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TRADICAO ORAL AFRO-BRASILEIRA AS RAZOES DE UMA VITALIDADE* Emilio Bonvini™ Resumo Compartithar tradi conserva Ses orais assegura a o da histéria dos costumes de um) povo. A escravidio ¢ as condig Jes em que encontraram os escravos no conseguiram enfraquecer a tradi¢ao oral afro-brasileira, por meio da qual os negros preservaram a sua identidade © afizmaram sua dignidade. Embora nao haja risco de desaparecimento dessas tradigdes, elas permanecem ainda em grande parte desconhecidas. Palavras-chave Tradigies orais, costumes, identidade afro-brasileira. Tradugdo: Karim Khoury Revisdo Técnica: Yara Aun Khoury Abstract Sharing oral traditions ensures the preservation of the history of a people's customs. Slavery and the conditions in which the staves were found in Brazil could not weaken the Afro-Brazilian oral tradition. by means of which the blacks preserved their identity and asserted their dignity. Although there is no risk that these traditions might disappear. the majority of them still remain unknown, Key-words Oral traditions, customs, Afro-Brazilian identity. “Tradition orale afro-brésilienne. Les raisons d’une vitalité” (edigao dedicada a Genevieve Calame-Griaule). Graines de parole. Puissance du verbe et traditions orales. Patis, Centre National de la Recherche Scientifique/Inalco, 1989, ** CNRS, Paris. Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 37 Tradig@o oral... “Na Africa, quando um velho morre, é uma biblioteca que queima!” Quem ousaré dizcr que este aforismo de A. Hampate Ba, constantemente citado, terd sido, durante os tiltimos vinte anos, uma poderosa incitagao a coleta sistematica de textos orais e um retumbante alerta sobre a importancia da tradigao oral na Africa negra? Este grande sabio africano nunca se cansou de insistir nesta imperiosa necessidade. Num artigo recente, que consagrou A tradigao oral, ainda escrevia: N6s nos encontramos atualmente, em tudo que tange a tradigio oral, diante da iiltima geragéo de grandes depositdrios. E por isso que 0 e: car nos préximos dez ou quinze anos; depois disso os grandes monumentos vivos da cultura africana terao desaparecido, e, com eles, os tesouros insubstituiveis de um ensinamento particular, ao mesmo tempo material, psicolégico e espiritual, fundado no sentimento de unidade da vida, cuja fonte se perde na noite dos tempos. (A. Hampate Ba. 1980, p. 229) forgo da coleta deve se inten Um tal aforismo, se levado ao pé da letra, correria 0 risco, em razdo da sua bre- vidade e da sua densidade. de desnaturar a visio global que o proprio autor tem da tradigao oral. Esta 6 mais do que um conjunto de textos orais ¢ ultrapassa os contornos de um individuo: oral Ao contrério do que alguns poderiam pensar (diz ele no mesmo artigo]. a tradig africana nfo se limita, de fato, a contos ¢ lendas, ou mesmo a narrativas mist toricas, e os griots! esto longe de ser os tinicos conservadores ¢ transmissores qualificados. A tradigio oral é a grande escola da vida, cobrindo e envolyendo todos as aspectos, Ela 6, a0 mesmo tempo, religiio, conhecimento, cigncia da natureza, iniciagio & profissio, hist6ria, divertimento e recreagio, sendo que qualquer detalhe pode permitir alcangar a Unidade primordial. Fundada com base na iniciagdo e na experiéncia, ela engaja o homem em sua totalidade, e, neste sentido, podemos dizer que ela contribuiu para criar um tipo de homem particular e para moldar a alma africana. (Idem, p. 193) e his- uma “tradigdo viva’. segundo o titulo do artigo citado, Nés acrescen- ivéncia do grupo porque qualquer grupo E, portanto, taremos que ela s6 existe para a vida € a sobre humano somente vive na medida em que consegue fazer com que todos seus membros 1 Griot: negro da Africa pertencente a uma casta especial ao mesmo tempo poeta, muisico ¢ feiticeiro WT). 