Vous êtes sur la page 1sur 8
Domingos Carvalho da Silva que estdo seguros de que Matusaki foi a prépria encamagio do Diabo, © Diabo em e: u. pelo menos o esqueleto do “are € Os50, Ou pelo meno: Diabo. : —n- A ESPINGARDA ANDRE CARNEIRO André Carneiro é um dos principais nomes da Geragdo GRD — 0s autores patrocinades pelo editor baiano Gumercindo Rocha Dorea na ‘olecto Ficgao Clemifica GRD — fruntamente com Rubens Teiceina ‘Seavone, Fausto Cunha ¢ Dinah Silveira de Queirox. E sambém um (poeta da Graz de 45, descoberta por Domingos Carvatha da Sila ‘Exorcon vasta gama te atividades, inclainda a edigao da revista cul- sural Temtativa (1949-1952), reeéntemente republicada em fic-stoni- ‘pela Prefitura de Atibai e pelo Arquivo do Piblico do Estada de ‘Sao Paulo. Por periodes dysante w ditadura, Carnetvo viven na clan- destinidde. ‘Boa parte do melbar do arto foi publicada pela edtora panliaa EalArt: das coletinens Diétio da Nave Perdida (7963). gue recebeu 0 prémio de “Melhor Livro do Ano” do Departamento Culeural da Prefeitara de ‘So Paulo, eO Homem que Adivinhava (79662. Tido como nm elds ‘co die #0 brasileira e, por alguns, como aga eldsica da Pe interntcto~ ‘nal sua noveleta “A Excuridto” pertence ao primeira volume, Por sua 103, o conto que tracents agai, ‘A Expinganda fs parte do sgunde, continua a tendéncia semdtica da guerra ationica e do ps-brolocausto ‘na fiogdo cientifica nacional, dentro da tradigito de histbrias sobre“ thingo homem na Tera’: Une conto de armosfera angustiante, no qual 12 orttica norte-amerizana M, Elizabeth Ginway, autora de Vivs30 Cientifica Brasileira: Mitos Culturais ¢ Nacionalidade no Pais do Bututo (Devs, 2005), reeonbece traces da tensio entre 0 Brasil desen- olvido do Sul, e 0 subdeservalotda do Norte. Os mais recentes res de contes do autor sdo & Neéquina de Hyerénimus ¢ Outras Historias (1997) e Confiss6es do Inexplicivel (Dever, 2007). Este sitio ¢a André Carneiro mais volumosa coleténea de bistdrias de um autor brasileivo de Ke jb publicads. Seu primeiro romance, Viscina Livre (1980), for langado prineivo na Subeia, Sobre Carneiro, A. E. van Voge, um grande nome da mundial, exreven: “André Carneiro merece a mesma audiéncia de san Kiafea ou Albert Carus.” Harry Harrison, outro monstro-sagra: do do gener, 0 chamou de “autor de contos excelentes” Aledutara Silveira rambin 0 identifica com Kafla, enguaiato Fausto Cuba observa que “nat ficgdo se coloca na liwha evoluriva gue, abindonando 1 destumbramenta tecnolégica injeiul, avangu para a consideragao dos problemas bnmanos soba ehogue da fidturo Siléncio. Até onde sua vista alcangava, centenas de carros, parados, na avenida, Eygueirava-se por entre eles, a mio rogando carrocerias cobertas de poeira. Preus murchos, manchas de dleo feitas gota a gota, no chido de asfalto, Inelinou-se sobre wm para- choque cheio de barro ressequido, Pequenas folhas cresceram ali, as rafzes descobertas se esgueirando entre a ferrugem que avan- cava. Continuou & andar para a frente, parando de vez. em quan- do[A paisagem era a mesma, de um tempo muito diferente Extava ao lado de um carro conversivel, a chave da partida no lugar, porta abertal estofamento se estragando ao vento, vidros sujos ¢ opacos\Encostou,se em sua frente, a earcaga Fez um ruido de juntas enferrujadas. Em ambos os lados, casas de luxo, com jardins isolados, O mato invadia as passagens, verde misturado com folhas secas, transformando as construgdes em ilhas tristes © cesquecidas. Ele olhava vagamente, nas precisava avangar, descobrir algu- ima coisa, Nuvens punham sombras ripidas, passndo pelos auto- méveis em diregao ao centro da cidade. Ble apalpou os bolsos, no gesto de procurar cigartos. Tinham acabado, Entrou no carro, abriu 0 porta-luvas, Vazio. Apertou o botdo da partida. A bateria sem uso, ndo produzia faisea. Saiu, subindo a avenida, olhando para os lados, como se alguém escondide pudesse vir av seu encontro, % A Espingarda Precisava de cigarros. Na rua transversal havia um bar. Aproximou-se cautelosamente, A alguns metros da porta, sentiu 6 cheiro, Resolveu procurar nos automéveis, agora mais espar- sos. Devagar, espiava para dentro, abria a porta, Encontrava documentos, pegas de reserva, que atirava para 0 Jadof Na quarta tentativa descobriu um mago fechado. Estava velho, mas no se importaya. Habituara-se aquele sabor, que parecia igual wo de sempre.