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TURRES VETERAS V Historia Militar e da Guerra Camara Municipal de Torres Vedras Sector da Cultura Instituto de Estudos Regionais ¢ do Municipalismo “Alexandre Herculano” A Guerra e a Alimentagao: O testemunho de Ferndo Lopes Cerca de 1434, D. Duarte encarrega Ferndo Lopes de escrever as memérias dos anteriores reis, dai resultando as conhecidas Cronicas de D. Pedro |, de D. Fernando e de D.Jodo | (1 ll partes). A encomenda régia permite, assim, proceder a uma composigao das Memérias do Reino’, Estas, inseridas num contexto politico e cultural diferente daquele a que se referem os factos relatados*, so notavelmente servidas pelo cardcter inovador das concepgdes metodol6gicas e historiograficas praticadas pelo cronista. Porém, 0 objectivo dltimo da presente comunicacao‘ nao serd o de discutir as qualidades lterarias, ou a visdo historica, evidenciadas por Fernao Lopes nessas crénicas. Todos esses textos tém sido proficua- mente analisados por reconhecidos estudiosos, tanto no ambito da Lingua, como no da Literatura e , natu- ralmente, da propria Historia’ Centrando a nossa atengdo na Crénica de D.Jodo |, a apaixonante leitura, que dela podemos fazer, con- duz-nos aos anos finais de um turbulento séc. XIV. Fernao Lopes descreve os acontecimentos desde Dezembro de 1383 (a morte do conde Andeiro) até Abril de 1385 ( aclamacao do rei nas Cortes de Coimbra), narrando, ainda, as peripécias militares que se estendem até Outubro de 1411, quando se conc lui o Tratado de Paz com Castela. Neste imenso palco, onde se juntam homens de todo 0 reino, de todas as categorias sociais, desfila tum quotidiano cheio de bons e maus momentos, sempre ritmado pela pena do cronista. Através dela, conhe- cemos os momentos festivos, de celebraao comum, que, ao serem registados por escrito, se transformam nas Memorias da Abundéncia, Mas somos, também, tocados pelas paginas pungentes onde se evocam as Memorias da Guerra’ Delas ressalta 0 dramatismo da fome, da pendria vivida, em particular, no espago urbano. E, também, os sobressattos, os medos do mundo rural, onde as destruigées da paisagem agricola, para além de consubs- tanciarem estratégias de imprescindivel valor militar, acabam por constituir um rude golpe nas subsisténcias das populagdes que dela dependem.. * Sobre apritica crescent dessas“eneomendas nas reinos eurapeus ¢respecvas motvagoes Ct. B. Guende, Astaire et Cute Historique dans LOccdent Medieval, Pars, Aubie, 1960, po.382-246. 0 conto poco da produgdo da cronstica de Femdo Lanes envolve os acontecimentns aps a subida ao poder do Mere de Ai, pas sando pla rao de D Duarte, onde se vao gra as condigdes que dsencadkiam o embate de Aarobera, eno reget D. Peto €ofutr0 rai Afonso V.Desse mado se pode enquadrar a afimagao°O Portugal do cronista€, assim, smplesmenie, um Portugal ente duas*re- olgbes.- J. Gouvela Mont, Femao Lopes edo e Context, Coimbra, ed Winerva, 1988, p38 " Vgj-se 0 Plog da Crnica de D. Joa - Famdo Lopes, Cronica De! Rei Dom Joram I de boa memeriae ds Fels de Portugal décimo, Parle Primera, Reprod fasiraa da oto do AauivoHistiicoPortugués( 915), precio de LF: ney ina, 1973, pp. 1-3. *0 texto da presente comuricacao tem por base as eementusorgaizas,eapresentados, no Coldquio “A Nova Lisboa Medieva’ organiza a pelo Niclen Gletficn de Estudos Medivas da Universidade Hova de Lisboa, Janeiro de 2002, aque demos o tu "A Fomee a Abundancl, Lisboa ceeada n prosa de Feméo Lopes * Soe Femo Lopes, crorista eestor, existe rumerasos estudos. V, po exemple, A José