38 Proj. Histéria, SGo Paulo, (22), jun. 2001 participem da experiéncia comunitéria e sobrevive somente se Consegue assegurar uma continuidade desta participacao. Para que o grupo possa viver € sobreviver, ¢ preciso uma dupla transferéncia de experiéncia: uma que se efetue no eixo do tempo, o “tempo comunitario”, aquele que constr6i diacronicamente a histéria do grupo, a outra que se realiza no interior do espago do grupo ou “espago comunitério”, 14 onde o vivido do grupo expande todas suas potencialidades de vida, junto a todos os seus membros € justamente hoje. E deste intercimbio contfnuo que depende a vitalidade do grupo. Ora, em contexto de oralidade, 6 a troca direta da palavra que permite a transfe- réncia da experiéncia no meio do grupo e, por af, a sua vida e sua sobrevivencia. Este intercambio, como fato comunitério, situa-se além do intercambio lingiifstico interindi- vidual. Ele é além disso, endossado por “palavras organizadas”, estreitamente ligadas A experiencia total do grupo, aquela do passado, do presente ¢ do futuro. Sao palavras “comunitérias™. atravessadas de um lado a outro por todo o vivido do grupo, orientadas para este vivido num vai-~ vem dialético, no qual o vivido se reflete nas palavras e no qual estas. uma vez proferidas, repercutem, por sua vez, no vivido. Estas palavras “co- munitérias” organizadas, diferenciadas, especializadas em generos miltiplos, si0 Os tex- tos orais, verdadeiros “espelhos falantes” da vida de um povo, segundo a feliz expressao de G. Calame-Griaule, pois € toda a vida da sociedade de ontem ¢ de hoje que esta fundida nos textos orais. Trata-se, portanto, de palavras especializadas na transferencia espago-temporal” da experi¢ncia do grupo ¢, por ai, verdadeiras palavras “tradicionais” no sentido pleno do étimo latino: tradere, “tansferir’, “transmilir’, palavras aptas a “transferir” a “uransmitir” a experi@ncia do grupo. Estas palavras se inscrevem na tra- jetéria de vida do grupo e constituem, juntas, a tradigdo oral. E por isso que, apesar de concebidos no anonimato, os textos orais apresentam-se sempre como palavras den- sas, que dizem respeito 2 vida do grupo. aquela de ontem, de hoje, de amanha. A palavsa “tradig¢ao”, portanto, s6 adquire o scu significado pleno quando se refere a essa dimensio espaco-iemporal da experiéncia do grupo: cla se cnraiza no passado para permitir ao vivido de hoje orientar-se, sem descanso ¢ por meio de um mesmo impulso, para 0 amanha. A tradi¢Zo s6 pode ser um ato de comunidade. Ela faz corpo com ela, Gragas a ela, uma comunidade se recria por si mesma. Ela faz ser de novo aquilo que ela foi ¢ aquilo que ela quer ser. Assim nos parece ser a profunda dinamica da tradigao oral na Africa negra. Proj. Historia, Sao Paulo, (22), jun. 2001 39 -No Brasil Mas 0 que se passa no Brasil? Podemos aplicar & realidade “afro-brasileira” o mesmo aforismo de A. Hampate Ba? No inicio, entre os escravos, nio havia velhos, portanto nao havia “bibliotecas vivas” susceptiveis de assegurar a vida ¢ a sobrevivéncia da “cultura africana”, Além feréncia “espago-tempo- ral” da experiéncia do grupo, é aplicavel 4 realidade atro-brasileira, quando. na origem, disso, 0 termo “tradigao”, implicando, por definigdo, uma tran nao havia uma comunidade pré-constituida, mas, de preferéncia, uma comunidade de desgraga, entre individuos deliberadamente dissociados de seus cong¢neres? No Brasil, “vida” ¢ “sobrevivéncia” ndo podiam ter 0 mesmo significado que na Africa: 0 escravo negro, surrado, acorrentado, condenado a escraviddo, devia primeiro, ¢ sobretudo, viver ¢ sobreviver como individuo e concentrar todas as suas energias para resgatar sua dig- nidade de ser humano. Se existia uma “tradigio oral , cla sé podia ser, de certa mancira. “desviada” de seu objetivo africano inicial, dirigida para uma “vida” ¢ uma “sobrevi- véncia” novas ¢ diferentes no seu contetido. Ora, nado ha dtivida de que existiu ¢ existe ainda hoje no