a biologia evolucionista” e procurar “fontes de ordem fora da selegao”. Sao raros os bidlogos evolucionistas que descar- tam tais idéias como nado-merecedoras de atengaéo. Olhando além, pressupe-se geralmente que fendmenos tais como a capa poliédri- ca dos virus, ou o aparecimento em formas orginicas de proprie- dades de uma série aritmética bem-conhecida chamada série de Fibonacci (“filotaxe”), provavelmente se agrupam melhor com os flocos de neve do que com a distribuigéo das mariposas claras ¢ escuras ou 0 pescogo de uma girafa. Indiscutivelmente, para qual- quer caso que se estude, tem-se de determinar como 0 canal fisico restringe os resultados e que opgoes ele permite. Além disso, ha questées independentes que tém de ser esmiu- gadas. O que aparenta ser uma configuragao geral maravilhosa pode bem ser um exemplo paradigmatico de gradualismo que in- depende da fungio em questao. O uso ordindrio da lingua, por exemplo, depende dos ossos do ouvido interno que migraram dos maxilares dos répteis. Acredita-se atualmente que 0 processo é conseqtiéncia do crescimento do neocértex nos mamiferos e “sepa- ra os verdadeiros mamiferos de todos os outros vertebrados” (Sci- ence, 1° dez. 1995), Um engenheiro acharia que esse “delicado sistema de amplificagio do som” é esplendidamente projetado para a fungao da linguagem, mas a mie natureza nao teve isso em mente quando o processo comegou ha 160 milhdes de anos, nem ha qualquer efeito selecional conhecido do empréstimo do sistema para uso pela linguagem. Linguagem e mente AB A linguagem humana situa-se bem além dos limites do enten- dimento sério dos processos evolucionistas, embora haja especula- ges sugestivas. Acrescentemos outra. Suponhamos que criemos uma “Histéria Assim, Assim” com imagens derivadas dos flocos de neve e nao das cores das mariposas e dos pescogos das girafas, e com configuragao geral determinada por Jei natural e nao por bricolagem por meio da selegio. Suponhamos que existiu um anti- go primata com toda a arquitetura mental humana no lugar, mas sem faculdade de linguagem. A criatura compartilhou nossos mo- dos de organizagao perceptual, nossas crengas e desejos, nossas esperangas e temores, na medida em que esses nao sio formados ¢ mediados pela linguagem. Talvez tenha tido uma “linguagem do pensamento”, no sentido de Jerry Fodor e outros, mas nio um meio de formar expressées lingiifsticas associadas com os pensa- mentos que essa Lingua Mentis torna disponiveis. Suponhamos que uma mutagao tenha ocorrido nas instrugdes genéticas para’o cérebro, que foi entio reorganizado de acordo com as leis da fisica e da quimica para instalar a faculdade de lin- guagem. Suponhamos que o novo sistema era, além do mais, belis- simamente configurado, uma solugéo quase perfeita para as condigées impostas pela arquitetura da mente/cérebro na qual se insere, outra ilustragdo de como as leis naturais trabalham de modo maravilhoso; ou, se se prefere, uma ilustragao de como o funileiro evolucionario poderia satisfazer condigdes complexas da configu- ragdo geral com ferramentas muito simples. Sejamos claros: trata-se de fabulas. Seu tinico valor compen- sador € que talvez ndo sejam mais implausiveis do que outras, ¢ podem até acabar tendo alguns elementos de validade. As imagens cumprem sua fungao se nos ajudam a formular um problema que no fim poderia ter sentido e ser até significativo: basicamente, 0 problema que motiva o programa minimalista, que explora a intui- cdo de que o resultado da fabula pode ser exato de maneiras inte- ressantes. Observe-se uma certa semelhanga com o problema Idgico da aquisigao de lingua, uma reformulagio da condigéo de adequagaio explicativa como um dispositivo que converte a experiéncia em uma lingua, tomada como um estado-de um componente do cére- bro. A operagao é instantinea, embora o processo claramente nao AA Noam Chomsky o seja. A questéo empirica séria é quanta distorgio € introduzida pela abstragao. Um tanto surpreendentemente, talvez, parece que pouca distorgao é introduzida, caso alguma o seja: € como se a lingua aparecesse instantaneamente, pela selegio das opgdes dis- poniveis no estado inicial. Apesar da grande variagio na experién- cia, os resultados parecem ser notavelmente semelhantes, com interpretagdes compartilhadas, freqiientemente de sutileza extre- ma, para expressGes lingiiisticas de tipos que possuem pouca se- melhanga com qualquer coisa experienciada. Isso nao € 0 que esperarfamos se a abstragdo para a aquisigao instantanea introdu- zisse severas distorgdes. Talvez a conclusao reflita nossa ignoran- cia, mas a evidéncia empirica parece apoid-la. Independentemente disso, na medida em que tem sido possivel explicar propriedades de linguas individuais em termos da abstragao, temos evidéncia adicional de que a abstragio, de fato, capta propriedades reais de uma realidade complexa. As questées propostas pelo programa minimalista sao de al- gum modo similares. Certamente, a faculdade de linguagem nao foi instantaneamente inserida na mente/cérebro com o resto da arquitetura totalmente intacta. Mas estamos perguntando agora até que ponto é bem-configurada, com base nesse pressuposto contra- factual. Em que medida a abstracio distorce uma realidade am- plamente mais complexa? Podemos tentar responder a esta pergunta aproximadamente como respondemos a pergunta andloga sobre o problema légico da aquisigao de lingua. Para fazer prosseguir 0 programa, temos de agugar as idéias consideravelmente, ¢ hd meios de fazé-lo avangar. A faculdade de linguagem se encaixa dentro da arquitetura mais ampla da men- te/cérebro. Ela interage com outros sistemas, que impdem condi- ges que a linguagem tem de satisfazer se ela € para ser utilizavel de qualquer modo que seja. Estas poderiam ser consideradas “con- digSes de legibilidade”, chamadas “condigoes de saida nuas” (bare ouiput conditions) na literatura técnica. Os sistemas dentro dos quais a faculdade de linguagem se encaixa tém de ser capazes de “ler” as expressdes da lingua e us4-las como “instrugdes” para o pensamento e a acao. Os sistemas sensorimotores, por exemplo, tém de ser capazes de ler as instrugdes que tém a ver com o som. Os aparatos articulatério e perceptual tém uma configuragao geral especifica que os capacita a interpretar certas propriedades, e nao Linguagem e mente 45 outras. Esses sistemas entio impdem condigées de legibilidade aos processos gerativos da faculdade de linguagem, que tém de forne- cer expressdes com a “representagao fonética” apropriada. O mesmo vale para o sistema conceitual ¢ outros que fazem uso dos recursos da faculdade de linguagem. Eles tm suas pro- priedades intrinsecas, que requerem que as expressGes geradas pela lingua tenham certos tipos de “representagdes semanticas”, € nao outros. Podemos entao expressar a pergunta inicial em outros termos e de uma forma algo mais explicita. Agora perguntamos em que medida a linguagem 6 uma “boa solugio” para as condigées de legibilidade impostas pelos sistemas externos com que ela intera- ge. Se os sistemas externos estivessem perfeitamente compreendi- dos, de modo que soubéssemos exatamente 0 que sao as condigdes de legibilidade, 0 problema que estamos levantando iria, ainda assim, exigir clarificagio: teriamos de explicar mais claramente o que queremos dizer com “configuragao geral 6tima”, uma questio nao-trivial, embora nao-insolivel tampouco. Mas a vida nunca é facil assim. Os sistemas externos nao estéo muito bem entendidos, e, de fato, o progresso no seu entendimento caminha lado a lado com 0 progresso no entendimento do sistema lingiiistico que com eles interage. Assim, enfrentamos a tarefa assustadora de, simulta- neamente, determinar as condigdes do problema e tentar satisfa- zé-las, com as condigdes mudando & medida que aprendemos mais sobre como satisfazé-las. Mas isso é 0 que se espera ao se tentar entender a natureza de um sistema complexo. Assim, estabelece- mos, a titulo de experiéncia, qualquer terreno que parega razoa- velmente firme, e tentamos prosseguir dai, sabendo bem que o terreno é capaz de mudar. O programa minimalista exige que submetamos os pressu- postos convencionais a um cuidadoso escrutinio. O mais respeita- vel desses pressupostos é 0 de que a linguagem tem som e significado. Em termos atuais, isso traduz a tese de que a faculdade de linguagem emprega outros sistemas da mente/cérebro em dois “niveis de interface”, um relacionado com 0 som, 0 outro com o significado. Uma dada expressio gerada pela lingua contém uma representagao fonética, que é legivel para os sistemas sensorimoto- res, € uma representagio semantica, que é legivel para o sistema AG Noam Chomsky conceitual e outros sistemas