CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo —
Juquery, a histéria de um asilo. Séo Paulo, Paz e Terra, 1986.
O trabalho de Maria Clementina revela uma interessante trajetéria
precorrida na abordagem da questo da loucura. O hospicio Juquery, a
concepgao da psiquiatria e pratica médica, desde o final do século XIX
até a década de 30.
Ao realiz4-lo, a autora demonstrou extrema coragem em “‘atraves-
sar o espelho’’, reflexo de tempos histéricos que criam loucuras e as
negam em confinamentos. Ao retornar do outro lado do espelho, re-
constituiu a histéria do hospfcio nao somente como instituigdo modelar
de forma analftica distanciada do culto da psiquiatria nacional. Pelo
contrério, Clementina, em sua formulac4o, evidencia as relagdes exis-
tentes entre os diferentes atores que constitufram e de certa forma ainda
constituem, a histéria do asilo, dando-lhes identidade e, principalmen-
te, explicitando que para compreendé-la foi necess4rio compreender as
transformag6es urbanas ocorridas, desde o inicio do século, dado ao
desenvolvimento técnico industrial e da aceleragdo da producdo capita-
lista.
Iniciando em meados do século XIX, enfoca o desenvolvimento
das cidades européias, o espago urbano, o capitalismo como fenémeno
social e as novas configuragGes de classes, determinando novas regras,
disciplinas ¢ normatizag6es sociais. E, € nesta contextualizagéo que —
“as margens da sociedade do trabalho, cresce toda uma fauna urbana
empenhada em fraudar e¢ resistir As disciplinas, e que logo se torna ob-
jeto de saber especffico, como de formas de intervencdo inicialmente
entre a criminologia ¢ 0 alienismo”, cunhadas nas novas regras surgem
as intervengées dos alienistas, da ordem médica mental, da disciplinari-
zac&o, referendadas e legitimadas pelo saber cientffico sobre doenga ¢
cura, sobre o normal ¢ o patolégico.
A criagao dos asilos no Brasil revela a grande influéncia da psi-
quiatria européia na conduta terapéutica, ¢ na construgao dos espacos,
avanga 0 reconhecimento piiblico do local da loucura.
* Professora do Departamento de Hist6ria da FFLCH/USP.
190 Proj. Hist6ria, Sao Paulo, (7), fev. 1987A descrigao fisica do hospicio, através de seus equipamentos —
banheiras de choque, camisa de forga, correntes, rotundas, etc. denun-
ciam o quadro terrfvel a ser desvelado e a ser revelado em seus matizes
de forma corajosa. Refletem relagdes de dominacg4o, exploracio e re-
sisténcia. Num trabalho de garimpagem, através dos prontudrios clini-
cos e sociais dos intemos, Clementina reconstitui o hospfcio na sua
forma cruel, porém tratando de forma digna os pacientes expde os seus
préprios discursos, seus gritos e sussurros, negados por tantos anos pe-
lo saber médico.
Ao reconhecer a linguagem dos pacientes nas suas diferentes
formas de expressdo, a autora legitimou a histéria psiquidtrica do Ju-
query pelo lado dos dominados, que dentro de seus quadros nosoldégi-
cos, recriaram formas de resisténcia, conseguindo explicitar de forma
primorosa o saber médico e sua relag&o de poder.
Clementina com sua tese, contribuiu de forma extremamente rele-
vante para a rea dos profissionais de satide, colocando através das
determinagées histéricas o hospicio e a conceituagao da loucura, co-
mo questao politica e, como tal necessdria de ser trabalhada, em seu
Ambito puiblico com a colaboragio do saber de diferentes profissionais.
A superagdo da loucura n4o se dard no confinamento, mas no préprio
mundo.
A elaboragdo de seu trabalho até a década de 1930, para nés se
estende até os dias atuais, uma vez que as quest6es e problemas apre-
sentados, nao sofreram alteragées significativas em Sao Paulo, de uma
polftica de satide publica mental. A demincia desde os anos 60, de um
grande niimero de trabalhos europeus, sobre uma revisao radical na
politica de confinamentos, ainda ndo parece fazer parte de andlises e
condutas terapéuticas em nosso pafs. Vale a pena aqui ressaltar, que de
forma ténue, no Governo Montoro, ocorreu 0 infcio de uma agao revi-
sional através da Coordenadoria de Satide Mental do Estado, indicando
a necessidade de se encaminhar uma polftica de atendimento 4 popu-
lag4o, assumindo os desafios inerentes ao assunto, tentando avangar em
condutas mais humanas e democréticas de estrutura e funcionamento.
Esta aco, interrompida pelo atual governo, por nao colocar entre suas
Proj. Histria, Sao Paulo, (7), fev. 1987 191prioridades 0 atendimento em satide publica — a satide mental, nos re-
mete a pensar sobre o fato — o Estado de Sao Paulo mantem uma Se-
cretaria de Estado da Doenga, necessitamos gestar de forma rapida uma
Secretaria de Estado da Satide.
Maria da Penha VASCONCELLOS*
* Professor do Departamento de Psicologia Social da PUC-SP.
192 Proj. Hist6ria, Séo Paulo, (7), fev. 1987