| Recostou-se no baneo, para fumar, Sobressaltava-se quando folhas de papel eram arrastadas pelo vento, janelas soltas batiam com um ruido seco. Se pudesse usar um automével, faria centenas de quilémetros por dia. J& perdera muito tempo arru- mando baterias, tranyportando gasolina, arrumando pneus. Estes _ eram os mais dificeis. Nao havia eletticidade para os compresso- res. Andara quilémetros para descobrir uma bomba manual, Apos muita luta, 0 carro funcionou, Desviava dos obstéculos, subindo nas calgadas, empurrando com trombadas que the impedia o caminho. Quando o bloqueio era intransponivel, voltava para ids, seguia otras ruas, fazia rodeios, levando um dia para avan- ‘gar uma pequena distincidf Nas estradas era pior, Postes tomba- dos, caminhdes, cargas abandonadas impediam o avango.] Recuava sem cuidados, a bater no que encontraya, Abandonou 0 carro por uma motocicleta, Por mais que a cuidasse, tinha diftcul- dades com o motor. Tombou em um buraco inesperado, deixan- do-a Li mesmo. A perna, ferida, ctistou a sarar, Carregou uma srafas de relrigerantes pari bicicleta de latarias € mantimentos, ga matar a. sede. As vantagens mio compensayam as canseiras, mudangas de itinerdrio, a impossibilidade de transpor lugares cheios de detritos,{prédios tombados pelos incéndios) que nin guém apagara, Conformara-se emt andar a pé. No centro da cida- de deixara até o saco de mantimentos. Andava com as méos livres. quando queria comer ou beber era s6 suportar 0 cheito, Havia bares © mercearias por toda parte. Fizera uma mascara Improvisada, com algodio, onde punha gotas de desinfetante. Cadiveres jaziam pelos cantos, trapos, bragos retorcidos)] As 1 André Cameiro vezes tinha de afasté-los do caminho, saltar até os baledes e pra- teleiras, onde garrafas empoeiradas de refrigerante Ihe davam de beber. As comidas enlatadas nfio the faziam bem, Trazia nos bol- sos vidros de pilulas, tirados das farmdcias, vitaminas ¢ fortifi- cantes, com os quais procurava equilibrar sua dieta Passou a mio pelo rosto barbado, recomecou a. procura. \_ Vitrinas ¢ espelhos refletiam um mendigo cabiludo e sujo,fTinha “imedo de limpar-se com, gauaj Fazia-o com dlcool ou perfumes, embebidos em algodio [Fntrava nas casas lentamente. Evitava olhar os caddveres, tibias descobertas, olhos fundos sem pupilas. Sabia onde encontraria gente morta. Percebia de longe 0 cheiro pesado, miasmas de sepultura fechada, que o envolviam como teia de aranha, grudando-Ihe na face, nas méios apalpando o caminho.,.) Ni respirava a plenos pulmdes, Defendia-se do odor que gia em qualquer lugar, estragava-Lhe 0 momento das refeigdes, feitas em horas ¢ lugares imprevistos. Perdera a nogdo dos dias. | Conté-los nao Ihe servia de nada, Dava corda ao rel6gio de pulso, | mas nao havia ponto de referéncia pura aeerti-l, ~~ Nuvens negras cobriram 0 céu. Levantou-se e continuou a andar. Aos primeiros pingos, refugiou-se na porta de um grande edificio. Enxugou duas gotas que o atingiram, Temia a dgua, 0 veneno penetrando a pele. As gotas se multiplicaram, uma chuva torrencial cobria tudo. A porta de vidro do prédio estava aberta, encostou-se nela, olhando para fora. Deixou uma das folhas entreaberta. Do fundo vinha o cheiro inconfundivel. A testa encostada no vidro, olhava a rua, A cortina d°agua batia nos auto- moveis, a pintura brilhava outra vez. Ji vira uma erianea morta arrastada pelas aguas. Gotas se formayam nos fios elétricos. ‘Chovia hi horas ¢ ele estava preso ali.