Saraiva, “edo Lopes e ous prosadores do sc. XV" in Historia cl Letra Potuguesa I Das Origens ao Romano, Lisboa, Estos Cored, 1966, po. 27-38; J. Vetssimo Sera0,A Historografa Portuguesa. Doutia e Cia, Usbo2,Vero.1972, np. 35-64; M. Rodrigues Lap, Ligdes de Literatura Poriuguesa. Epoca ‘Modieval, 9, Comma Eiora Lda, 197, np. 374-492; , H. de Olvera Marques, "Lopes, Fao" n icon ol Hist de Portugal, Dic soe Sera, vol IV, Porto, Li Fquenhas, 1881, p. 58; Uma actualzago dos trabalos pubicados pode enconvarse em Teresa Amado, Siblografia de Ferao Lopes, Lisboa, ed. Cosmos. Co. Melevala, 1991 * Sobre a domindnca do tema da Guerra - Teresa Arado, Ferao Lopes Contador de sti sobre a Gronic de D. Joo, Lisboa, ed. Estampa, 1991, pp. 31-38. De toda a Crénica, decerto, que é a descrigao do capitulo 148 *Das Trbullagdes que Lixboa padecia _per mimgua de mantimentos", aquela que nos deixa mais emocionados. Nele, o cronista dé-nos conta de um dos sofrimentos mais dificeis de suportar - a Fome, Nao uma fome comum, passagelra, que os pobres estéo habituados a enfrentar, mas uma fome que se abate, inexoravel, sobre todos, ultrapassando posses, Categorias sociais. A Fore que grassa no meio urbano. Mas nao em uma cidade qualquer. Em Lisboa, onde se albergam os fidis do Mestre, dispostos a enfrentar o suplicio da Guerra,quals mértires, em defesa da f8 depositada no seu Mesias" Acompanhemos esses meses de infortinio, que se viveram na Lisboa cercada, durante a Primavera © 0 Verdo de 1384. Para tal, permitam-me que partilhe, convosco, o convite do cronista - "hora esquardaae como sse fossees presente": As forcas militares de D. Jodo de Castela, ja anteriormente caminhando em direcgao a Lisboa, chegam, por meados de Maio, a huua gramde e espacosa alldea, que chamom o Lumear, hua legoa da Gidade™, enquanto que a frota maritima chega, diante de Lisboa, entre 26 e 29 desse mesmo més, cispon- do-se estrategicamente ao longo da cidade desde Cata que fards até a porta da Cruz". A conjugacao dessas forgas leva o rei castelhano a pdr arraal junto ao Mosteiro de Santos", efecivando o cerco terrestre e mari- timo. Os dias vao decorrendo entre as peripécias naturais neste tipo de situagSes, que os homens medievos ‘ao bem conhecem e que as estratégias da guerra bem thes ensinaram. Mas os meses de verdo trazem acontecimentos decisivos. De facto, a 17 de Julho, domingo, ao inicio da tarde, a frota que saira do Porto, chega a Cascais", ‘razendo 0 socorro e a esperanga aos homens e mulheres que, ainda malo dia clareava, assomaram aos uros @ lugares altos para a ver". Mal sabiam eles, que esses reforgos tao militarmente desejados, seriam 0 inicio dos seus padecimentos, j4 que aumentavam o niimero de bocas que a cidade sitiada teria de ali- mentar.. E, ainda que a frota tenha trazido farinha, carnes, pescado e vinho™, os sinais da mingoa de manti- mentos comegam a ser preocupantes. Os poderes piblicos procuram redistrbuir as reservas prover engenhosos meios de obter aqueles de que careciam'’. Corriam os dias, aumemtavam as preces, ¢ no decor- rer do més de Agosto os sinais de pestiléncia', grassando no arraial castelhano, no chegam para minorar as desgracas dos sitiados. A situagao torna-se insustentavel para os habitantes cercados. A persisténcia do rei castelhano em Imanter 0 cerco, apesar da crescente mortandade que Ihe vai dizimando as tropas ¢ os tripulantes da frota, parece querer dar os seus frutos. Com mais algum tempo, a cidade sera tomada pela fore. * Femdo Lopes, Cronica Del Ref Dom Joham I... Pate Prima, p. 268-271. um re predestinado