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REFLEXÕES SOBRE A

SERENIDADE EM HEIDEGGER:
A CAMINHO DO QUE SOMOS
OSCAR FEDERICO BAUCHWITZ
(UFRN)

RESUMO
Este artigo procura refletir acerca da Serenidade (Gelassenheit) na filosofia
heideggeriana, considerando que a pergunta pela essência humana resulta em uma
pergunta pela essência do pensar. Evidenciam-se os limites do pensamento
calculador e a abertura essencial do pensamento meditativo. Ao primeiro
corresponde o mundo da técnica e a “era atômica”, marcada pela mais perigosa
desdita: o desarraigo do próprio homem e de suas obras; à segunda corresponde
uma convocação: chegar à propriedade de nosso próprio ser. É nesse contexto
onde a Serenidade traduz uma atitude frente ao mundo da técnica, mas que,
sobretudo, visa explicitar que a essência do ser humano, como pensar, repousa
em um não querer, com as conseqüências renovadoras que este não querer acarreta,
concretamente, a descoberta de que estando tão próximos, permanecemos em
uma remota distância de nós mesmos.
PALAVRAS-CHAVE: Heidegger – Serenidade – Técnica - Ética

ABSTRACT
This article looks for to reflect about Releasement (Gelassenheit) in the heideggerian
philosophy, considering that the question for the human essence results in a
question for the essence of thought. One proves the limits of the calculating
thought and the essential opening of the meditating thought. To the first one, it
concerns to the world of the technology and “atomic age”, marked for the most
dangerous misfortune: the unroot of the same man and his works; to the second
concerns a call: to take in propriety our own being. In this context Releasement
translates an attitude face of the world of the technique, but that, over all, it aims
at to show that the human being essence, as to think, rests in a not want, with the
renewing consequences that this not want causes, concretely, the discovery that
being so close we remain in a remote distance of ourselves.
KEY-WORDS: Heidegger – Releasement – Technology – Ethics

As reflexões aqui apresentadas procuram pensar em que medida


a elucidação da Serenidade no pensamento de Heidegger nos coloca,
por exigência do próprio tema, a caminho do que nós mesmos somos.

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Serenidade é uma palavra usual de nossa língua, com ela se


aponta a certo estado de tranqüilidade e impassibilidade. Aqui ela traduz
a palavra alemã Gelassenheit que intitula a obra publicada por Heidegger
em 19591. Na língua alemã o termo designa esse mesmo estado do qual
ainda não atinamos, rigorosamente, como se relaciona com o nosso ser.
Serenidade foi publicada contendo duas partes: o discurso
pronunciado por Heidegger em Messkirch, por ocasião do 175º
aniversário do compositor Conradin Kreutzer, em Outubro de 1955,
seguido pelo escrito “Debate sobre a Serenidade. De uma conversa
sobre o pensar em um caminho do campo” (Zur Erörterung der
Gelassenheit. Aus einem Feldweggespräch über das Denken) extraído
de um escrito maior, “Um diálogo de três em um mesmo por um caminho
do campo entre um investigador, um erudito e um sábio” (’Agxibasíh.
Ein Gespräch selbstdritt auf einem Feldweg zwischen einem Forscher,
einem Gelehrten und einem Weisen) escrito em 1944/45, que compõe
junto a outros dois diálogos o Feldweg-Gespräche, vol. 77 da
Gesamtausgbe2. No texto publicado em 1959, no entanto, Heidegger
muda um dos personagens, em lugar do sábio se encontra um professor
(Leher). Não sabemos por que Heidegger muda o nome de seu
personagem. Talvez por ser o Professor uma figura mais próxima e
cotidiana. Entretanto, não se trata de um professor qualquer, é ele
quem guia os interlocutores pelo caminho do campo. É possível, ainda,
entender que o diálogo situa-se em uma tradição sapiencial, na qual o
mestre não é o portador da sabedoria, mas aquele que indica a seus
interlocutores a árdua tarefa exigida pela época em que vivem, época
despojada de ilusões e testemunha da crueldade da guerra que tocava
a seu fim, sobre a qual, aliás, não há nenhuma menção no texto. Por