[Precisava procurar comi- dae nao queria explorar 0 prédio, enfrentando cozinhas cheias de bolor, caddveres debrugados nas mesas, empurrados pelas portas=) Olhava a umidade caminhando pouco a pouco, como pontei- ros de reldgio. Sentiu. uma fraqueza, sentou-se no chiio, Nao havia alternativa. Precisava comer. Retirou do bolso atulhado um ne A Espingarda engo com um pedago de gaze € algodio, colocou-o no nariz. A respiragdo era mais dificil, o odor aspero do desinfetante. Subiu pelas escadas, A Juz mortiga da tarde iluminava os corredores. Havia cadeiras quebradas, malas abandonadas, pegas de roupa. Entrou em um apartamento do segundo andar. Duas baratas sai- ram correndo, Ofegando por trés da mascara, olhou ao redor. No canto, um diva, ocupado por um volume envolvido em cobertor. Perto do chfio, pendiam dois sapatos, presos por cartilagens. Desviou a vista, caminhou para uma porta que deveria levar & cozinha. Mais baratas cruzavam em sua frente, sem diregao, como se estivessem tontas. Corriam pelas paredes, tombavam no chido, deslizando para todos os lados. Achou uma vassoura, foi brandindo-a na frente, as baratas mais excitadas, centenas, vindo de baixo dos méveis, pelas fiestas das portas, pondo rastos mindsculos na poeira do cho, com um barulho rascan- te, subiam pela vassoura, ele desviava os pés, procurava escapar com passos largos, esmagando-as com os sapatos. Mal podia andar, tornaram-se milhares, agitando-se nas super um pesadelo. Gritava enquanto batia a vassoura, chutando aque le exéreito de patas, sua vor. atravessava cortedores, perdia-se If fora, com a enxurrada invadindo as rus. Nao chegou até a co7 nha, Recuou em saltos, sacudindo-se dos bichos que subiam nas pernas, procuravam entrar pelas mangas, as mios amassando cor- pos tontos esgueirando-se pela roupa. Saiu do apartamento, desceu as escadas pulando degraus, vol- tow até a porta de vidro. Puxando o ar através da miiseara, com ‘um som rouco, sacudia o palet, quase tirou a roupa até saber que do havia mais nenhum inseto. A chuva havia parado, Sentou-se no saguiio, vazio e calmo, Nao via baratas. Tombou a cabega no peito, tirou a mascara. Junto com o ar fel, entrou-the nos pul- mées o cheiro pesado, nuvem invisivel saindo pelas frestas, eami- nhando de quarto em quarto, descendo pelas escadas, até ser leva- do pelos ventos entre as drvores e espagos mais argos. ; 0 céu, desfalcado de nuvens, deixou passar 0 sol, pondo bri- —n Andié Carneiro lhe Ihos de cristais nas pogas sujas. Foi para fora, subindo a rua, em vermelho destacaval as fachadas, automéveis, gotas deslizando / \ busca do que comer. Diminuia 0 marulhar da envurrada{O clarto i nos fios elétricos] Parou diante de(w'a)mercearia, Na porta, um tabuleiro, com restos emboloradas de frutas, comidos por lesmas warelas, Com a mascara novamente, pulava obsticulos, para chegar as prateleiras. Fscolheu as latas ¢ garraftis que precisav Foi para a mua, buscando um canto onde comer. Geralmente pene- trava em apartamentos, restaurantes, onde achasse um fogdio que ainda acendesse, para aquecer a comida, A noite se aproximava, resolveu engolir frio 6 que encontrara, Mastigava depressa, sem sentir o gosto, fechando os olhos, procurando ng pensar em nada, Ajeitou em um saco as latas que nao abrira, garvafas de gua mine- ral, suficientes par alinsen cidade, avistaya 0 campo’ distincia, Curvado, 0 saco nas costas, aproximou-se de umi enorme caminhdo, Rodeou-o devagar, A porta estava aberta, Havia uma pequena cama na cabine. Sabia ajusti-la, Entrou, fechou a porta, deixando uma fresta nos vidros. De madrugada a temperatura eafa, quando pegava em sono pro- fundo, Ajeitou-se como pode, fechou os olhos, Era o momento ais dificil. Enquanto havia luz e tinh de cuidar de si, procurar igu € comida, os pensamentos se dispersivam, a situate pare cia-Ihe um intervalo absurdio, que kao terminaria, A escuridiio era completa. Levayat uma Tantema elétriea, pithas de reserva, O ela- réio faugaz da lampada, pouco adiantava{O tinel de luz, demareava solidiio, parede negra isolanco-o do que sobrara vivo no mundo, Haveria essa sobra’? Ele tinha certeza que sim, repe | em vor alta, na conv ye além di lo dois dias Chegars 4 parte alta da a argumentos. de niufrago que perseruta o horizonte @ Ss gaivotas 0 navio salvador ‘os olhos ¢ dormir. ConserVar a satide mental, dese: sar, dormir. Ser pritico, objetivo, controlado. Continuar procu- rando, frio, implacdvel. paciente. Gritava, agitado, correndo 0 foco da lanterna{ Fandis distantes devolvian-lhe reflexos