do pensamento e da agao, e pode con- sistir somente nesses objetos emparelhados. Se isto esta correto, em seguida temos de perguntar exata- mente onde a interface se localiza. No lado do som, tem de ser determinado em que medida, se é que ha alguma, os sistemas sen- sorimotores sao especiticos da linguagem e, portanto, esto dentro da faculdade de linguagem; ha consideravel discordancia sobre essa matéria. No lado do sentido, as questdes tém a ver com as relagoes entre a faculdade de linguagem e outros sistemas cognili- vos — as relagGes entre linguagem e pensamento. Do lado do som, as quest6es foram estudadas aprofundadamente, com tecnologia sofisticada, por meio século, mas os problemas sao dificeis e a compreensao permanece limitada. Do lado do significado, as questdes sio muito mais obscuras. Isso porque se sabe menos so- bre os sistemas externos a linguagem; grande parte da evidéncia a seu respeito esté tao intimamente ligada 4 linguagem que € reco- nhecidamente dificil determinar quando se relaciona com a lingua- gem, quando com outros sistemas (na medida em que sao coisas distintas). E a investigagao direta, do tipo que é possivel para os sistemas sensorimotores, esté no seu inicio. Contudo, ha uma quantidade enorme de informagio sobre como as expressdes sio usadas e entendidas em circunstancias especfficas, o suficiente para que a semantica das linguas naturais seja uma das mais vigo- rosas areas do estudo da linguagem, e podemos fazer pelo menos algumas conjeturas a respeito da natureza do nivel de interface e das condigGes de legibilidade que ele deve satisfazer. Com alguns pressupostos conjeturais sobre a interface, pode- mos prosseguir em diregado a novas questées. Perguntamos quanto do que estamos atribuindo a faculdade de linguagem € realmente motivado pela evidéncia empirica e quanto € um tipo de tecnolo- gia, adotada para apresentar os dados de uma forma cémoda, em- bora encobrindo lacunas de compreensio. Com certa freqiiéncia, explicagdes que sio apresentadas em trabalhos técnicos reve- lam-se, sob investigagao, como tendo aproximadamente a mesma ordem de complexidade do que esta para ser explicado e envolvem pressupostos que nao sao muito bem fundados independentemente. Isso nio é problematico, desde que nao nos enganemos pensando que descrigdes titeis ¢ informativas, que podem fornecer meios para a investigacao futura, sejam mais do que isso. Linguagem e mente 47 Tais quest6es sio sempre apropriadas em principio, mas fre- qiientemente nao vale a pena formula-las na pratica; elas podem Ser prematuras, porque a compreensao é simplesmente limitada demais. Mesmo nas ciéncias hard, na verdade mesmo na matema- tica, quest6es desse tipo tém sido comumente postas de lado. Mas as quest6es sao, nao obstante, reais, e, com um conceito mais plau- sivel do carater geral da linguagem 4 disposicgdo, talvez valha a pena explora-las. Vamos passar para a questao da otimidade da configuragéo geral da linguagem: Em que grau a linguagem € uma boa solucao para as condig6es gerais impostas pela arquitetura da men- te/cérebro? Essa pergunta, também, pode ser prematura, mas, dife- rentemente do problema de distinguir entre pressupostos fundados em principios e tecnologia descritiva, pode nao ter nenhuma res- posta: como mencionei, nado hi nenhuma razdo séria para se espe- rar que os sistemas bioldgicos tenham uma boa configuragio, em qualquer sentido que seja. Vamos pressupor hipoteticamente que ambas as questées se- jam apropriadas, tanto na pratica como em principio. Agora pros- seguimos para submeter a um detalhado escrutinio principios da linguagem ja postulados, para ver se sio empiricamente justifica- dos em termos das condigées de legibilidade. Citarei uns poucos exemplos, pedindo desculpas, de antem4o, pelo uso de terminolo- gia mais técnica, que tentarei manter a um mfnimo, mas nao tenho tempo aqui para explicar de modo satisfatério. Uma questao é se hd niveis que nio sejam os de interface: Existem niveis “internos” a linguagem, em particulaf os niveis de estrutura profunda e de superficie que desempenharam um papel substancial na pesquisa moderna? O programa minimalista procura mostrar que tudo 0 que foi explicado até agora em termos desses niveis foi mal descrito, e € compreendido igualmente ou melhor em termos de condigoes de legibilidade na interface: para aqueles dentre vocés que conhecem a literatura técnica, isso significa o principio de projegao, a teoria da ligag&o, a teoria do Caso, a con- digdo sobre cadeias, e assim por diante. Também tentamos mostrar que as tinicas operagdes computa- cionais sao aquelas que sao inevitaveis sob os pressupostos mais fracos relativos as propriedades de interface. Um desses pressu- 48 Noam Chomsky postos é que ha unidades do tipo de palavras: os sistemas externos tém de ser capazes de interpretar itens, tais como “mulher” e “alta”. Outro € que esses itens se organizam em expressdes maio- res, tais como “mulher alta”. Um terceiro é que os itens tm pro- priedades de som e significado: a palavra “mulher” comega com oclusio dos labios e é usada para referéncia a pessoas, uma nogaio sutil. Logo, a linguagem envolve trés tipos de elementos: as pro- priedades de som e significado, chamadas “tragos”; os itens que so montados a partir dessas propriedades, chamados “itens lexi- cais”; e as expressdes complexas construidas a partir dessas unida- des “atémicas”. Segue—se que o sistema computacional que gera expressdes tem duas operagées basicas: uma monta itens lexicais com 0s tragos, a outra forma objetos sintaticos maiores a partir dos j4 construfdos, comegando pelos itens lexicais. Podemos imaginar a primeira operagéo como essencialmente uma lista de itens lexicais. Em termos tradicionais, essa lista, cha- mada léxico, é a lista das “excegdes”, associagdes arbitrarias de som e significado e escolhas especificas entre as propriedades morfoldgicas tornadas disponiveis pela faculdade de linguagem. Vou me restringir aqui ao que € chamado, tradicionalmente, de “tracos flexionais”, que indicam que nomes e verbos sao plural ou singular, que nomes tém caso nominativo ou acusativo, enquanto verbos tém tempo e aspecto, e assim por diante. Esses tragos flexi- onais acabam desempenhando um papel central na computagao. Uma configuragéo geral 6tima nao introduziria novos tragos no curso da computagao. Nao haveria unidades sintagmaticas nem niveis de barras, e por isso nem regras de estrutura sintagmatica nem teoria X—barra; e tampouco {ndices, e por isso nem teoria da ligagdo usando indices. Também tentamos mostrar que nenhuma relagao estrutural € invocada, além das forgadas pelas condigdes de legibilidade ou induzidas, de algum modo natural, pela propria computagao. Na primeira categoria, temos propriedades, tais como a adjacéncia no plano fonético, e, no nivel semantico, a estrutura argumental e as relagSes quantificador-varidvel. Na segunda cate- goria, temos relagdes elementares entre dois objetos sintaticos montados juntos no curso da computagdo: a relagéo que vigora entre um desses e as partes do outro é um candidato razodvel; é, em esséncia, a relacio de c-comando, como Samuel Epstein sali- entou, uma nogio que desempenha um papel central em todas as Linguagem e mente 4g partes da configuragao geral da linguagem e tem sido vista como altamente antinatural, embora nesta perspectiva ache um lugar apropriado de modo natural. De forma semelhante, podemos usar relagdes muito locais entre tragos; as mais locais, dai as melhores, slo as que sao internas a unidades do tipo da palavra, construidas a partir de itens lexicais. Mas excluimos regéncia e regéncia apro- priada, relagdes de ligagaio internas a derivagéo de expressbes e€ uma variedade de outras relagdes e interagées. Como qualquer um familiarizado com a pesquisa recente esté ciente, em toda parte ha ampla evidéncia empirica para apoiar a conclusio oposta. Pior ainda, um pressuposto nuclear do trabalho dentro do arcabougo de Princfpios-e-Parametros e de suas bem impressionantes realizagdes € que tudo que acabei de propor é falso — que a linguagem € altamente “imperfeita” nesses aspectos, como se poderia esperar. Assim, nao é uma tarefa simples mostrar que tal aparato é elimindvel como tecnologia descritiva indeseja- vel; ou, até melhor, que as forgas descritiva e explicativa sio es- tendidas se tal “excesso de bagagem” for deixado. No entanto, penso que a pesquisa dos tltimos anos sugere que essas conclu- sées, que pareciam despropositadas uns poucos anos atras, sao pelo menos plausiveis, e bem possivelmente corretas. As linguas claramente diferem entre si, e queremos saber como. Um aspecto é a escolha de sons, que variam dentro de uma