desde sempre para a salvacdo de Portugal, Hert, sempre vencedo, santo... messis" - Margarida Garcez Ventura, 0 Messias de Lisboa. Um estudo de Mioioga Potica( 1383 - 141), Lisboa, ed. Cosmas, p.2 * Femdo Lopes, Cronica Del Rei Dom Jofam l. Parte Prieta, p. 271 ihiem p. 189. fide 9.194 * fide p. 193 ° tide p, 225. " inidem,p. 229, ° idem p 210 °° dalguuas ports tinham gertas pessoas de noite as chaves, por razom dos bales que taaes horas hiam e vinnam dzallem com {tio e outros mamtimentos bem 9.197 "™ comegou a tise morte de mostrar sua sana mais asperamente cra os do areal; essa meesmo coma os daft bidem 9,249, Chegam os primeiros dias de Setembro. Mais poderosa do que a Fome, a Peste ganha neste con- fronto, determinando a decisdo do rei castelhano de se mudar para outro espago, mais a Norte, junto ao Mosteiro de Santo Antao', antes de abandonar, definitivamente, as imediagdes de Lisboa. ‘As palavras do cronista traduzem, de forma esclarecedora, estes cenarios que brevemente apon- tamos. Mas, delas ressattam, também, e de forma bem viva, os preparativos para as agruras de um cerco, 5 suas implicagbes e desenlace. Assim, porque nos é facultado um cenario privilegiado - 0 mundo urbano erante um quotidiano de querra''- detenhamo-nos a abservé-lo um pouco mais em pormenor... 0 Mestre de Avis sabe, com antecedéncia, que Lisboa sera cercada, e, como natural estratégia, rovidencia para que ela se abasteca de tudo o necessdrio 4 sobrevivéncia das que nela habitam, bem como dos que a ela tiverem de se acolher®. E se as preocupagdes alimentares sao prioritérias no que se refere ao consumo humano, os esponsiveis nao deixam de equacionar as condigdes de sustento dos animais, seus parceiros na guerra, providenciando forragem® ¢ outros alimentos necessdrios & manutencao da sua condigdo fisica. ... Nao estranhamos, portanto, que as galés que aportam a Oeiras, provenientes da Galiza, entre ou- {ros mantimentos, destinados ao arraial castelhano, transportem cevada*. Se bem que os homens medievos a consumissem em boa quantidade, ela destinava-se, fundamentalmente, ao gado muar e cavalar@ Entre os mantimentos apresados nesses navios, contavam-se, ainda, pescado seco, pescadas, con- ros, polvos, sardinhas de fumo e de pilha”’, 0 que permitiu ao Mestre garantir a cidade uma relativa ‘Abundéncia, e uma boa Quaresma®, antes dos tempos dificeis que depois se viveram. Mas 0 carregamento mais apetecido das referidas naus era o da farinha. Com ela se produzia o ali- ‘mento vital - 0 pao™. Ele é 0 esteio da sobrevivencia. De trigo, preferencialmente, mas também de milo ou centeio®. idem p. 278, AH. de Olvera Marques, * A Arte da Guerra’ in Portugal na Crise dos Séculos XIV @ XV, VOLIV da Nova Histri de Portugal, or doc! Sarréo @ AH.te Olvera Marques, ed. Presenca, Lisboa, 1993, p, 343. * mamdou logo ecole pera a gidade todolls moradores do termo, com os mamtmentos que evar podessem’ Fernao Lopes, Grnica Det Rei Dam soar Parte Primera 9.121, “hordenou (.] de mamdar gemies 2a forragem aos logares que nom tram sua voz, por bastecera cidade de vamdas 0 mals que 3 fazer podesse.