1
Na tradução francesa, Serenité e na espanhola, Serenidad; em inglês Releasement,
que traz o sentido de ser solto ou desprendido, e recorda o verbo alemão que
compõe Gelassenheit (Lassen: deixar, ceder, soltar). Como veremos, no contexto
da obra analisada, Serenidade designa tanto um deixar quanto um permanecer
deixado, e deve ser entendida junto a uma série de palavras que constituem o
sentido procurado: gelassen/sereno, einlassen/introduzido,admitido, sich einlassen/
comprometer-se, überlassen/confiar a, loslassen/liberar. Cf. “Advertencia” in:
Serenidad, trad. Yves Zimmermann, Ediciones de Serbal, Barcelona, 1994, p.7s.
2
M. Heidegger Feldweg-Gespräch, Gesamtausgabe Band 77, Frankfurt a. M.,V.
Klostermann, 1995. O “Debate sobre a Serenidade” ocupa um terço do diálogo
de 44/45(105-157). Os outros dois diálogos são: Der Lehrer trifft den Türmer an
der Tür zum turmanfgang e Abendgespräch in einem Kriegsgefangenenlager
in Russland zwischen einem Jüngeren und einem Älteren.

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outra parte, o sábio promove um diálogo que é mais a conclamação de


um esforço coletivo para pensar no essencial do ser humano do que
uma resposta definitiva e meditada por um único indivíduo3.
Anos depois, em 1954, no Prólogo de Conferencias e Artigos,
Heidegger retoma essa mesma postura: “Um autor que anda pelos
caminhos do pensar, o único que pode fazer, no melhor dos casos, é
indicar (weisen), sem que ele mesmo seja um sábio (Weiser: sábio,
aquele que indica), no sentido do sophós”.
Como indicações ambos os textos que compõem Serenidade
mostram uma situação paradoxal e não menos preocupante: o homem que
essencialmente é um ser pensante, já não pensa! Essa falta de pensamento
soa surpreendente: por um lado, diante das conquistas científicas, como
entender que o homem não pensa? E por outro lado, se é a marca essencial

3
Como sugere M. Álvarez Gómez em seu artigo “Raíces místicas del pensamiento de
Heidegger”, Heidegger conhece e recebe as influências de Mestre Eckhart e Angelus
Silesius e “traduce la mística al pensamiento filosófico”, in: Pensamiento del ser y
espera de Dios, Editorial Sígueme, Salamanca, 2004, p.419; publicado anteriormente
in: J.Lomba (ed.) Mística, pensamiento y cultura, Zaragoza, 1996, 13-31. Mestre
Eckhart é lembrado no diálogo pela ressonância que possui a serenidade-gelassenheit
em sua obra, mas, de uma forma inesperada, Heidegger quer mostrar uma diferença:
“inclusive a serenidade pode ser pensada ainda dentro do domínio da vontade, tal
como sucede com os antigos mestres do pensar, p.ex. o mestre Eckhart. De quem,
no entanto, há muito de bom que aprender”. É estranho que Heidegger recuse a
aproximação com Eckhart, que é conhecido pela sua doutrina do desprendimento ou
abandono. De fato, Heidegger conhece e cita o mestre de Erfurt em diversas partes
de suas obras. Aqui, no entanto, Heidegger nos diz que a sua “serenidade não menta
o abandono da vontade própria em favor da vontade divina”. O que nos surpreende
é que em Eckhart tal abandono deveria ser matizado, porque deus não possui esta
vontade e nem é mais o mesmo deus da tradição, em termos heideggerianos, onto-
teo-lógica. Por outra parte é evidente que o termo em Heidegger se mantém em um
âmbito totalmente distinto ao vivido pelo místico e surge como resposta ao mundo
da técnica contemporânea. Sobre a presença de “elementos místicos” no pensamento
heideggeriano e da dívida de Heidegger para com os místicos e mesmo com o
pensamento oriental há uma vasta bibliografia. Veja-se: R. Schürmann “Trois
penseurs du délaissement : Maître Eckhart, Heidegger, Suzuki”, Journal of the History
of Philosophy, 12 (1974), p.455-478 e 13 (1975), p.43-60; Ph. Capelle “Heidegger
et Maître Eckhart”, Revue des sciences religieuses, 70/1 (1996), p.113-124; A. De
Libera Eckhart, Suso, Tauler y la divinización del hombre, José J. de Olañeta Editor,
Barcelona, 1999; J.Caputo The Mystical Element in Heidegger’s Thought, New
York: Fordham University Press, 1986; G. Srummiello, “Got(t)heit: a deidade em
Eckhart e Heidegger” (Trad. R.Guerizoli), Veritas, v.47, n.3, 2002, p.347-364;
C.Saviani, El Oriente de Heidegger, Herder, Barcelona, 2004.