certa gama. Outro € a associagao de som e significado, essencial- mente arbitraria) Ambos os aspectos sao Gbvios e nao precisam nos deter. Mais interessante € 0 fato de que as linguas diferem nos sistemas flexionais: sistemas de caso, por exemplo.Vemos que esses siio bastante ricos em latim, mais ainda no sanscrito ou fin- landés, mas minimos no inglés e invisiveis no chinés. Ou assim parece; consideragdes de adequagio explicativa sugerem que aqui também a aparéncia pode ser enganosa; e, de fato, pesquisa recente indica que esses sistemas variam muito menos do que as formas superficiais sugerem. O chinés ¢ 0 inglés, por exemplo, podem ter © mesmo sistema de caso que o latim, mas uma realizagao fonética diferente, embora os efeitos se manifestem de outras maneiras > Comentédrio posterior do autor sobre o fato de os efeitos do sistema de caso terem manifestagdes que independem do tipo de reatizag’o fonética. (N. do T.) 50 Noam Chomsky Além do mais, parece que grande parte da variedade das linguas pode ser reduzida a propriedades dos sistemas flexionais. Se isso esté correto, entao a variagao entre as linguas se localiza numa parte reduzida do léxico. Os tragos flexionais diferem dos que constituem os itens lexi- cais. Considere-se qualquer palavra, digamos, o verbo “ver”. Suas propriedades fonéticas e semanticas sao intrinsecas a ele, como 0 é a sua categoria lexical de verbo. Mas ele pode aparecer com flexao singular ou plural. Tipicamente, um verbo tem um valor ao longo de sua dimensao flexional, mas isso nao é parte de sua natureza intrinseca. O mesmo é geralmente verdadeiro a respeito das cate- gorias substantivas nome, verbo, adjetivo, algumas vezes chama- das “classes abertas” porque novos elementos podem ser-lhes acrescidos um tanto livremente, em contraste com os sistemas flexionais, que sao fixados cedo na aquisigéo de uma lingua. Ha complexidades e refinamentos de segunda ordem, mas a distingio basica entre as categorias substantivas e os dispositivos flexionais é razoavelmente clara, nado somente na estrutura da lingua, mas também na aquisigao e patologia, e recentemente ha até algum trabalho sugestivo sobre a formagao de imagens no cérebro. Po- demos deixar as complicagdes de lado e adotar uma idealizagio que distingue nitidamente entre itens lexicais substantivos como “ver” e “casa” e os tragos flexionais que se associam a eles, mas nao sao parte de sua natureza intrinseca. As condigées de legibilidade impdem uma divisio tripartite entre os tragos montados como itens lexicais: (1) tragos semanticos, interpretados na interface semantica, (2) tragos fonéticos, interpretados na interface fonética, (3) tragos que nao sao interpretados em nenhuma das duas interfaces. Suponha que o chinés e o latim tenham o mesmo sistema de caso (nominativo, acusativo, obliquo, talvez outras diferenciagdes). Em latim ha varias realiza- ges fonéticas. Em chinés no hd nenhuma. Mas a teoria do caso tem outros efeitos, e em grande ntimero. Um € que, a menos que a lingua tenha um default (0 que também tem conseqiiéncias), sintagmas nominais nao podem aparecer em posigdes que nao sejam marcadas por caso (digamos, sujeito de oracio nio-flexionada). Suponha que encontremos tais lacunas em chinés. Entiio ha- veria um efeito do sistema de caso, independente do tipo de realizagao fonética (relativamente rica em latim, zero em chinés). Linguagem e mente 51 Pressupomos que os tragos fonéticos e seminticos sao inter- pretaveis uniformemente em todas as linguas: os sistemas externos situados na interface sao invariantes; de novo, um pressuposto classico, embora de nenhum modo ébvio. Independentemente disso, os tragas se subdividem em “tragos formais”, que séo usados pelas operagdes computacionais que constroem a derivagao de uma expressio, e outros que nao sao acessados diretamente, mas somente “carregados juntos”. Um principio natural que restringiria sensivelmente a variagio das linguas seria que somente propriedades flexionais sao tragos for- mais: somente esses sio acessados pelos processos computacio- nais. Isto pode muito bem estar correto, um assunto importante em que sd poderei tocar breve e inadequadamente. Uma condigio ainda mais forte seria que os tragos flexionais sao formais, acessi- veis, em principio, pelos processos computacionais, e condigdes ainda mais fortes podem ser impostas, topicos que estao agora sob investigacgao ativa, freqiientemente perseguindo intuigdes nitida- mente diferentes. Um pressuposto classico e compartilhado, que parece correto e fundamentado, é que os tragos fonéticos nao sao nem semanticos nem formais: eles nao recebem nenhuma interpretagdo na interface semantica e nao so acessados pelas operagdes computacionais. De novo, ha complexidades de segunda ordem, mas podemos dei- xd-las de lado. Podemos imaginar os tragos fonéticos como sendo despidos e retirados (stripped away) da derivagaéo por uma opera- gao que se aplica ao objeto sintatico j4 formado. Essa operagio ativa 0 componente fonoldgico da gramatica, que converte 0 objeto sintdtico em uma forma fonética. Com os tragos fonéticos despidos e retirados, a derivagdo continua, mas usando o resfduo despido deixado dentro, desprovido de tragos fonéticos, e que € convertido em representagdo semantica. Um principio natural da configuragao geral dtima é que as operagdes podem se aplicar em qualquer lu- gar, inclusive em lugar nenhum. Assim pressupondo, podemos fazer uma distingdo entre as operagdes abertas, que se aplicam antes de os tragos fonéticos serem despidos e retirados, e opera- gGes encobertas, que carregam o residuo adiante, para a represen- tagéo semintica. Operagées encobertas nao tém efeito sobre o som de uma expresso, somente sobre o que ela significa. 52 Noam Chomsky Outra propriedade da configuragao geral étima é que a com- putagao, desde os itens lexicais até a representagdo semintica, é uniforme: as mesmas operagées, quer abertas ou encobertas, de- vem se aplicar em toda parte. Parece haver um importante sentido em que isso € verdade. Embora operagGes abertas e encobertas tenham diferentes propriedades, com conseqiiéncias empiricas interessantes, essas distingGes podem ser redutiveis a condigdes de legibilidade na interface sensorimotora. Se é assim, elas sao “ex- trinsecas” 4 configuragao geral nuclear da linguagem de um modo fundamental. Tentarei explicar 0 que quero dizer com isso mais tarde. Pressupomos, entaéo, que, numa lingua dada, montam-se itens lexicais com tragos, e entao as operagdes computacionais, fixas e invariantes, constroem representagdes semanticas a partir daqueles de maneira uniforme. Em algum ponto da derivac&o, 0 componente fonoldgico acessa a derivagao, despindo e retirando os tragos fo- néticos e convertendo o objeto sintatico em forma fonética, en- quanto © resfduo prossegue para a representagéo semintica por operagGes encobertas. Também pressupomos que os tragos formais sao flexionais, ndo-substantivos, de modo que néo somente os tracos fonéticos mas também os tragos semanticos substantivos sio inacessiveis 4 computagdo. As operagdes computacionais sao, portanto, muito restritas e elementares, e a aparente complexidade e variedade das linguas deveria reduzir-se, essencialmente, As pro- priedades flexionais. Embora os tragos seminticos substantivos nao sejam formais, tragos formais podem ser semanticos, com um significado intrinse- co. Tome-se a propriedade flexional de nimero. Um nome ou um verbo pode ser ou singular ou plural, uma propriedade flexional e nao uma parte de sua natureza intrinseca. Para os nomes, 0 namero atribuido tem uma interpretagio semantica: as sentengas “Ele vé o livro” e “Ele vé os livros” {ém significados diferentes. Para 0 ver- bo, entretanto, o ntimero nio tem interpretagao semantica; ele nao acrescenta nada que j4 nao esteja determinado pela expressio na qual aparece, neste caso, seu sujcito gramatical “Ele”. Na superfi- cie, 0 que acabei de dizer parece no ser verdadeiro, por exemplo, em sentengas que parecem desprovidas de sujeito, um fendmeno comum nas linguas rominicas e muitas outras. Mas um exame mais atento apresenta fortes razes para crer que 0 sujeito, na ver- dade, esta 14, ouvido pela mente, embora nao pelo ouvido. Linguagem e mente 53 A importancia da distincao entre tragos formais interpretaveis € ininterpretaveis néo foi reconhecida até muito recentemente, no curso da atividade do programa minimalista. Ela parece ser central a configuragao geral da linguagem. Numa linguagem contigurada perfeitamente, cada trago seria semantico ou fonético, nao meramente um dispositive para criar uma posigao ou para facilitar uma computagio. Se é assim, nao haveria tragos ininterpretiveis. Mas, como