* idem, 122 ® wider p.188, ® AH. de Olvera Marques," Cevada" in Diiondrio de Histéria de Portugal, i, Joel Seto, Vol. I Liv, Figueinhas/Porte, 1961, p. 46, ® Femao Lopes, Cronica Del Rei Dom Joham /..Parte Primeia, 0.118, *e assi foi que cd aquel pescado era a cidade fartaem boa avomdamga, @ pagavom aos fdalgas e aasoutras gemtes 0 sodo em li bide 9.119, Sao conhecidos os muitos estudos que saentam 0 papel do pao naaimentago europeia medieval. Cteos apenas alguns: Famand Braudel, Civilzagdo Material e Captasmo. Sécuios XV-XVI, tad. de Matia Antonieta Magalhdes Gotinho, Tomo |, pp. 84-117: Massimo Montanan, Lalmentazione contadina neato Medioevo, Uguosied., 1979, pp. 211-218; Louis Stout, Ravtailement et ‘Alimentation en Provence aux Xe et XVe sidcles, Paris La Haye, 1970, pp.27-82; Anna Maria Nada Parone, I co det ricco ed il cio del povero. Contribut ala storia qualtatva deltaimentazione. Larea pedemontana negi ulin secol def Meo Evo, Bibloteca 4i* Stud Piemortes?, 1989, op.55-122: AH. de Oliveira Marques, A Socedade Medieval Portuguese. Aspectos da Vida Quoticiana, 3% ed, Liv Sd Costa 4, Lisboa, 1974, pp. 15-16; Salvador Dias Armaut, A Arte de Comer em Portugal na ldade Média, dnrocugao 0 * Livo de Cozinta* da infanta O. Mara de Portugal, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1986, pp. 12-18; iia Gongales, "Acerca da Alimentagdo Medieval’ in imagens do Mundo Medieval, Livros Horizante, 1988, pp 210-212; Mara Helena da Cruz Coelho, " Apontamentos sobre @ Come ¢ a Bebia do Campesinato Coimbrdo em Tempos Medlevos"in Homens, Espagas e Poderes ( Séoulos XL-XVI) - Notas do Viver Socal, Luros Horizonte, Lisboa, 1990, pp.12-16, Seno possivel uma variedade de siuapdes consoante as épocas e as regis. Atente-se, por exemplo, na vivéncia documentada para o espago minhoto ~ ia Goncalves, "Sobre o Pao Medieval Minhoto, O testemunho das Inquiigdes de 1258", Arqueologla Meoieral, N°, 6, 1999, p.225-243. Também algunas dierengas verfcadas_parao Bako Teo, como procurdmas apontar no estudo fefto - Maria Manuela Catarino, Na margem oirelta do Bato Tj Palsagem rural e recursos alimentares (sécs.XV e XV) Ptiimonia, Cascais, 2000, pp. 70-73, E & sempre ele que 0 cronista quer sugerir quando menciona as preocupagdes em transportar, antes do cerco, todas as quantidades de trigo possivels para dentro dos muros da cidade, Mesmo nos momen- 105 lisboetas correm risco de vida para o obter: os batéis que, de noite, se aventuravam a passar 0 rio para as partes do Ribatejo, e que eram ansiosamente esperados as portas da cidade, procu- ravam garantir 0 abastecimento do precioso trigo & medida que ele ia rareando®” Do cereal farinado, em tempos bonangosos, conhece a cidade a variedade dos pées. Diferentes no peso, no tamanho™, e, naturalmente, no custo” Mas principalmente, diferentes na cor, que torna o seu con- sumidor orgulhoso da sua urbanidade. Consumir pao escuro, 0 pao do mundo campesino, é sinal de humi- thagéo para o citadino, a recordagao da sua ancestralidade rural Julgamos, por isso, perceber os lamentos do cronista, quando as marcas indelévels da Fome se agugam nos comportamentos dos sitiados, perante a falta ou carestia de pao (mesmo que por ele pagassem bem!), obrigando-os a consumir pao de bagaco de azeitona. Esta e outras desacostumadas cousas, pouco amigas da natureza, que, em situagoes extremas de crise, se podem transformar em farina, encontram cor- respondéncia nos minisculos gréos, que homens @ mogos esgaravatam no solo, e metem & boca, sem mais, numa tentativa de desesperada sobrevivencia®. E certo que estamos perante um cenario tragico, e que estes consumos nao habituais resultam de um prolongado cerco, mas as informacées do cronista permitem-nos salientar outras vertentes da importéncia deste alimento no contexto urbano. De facto, & medida que a crise vai aumentando os responsdveis procuram saber da disponibiidade de recursos: 0 Mestre mamdou saber em certo pella cidade que pam avia per todo em ell, assi em covas come per outra maneira™. Os resultados