Brasil uma tradigdo oral bastante viva. de origens francamente africanas ¢ que constitui uma verdadcira heranga de conhecimentos de todas as ordens, transmitidos de boca em boca através dos séculos. Le de um desenraizamento brutal devidos apesar de um contexto particularmente hos formulas a escravidio, Esta heranga é constituida de intimeras “palavras organizadas” africanas riltuais, rezas, Cantos, contos. provérbios, adivinhagées... algumas em linguas € outras, as mais numerosas, cm portugués. Através destas “palavras”, @ bem uma “alma” africana que sobreviveu ¢ que vive ainda hoje no Brasil Diante desta heranga, podemos adotar duas atitudes diametralmente opostas, and- as Aquelas que podemos adotar diante de uma garrafa meio cheia ou meio Por um lado, podemos temer e lamentar a perda irrepardvel destas “palavras log: mesmos sentimos esta inquietagao quando, querendo fazer uma investigagao sobre a heranga gurunsi — area privilegiada de nossos trabalhos anteriores no oeste da Africa -. responderam-nos que a presenga dos gurunsi em Salvador, na Bahia, havia terminado por volta dos anos 30, Nao pudemos verificar esta informagio ¢ esperamos ainda en- contrar, em algum jugar, os descendentes destes gurunsi dos quais Nina Rodrigues, no fim do século passado, havia recolhido 120 palavras ¢ sobre os quais Deoscoredes dos Santos publicou dois contos em 1961. 40 Proj. Histéria, Sao Paulo, (22). jun. 2001 E certo que varias “palavras” extremamente preciosas desapareceram e€ correm 0 risco de desaparecer para sempre com o desaparecimento das comunidades que lhes deram origem. como foi o caso dos “negros malés” (negros islamisados de origem peule ¢ hausa), desaparecidos no final do século passado. Seja os exemplos dos contos, que foram objeto de algumas: coletancas recentes, em particular Os mitos africanos no Brasil, coletanea de 55 contos publicada em 1937 por Souza Carneiro, Contos negros da Bahia, coletanca de 30 contos, publicada em 1961, por Deoscoredes M. dos Santos; Contos crioulos da Bahia, coletanea de 22 con- tos. do mesmo autor. publicado em 1976; Lendas africanas dos Orixds, coletanea de 24 contos publicada em 1985, por P. F. Verger. E pouco, muito pouco, porque nds estamos certos de que os contos de origem africana e aqueles que podemos. classificar como “alro-brasilcire respeilo somente aos contos atestados no Ieste da Bahia. ¢ limitam-se, além disso, a podem ser avaliados em milhares. As colctaneas citadas dizem tradigao oral yoruba. com excegio da coletanea de Souza Carneiro, que tem oito contos hausa © uma guarentena de contos bantu. Ora, ¢ bem Souza Carnciro que, em seu texto escrito hé cingiienta anos, apontava jd naquela época, haviam r citada em razdo a encia de especialistas (os akald) da tradig&o oral qui gem que se refere a esta afirmagao merece se tornado raros. A pas da antigitidade do texto ¢ pelo fato de este trabalho ser praticamente desconhecido: ‘Aquele que entra em contato com um acald akpalé em yoruba — 6 obrigado a reconhecer nele uma enciclopédia viva: ele descreve a histéria de seu povo e relata sempre com as mesmas palavras, 08 mesmos gestos, a mesma voz, a mesma miisica ¢ as mesmas cadéncias aquilo que Ihe foi transmitide pelos mais velhos a outros aealds, Nos candomblés (cultos afro-brasileiros) encontramos esses homens de meméria prodigiosa,... educados desde a Infancia como se eles tivessem nascido na Africa, falando a lingua paterna, conhecendo os mistérios do Feiticismo, iniciados... mas raros hoje em dia... (S. Carneiro, 1937, p. 125) © perigo de uma perda irrepardvel ¢ portanto, muito real, também no Brasil. A coleta de textos orais é urgente. Infelizmente cla apenas comegou, ¢ € conduzida de uma mancira pouco sistematica ou insuficientemente rigorosa. Por que uma tal Ientidao na coleta? Negligéncia? Nao cremos. A razio 6 outra € ¢ imputavel a especificidade mesma da tadigio oral afro-brasileira, 