acabamos de ver, essa & uma exigéncia forte demais. Os tragos de caso nominativo e acu- sativo violam a condigéo, por exemplo. Esses nao tém interpreta- cao na interface semantica, e nado precisam ser expressos no nivel fonético. O mesmo é€ verdadeiro a respeito das propriedades flexi- onais de verbos e adjetivos, e ha outras igualmente, que nao sao tao dbvias na superficie. Podemos, portanto, considerar uma. exi- géncia concernente @ configuragio geral 6tima que seja mais traca, embora ainda bastante forte: cada trago € ou semantico ou acessi- vel ao componente fonoldgico, que pode usar (e algumas vezes usa) 0 trago em questdo para determinar a representagao fonética. Em especial, os tragos formais s4o ou interpretéveis ou acessiveis ao componente fonoldgico. Os tragos de caso sao ininterpretiveis, mas podem ter efeitos fonéticos, embora nao precisem, como no chinés e geralmente no inglés, ou mesmo as vezes em Iinguas com flexao mais visivel, como o latim. O mesmo € verdadeiro a res- peito de outros tragos formais ininterpretaveis. Pressuponhamos (controvertidamente) que essa condigéo mais fraca vigore. Fica- mos ainda com uma imperfeigio da configuragao geral da lingua- gem: a existéncia de tragos formais ininterpretdveis, que agora pressupomos serem somente tragos flexionais. Parece haver uma segunda e mais dramatica imperfeicdo na configuragao geral da linguagem: a “propriedade de deslocamen- to”, que € um aspecto que pervaga a linguagem: os sintagmas sio interpretados como se estivessem em uma posic¢io diferente na expressio, onde itens semelhantes algumas vezes efetivamente aparecem e sao interpretados em termos de relagdes locais natu- rais. Seja a sentenga Clinton seems to have been elected (“Clinton parece ter sido eleito”). Compreendemos a relagdo de elect (“ele- ger”) e “Clinton” do mesmo modo que quando estao relacionados localizadamente na sentenga If seems that they elected Clinton 54 Noam Chomsky (Parece que eles elegeram Clinton): “Clinton” € 0 objeto direto de elect, em termos tradicionais, embora “deslocado” para a posigio de sujeito de seems (parece). O sujeito “Clinton” e 0 verbo seems concordam em tragos flexionais neste caso, mas nao tém relacao semintica; a relagdo semantica do sujeito € com o verbo distante elect. Agora temos duas “imperfeigdes”: tragos formais ininterpreta- veis, € a propriedade de deslocamento. Com o pressuposto da con- figuragado geral 6tima, podemos esperar que sejam reduzidas a mesma causa, € este parece ser 0 caso: tragos formais ininterpreta- veis fornecem 0 mecanismo que implementa a propriedade de deslocamento. A propriedade de deslocamento nunca € construfda dentro dos sistemas simbdlicos que sao projetados para propésitos especiais, chamados “linguagens” ou “linguagens formais” num uso metafé- rico que tem sido altamente enganador, eu acho: “a linguagem da aritmética” ou “as linguagens para computador” ou “as linguagens da ciéncia”. Esses sistemas também nao tém sistemas flexionais, dai que tampouco tém tragos formais ininterpretéveis. O desloca- mento e a flexdo sao propriedades especiais da linguagem humana, entre as muitas que séo ignoradas quando os sistemas simbdlicos sao projetados para outros propésitos, livres para nao fazerem caso das condig6es de legibilidade impostas 4 linguagem humana pela arquitetura da mente/cérebro. Por que a linguagem deveria ter a propriedade de desloca- mento € uma questao interessante, que vem sendo discutida por muitos anos sem solugio. Uma proposta antiga é que essa proprie- dade reflete condigGes de processamento. Se é assim, pode em parte ser reduzida a propriedades do aparato articulatério e per- ceptual, sendo, por isso, forgada pelas condigées de legibilidade na interface fonética. Suspeito que outra parte da razio possa ter a ver com fendmenos que tém sido descritos em termos de interpretacao de estrutura de superficie: tépico-comentario, especificidade, in- formagio nova e velha, a forga agentiva que encontramos mesmo em posigao deslocada, e assim por diante. Esses fendmenos pare- cem exigir posig6es particulares na ordem linear temporal, tipica- mente na ponta extrema de alguma construgao. Se é assim, entdo a propriedade de deslocamento também reflete condigdes de legibi- lidade na interface semantica; ela é motivada por exigéncias inter- Linguagem e mente 55 pretativas que séo impostas externamente por nossos sistemas de pensamento, que tém essas propriedades especiais, assim parece. Essas quest6es estao sendo investigadas atualmente de modos inte- ressantes, nos quais nao podemos entrar aqui. Desde as origens da gramiatica gerativa, pressupds-se que as operagSes computacionais cram de dois tipos: regras sintagmati- cas, que formam objetos sintaticos maiores a partir dos itens lexi- cais, € regras transformacionais, que expressam a propriedade de deslocamento. Ambas tém raizes tradicionais; sua primeira for- mulagao moderadamente clara foi na influente gramatica de Port Royal, de 1660. Mas logo se viu que as operagGes diferem subs- tancialmente do que tinha sido suposto, com variedade e comple- xidade insuspeitadas — conclusGes que tinham de ser falsas pelas razées que discuti ontem. O programa de pesquisa buscou mostrar que a complexidade e a variedade eram somente aparentes e que os dois tipos de regras podem ser reduzidos a uma forma mais sim- ples. Uma solugao “perfeita” para o problema das regras sintag- miaticas seria elimind-las inteiramente, em favor da operagio irredutivel que toma dois objetos j4 formados e anexa um ao outro, formando um objeto maior com exatamente as propriedades do alvo da anexacéo: a operagéo que podemos chamar de Confluir. Esse objetivo pode ser atingivel, pesquisa recente o indica, num sistema chamado “estrutura sintagmatica nua” (bare phrase struc- ture). Pressupondo isso, 0 procedimento computacional 6timo con- siste na operagéo Confluir e nas operagées para expressar a pro- priedade de deslocamento: as operagées transformacionais ou alguma sua contraparte. O segundo dos dois esforgos paralelos buscava reduzir estas 4 forma mais simples possivel, embora, dife- rentemente das regras sintagmaticas, elas paregam ser nio- eliminaveis. O resultado final foi a tese de que, para um conjunto nuclear de fendmenos, ha sé uma tinica operagao Mover — basi- camente, mover qualquer coisa para qualquer lugar, sem proprie- dades especificas de linguas ou de certas construg6es. Como a operagio Mover se aplica, é determinado pelos principios gerais da linguagem em interagao com as escolhas paramétricas especificas que determinam uma lingua particular. 56 Noam Chomsky A operagao Confluir toma dois objetos distintos X e Y e anexa Y a X. A operagao Mover toma um tinico objeto X e um objeto Y que é parte de X, e faz Y convergir para X. Em ambos os casos, a nova unidade tem as propriedades do alvo, X. O objeto formado pela operagéo Mover inclui duas ocorréncias do elemento movido Y: em termos técnicos, a cadeia consistindo nessas duas ocorrén- cias de Y. A ocorréncia na posigio original é chamada o vesiigio. Ha fortes evidéncias de que ambas as posigdes entram na inter- pretagdo semantica de muitas maneiras. Ambas, por exemplo, en- tram em relagdes de escopo e relagées de ligagéo com elementos anaféricos, reflexivos e pronomes. Quando se constroem cadeias mais longas por etapas sucessivas de movimento, as posigdes in- termedidrias também entram em tais relagdes. Determinar exata- mente como isso funciona € um tdpico de pesquisa de muito interesse atual, 0 qual, com pressupostos minimalistas, deveria ser restrito a operagdes interpretativas na interface semAntica; de novo, uma tese altamente controversa. O préximo problema € mostrar que tragos formais ininterpre- taveis sao de fato o mecanismo que implementa a propriedade de deslocamento, de modo que as duas imperfeigdes basicas do siste- ma computacional se reduzem a uma. Se ocorrer, além disso, que a propriedade de deslocamento seja motivada pelas condigdes de legibilidade impostas pelos sistemas externos, como acabei de sugerir, entéo as duas imperfeicdes sio eliminadas completamente e a linguagem acaba sendo, afinal, dtima: tragos formais ininter- pretados sao exigidos como um mecanismo para satisfazer as con- digdes de legibilidade impostas pela arquitetura geral da mente/cérebro, pelas propriedades do aparato de processamento e pelos sistemas do pensamento. A unificagao dos tragos formais ininterpretaveis e da proprie- dade de deslocamento é baseada em idéias bem simples, mas ex- plicd-las cocrentemente iria além do escopo destas observagées. A intuic&o basica fundamenta-se num fato empirico acoplado a um principio da configuracio geral. O fato € que tragos formais inin- terpretaveis tm de ser apagados para a expressio ser legivel na interface semantica; 0 principio da configuragdo geral € que 0 apa- gamento exige uma relagao local entre o traco infrator e um trago que combine com ele — um trago combinante (a matching fea- ture). Tipicamente, esses dois tragos ficam distantes um do outro, Linguagem e mente 57 por razdes que tém a ver com a interpretagao semAntica. Por exemplo, na sentenga Clinton seems to have been elected, a inter- pretagdo semantica exige que elect e “Clinton” estejam relaciona- dos localizadamente no sintagma “elect Clinton” para a construgio ser interpretada apropriadamente, como se a sentenga fosse real- mente seems to have been elected Clinton (parece ter sido eleito Clinton). O verbo principal da sentenga, scents, tem tracgos flexio- nais que sao ininterpretaveis, como vimos: seu niimero e pessoa, por exemplo. Esses tragos infratores de seems tém, portanto, de ser apagados numa relagao local com os tragos combinantes do sin- tagma “Clinton”. Os tragos combinantes sao atraidos pelos tragos infratores do verbo principal seems, que sio entao apagados sob combinagio local. O termo descritivo tradicional para o fendmeno que estamos examinando é “concordancia”, mas temos de Ihe dar contetido explicito, e, como é usual, propriedades inesperadas vém a tona quando o fazemos. Se isso puder funcionar apropriadamente, concluimos que uma lingua particular consiste num léxico, num sistema fonoldgico e em duas operagdes computacionais: Confluir e Atrair. Atrair é forgada pelo principio de que os tragos formais ininterpretaveis tém de ser apagados numa relagio local, e algo semelhante se es- tende a Confluir. Observe-se que somente os tracos de “Clinton” sao atraidos; ainda nao tratamos da propriedade de deslocamento manifesta- mente visivel — o fato de que o sintagma pleno no qual os tragos aparecem, a palavra “Clinton” neste caso, € levado junto com os tragos formais de flexado, que apagam os tracos alyo. Por que o sintagma pleno se movimenta e nfo somente os tragos? A idéia natural € que as razGes tém a ver com a pobreza do sistema senso- rimotor, que é incapaz de “pronunciar” ou “ouvir” tragos isolados separados das palavras das quais sio parte. Dai que, em sentengas tais como Clinton seems to have been elected, 0 sintagma pleno “Clinton” se move junto, como um reflexo da abstragio dos tragos formais de “Clinton”. Na sentenga an unpopular candidate seems to have been elected (um candidato impopular parece ter sido eleito), o sintagma pleno an unpopular candidate levado junto, como um reflexo da atragéo dos tragos formais de candidate. Existem exemplos muito mais complexos. 58 Noam Chomsky Suponhamos que 0 componente fonoldgico esteja desativado. Entao os tragos sozinhos sao algados, e, juntamente com a senten- ¢a an unpopular candidate seems to have been elected, com deslo- camento aberto, temos a expressao correspondente seems to have been elected an unpopular candidate (parece ter sido eleito um candidato impopular). Aqui, 0 sintagma distante an unpopular candidate concorda com o verbo seems, 0 que significa que seus tragos foram atraidos para uma relacao local com seem, embora deixando o resto do sintagma para tras. Tal desativagao do componente fonoldégico, na verdade, ocor- re. Por outras razdes, ndo vemos exatamente esse padréo com sin- tagmas nominais definidos como “Clinton”, mas é comum com indefinidos, tais como an unpopular candidate. Assim temos, lado a lado, as duas sentengas an unpopular candidate seems to have been elected e seems to have been elected an unpopular candidate. A tltima expressio é normal em muitas linguas, incluindo a maio- ria das linguas romanicas. O inglés, o francés e outras linguas as tém também, embora seja necess4rio, por outras razGes, introduzir um elemento semanticamente vazio como sujeito aparente; em inglés, a palavra there, de modo que temos a sentenga there seems to have been elected an unpopular candidate. E também necessa- tio em inglés, embora nao em linguas bastante préximas, executar uma inversio da ordem, por razées bem interessantes que vigoram de forma muito mais geral para essa lingua; por isso, 0 que efeti- vamente dizemos em inglés é a sentenga there seems to have been an unpopular candidate elected. Examinando um pouco mais de perto, suponhamos que X seja um trago que € ininterpretivel e, portanto, tenha de ser apagado. Ele entao atrai o trago Y mais préximo que com ele combina. Y se anexa a X € 0 atraidor X se apaga. Y também se apagaré caso seja ininterpretavel, e permanecer caso seja interpretavel. Esta é a fonte do movimento ciclico sucessivo, entre outras propriedades. Observe-se que temos de explicar o que queremos dizer com “mais proximo”, outra questio com interessantes ramificagées. Para movimentos encobertos, isso é tudo o que ha a dizer: os tragos atraem, € se apagam quando necessario. As operagdes enco- bertas deveriam ser pura atragdo de tracos, sem movimento visivel de sintagmas, embora com efeitos sobre temas como concordancia, controle e ligagéo, de novo um tépico que foi estudado nos tltimos Linguagem e mente 59 anos com alguns resultados interessantes. Se o sistema sonoro nao foi desativado, temos o reflexo que alga o sintagma pleno, colo- cando-o t4o perto quanto possivel do trago atrafdo Y; em termos técnicos, isso se traduz em movimento de um sintagma para o es- pecificador de um niicleo no qual Y se anexou. A operagio € uma versao generalizada do que tem sido chamado pied-piping na lite- ratura técnica. A proposta abre problemas empiricos substanciais e bem dificeis, que s6 foram parcialmente analisados. O problema basico € mostrar que a escolha do sintagma que se move é deter- minada por outras propriedades da lingua, dentro de pressupostos minimalistas. Na medida em que esses problemas forem resolvi- dos, teremos um mecanismo que implementa aspectos nucleares da propriedade de deslocamento de um modo natural. Numa grande gama de casos, a variedade e a complexidade aparentes sao superficiais, reduzindo-se a diferengas paramétricas menores € a uma condi¢do automatica de legibilidade: os tragos formais ininterpretaveis tém de ser apagados, e, de acordo com os pressupostos da configuragao geral dtima, apagados numa relagio local com um trago combinante. A propriedade de deslocamento que se exige para a interpretagao semintica na interface segue-se como um reflexo, induzido pelo carater primitivo dos modos de interpretagdo sensorial. Combinando essas varias idéias, algumas ainda altamente es- peculativas, podemos visualizar tanto uma motivagio quanto um gatilho para a propriedade de deslocamento. Observe-se que os dois tém de ser distinguidos. Um embriologista estudando 0 desen- volvimento dos olhos pode notar o fato de que, para ym organismo sobreviver, seria Util que 0 cristalino contivesse algo que o prote- gesse contra danos e algo que refratasse a luz; e, examinando mais, descobriria que as proteinas cristalinas tém ambas essas proprie- dades e também parecem ser componentes ubiquos do cristalino do olho, manifestando-se em caminhos evolucionistas independentes. A primeira propriedade tem a ver com a “motivacao” ou a “confi- guracao geral funcional”, a segunda com o gatilho que produz a configuragao geral funcional certa. Existe uma relacdo indireta e importante entre elas, mas seria um erro confundi-las. Entéo um bidlogo aceitando tudo isso néo proporia a propriedade funcional 60 Noam Chomsky da configuragao geral como 0 mecanismo do desenvolvimento embrioldgico do olho. Do mesmo modo, nao queremos confundir motivagdes funcio- nais para propriedades da linguagem com mecanismos especificos que as implementem. Nao queremos confundir o fato de que a propriedade de deslocamento é exigida pelos sistemas externos com os mecanismos das operagGes Atrair e seu reflexo. O componente fonolégico € responsdvel por outros aspectos nos quais a configuragao geral da linguagem é “imperfeita”. Ele inclui operagdes além daquelas que sao exigidas por qualquer sis- tema parecido com a linguagem, e essas operagdes introduzem novos tragos e elementos que nao estao em itens lexicais; tragos entoacionais, fonética estrita, talvez mesmo a ordem temporal, numa versao de idéias desenvolvidas por Richard Kayne. “Imper- feigdes” nesse componente da linguagem nao seriam surpreen- dentes: de um lado, porque o aprendiz de uma lingua dispde de evidéncia direta; de outro, por causa de propriedades especiais dos sistemas sensorimotores. Se a manifestagao aberta da propriedade de deslocamento também se reduz a tragos especiais do sistema sensorimotor, como acabei de sugerir, entao uma grande gama de