séo desencorajadores. Para os mais desafortunados nem as esrno- las piiblicas podiam prover. O acentuado desnivel entre os recursos existentes e 0 nimero de bocas a mentar perspectiva solugdes drésticas - a expulsdo dos menos titeis a defesa da cidade™. Inexistente ou caro, 0 pao determina, assim, 0 destino dos habitantes, que em desespero procuram ‘outros alimentos menos comuns: faaes hi avia, que sse mantintd em alfelfca, enquanto que outros se far- tav6 dervas e agua, numa combinagao fatalmente fulminante®. Também a carne, esse outro sustentéculo da alimentagéo medieva", escasseava na Lisboa cercada Nao por falta de atempado aprovisionamento, €, por demais, conhecida a referéncia que Fernao Lopes faz aos espagos das Lezirias Ribatejanas onde os da cidade vao buscar muitos gaados mortos que salgavom em tinas™. 2 Fedo Lopes, Cénie Det fei Dam Johar Parte Print, . 195. ® ttidem p268, * Gta Goncalves, "Sobre o Pio Mesival."inop.ct, pp. 235-238 enolas respects © Soe aimportnciadoteamento do pega dopo na cidade de Lisboa ia Gongaes, *Defesa do consumidor na cftade mdieva 6 proutosalmertares (Lshoa-séculos XY) in Un oar sabe act medial, Patimona, Cascais, 1996, pp. 105-106, ® Sobre os modelos alimertres oposos, ene as genes da cidade e as dos campos - Cf. Massimo Moana La Fame e {LAbondena. Sta delPimentxione in Europa Roma-Bat ed aera, 1883, pp 67-8 5 Femdo Lopes, Crea Del el Dom Jota Parte Primera. 288. 2 be 9.289. ® bier.op 268-268, ® tbe 9.289 > abundancia e varie do consumo de care na diet almentar medev, tem sido abonada em muitos estudos.Retembrem-se apenas alguns: Femang Braud), Gilizagdo Mater... p.180-156; Lous Stat, Ravtallemet...p. 170; Anna Maia Nada Paton cio del cco... pp. 223-224; Mas , uma vez mas, 0S modelos de consumo varam para cana eral - Ct, Massimo Montana la Fame... p87; Louis Stuf, * La vande. Raviailement et consommaton 4 Campenias au XVe silo in ANNALES, ESC.19699.1442 2 Ferno Lopes, Crsica De ei Dom Joham Pare Primera, p. 195. A escolha deste espaco nao poderia ter sido mais adequada. So indmeros os testemunhos que abonam a pratica de uma intensa criagdo de gado bovino nas leziias taganas®. E decerto essa carne, bem apreciada no meio urbano*, consttuiu grande parte do equilbrio aimentar dos habitantes de Lisboa até 20 momento que as difculdades se camecaram a fazer sentir. Os primeiros indicios sao a subida dos precos que acabam por acentuar as-diferengas sociais, quase que consubstanciando uma fome para os ricos e outra, desmesuradamente violenta, para os mais pobres. Parece-nos, ser esse o sentido das palavras do cronista quando aponta os altos pregos que se pediam por este tipo de alimentos: se almogavares tragiam alguus bois, valia cada huu sateemtalivras, que eram qua- torze dobras cruzadas, vallendo entom a dobra gimquo e seis livras, de modo que os pobres per ‘mingua de dinheiro, nom comiam came e padeciam malt. Esse a came, por si, atingia tals pregos no menos significativos eram os valores atingidos por outras partes comestiveis: a cabega e as trinas chegavam a valer uma dobra’ ‘Nao se pense, porém, que o recurso ao consumo de visceras animais apenas se pratica num contex- to de crise. 