0 que nos leva a segunda altitude que podemos igualmente adotar diante deste tipo de material. Podemos de fato considerar a tradigHo oral, atestada atualmente no Brasil como um incomparayvel sucesso de uma vontade individual e coletiva de se impor a um meio Proj. Historia. Sao Paulo. (22). jun. 2001 41 particularmente hostil, pois os negros conseguiram salvaguardar suas crengas e suas sensibilidades. crengas atrativas aos olhos daqucles que. por sua cultura, sao os descendentes diretos e continuar eles mesmos, apesar de tudo, ¢, melhor ainda, tornar suas de scus antigos mestres, Daf a proliferagdo atual dos cultos afro-brasileiros, verdadeiros centros culturais africanos no Brasil. Nesse contexto, ao contrério das aparéncias, a tradigio oral, tal como ela tomou forma no Brasil, nio é um residuo degradado de uma ou outa das tradigies orais da Africa, importadas para o Brasil no curso da escravidao, residuo feito de descontinui- dades e de obras inacabada: guardar 0 essencial da tradig&o oral africana, E até legitimo formular uma hipdtese: pelo fato de ela ter cons mas sobretudo um dispositivo que. ao contrario, soube guido sobreviver ao ciclone da escravidao, a tradigao oral afro-brasileira carregaria em si os tragos estéveis da tradigao oral africana, aqueles que jabilidade ne- tudes podem resistir 4 prova do espago ¢ do tempo, em uma palavra: a inv: ia ¢ suficiente para que uma tradigdo permanega “viva” apesar das vici: cess da hist6ria. Assim, ela constituiria uma forma de protétipo evolutivo para o qual poderia, alias, evoluir a tradigao oral africana de hoje, confrontada aos problemas ocorridos pelo. seu encontro inevitével com a modernidade. Nesse caso, o medo de “perdas irrepardveis scria infundado. "De que se trata exatamente? Qual ¢ a identidade real da tradigdo oral afro-brasileira? Em nossa opiniaio. cla se caracteriza pelo fato, por um lado, de se apoiar em um dis- positivo solidamente ancorado no valor atribufdo & nogio de Palavra € ao Sagrado: por outro lado, pelo fato de evoluir constantemente entre dois pélos, a manutengdo do passado ¢ a inovagdo no presente. A nogdo de palavra Parece-nos que existe, em primeiro lugar. o valor intrinseco atribufdo a palavra. Em razio das forgas ocultas nela depositadas, cla € considerada, na sua formulagio ¢ ha sua proferic¢ao*, como um agente ativo, eficaz. Citaremos somente um exemplo, aquele da colheita das plantas em vista da sua utilizag%o para fins rituais. Cada planta deve ser colhida cm condigd a deve ter 0 “corpo limpo”, ou seja, cla abstém-se de relagdes sexuais na noite precedente. Ela penetra, S particulares. A pessoa encarre! 2 Profération: 10 contexto, significa proferir (N.T). 42 Proj. Histéria. Sdo Paulo, (22), jun. 2001 entdo, na mata apés ter cumprimentado a divindade masculina das folhas com palavras apropriadas. Em seguida, ela deve se abster de pronunciar 0 nome de certas folhas, pois clas poderiam se esconder ¢ seria impossivel colhé-las. As horas de colheitas sao, alids, diferentes para cada planta, tanto que sao necessai ids varios dias para se juntar todas clas. Cada folha deve ser cumprimentada com palavras rituais especiais que as s que as folhas (¢m uma forga. Sem elas, as folhas nio podem ter efeito. Se. por acaso, no for encontrada a folha do tipo de- tornam sagradas. E pela virtude destas palavre sejado, pode-se. entdo, subtituf-la por uma outra mais ou menos semelhante. Ela vai assumir a mesma forga que a primeira, sob a condigdo de que as palavras rituais tenham sido pronunciadas. Devemos essas informagées a Gistle Cossard que, em sua tese Contribui¢do ao estudo dos candomblés no Brasil: 0 candomblé Angola (Paris. 