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do homem o pensar, então estaria o homem desviando-se de si mesmo?


Como ocorrem tais coisas?
Para Heidegger a época que vivemos é marcada pela indigência.
É o tempo de penúria e a noite do mundo que empalidece e resta brilho
à própria existência, de tal modo que sequer a falta de deus chega a ser
vista como uma falta. Do vazio que se instaura no céu ocidental projeta-
se a sombra do nihilismo e do sem sentido que obscurece o existir: É a
falta de respostas aos por quês. A época dos deuses fugidos, no
entanto, não é outra que aquela mesma na qual o homem foge de si
mesmo, foge do pensar!
Esta fuga do pensar e, portanto, do que tem de mais próprio, não
é algo admitido pelo homem e nem mesmo procurado. Frente à realidade
do domínio científico resulta difícil, senão uma temeridade, aceitar que o
homem não pensa. Jamais teve o homem à sua disposição tanta informação
ou levou a cabo investigações tão precisas. Como compreender que o
homem foge do pensar ou como escreve Heidegger de maneira mais
radical em O que significa pensar? : “o gravíssimo de nossa época é que
ainda não pensamos”4.
A resposta para Heidegger é simples, mas não por isso menos
alarmante. Escreve Heidegger: “Há dois tipos de pensar, cada um dos
quais é, por sua vez e a sua maneira, justificado e necessário: o pensar
calculador (rechenende Denken) e a reflexão meditativa (besinnliche
Nachdenken). É a esta última a que nos referimos quando dizemos que
o homem de hoje foge ante o pensar”5.
O que caracteriza o pensar calculador se encontra em toda parte,
aqui mesmo ao nosso redor e em nosso cotidiano. Dito de outra forma
o pensar que calcula é o mesmo que planifica, controla, organiza,
investiga, é um pensar voltado para determinadas circunstâncias e com
vistas a determinados resultados, nunca, diz Heidegger, se pode esperar
deste pensar que se detenha a meditar ou venha a pensar em prol do
“sentido que impera em tudo quanto é”. Esta falta de interesse por parte
do pensar calculador em “meditar”, não depõe contra a sua importância

4
M. Heidegger ¿Qué significa Pensar?, trad. Raúl Gabás, Madrid, Editorial Trotta,
2005, 1ª Lição, p.17.
5
As páginas citadas se referem, em primeiro lugar, à tradução portuguesa e em
seguida à edição alemã. Cf. M. Heidegger, Serenidade, trad. M.M. Andrade e O.
Santos, Lisboa, Ed.Instituto Piaget; M. Heidegger, Gelassenheit, Pfullingen,
Verlag Günter Neske, 1959, p.13-13.

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ou contra a necessidade de sua existência, tão somente alerta para o