0 mundo medieval faz delas largo uso. Em situagdes do normal consumo citadino, 0 agougue Gispoe de um vasto leque de entrantias com que, a custo inferior ao da came, e, com alguma imaginagao culindria, se podem forrar muitos estomagos* Nao se extingue na carne de origem bovina este tipo de recurso alimenta. Aliés, 0s pregos referidos or Fernéo Lopes mostram outros potenciais recursos de origem animal - e sse alguus criavaom porcos, ‘mantiiniésse em elles; e pequena posta de porco, valia cimquo e sels livras que era huua dobra castellie; @ a gallinha, quareemta solldos; @ a dizia das ovos, doze solldos* Embora caracteristico da paisagem rural 0 porco néo deixa de estar presente no mundo urbano*. Basta-se com os restos que consome e garante um aproveitamento total de si proprio jé que, das patas as orelhas, tudo se pode transformar em algo comestvel” Salgadas*, as suas cares garantiam a duragéo do alimento por longos periodos. Frescas®, exigindo reparagao um tanto imediata, 2s variantes da gastronomia aprimoravarm-the o sabor. Mas a possibilidade de feitura de enchidos varios, bem como da rentabilizacao da sua gordura", garantiam a sua geral apreci- acdo em termos alimentares.. Obviamente que, na Lisboa ercada, estas vantagens iam rareando, Esgoladas as carnes conser- vadas ¢ os mais pequenos dos seus derivados, haveria que langar mao de outros animals disponiveis. Esto neste caso as aves de criagao, particularmente as galinhas que acima nos sao referidas. CL Maria Manuela Catatino, Ma margom diet. 111-112. “ Enquanto que o mundo rural consome, preferenciamente a carne de porco,salgada ~ Cr, Massimo Montanari, La Fame... . 97. “ Femao Lopes, Crénica Del ei Dom Johann Parte Prineta,p. 268, * tiem p. 268. 0 que impicavaalguma preocupagao em conservar a quatade deste tipo de produto: *o impedimento de vender cabecas e enka ‘has mal lavadas ou temanescentes do cia anterior - ia Gongalves,"Defesa do consumidor.n op. ol, p:112 *V. por exemplo, 0s informes dispoibitzados para a regio do Piemonte - Anna Maia Nada Parone, I cibo del ricco. pp.277-281 “ Femao Lopes, Crénica Del Rei Dom Joham Parte Primeia,p. 269, “ Louis Stout, Ravailemet...p.123 ; Maria del Carmen Care," Aimentacion y Abastecimlento" in Cuademes de Historia de Espa, Vol. LX-UXI, 1977, pp. 265-266. Com tados os inconvenietes e perigos para. a sadde publica, como demonstra Jean-Pierre Lequay, La Rue au Moyen Age, Quest. France ed, 1984,pp.59-60, Waa dol Carmen Carl, * Almentacion.." nop. ct, 9.265, “ Conservadas pelo sal, ou recrrendo a outas tcnicas de conservago- pelo fumo ou pela gordua do proprio animal - Louis Stout Faviailement... 123; Anna Maria Nada Petrone, # cibo de rcco...p 236. ® Lous Stuf, "La viande.. in op. cit, p. 1499. 2 AH. de Olveira Marques, A Sociedade Medieval. .8; Salvador Dias Arnaut, A Arte de Comer... p20 nata 2 O targo emprego do toueinto, como tempero, nao invalida que soja iqualmente consumido como alimento- Anna Maria Nada Petrone, ‘oibo del rico... 283; Ia Gongalves, * Acerca da Almentagao "in op. ci, pp. 204 @ 206. Em tempos de paz elas abundam no espago citadino. Séo uteis pela carne, mas, sobretudo pela Ccapacidade reprodutora @, nao menos importante, pelos ovos que produzem'*. Para paladares mais exi- {gentes podem constituir agradaveis acepipes®, mas para os habitantes economicamente mais desfavoreci- dos, a sua posse representa, pelo menos, uma precaugao contra a fome* Nao se estranha, assim, que na Lisboa cercada, sejam estas as carnes nomeadas como sinal das dif- culdades sentidas. Como também, e semelhantemente ao que acontece com 0 pao, a sua extremada falta, © prenuincio da fome, o desespero da sobrevivéncia, faca os habitantes da infortunada cidade recorrer ao consumo das cames das bestas, ¢ nam soomente os pobres ¢ mimguados, mas grades pessoas da cidade, Conquanto os momentos dificeis que se viviam se desenrolassem no periodo do verdo, néo parece ‘que faltasse Agua para beber. 