imperfeigdes pode ter a ver com a necessidade de “externalizar” a linguagem. Se pudéssemos nos comunicar por telepatia, elas nao surgiriam. O componente fonoldgico é, em certo sentido, “extrin- seco” & linguagem, e € 0 local onde se situa boa parte de sua im- perfeicao, assim se pode especular. Neste ponto, estamos nos direcionando para quest6es que vao muito além de qualquer coisa que eu possa tentar discutir aqui. Na medida em que os varios problemas encontrem seu devido lugar, resultard que a linguagem é uma boa, talvez até muito boa, solugdo para as condigdes impostas pela arquitetura geral da men- te/cérebro, uma conclusao inesperada se verdadeira, e por isso mesmo intrigante. E, do mesmo modo que a abordagem de Princi- pios-e-Parametros em termos mais gerais, quer essas idéias ve- nham a estar no caminho certo ou nao, elas estio servindo atualmente para estimular uma grande quantidade de pesquisas empiricas, com resultados algumas vezes surpreendentes, e um grande ntiimero de novos e desafiadores problemas, 0 que € tudo que se pode pedir. Discuss6es Primeira Palestra Qual é 0 papel do contexto e da cultura na sua teoria? O contexto e a cultura desempenham 0 mesmo papel que exerceram no estudo de qualquer outro aspecto da biologia huma- na. Se vocé quiser estudar como se da o desenvolvimento da crian- ga de embrido a adulto, vocé vai querer saber qual é a natureza bioldgica do ser humano, por que ele tem bragos e nao asas, por que ele passa pela puberdade numa certa idade, por que o sistema visual desenvolve uma visao binocular, e nao o olho de um inse- to... E vocé vai querer saber também qual € 0 efeito do contato entre mie e filho — acontece que ele tem um grande efeito. Mes- mo para ovelhas, nao somente para seres humanos, 0 contato entre a mae ovelha e 0 cordeiro afeta a habilidade de perceber profundi- dade — apenas uma simples capacidade visual ... Agsim, ha algu- ma interagao emocional entre a mie ovelha e 0 cordeiro que afeta 0 sistema visual. Se vocé estiver interessado em ovelhas, vocé vai estudar tanto a natureza do sistema visual quanto a natureza da interag&o entre a mae ovelha e 0 cordeiro. E, no caso de seres hu- manos, € praticamente a mesma coisa. Assim, a cultura e 0 con- texto entram na medida em que vocé tenta construir um entendimento mais completo de como € a vida humana. Essas abordagens nao estao em conflito: uma apdia a outra. Se vocé qui- ser estudar abelhas, vocé vai examinar a natureza interna de uma abelha, vocé vai querer saber que tipo de coisa ela €. Vocé também vai examinar a organizacao social das abelhas, os sistemas de co- municagao das abelhas — suas organizagées sociais s40 bem com- 62 Noam Chomsky plexas... E esses estudos ensinam uns aos outros; eles nao se con- flitam. Cada um se beneficia com o outro. E interessante que so- mente no caso dos seres humanos isso é considerado um problema. E parte da irracionalidade geral com que nos abordamos. De certa forma, consideramos dificil abordarmos a nds préprios como coi- sas do mundo natural. De certa forma, nos abordamos como anjos ou criaturas do espago césmico. Talvez haja razGes para isso. Mas € um fato. O fato de que as pessoas acreditam que ha algum con- flito entre estudar a natureza biolégica da linguagem e estudar o contexto e a cultura é um reflexo dessa irracionalidade ... E verda- de que se pensa freqiientemente assim, que ha algum conflito. Mas nao ha nenhum. Esses estudos se enriquecem reciprocamente. E uma pesquisa séria numa dessas reas tira conclusées a partir das outras. Como a gramdtica gerativa compreende o texto como unidade? Como a gramitica gerativa compreende o texto como unida- de? Isso nao ocorre, porque o problema é dificil demais. Nem a gramatica gerativa nem qualquer outro t6pico compreende 0 texto como unidade. E certamente verdadeiro que um texto é uma uni- dade; assim, por exemplo, se eu tivesse tomado as sentengas que pronunciei durante a tiltima hora e as tivesse intercambiado aleato- riamente, teria sido completamente incoerente. Desta forma, um texto € uma unidade, mas nosso entendimento do que seja é muito, muito pouco profundo. Como em muitas questées complicadas, simplesmente néo compreendemos. Sabemos que isso acontece, e podemos fazer intimeros comentarios descritivos interessantes a respeito, mas simplesmente no compreendemos quais sao os prin- cipios. Esta muito além do alcance da gramatica gerativa, da andli- se de texto, da andlise do discurso, ou qualquer outra matéria. Isto nao quer dizer que nao possamos dizer coisas interessantes a res- peito. Entéo, a teoria literaria ou a critica literdria é freqiiente- mente extremamente interessante, assim como 0 € a critica de arte, mas nao é ciéncia. A compreensio teérica esta faltando, como na maioria das coisas complicadas. Eu disse antes que nem compre- endemos como um nematédeo se comporta. Esse € um organismo com oitocentas células, e, embora saibamos exatamente como é organizado e interconectado, nao sabemos como se comporta. Linguagem e mente 63 O mundo € um lugar complicado. E quando chegamos ao texto, est4 muito além da compreensao teérica. O senhor acha que o sentido é anterior a palavra, ou é gerado por ela, ou a pergunta nao tem sentido? Nao ha meio de responder a essa pergunta. Temos de distin- guir sobre o que estamos falando. Se estamos considerando uma pessoa que estd ouvindo alguém falando, a palavra vem antes do sentido, obviamente. Isto €, quando vocé esté me ouvindo, a pri- meira coisa que acontece 6 que 0S Ossos se Movem em seu ouvido e entao as coisas vao para 0 seu sistema auditivo, e entéo de certa forma atingem seu sistema cognitivo e entéo, por ultimo, vocé compreende algo. Isso para o ouvinte. Se pensamos no falante, eu, ninguém tem a minima idéia. Nao sabemos se o significado vem primeiro e entao produzo a sentenga, ou se comego a falar e entdo me dou conta do que estou falando e entio continuo a sentenga. Isso esté completamente além do alcance do entendimento humano — agora, talvez sempre. Nao temos nenhuma introspeccao sobre isso € nao temos nenhum conhecimento cientffico a respeito. As- sim, do ponto de vista do falante, néo ha nada a dizer. E um pro- blema dificil demais. Do ponto de vista do ouvinte, é dbvio. Do ponto de vista da linguagem em si mesma, a questdo nao se coloca. A linguagem em si mesma é um sistema de informagio armazena- da, e num sistema de informagio armazenada nada vem primeiro. Cada uma das partes esta simplesmente 14. E 0 mesmo que per- guntar © que vem primeiro no seu sistema circulatorio. Nao é uma pergunta com sentido, esta tudo simplesmente 14, trabalhando em interagéo com os outros sistemas. Assim, algumas vezes ha uma resposta, sobretudo sobre percepgao, e € um problema dificil, mas pelo menos sabemos 0 que estamos procurando. O som vem pri- meiro e entao o significado. Na produgio da fala, nada é conheci- do, e na linguagem em si mesma a questdo nao surge. O legado do conhecimento, enquanto estrutura inata, leva o homem a uma postura espiritualista diante da realidade. Essa postura espiritualista ndo deixa de ser politica. A pergunta é: O 64 Noam Chomsky senhor vé algo de espiritual em sua teoria lingiiistica, em sua postura politica? Bem, deverfamos voltar atriés varias centenas de anos e reco- nhecer que a grande descoberta de Isaac Newton, o fundador da ciéncia moderna e 0 grande escindalo do século XVII, foi que, como Newton mostrou, 0 universo inteiro é espiritual. Newton foi acusado de introduzir “qualidades ocultas” para explicar a intera- cao de corpos, “principios espirituais”. Ele concordou que os pres- supostos eram “absurdos”, mas, no entanto, verdadeiros. O senso comum me diz que nao posso mover estes dculos sem os tocar. Mas o senso comum esta errado. Posso — eu os estou movendo exatamente agora, quando movo minha mao para cima e para bai- xo. Bem, isso é mistico, e estamos como que presos a isso. O mun- do é um lugar mistico. O que isso significa, ninguém sabe. John Locke, David Hume e outros concluiram que isso tudo se situa além do entendimento humano. Hoje, o aprendemos como parte de nossa ciéncia. Hoje em dia, como que damos isso por certo, mas certamente nao se dava isso por certo no tempo de Newton ou durante séculos depois. Como historiadores da ciéncia salientaram, finalmente “nos acostumamos” aos “absurdos” newtonianos e a conflitos com 0 senso comum muito mais extremos. No caso da linguagem, é praticamente a mesma coisa. Esses sao aspectos do mundo que entendemos parcialmente. Nao sabe- mos como relacioné-los com os mecanismos do cérebro e nao temos meios de predizer como esse relacionamento sera eventual- mente estabelecido — se alguma vez o for. Exatamente