fato de que este pensar não pode esgotar o próprio do homem, justamente
porque tal pensar sempre se pauta um fim específico. Por isso, na visão
do pensar calculador a reflexão que medita sempre se encontra
“suspenso, por cima da realidade. Perde o chão”. Por isso mesmo, “não
serve para dar conta dos assuntos correntes, não contribui em nada
para levar a cabo a práxis” 6.
À crítica de inutilidade que parece caracterizar a reflexão, certa
ocasião Heidegger respondeu de modo emblemático: a questão não é
saber o que podemos fazer com a filosofia, mas, sobretudo, o que a
filosofia pode fazer conosco. Ter isso em mente nos abre o horizonte
devido para compreender o que se indica com Serenidade e como esta
se relaciona com o nosso ser, com a essência do pensar.
Agora bem, que época é essa onde a reflexão não tem lugar e
como chega a se dar tal transformação? Para Heidegger, essa é a época da
imagem do mundo, a época de da metafísica consumada, a era da técnica,
a era atômica em suma. O que caracteriza a era atômica é para Heidegger,
menos a bomba propriamente dita e o conseqüente domínio do
conhecimento científico, do que uma ameaçada profundamente mais
perigosa: o homem encontra-se em “uma posição totalmente nova no
mundo e em relação ao mundo. Agora o mundo aparece como um objeto
sobre o qual o pensamento que calcula investe, nada mais devendo
poder resistir aos seus ataques” 7.
Sabemos que essa nova posição em e para o mundo, embora
gestada ao longo dos milênios da tradição metafísica, ganha seus
contornos atuais com a modernidade européia e o surgimento de uma
dicotomia de ordem cognoscitiva, onde um sujeito se estabelece como
referência a um objeto, no caso o próprio mundo, e, sobretudo, como
sujeito de uma vontade de limites insuspeitados. Também sabemos que
falar em era atômica pode parecer algo anacrônico. Décadas passaram
das primeiras explosões que deram fim à segunda guerra, e mesmo a
tensão da guerra fria já é algo que para boa parte da humanidade é um
fato para os historiadores. Por outra parte, cada vez mais podemos
assistir a manifestações críticas contra o emprego da energia atômica e
a busca de outras fontes alternativas de energia. No entanto, o texto

6
Idem 14-13.
7
Ibidem 18s-17s.

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heideggeriano resulta ser bem atual. Heidegger observa os resultados


de duas reuniões ocorridas em 1955 que congregavam 18 cientistas
ganhadores do prêmio Nobel: 1) a ciência, ou seja, a moderna ciência
da natureza é um caminho para uma vida mais feliz do homem8; 2) está
próxima a hora em que a vida será posta em mãos do químico, que
irão decompor, reconstituir e modificar a substância vital como lhes
aprouver”9. Diante dos avanços da engenharia genética e da criação de
transgênicos ou mesmo da constituição do genoma humano, as palavras
de Heidegger soam muito próximas.
Junto a tais afirmações, extremamente atuais, poderíamos ainda
acrescentar a visionária leitura que faz Heidegger da televisão ou da
rádio ou de qualquer outro meio de comunicação. Em A coisa, texto
contemporâneo à Serenidade, Heidegger nota o “encolhimento” das
distâncias no tempo e no espaço, como o avião que nos permite alcançar
lugares antes muito remotos ou de como as informações nos chegam
quase que ao instante. Para Heidegger, a televisão seria o cume desta
supressão de toda possibilidade de distância e que logo dominaria toda
a estrutura e as comunicações. Tudo parece mais próximo e facilmente
conhecido e reconhecido. No entanto, conclui Heidegger: Esta
apressada supressão das distâncias não traz nenhuma proximidade,
porque a proximidade não consiste na pequenez da distância10. A
rigor, a supressão das distancias é também a ausência da proximidade e
com isso a instauração em definitiva do terrível, da ameaça mais perigosa
que há pouco mencionávamos: o terrível é que os poderes que regem a
era da técnica impõem a abstenção do humano, pois há tempos que
superaram a vontade e a decisão humana, porque não foram feitos pelo
homem; o terrível é aquilo que arranca a tudo que é de sua essência
primitiva; o terrível é a perda de arraigo do ser mais íntimo do homem, a
falta de enraizamento (Bodenständigkeit) das obras humanas11, tal é a
época que nos toca viver. O que é verdadeiramente inquietante para
Heidegger, “não é o fato do mundo se tornar cada vez mais técnico.
Muito mais inquietante é o fato do ser humano não estar preparado
para esta transformação do mundo, é o fato de nós ainda não

8
Ibid. 18-17.
9
Ibid. 21-20.
10
La Cosa, in: Conferencias y Artículos, Barcelona, Ediciones del Serbal, 1994, p. 143.
11
Serenidade, op.cit., p. 22s-21s.