0 cronista nao nos fornece pistas para tl, ao contréio de outros cercos, par- ticularmente dificeis, como o vivido, nesse mesmo ano, em Almada. Apesar dessa vila possuir uma cister- nna, quando a Agua se esgotou, os problemas comegaram a surgit De tal modo a sede atormentou os almadenses que folhe forcado tornar a bever outra muito davoreger..a que jazia na aloarcova que chovera 1no inverno, na quall as motheres ante que fossem cercados, lavavom as sroupas emfomdicadas, e os tra- pos dos meninos; a qual era verde e muito cvja, ¢jaziam em ella bestas mortas, e céaes, ¢ gatos, que era rnojosa cousa de veer; ¢ de noite sahiam de demtro homees per cordas a furtar aquella agua™*.£ 08 supl- clos ndo terminavam aqui, jé que 0 cronista ainda refere que " per mingoa dagua que nom tinham, amas- ‘savom 0 pam com vinho, e caziam a carne € 0 pescado; e comia o pam emquamto era quente, e como era trio, nom 0 padiam nenquem comer ‘A falta de Aqua toma dramética a pratica alimentar. Subverte as prioridades dos alimentos. €, se 0 exemplo citado, evidencia as agruras da sede, ndo deixa de chamar a atengao para essa outra bebida de eleigdo dos homens medievais - 0 vinho®. No dia a dia, inquestionavelmente preferido, o vinho atinge, na situagao de cerco um prego conside- ravelmente elevado: ts ¢ quatro libras se pediam pela canada de vinho, no dizer de Fernéo Lopes®. 0 vinho, retemperador de forcas®, retresco do paladar, propiciador da convivialidade®, que o espaco urbana conhece das indmeras tabemas que 0 povoam®, néo continuard, no momento que a cidade vive, a0 dispor de todas as bolsas, ¢, sero, possivelmente, vinhos vermelhos, mais adequados aos calores esti- vais, que os mais ricos poderéo degustar.. ® Louis Stout, Ravitalement...p. 199; Anna Maria Nada Ptrone 1 cibo det ricco... pp 285-287, ® Para além do fango, também o pomba ou o pato padem ser objecto de malilas preparagbes culindras- Cia Gongales, "Acerca dda Almertagao.." in op. ct, p. 204. 5 anna Maria Nada Patron I cfbo del ricco... 285. * Femdo Lopes, Grénica Del Rei Dom Jofam Parte Primer, 269, Fema Lopes, Crénica Del Re Dom Jofam Pate Primi, 236. * frie, pp:235-226. ® Massimo Montana, L'aimentazione contain... 373; Anna Mara Nada Patrone, Wf ibo del ricco... 383-386; A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval... pp.16-17; Salvador Dias Armaut, A Arte de Comer... p. 30; lia Gongalves, "Acerca da ‘Alimentagao.."in ap. cf, p.208; Maria Helena da Cruz Coelho," Apontamentos sobre @ Comida."n op. pp.10-11, ® Faxmao Lopes, Cronica Del Rei Dom Joham Parte Primeia,p. 268. ® Roger Dion, Histoire de fa vine etd vin en France des origins au Xie scl, Flammarion 1877, p:188. ® Salvador Dias Arnaut, Arte de Comer... pp:30-32. © Consubstanciando 0 destegramento do acto social de beber - Massimo Montanari, Lalimentaione contadina... pp.75-378; Salvador Dias Amaut, A Arte de Comer... Pp. 34-38. © a taberna “faz parte da paisagem urbana eda via social das cidades" - Louis Stout, Railailement..p. 91, nfassimo Montanari, Ualimentazione containa.. p. 381; Louis Stoll, Raviallement.. p98, Pelo que brevemente se vem apontando percebemos que o espaco citadino vai perdendo os pilares do seu sustento com 0 escoar dos dias. Aqueles mais preciosos sobre os quais se ergue a artificialidade da sua Abundancia® e que tanta admiragao desperta na ruralidade que vive para la dos seus muros. Todos 0s que a eles se acolheram na esperanga de protego acabam por desesperar. Esta ndo é uma fore comum, daquelas mais ou menos cialicas, que se habituaram a enfrentar ao longo das suas