1970), assinala também wm outro exemplo, no qual a substituig’o se torna possfvel grag ao poder da palavra: “Se faltar um certo animal na hora do sacriffcio. uma galinha d’angola, por exemplo, basta pegar uma pena desta ave, picd-la entre as penas de uma galinha e, no momento do sacrificio, cantar 0 cintico do sacrificio da galinha d’angola. A virtude da oferenda nao seré em nada diminufda” (p. 173). E Cossard acrescenta este comentario: “Em primeiro lugar. € 0 Verbo que permite a passagem do profano ao sagrado; € por cle que se estabelece a ligagdo com o mundo sobrenatural. Longe de se dissolver, impal- pivel. na atmosfera, ele chega a ser, sozinho, 0 suporte essencial do divino™ (p. 173). Foi deliberadamente que utilizamos o termo de “proferigao” do som, como tal, porque € a produgdo que cst4 em jogo, 0 som sendo considerado, alias, como o resultado. da interagio de dois clementos complementares. um masculino, a expiragao, 0 outro feminino. formado pela laringe ¢ pela cavidade bucal conjuntamente. A palavra é in- separével do corpo. Ela esta explicitamente ligada & saliva, como demonstram os nu- merosos rituais em que intervém a utilizagdo da saliva ¢ do cuspir, Nos assinalamos, também, a cxisténcia de um ritual extremamente importante, praticado na iniciagao, chamado de “abertura para a Palavra”, mas cujo contetido nao pode ser revelado. 0 valor do sagrado O valor atribuido ao Sagrado manifesta-se pela insergio da tradigGo oral no uni- verso religioso. Os textos orais, notadamente os contos ¢ os provérbios, foram explici- tamente investidos no didlogo entre 0 homem ¢ o univ so numinoso (do Jatim numen), Proj, Historia, Sdo Paulo, (22). jun. 2001 4B em particular na adivinhacao. Esta é feita por meio de um jogo adivinhatério constituido. no Brasil, de dezesseis cauris’ que, combinados entre si, permitem obter 256 figuras ou signos diferentes, correspondendo a outras tantas respostas diferentes, Ora, cada signo esté ligado a varios contos-pardbolas, a cantos ¢ a férmulas-emblemas que o condensam. Sios estes contos-pardbolas que constituem a trama de interpretagdéo dada como resposta ao consultante pelo adivinho, aqui “pai (ou “mae") de santo". Normal- mente, 0 conto é em portugués, cnquanto a férmula-divisa ou o canto so formulados na lingua africana de origem. M: os nomes dos lugares e das linhagens e, sobretudo, a sua estrutura ¢ 0 scu contetido s, mesmo em portugues, os personagens dos contos. simbdlico conservam a sua identidade africana. Esta utilizagGo dos contos no jogo adi- vinhatério esta ligada directa ¢ sobretudo gragas a inimeros trabalhos, notadamente os de B. Maupoil, P. Verger. W. Bascom a W. Abimbola. Quando se conhece a importancia da adivinhagdo no interior dos “terreiros” (locais plicitamente a tradigdo yoruba, tradigio conhecida de cultos afro-brasileiros . no é mais de se estranhar o fato de que nestes lugares privilegiados foi explicitamente cultivada a memorizagaio de t xtos orais de origem africana. Isso nos lembra 0 papel dos mosteiros ocidentais na salvagdo da cultura gre- co-lalina na Idade Média, por meio das hibliotecas construidas por eles. O ensinamento explicito de textos orais faz parte, alids, da formagao dada aos “fithos” a as “filhas de santo” (iniciados) no momento da sua iniciag&éo. Esse cnsina- mento envolve todo um conjunto de textos ligados ds atividades rituais: emblemas, canticos, mas também lendas. G. invocagbe saudagGes a diferentes divindades, nomes Cossard menciona acidentalmente este fato quando descreve a vida quotidiana des iniciados ¢ fala das visitas de personagens importantes que eles podem eventualmente receber: “E comum [escreve cla]. que 0 pai de santo oferega (a seus visitantes) ir visitar os novigos... Os novigos nao fazem nenhuma pergunta ao visitante ¢ no falam a nao. ser gue cle faga alguma pergunta. Apds abengod-los, © visitante ensina-lhes um cintico. uma reza ou conta uma lenda, ¢ depois se retira...” (G. Cossard, 1970, p. 169). Os textos orais so estreitamente ligados as atividades regulares dos “terreiros”. O i@ncias de iniciagdo™, cujo objetivo tinal scu cnsinamento também. pois é aprender a entrar em relagdo apropriada com as forgas que sustentam o mundo visivel faz parte das © podem ser colocadas a servigo da vida. © ensinamento da tradigdo oral, apesar de se 3° Cauris: biizios utilizados na Africa como moeda (N.T). 