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conseguirmos, através do pensamento que medita, lidar com aquilo


que, nesta época, está realmente a emergir”12.
Heidegger não pretende abdicar da técnica ou condená-la como
arte diabólica. Dependemos dos objetos técnicos. Mas, diante do
exposto até aqui, é evidente que aquilo que essencialmente pertence
ao modo de ser do homem permanece em perigo e deve de ser
despertado. Por isso, nos pergunta Heidegger: “Não poderia ser
restituído ao homem um novo solo e fundamento a partir dos quais
seu ser e suas obras possam florescer de um novo modo, inclusive
dentro da era atômica?”13. O procurado com esta pergunta talvez se
ache muito perto, tão próximo que o mais fácil é não adverti-lo, porque
para nós, os homens, o caminho ao próximo é sempre o mais remoto e
por isso o mais árduo. Este é o caminho da reflexão. Nesta direção se
dá o anúncio desta estranha postura que supõe a Serenidade:
“Podemos utilizar os objetos técnicos tal como eles têm de
ser utilizados. Mas podemos, simultaneamente, deixar esses objetos
descansar em si mesmos, como algo que não interessa àquilo que
temos de mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer sim à utilização
inevitável dos objetos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer não
impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e,
por fim, esgotem a nossa natureza (...) Deixemos os objetos técnicos
entrar em nosso mundo cotidiano e ao mesmo tempo deixemos-los
repousar em si mesmos como coisas que não são algo de absoluto,
mas que dependem elas próprias de algo superior”14.
Esta atitude que diz simultaneamente sim e não ao mundo técnico
é a Serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen). A
partir desta postura de aparência simples, deixamos de ver as coisas tão
somente desde uma perspectiva técnica, percebendo que todos os
processos já estabelecidos pela técnica unidimensionalizante possuem
um sentido que nos escapa. Para Heidegger, tal sentido permanece
oculto. No entanto, a partir da Serenidade para com as coisas, ao menos,
percebemos que esse mesmo sentido se oculta na medida em que vem
ao nosso encontro. Isso que se mostra e ao mesmo tempo se retira no
ocultamento, Heidegger denomina mistério.

12
Idem, 21-20.
13
Ibidem, 22-21.
14
Serenidade, op.cit., 23s-22s.

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A atitude pela qual nos mantemos abertos ao sentido oculto do


mundo técnico é a abertura ao mistério (die Offenheit für das Geheimnis).
Tal abertura e a serenidade se pertencem mutuamente. A partir desta
relação, o estar-no-mundo torna-se outro. Esta atitude nos promete um
novo solo e um fundamento sobre os quais subsistir, um novo
enraizamento que se aproxima e nos permite pensar de que forma
poderíamos estar no mundo técnico, mas ao abrigo de sua ameaça.
A Serenidade para com as coisas indica uma nova relação para
com as coisas, situando-nos além da relação moderna de sujeito e
objeto, que é apenas uma variação histórica da relação do homem com
a coisa, onde por um lado, as coisas se convertem em objetos antes
mesmo de atingirem a sua natureza coisal (Dingwesen) e por outro, o
homem convertido em egoidade (Ichheit), se mantém preso à definição
de sua própria essência como animal rationale e não investe em
procurar a sua essência além de si mesmo15.
Ao se questionar a relação do homem e das coisas se evidencia
que a própria coisa permanece impensada, sendo vista como algo à
mercê da vontade humana. Soa estranho que algo tão próximo e familiar,
as coisas com as quais nos ocupamos, possam adquirir um sentido
superior ao de um objeto passível de ser tratado e conhecido por um
sujeito. Uma vez mais Heidegger no convoca a pensar naquilo que nos
é tão próximo e ao mesmo tempo desconhecido. Agora o caso é da
coisa. O que é uma coisa? Na resposta a esta questão instaura-se uma
nova interpretação de algo aparentemente tão simples quanto uma coisa,
mas, sobretudo, se ganha um novo sentido para o mundo. Trata-se da
conhecida quaternidade do mundo que nos apresenta Heidegger, onde
divinos e mortais, céu e terra se coligam na simplicidade da coisa. Na
análise de uma simples jarra percebemos a grandeza da coisa que reúne
e deixa ver, como se de um jogo de espelhos se tratasse, isso que
chamamos mundo. Por isso, a coisa é coisa quando nela ressoa a tessitura
de nossa existência, quando nela ressoa o campo total de possibilidades
de nossa existência, quando se tratando dela, trata-se nela e com ela,
esse campo de possibilidades a partir do qual toma sentido a nossa
existência, nos diz respeito, nos interessa. Como já estamos longe da
empobrecida imagem do mundo técnico. A coisa descobre e põe em
vigília a nossa existência. Coiseando, a coisa faz presente o mundo.