como hi uma centena de anos nao se poderia ter predito se a quimica per- maneceria completamente abstrata ou se estaria algum dia vincula- da a alguma forma da fisica fundamental. Estende-se isso a relagdes entre linguagem e politica? Aqui temos de ser bem cautelosos. Se se volta 4 primeira revolugao cog- nitiva (séculos XVII e XVIII) e ao Iluminismo e ao liberalismo classico — que incidentalmente é muito diferente do que agora se chama “liberalismo”, radicalmente diferente —-, mas, se se volta atras ao liberalismo classico real, a Adam Smith, ou Wilhelm von Humboldt, que foi nao somente um grande lingiiista, mas também um dos fundadores do liberalismo classico, e a Rousseau e outros, perceberemos que a vinculacao foi feita. Eles, de fato, vincularam Linguagem e mente 65 suas idéias sobre a liberdade humana, manifestadas mais dramati- camente pela linguagem, e separando os seres humanos dos ani- mais e maquinas, com uma filosofia de liberagao, baseada na idéia de que ser livre é essencial aos seres humanos. E parte da sua natu- reza. Assim, portanto, para um liberal classico, o trabalho assalari- ado é impréprio; é como escravidio. Isso € liberalismo classico, nao é marxismo. Estou agora falando sobre o liberalismo classico do século XVIII, que sustentava que, se uma pessoa trabalha sob comando ou porque é forgada a trabalhar, podemos admirar o que ela faz, mas desprezamos 0 que ela é, porque nao € um ser humano (estou citando von Humboldt). A natureza fundamental do ser humano é€ ser livre de autoridade externa. E isso, de fato, tinha vinculos com idéias sobre a linguagem e 0 uso criativo da lingua, e as idéias cartesianas sobre mente e corpo, e assim por diante. En- tretanto, essas nao sao conexdes légicas. Elas sao conexdes de analogia e especulagao. A natureza humana é uma dessas coisas sobre as quais.simplesmente nao entendemos muito. Temos enten- dimento humano a respeito, mas nao entendimento teérico. Talvez algum dia haja um entendimento melhor, e sera possivel dar algu- ma substancia a essas idéias. Mas, no momento, elas permanecem somente especulativas. Qual o seu julgamento sobre a teoria funcionalista da mente? Eu penso que tem alguma relagdéo com a sua abordagem anti- reducionista, ndo tem? Nao concordo com a teoria funcionalista. E ‘nado sou anti- reducionista. Reducionismo nio é uma questio nas ciéncias, e néo tem sido por centenas de anos, desde que Newton demonstrou que a mecanica nao é redutivel a “filosofia mecanica”, contrariamente as esperangas e expectativas da revolugao cientifica. Se vocé exa- mina a histéria do caso clissico da fisica e da quimica, as duas ciéncias basicas, elas se desenvolveram em relativo isolamento até o século XX — elas nao podiam ser conectadas. Este é 0 exemplo classico. Nos anos 30, a conexao foi estabelecida pela primeira vez. Linus Pauling ganhou o prémio Nobel por ter mostrado que a ligacio quimica poderia ser explicada em termos ffsicos. Ele foi capaz de explicar por que certas moléculas, como OQ; (oxigénio 66 Noam Chomsky com dois 4tomos), eram estaveis. Ninguém tinha compreendido isso antes. Quer dizer, era verdade, mas nao havia raziio fisica. Mas Linus Pauling nao reduziu a quimica a fisica. A razio era que a fisica estava errada. Foi preciso a revolugao quintica, que mudou totalmente a fisica, antes que a relagio pudesse ser estabelecida. Assim a quimica nunca foi reduzida a fisica. De fato, o reducio- nismo é um fenédmeno muito raro nas ciéncias naturais, em larga escala. Algumas vezes se obtém unificagéo, mas ambas as partes mudam — as partes mais fundamentais e as partes mais abstratas. Assim, nao sou anti-reducionista. Uma parte das ciéncias naturais é buscar a unificacdo; nao se pode prever o que vai acontecer. Os funcionalistas deixam de lado a preocupagado com redugao ou ou- tras formas de unificagao. Eles nao consideram as descrigdes fun- cionalistas como parte do mundo real. & como se as pessoas estivessem descrevendo as propriedades dos dtomos e moléculas, digamos, moléculas orginicas, e dizendo: “Bem, sio s6 proprieda- des que a matéria tem, nao é uma explicagao do que a matéria €”. Mas isso me parece uma estranha maneira de proceder. Quando se aprende a férmula estrutural para a molécula de benzeno, nao é um quadro funcionalista da matéria, 6 a matéria. Isso é 0 que a matéria é. Ela tem essas propriedades. Por que ela as tem, nao se sabia, em “termos fisicos”, até recentemente, mas agora se sabe, em termos de uma fisica totalmente revisada. O estudo da linguagem de- via ser igual, na minha opiniio. Nao deveria ser funcionalista, deveria ser antes como a quimica através de quase toda sua histé- ria. A quimica e a lingiifstica ttm muitas semelhangas. Na verdade, elas surgiram mais ou menos ao mesmo tempo — meados do sé- culo XVII —, no sentido moderno. Ambas estao estudando como coisas simples formam estruturas complexas. E estamos tentando descobrir quais s4o essas coisas simples e quais sido os principios de combinagio e quais os de interagao. E claro, elas sao comple- tamente diferentes quanto ao que elas estudam — a quimica e a lingilistica —, mas os estudos prosseguem no mesmo nivel, de certo modo, e ambas tém o problema da unificagio com a teoria das, digamos, particulas em movimento. Bem, com a quimica foi finalmente resolvido, logo incorporando a biologia fundamental também; a respeito de tudo o mais, esté ainda sem solugao. Linguagem e mente 67 Supondo a existéncia de uma gramética universal, haveria, porém, construtos lingiiisticos mais aptos e adequados (ou linguas concretas) para expressar 0 pensamento? Bem, se nao pressupomos a existéncia da gramatica universal, estamos pressupondo que os seres humanos estio fora da natureza. Se os humanos sao parte da natureza, hé uma gramatica universal. Poderfamos fazer a mesma pergunta sobre o sistema visual. Cada cientista pressupde que ha um sistema visual humano que é deter- minado pelo dote genético, e a teoria desse sistema é a contraparte da gramatica universal. O mesmo é verdadeiro a respeito do siste- ma circulatério, ou o fato de que temos bragos e nao asas. Cada aspecto de um organismo, tem-se por certo, € a expressio de seu dote biolégico, sob as condig6es especificas de desenvolvimento. Agora, pelo que parece, a linguagem é bem isolada. Parece ser um desenvolvimento evolutivo recente, exclusivo dos seres humanos, com todas as propriedades muito especiais que os outros sistemas ndo tém. Na verdade, é mais como um érgao especificamente hu- mano do que as coisas que sio comumente chamadas 6rgios. Des- sa forma é mais isolada do que o rim, por exemplo, em suas propriedades, ou o sistema visual. Assim, é um sistema do corpo e, se pensamos que os seres humanos sao parte do mundo, tem um estado inicial, que parece ser uma propriedade da espécie. E a teoria desse estado é 0 que chamamos gramiatica universal. Entao, nao ha realmente nenhuma alternativa em relagdo a se pressupor a gramiatica universal, exceto 0 misticismo. Se nao se aceita o misti- cismo, aceita-se a gramatica universal, exatamente como se aceita a teoria do sistema visual como algo que tentamos descobrir. A tinica questao que surge €: O que ela €? E aqui nao faz sentido perguntar se ha uma linguagem melhor para descrevé-la. Sem dii- vida, ha. Estou certo de que as teorias contemporaneas da gramati- ca universal estao erradas. Se vocé olhar para a histéria das ciéncias, tudo tem estado errado. Vocé chega mais perto da verda- de, mas ndo h muitos cientistas que estejam dispostos a acreditar que a alcangamos. Ja houve cientistas que estiveram, algumas ve- zes no passado, e sempre estiveram errados. E essas sio ciéncias jovens. As chances de que magicamente atinjam a resposta correta sao muito escassas. Assim, € claro, presumo que as teorias muda- rao. Na verdade, minhas opinides sobre elas mudam a cada vez que os estudantes de pés-graduagdo entram na minha sala e falam so- 68 Noam Chomsky bre o trabalho que estao fazendo. Este € 0 modo como a ciéncia é. Vocé aprende mais 4 medida que prossegue. Vocé pressupde que 0 que esta fazendo esta provavelmente errado, mas talvez seja me- thor do que era antes. Assim, ha uma linguagem melhor para des- crevé-la? Se sua pergunta é se ha uma teoria melhor sobre a gramatica universal, eu certamente espero que sim, porque as que temos sao interessantes mas nao tao boas. Desse modo, presumi- velmente, sim, ha uma teoria melhor, e € nisso que as pessoas es- tao trabalhando para tentar descobrir. E ha uma teoria do sistema vi-sual melhor do que as atuais. A teoria do sistema visual, por exemplo, ja registrou muitas realizages, mas nao pode explicar coisas muito simples. Nao pode explicar por que vemos