44 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22). jun. 200] cfetuar de uma maneira nao tematica, faz ssim parte dos conhecimentos que se revelam indispensdveis aos iniciados e que, uma vez adquiridos, podem sempre ter utilizagdes praticas. Manutencdo e inovacdo So estes dois fatores, a nogio propriamente africana da Palavra assim como a insergHo dos textos orais num contexto religioso, que foram os agentes mais poderosos. da conservacgao da tradi 0 oral como um conjunto de textos orais. Esses tiltimos fazem parte integrante de um patrimOnio religioso afro-brasileiro ¢ sua conservagao se insere na exig¢ncia da fic] manutengio da heranga religiosa que permitiu aos negros brasileiros sobreviver e se impor em relagdo a outras culturas, como a dos indigenas ¢ a dos conquistadores portugueses a partir de 1500. No entanto, esta ligagio com o religioso. se diminui o temor de perdas irrepardveis de textos preciosos, paradoxalmente, torna dificil o acesso dos pesquisadores a textos. em raziio do segredo gue os envolve. Alids, este segredo € reforgado pelo fato de scu detentor, aqui o “pai” ou a “mae de “santo”, pretender se prevalecer de seus conhecimentos para afirmar seja a autenticidade africana do culto que ele pratica, seja sua supremacia em “conhecimentos” ¢ “poderes™ magico-religiosos em relagdo aos ou- 0 autSnomos € Concor- tros grandes iniciados. E sabido que os cultos afro-brasilciros s rentes entre gabam facilmente da sua maior fidclidade ao pas- scus responsaveis s sado ou ainda do maior nimero de seus adeptos; as vezes. cles disputam os figis € se criticam mutuamente. Neste contexto competitivo, cntendemos por que os detentores do saber no estio dispostos a divulgar seus conhecimentos. Alias. a maneira de cnsinar em vigor nos terreiros nfo favorece a divulgagdo do saber fora dos muros sagrados. Como se uata de conhecimentos ligados & iniciagdo, cles rvados a um grupo restrito de individuos ¢ sdo transmitides, como na Africa, de uma maneira nao si matica. por ocasiao de um evento ou de uma experiéncia: cada incidente da vida pode sempre ocasionar varios desenvolvimentos, contar um conto, uma lenda ou um mito, s conhecimentos 0 a Ess mas sempre no quadro restrito dos adeptos do culto. O ac € entdo muito diffcil para um pesquisador estranho ao terreiro. Isto explica, em grande parte, a lentid’o da coleta e 0 mimero reduzido de textos colhidos até hoje. Todavi & preciso salientar que est4 ocorrendo uma mudanga de atitude nestes Uiltimos anos. Proj. Historia. Sao Paulo, (22), jun. 2001 45 Pais e maes de santo, grandes iniciados, cientes da utilidade € até mesmo da necessidade de uma maior abertura ao mundo exterior, ndo hesitam em divulgar certos conhecimen- tos ¢ aceitam, assim, divulgar contos e mitos ligados & adivinhagao. Esta ancoragem no contexto religioso contribuiu fortemente para a manutengio de textos orais (contos, cantos, provérbios, emblemas, nomes de iniciados. etc.) numa for- mulagao e num contetido préximos da tradigao africana de origem. Por outro lado, fora deste quadro restrito, desenvolveu-se uma tradigio oral mais francamente marcada pela inovagao, Ela comporta textos, sobretudo contos, que sio quer uma nova claboragio de narrativas africanas de todas as origens, misturadas, de tal maneira que é muito ta, quer de textos que. sem diivida foram criados num dificil estabelecer sua origem exa contexto brasileiro. O contetido destes tltimos. de fato. esta estreitamente ligado aos fatos da vida quotidiana dos negros no Brasil, seja da Gpoca da escravidio, seja da €poca atual. O acesso a cstes textos nio coloca tcoricamente nenhum problema, com excegdo daqueles