15
Ibid., 54s-55s.

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Por outra parte, a questão da essência do homem não é uma


questão sobre o homem, e exige desviar o olhar do homem para, talvez,
encontrar a sua essência16. O Professor, que como adiantávamos, é
quem determina o rumo a ser seguido, diz algo surpreendentemente
paradoxal. Em linhas gerais o argumento é como segue: se o pensar é
o que caracteriza a essência do homem, então só se poderá divisar o
essencial desta essência apartando o olhar do pensar, investigando
assim, se for possível, a essência do pensar. Como na filosofia moderna
o pensar sempre foi concebido como representação e como um querer
(pensar é querer e querer é pensar) e se a essência do pensar é algo
diferente do pensar, segue-se que a essência do pensar é algo diferente
do querer. Assim, o paradoxo que o Professor nos apresenta é: “sobre
o que eu propriamente quero na meditação sobre o pensar, respondi:
quero o não querer! (Ich will das Nicht-Wollen)”17.
Não-querer continua significando um determinado querer, mas
de um modo que o que impera nele é um não, que se dirige ao próprio
querer, abdicando dele. Não querer é, portanto, abdicar voluntariamente
do querer, permanecendo absolutamente fora de todo tipo de vontade
conhecida e, desse modo, um não-querer que não se alcança por um
querer, mas que paradoxalmente mantém uma relação com esse. Essa
recusa patente na expressão do não-querer é a recusa daquilo que vige
em e pelo pensamento calculador. A expressão não se limita à negação
do vigente senão que nela se antecipa um novo comportamento e uma
reflexão, ela indica um âmbito de todo desconhecido e inusitado ao qual
não se chega pela acomodação do já conhecido, como se de uma reforma
se tratasse. Esse novo âmbito, no entanto, não é certo lugar distante ou
remoto, ao qual pudéssemos chegar com os meios e procedimentos
conhecidos. O novo âmbito exige um salto para nenhum outro lugar
que aquele onde já nos encontramos e estamos admitidos, se ele aparece
remoto é porque permanece oculto, embora sendo o mais próximo. Nada
mais próximo ao homem que a sua essência, mas a ausência efetiva
dessa essência, a sua tendência fundamental de mostrar-se e ocultar-se
ainda mais rapidamente, a converte em algo remoto.
Em um momento de acentuado matiz “místico”, da noite que
está caindo e que compele ao recolhimento, anuncia-se com claridade

16
Ibid., 31-29.
17
Serenidade, op.cit., 32-30.

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a relação entre o querer e o não querer: um não querer mediante o qual


possamos comprometer-nos com a busca do pensar que não é um
querer. Tal é a serenidade. A serenidade se desperta, portanto, quando
ao nosso ser lhe é outorgado o comprometer-se com o que não é um
querer. Nela se oculta um agir mais elevado do que em todas as gestas
do mundo e maquinações dos homens18. Um agir, no entanto, que não
é nenhuma atividade. E, certamente não é uma atividade ao tempo que
tampouco é passividade, senão que a Serenidade se encontra além da
dicotomia atividade/passividade porque se situa fora da vontade. Um
estar fora que não pode significar um deixar-se à deriva ou pairar no
irreal ou na nulidade, tampouco a negação da vontade de viver, mas
sim indicar o comprometimento com algo que não é um querer e,
portanto, com um pensamento já liberado da representação, um
pensamento meditativo mediante o qual se adentra no não-querer,
onde se dá a experiência de uma vontade despojada de qualquer anelo
de efetividade. A Serenidade, assim, é uma espécie de ação meditativa,
a ação de um pensamento impulsionado por um querer superior (dem
höchsten Wollen) que não é o fruto de uma apetência ou querer
humanos, senão a decisão que nos situa à escuta do essencial.
Diante das indicações que relacionam a Serenidade e a essência
do pensamento, o Investigador (Forscher) argumenta não poder (“nem
com a maior boa vontade”) representar (vorstellen) em que consiste essa
mesma essência. Como resposta a suas inquietações ouve do Professor
que não deve fazer nada a não ser aguardar e renunciar ao representar
transcendental-horizontal para penetrar na essência do pensamento não
experimentada. Com tal renúncia, o horizonte, esse campo de visão que
nos permite captar os aspectos de todos os objetos, e que é experimentado
tão somente a partir desses mesmos objetos e da própria representação,
passa a ser pensado a partir do que possui de mais próprio, a abertura que
propicia e que não provém do fato de “olharmos dentro dele”19. A
horizontalidade agora é vista como apenas o lado virado para nós (para o
nosso poder de representação) de um aberto que nos rodeia. Esse aberto
é como uma região (Gegend), por cuja magia (Zauber) tudo aquilo que lhe
pertence retorna ao sítio onde repousa20.