doridas vidas. Transfigurados pelos padecimentos, atormentados pela instablidade psicologica, muitos deles ndo te- riam sendo lagrimas para acompanhar a caminhada da terrvel morte que, inexoravel, vinha ao seu encontro®. Poderemos, por isso, compreender o turblhao de sentimentos que os envolveriam quando, do alto dos ‘muros da cidade comparavam, no mais intimo dos seus coragées, o bem fornide arraial castelhano ao que calculavam, ainda existr portas adentro! Um verdadeiro pais de Cocanha” que, na ilusdo de prosperidade estava ao seu alcance e, ao mesmo ‘tempo, era inatingivel Arraial que, segundo as palavras do cronista, a par da disposigao dos alojamentos régios e da comi- ‘iva senhorial em gramdls e hordenadas ruas evidenciava 0 luxo, a ostentacao, os sinais de riqueza, se bem que supérfiuos, imprescindiveis as gentes de qualidade que nele se aposentavam'. Uma cidade no seu completo esplendor, onde decerto nao faltavam os mantimentos: E era avomda- do @ muito farto de mantiimentos que lhe viinham de Santarém em barcas per mar, ¢ per terra gramdes arrecovas de bestas...£ nom soomente de Santarém, mas de todollos outros logares que por elRei de Castella estavom, era 0 arreall servido de todo 0 que mester avia®. AS barcas @ baixeis, provenientes de Sevilha, asseguravam o fornecimento dos bens essenciais & manutengdo do cerco, tanto no que se refere a armas como aos produtos alimentares. E, quanto a estes, a sua abundancia nao se restringria ao consumo basico, mas as palavras usadas por Fernao Lopes podem indiciardisponibiidades alimentares especficas como as que se entrevéem sobre a genérica designacio de desvairados confeitos e agucares e comservas” em que estéo presentes outros apreciados requintes. Dir- se-ia que a Fortuna, ela propria se predispunha a favorecer os invasores.. Porém, naquela manha do dia cinco de Setembro, como regista 0 cronista”, 0 rel de Castela obrigado elas circunstancias, afastava-se da cidade que tanto almejara dominar. O cortejo que o seguia, depaupera- do e marcado pelo estigma da peste, néo era decerto aquele que melhor conviria & sua condicao de rei. Nem téo pouco nele se poderiam descortinar os sinais de ostentagdo e imponéncia marcials que, alguns meses antes”, tinham marcado a sua chegada junto do mosteiro das Donas de Santos onde postara o seu arraial Frustadas as sua expectativas, nada mais the resta do que vituperar, com a forga das palavras, a cidade, que nao sujeltou pelo poder das armas: "Oo Lixboa! Lisboa! Tamia mergee me faga Deos que aimda te veja lvrada de ferros darados!" tera dito o rei de Castela,quando se partia dela, com toda sua gente, caminho de Torres Vedras”. © Massimo Montanari La Fame... p70. © Famnao Lopes, Cronica De! Rei Dor Johar Parte Primera, p.271, © Massimo Montanari La Fame... 118. = V, 0 Capitulo CXIV. Como ee! de Castella chegou sobre Liboa, e com asseemtou seu areal sobrela-Fernao Lopes, Crénica De! fei Dom Joham ..Parte Primera, p-192-195, © idem, .193, Sobre a possivelvaedade de doces ¢ conservas disponiveis para os apreciadores desse tipo de requintes culintos C. Mara José Azevedo Santos," 0 Mais Antigo Livo de Coinha Portugués - Receitas e Sabores"n Rew Portuguesa de Historia, tomo XVI, Coimbra, fac. Letras Univ, Coimbra, 1982, pp. 88-80. “ Fernao Lopes, Cronica Del Rel Dom Johar Parte Primeira, .276. “E.assi durou 0 gerco depois que elRei chegou 2o Lumearatza ves las do mes de setembro que sse levamtou de sobre a cidade, quatro meses e vite e sete cas" bier, p.276. * ibidem, 276.

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