ligados & investigagdo sobre a tradigdo oral. Muito provavelmente, 0s primeiros textos orais foram introduzidos ¢ memorizados por amas-de-leite negras. Estas, segundo de G. Freyre., desempenharam um papel in- compardvel na difusio da tradi¢o oral africana no Brasil: € com a ajuda dos contos africanos que os pequenos brancos, filhos de senhores de escravos. adormeciam a noite. “AS Negras, cle escreve, foram as grandes contadoras de histéria aqui.” E precisa: Os Africanos t8m suas castas de “contadores”... Tem © akpald que narra os alé ou contos: tem o arokin, que narra as crénicas do passado. O akpalé & uma instituigio africana que floresceu_no Brasil na pessoa das velhas negras que passavam o seu tempo contando hist6rias. Velhas negras que iam de engenho em engenho contando histrias a outras pretas, amas-de-leite de outros bebés brancos, (como) nos engenhos da Paratha: elas contavam histérias, e depois iam embora. Elas viviam di negras e destas amas-de-leite, histrias africanas, sobretudo de animais ~ animais vivendo com as pessoas, falando, casando-se ou comendo com elas ~, somaram-se A lista daquelas . que as avés coloniais contavam a seus netos... (G. Freyre, 1952, to.. Por intermédio destas velhas das portuguesa pp. 316-317). Os textos foram elaborados no seio de “nagGes”, organizaga ‘avos origindrios dos mesmos 's africanas que sc desenvolveram pouco a pouco e que reagrupavam os. paises (nag6es “Angola” “Congo” “Nagé” “Ketu”, etc.). Foram os Brancos que incita- ram a criagio dessas “nagdes”, com vistas a perpetuar as diferengas étnicas, as lutas entre as etnias, a fim de impedir o desenvolvimento de uma conscitncia de classe entre todos os negros escravos. Ao que parece, as vezes cles tiveram éxito porque. na luta 46 Proj. Hist6ria, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 pela supremacia que nasceu entre as “nagGes”, ocorreu, as vezes algo estranho no que se refere & tradigdo oral: certas nagdes tomaram posse dos textos orais de uma outra nagdo para manipuld-los a fim de denegri-la. Parece que isto foi notadamente 0 caso dos contos angolenses. em que o personagem Quimungo (rinoceronte) foi substituido pelos yorubas por Quibungo (cio selvagem, lobo) em sinal de desprezo pelos angolanos. Nio conseguimos verificar este fato assinalado e sublinhado por S. Carnciro (1937. p. 288). Entretanto, parece-nos certo que estas “nagdcs” foram o cadinho que permiliu © nascimento de novos contos. inéditos pelo seu contetido, apesar de construidos sobre © modelo ancestral africano. Sdo contos de vinganga ou compensagao destinados a responder a novas situagdes criadas pela escraviddo. Nao se trata mais de contos “alri- canos”, mas de contos afro-brasileiros. E s&o estes contos que encontramos hoje entre ‘os descendentes das antigas “nagdes”. E nesse tipo de conto que a inovagio foi a mais importante. Como se pode constatar, a wadi¢do oral afro-brasileira longe de se enfraguecer em razio do dilaceramento operado pela escravidao ¢ pelas condigbes particularmente des- favordveis para a sua manutengio, soube guardar uma vitalidade extraordindria. Ela ‘da esta vitalidade, por um lado pela determinagio dos negros que a cscolheram como um dos meios mais eficazes para guardar a sua propria identidade ¢ afirmar a sua dignidade de homens, e. por outro lado, por sua dupla ancoragem: a nogdo africana da Palavra ¢ a sua insergdo no universo religioso afro-brasileiro. A urgéncia de sua coleta no se impde. portanto, por causa de um risco de desaparecimento, mas pelo fato de que nds esiamos ainda muito longe de conhecer todas as suas riqu Zas desenvolvimentos. Bibliografia Abimbola. W. [inle Ohirn Enu Efd. Glasgow, Collins, 1968. ___. Ifa. An exposition of literary corpus, Yoadan, Oxford Univ. Press of Nigeria, 1976 ___. Ifa divination poetry. New York, Nok Publishers, 1977. Bascom, W. 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