18
Ibid., 35-33.
19
Ibid., 37s-37s
20
Ibid., 39-38

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Essa região, no entanto, não é uma região qualquer. À


observação do Erudito (Gelehrther), que entende a região a partir de
seu sentido literal, pelo qual a região é aquilo que vem ao nosso
encontro (das uns Entgegenkommende), o Professor responde que,
de ser assim, uma vez mais se caracterizaria a região a partir da relação
que mantém conosco e não pelo aberto que nos rodeia. Tal região é a
região de todas as regiões, é a região, por isso sublinha que deveria
ser chamada de Região (Gegent)21. Por outro lado, vir ao nosso encontro
não é o fundamental dessa região, mas sim que ela mesma seja região
de encontro, que reúna tudo (“cada coisa com cada coisa e todas
entre si”) levando-o a demorar no repouso de si mesmo. A Região é
tanto amplidão livre (freie Weite) quanto morada (Weile), de modo que
nela o aberto se mantenha e se sustente, deixando cada coisa abrir-se
no seu repouso próprio. E, por isso, a Região menos vem ao nosso
encontro do que se retira, dando abrigo a todas as coisas, de tal
maneira que nela já não possuem o caráter de objetos diante de nós,
senão que jazem, descansando no repouso de seu próprio ser.
Com a introdução da Região, o diálogo certifica-se, uma vez mais,
da impossibilidade de representar o repouso no qual as coisas e o homem
retornam ao que lhes é próprio. E, uma vez mais, aguardar é o
comportamento adequado. Um aguardar aparentemente paradoxal, pois
já prescindiu de toda representação e encontra-se liberado de todo objeto
representado, um aguardar que é espera serena e não a expectativa de
algo determinado. Para Heidegger esse aguardar é uma “espera que se
aventura no próprio aberto...na amplidão do longínquo, em cuja
proximidade encontra a Morada, na qual permanece”22. A essência deste
aguardar é a Serenidade em relação à Região. É, pois, pelo próprio aberto
da Região que se aguarda pensando e liberando-se da representação.
Com a espera do aberto propiciado pela Região, anuncia-se o pensamento
como o chegar-à-proximidade (In-die-Nähe-kommen) do longínquo.

21
Serenidade, op.cit , 41s-39s. Gegent é a forma antiga de Gegend e se traduz por
comarca ou região. Assim como Gegenstand (objeto) e Gegner (adversário), têm
como raiz gegen (contra). A palavra, embora presente no dialeto suábo e suíço
alemão, não é a habitual da língua alemã e possui o sentido de responder ao
encontro (entgegnen). Para o contexto específico que Heidegger procura
expressar, a tradução portuguesa optou por grafá-la com maiúscula. Em espanhol
e em francês, respectivamente, por contrada e contrée. Cf. nota do tradutor de
Serenidad, trad. Yves Zimmermann, Ediciones de Serbal, Barcelona, 1994, p.47.
22
Serenidade, op.cit., 43-42.