objetos tridimensionais, por exemplo. Parece simples, mas esta além do alcance da teoria contemporanea do sistema visual, embora nesse caso seja possivel fazer experimentos diretos com outrés organis- mos. Por exemplo, os cientistas puseram eletrodos no cérebro de macacos e aprenderam sobre o sistema visual, que é como 0 nosso. Assim podemos aprender sobre o sistema visual. Nao se pode fazer © mesmo com a linguagem. Nao ha outros organismos que tenham © Orgao da linguagem; entdo, nao se pode experimentar. Nao nos permitimos, felizmente, fazer isso com os seres humanos. Portanto, os problemas sao muito dificeis e, mesmo nos casos mais simples, no muito bem entendidos. A teoria da gramatica universal esté seguramente no seu inicio — e estamos esperando encontrar teo- rias melhores —, mas nao existe a questéo de se a gramatica uni- versal existe, a menos, € claro, que se acredite que os seres humanos nao sejam parte do mundo natural. Se os seres humanos sao algum tipo de anjo, ndo sujeitos a principios naturais, bem, Ok, entao talvez nao haja gramatica universal. Mas af nao ha nada mais, tampouco, pelo menos no componente angélico dos seres humanos. Se os seres humanos so parte da natureza, hd a gramati- ca universal, e o problema € descobrir 0 que é. Segunda Palestra Sendo que as linguas sao transmitidas socialmente, e nao bi- ologicamente, e que nogées tao fundamentais da légica humana, como nogées espaciais e temporais, que variam de uma cultura Linguagem e mente 69 para outra, também se relacionam com o social, seré que ndo se deveriam levar em conta processos sociais para explicar nao s6 a estrutura, mas até mesmo a légica gerativa de uma lingua? Eu falo uma das variantes do inglés, e ndo uma das variantes do portugués. Nesse sentido, a lingua é socialmente transmitida. No mesmo sentido, todos os demais aspectos da minha natureza atual sao determinados, em parte, pelo meio ambiente em que cresci. Minha altura, por exemplo. Se alguém com minha estrutura genética exata viveu duas centenas de anos atras, seria muito mais baixo do que eu, porque a nutrigdo nao era, em parte alguma, tao boa. O mesmo é verdadeiro para todos os demais aspectos do de- senvolvimento. Na verdade, algumas vezes essas mudangas sao muito dramaticas. Considere algo que acontece depois do nasci- mento — puberdade, por exemplo. Cada um passa pela puberdade mais ou menos na mesma idade, mas a idade pode variar cerca de um fator de dois, dependendo simplesmente dos niveis nutricio- nais. E se os niveis nutricionais sao bastante baixos, pode nem acontecer. Essa é uma mudanga dramatica mais tarde na vida. E é igual 4 mudanga nas linguas. Em alguns casos, as pessoas podem fazer experiéncias e aprender como funciona. Assim, no caso do sistema visual humano, sabe-se que ha células no cértex visual que identificam linhas com diferentes orientagGes. Entéo, se ha uma linha indo nessa diregao e que atinge meu olho, uma célula dispa- ra, e se esta indo nessa outra diregao, uma célula diferente dispara. Isso € tudo determinado por nossa natureza; € parte da natureza biolégica dos mamiferos. Mas sabe-se que a distgibuigio dessas células, o nimero de células que responderao a diferentes estimu- los, isso pode variar amplamente, dependendo de condigdes nas primeiras semanas de vida. Sabe-se isso em conseqiiéncia de expe- timentos diretos com gatos e macacos, que se pressupdem terem mais Ou menos 0 mesmo sistema visual dos seres humanos. Na verdade, em cada area que se examine, ha, € claro, mudan- gas significativas que sao introduzidas pelo ambiente, ¢ a transmis- sao social das linguas € somente uma delas, nao muito diferente das outras. As interagGes sociais — como as relagdes entre mie € filho, ou também em outros mamiferos entre a mae e o filhote — tém grandes efeitos no crescimento, na visao, em todo tipo de coi- sas. Nao somente nutricao, mas algo acerca dos tipos de relagdes 70 Noam Chomsky que se constroem entre mie ¢ filho. Sabe-se que tém efeitos muito amplos. Se as criangas sao criadas em instituigdes, nao crescem apropriadamente. Elas podem ter toda a comida certa, mas algo pode dar errado. Pode-se ver isso no seu crescimento fisico ¢ na sua habilidade de fazer coisas com as mios, andar, e€ assim por diante. Ninguém entende muito sobre isso, mas a interagéo huma- na ordinaria parece ser exigida para os sistemas internos funciona- rem apropriadamente. E as linguas sao assim. Quanto a idéia de que ha conceitos espaciais e temporais muito diferentes nas diferentes culturas, isso € muito duvidoso. Parece que as linguas sio muito diferentes também, até que se comece a entendé-las. E entéo vocé vé que elas sao todas basica- mente a mesma coisa. Quanto mais vocé entende sobre nogdes espacio-temporais, mais elas parecem basicamente a mesma coisa. Por exemplo, muitos lingiiistas e antropélogos acreditavam, cerca de quarenta anos atrés, que as nogGes temporais variam muito amplamente em diferentes culturas. Isso é parte do que foi chama- do a hipétese de Whorf. A idéia de Whorf era a de que os falantes das linguas indo-européias — digamos, inglés — pensam no tem- po como um tipo de linha na qual estou de pé num ponto especifi- co e estou olhando em diregao ao futuro, e, olhando para tras, por cima do ombro, em diregao ao passado. E esse é de fato 0 modo como eu penso no tempo, e, estou certo, 0 modo como vocé pensa no tempo. Acreditava-se que em outras sociedades — Whorf deu o exemplo de uma sociedade indigena do Sudoeste da América do Norte, Hopi — 0 tempo era concebido de um modo muito diferente. Ele nao sabia nada sobre o pensamento. Quando as’ pessoas tentaram investigar 0 pensamento, pareceu ser basica- mente 0 mesmo que 0 nosso. O que nao é muito surpreendente, porque, mesmo no caso em contraste, especificamente o inglés, nao se encontra o sistema de tempo que Whorf pensava que era exigido para se estabelecer a nogao de linha. O inglés nao tem passado, presente e futuro, Esse nao é 0 modo como 0 tempo se- mintico € determinado em inglés. Se vocé examina o inglés do modo como examinamos 0 hopi, vocé poderia dizer que tem pas- sado e nao-passado. Nao tem futuro, s6 tem um conjunto de con- ceitos modais, como shail e must, can e will, que tém propriedades complicadas, mas nao futuro. Assim, se vocé adotasse a aborda- gem whorfiana para analisar 0 inglés, vocé prediria que nao penso Linguagem e mente 71 no tempo do modo como realmente penso no tempo. Esses sao problemas sérios. Quando vocé descreve fendmenos na superficie, eles sempre parecem muito diferentes. Quando vocé comega a entendé-los, vocé freqiientemente descobre que eles nao sio muito diferentes. E vocé sabe de antemio que isso tem de ser assim nas reas que estamos discutindo agora. Nao ha outro modo de as pes- soas, de uma crianga, adquirir, sem evidéncia, sistemas muito complexos de organizagio do pensamento. E uma crianga sim- plesmente nao tem a evidéncia. A vida é curta demais. Sabemos agora, a partir de experimentos com criangas bem pequenas, que os conceitos basicos de espago e tempo estio 14 muito cedo, muito antes de a crianga poder falar ou dar qualquer indicagao de como esta pensando. E, na medida em que isso € verdadeiro, eles sao uniformes para todas as culturas. Assim, tem-se de ser muito cau- teloso sobre isso. Meu palpite é que a transmissao social das lin- guas € provavelmente como as interagdes com os outros sistemas. Como o programa minimalista trabalha a questao dos tracgos fortes e fracos? Isto é, quando um traco é fraco e, portanto, pode ser checado na Forma Légica em movimento coberto? Bem, essa € uma questao técnica, de alguém que sabe 0 que esta se passando agora. Assim, desculpas a cada um dos demais. Mas a diferenga entre forte/fraco € um tipo de diferenga desagra- davel. Vocé gostaria de se livrar dela, se pudesse... Em meu livro mais recente chamado The minimalist program, esta la e desempe- nha um papel central. Mas ha também um “Capitulo 5S” nao- publicado e nao-escrito desse livro — que est4 como que circulan- do no método informal como essas coisas acontecem —, que tenta dar um argumento de que é possivel se livrar do trago forte. S6 para aqueles dentre vocés que tém o conhecimento técnico, isso significa mostrar que o principio de projegdo estendido é univer- sal, que existe em cada lingua, e que as linguas VSO tém, de fato, um alcamento adicional do verbo. Ha uma tese, na maior parte sobre 0 portugués, de Pilar Barbosa, que estd agora lecionando em Portugal. Ela escreveu uma dissertagéo no MIT, na qual tenta mostrar que isso é verdade para uma ampla variedade de linguas romanicas, incluindo um grande ntimero de dialetos do Norte da

Vous aimerez peut-être aussi