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Pensada como relação, com a Serenidade adentra-se na Região. E


adentra-se na Região não porque se estava fora dela, tal coisa iria contra
o nosso próprio modo de ser pensantes, mas sim porque, embora dentro,
não a tínhamos a ela acedido como Região, e sim como horizonte23.
Evidencia-se, assim, certo vaivém entre o estar e o não estar em propriedade
da Região, acolhidos ou não nela, permanecendo como suspensos entre
sim e não, onde a permanência neste entre é o aguardar24.
A partir do âmbito descoberto além do representar e sustentado
pela espera, a Serenidade mostra ser a relação essencial para com a
Região. É o envolvimento outorgado pelo aberto e aponta para um
comprometimento com o não-querer. Em conseqüência, como um pensar
que não representa, a ação meditativa deve possuir uma espécie de
energia ativa (Tatkraft) e resolução (Entschlossenheit) que de nenhum
modo possuem o teor de uma vontade. A resolução deve ser pensada
como em Ser e Tempo: “como o propriamente assumido abrir-se do ser-
aí ao aberto (...) e é assim que pensamos a Região”25. Com esta menção
ao ente que tem como modo de ser a abertura decidida, o ser-aí, remete
o diálogo à experiência grega da verdade como a não-ocultação e o
descobrimento, para entender a Região como o ser oculto da verdade:
“Então a essência do pensamento, a saber, a serenidade em relação à
Região, seria a resolução para a verdade que está a ser”26. Segue-se daí
que o Homem encontra a sua Morada no pertencer à Região, ele é como
utilizado na essência da verdade.
Na serenidade parece haver, portanto, uma persistência
(Ausdauer) do homem em manter-se na origem de sua própria essência,
o permanecer confiado à pertença da Região. À persistência em
permanecer na origem de sua essência, Heidegger nomeia Insistência
(Inständigkeit), na qual reside a nobreza de espírito. É nobre aquilo que
tem origem (Herkunft) e nela permanece, de tal modo que morando em
sua origem, o Homem seria encorajado e pressentiria a nobreza de seu
caráter27, a própria essência do pensamento. A nobreza do Homem é a
Serenidade insistente que revela a proximidade do remoto.

23
Idem, 49-49.
24
Ibidem, 51-51.
25
Ibid., 58-59.
26
Ibid., 58-59
27
Serenidade, op.cit, 63-64.

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RIO DE JANEIRO, V.13, N.2, P.101-113, 2006 ETHICA

Com uma referência à palavra de Heráclito o diálogo conclui


anunciando a procura perpétua e inesgotável do procurado e “o mais
belo nome” para o passeio que termina: a essência do pensamento
anelada ao longo do caminho é indicada pelo termo ’Agxibasíh, cuja
tradução no contexto construído pelos interlocutores vem a dizer “ir-à-
proximidade” (In-die-Nähe-gehen), “ser-admitido-no-seio-da-
proximidade (In-die-Nähe-hinein-sich-einlassen)”28.
Em uma época onde predomina a exaltação da vontade talvez
resulte, no mínimo, estranho que Heidegger nos aponte a Serenidade
como um comportamento adequado para com este mundo. Essa
estranheza, no entanto, a esta altura não é tão estranha assim. Como
foi indicado aqui, a Serenidade, essa estranha proposta de nos
comportarmos em nosso mundo, nos convoca ao exercício incessante
de tomar em propriedade nosso modo de ser em sua originalidade,
talvez não exista convocação mais desafiadora e, ao mesmo tempo,
tão poucas vezes experimentada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

M. Heidegger Feldweg-Gespräch, Gesamtausgabe Band 77, Frankfurt


a. M.,V. Klostermann, 1995.

M. Heidegger Gelassenheit, Pfullingen, Verlag Günter Neske, 1959.

M. Heidegger Serenidad, trad. Yves Zimmermann, Barcelona, Ediciones


del Serbal, 1994.

M. Heidegger, Serenidade, trad. M.M. Andrade e O. Santos, Lisboa,


Ed.Instituto Piaget.

M. Heidegger La Cosa, in: Conferencias y Artículos, trad. Eustaquio


Barajau, Barcelona, Ediciones del Serbal, 1994

M. Heidegger ¿Qué significa Pensar?, trad. Raúl Gabás, Madrid,


Editorial Trotta, 2005.

28
Idem, 68-70. A palavra constitui ela mesma o Fragmento 122 de Heráclito.

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