verme- IhosVoltava a cana improvisada i . fechaya os olhos, “vou dormir | vento levantava o ar pesado, levando papéis sem direga A Espingarda preciso dormir”. A infancia Ihe saltava da meméria, 0 adoleseen- te, mulheres de maids... Quantos quilémettos percomera? Fazia célculos. cujo resultado esquecia, Os miisculos repuxados, no conseguiria dormir, Tinha de ir para a frente, com determinagi até descobrir © rumo certo. [UJma vez vira fumaga no horizon), se para a frente na esperanga de encontrar alguém, para se unirem, trocarem idéias, continuarem juntos & procura de ou- (ros, Deseobrira um incéndio ja nas einzas, e mortos, pés retorei- dos, formigas subindo pelos cabelos. Virava-se na cama estreita, cordando vom pequenos rues, sonhos o atorment madrugada.|A manha trouxera um sol palido, naquele langar o, Voavan lentamente, brancos, impressos ou datilogratados, documentos acdesfsem mais nenhu- ue foram motive de ta ma imporiinei] Pegou uma lata de Ieite condensado no saco de mant Abriu-a devagar, medindo os gestos. Nao podia arrisear-se a ferir uum dedo, Sua vida dependia das mis. Misturou Ieite com um resto de dua mineral, Tirou bolachas de uma lata e comen deva- gar{Othou 0 horizonte, Eram curtos, seus Himites) Nada the ehe- gava a no ser procurado e carregado por suas maos (Como ani- mal perdido, fugia da morte e procurava os da sua especie.) Saco nas costas, afrumadlo nos ombros como sacola de esco- tciro, partiu mais uma vez. Andow toda a mana com pussadas larga, atravessou os bairtos distantes da eidade. Parow para ali mentar-se e continuou, De tarde estava'Qo campay Descansou em tum abrigo a beira da estrada, Um sol brithante punha sombras ida nas drvores. No cho andavam formigas, Inclinow-se, para yé-las. Vinham em fileira, Quando surgia uma, em sentido con- trévio, as anteriores se tocavam. Algumas demoravam-se nos reconhecimentos. Fuziam uma danga de recwos. como se um uisesse partir e a out insistisse em comunicar algo importante Levantou-se, friceionou os misculos doloridos, olhou céu 0 sol descera, era tempo de procurar um abrigo para passar a Iho e preocuy wentos. a André Carneiro noite. Continuou pela estrada, olhando para os lados. Examinaria as casas que surgissem. Queria uma cama, um diva'em uma sala, até 0 capim de uma estrebaria, onde niio houvesse corpos em decomposigdo. No campo havia bois, cavalos, com nuvens de moseas, cachorros de boca aberta, como se latissem enquanto morriam, Chegou a uma casa, depois de uma,curva, Passou por cima do portio, com o saco de mantimentos. {Um barulho ritma- do, de motor longinquo, f€-1o parar no caminho cimentado, 0 coragio batendo mais depressa,)Ergueu os olhos. A brisa fazia girar a hélice de um avigo de madeira, pregado em um poste. Chegou até a casa. Portas e janelas fechadas. Forgou com 0 ombro, inutilmente. Em um telheiro mais recuado havia um tra- tor. Achou uma alavanca e um martelo, Usou-as na porta até esta- lar as dobradigas. Entrou na casa, abriu janelas. que iluminaram méveis empoeirados. Sentou-se com alfvio na sala de estar. Nao hayia cheiro, Uma porta conduzia ao pavimento superior \Subiu. Encontrou um quarto e um banheiro, Pela janela avistava-se uma | grande distincia, montanhas encobertas por bruma seca,-Deitou- se na cama de solteiro{Estava bem ali, mas tinha unt continent para explorar, embora mentalmente isolado em uma ilha. Voz. humana, s6 ouvia a se seu e¢o. Os radios de pilha nao sintoniza- vam estagao algumal Ansiava por um ser humano{Palava sozi- nho, fixara a propria voz em um gravador portétil. Mas | suportara ouvir-se, a repetir tolices ao toque de um boto2) Desceu & cozinha para comer Asioefientte de égua mine- ral € 0 fogio funcionou bem, Aqueceu afcomida enlatadique engoli lentamente. Acendeu um lampidio a querosene, fomou duas pilulas de vitaminas, voltou a seu quarto ¢ deitou-se. A jane- { 'a, mal fechada, fazia barulho, Levantou-se para ajeité-la. Abriu as duas folhas. O céu, limpido, cheio de estrelas{Abaixo da linha | do horizonte havia uma luz vermelha.\Ficou uns instantes olhan- dofa sem compreender, depois seu coragao deu um salto; fez um geyto em diregdo 2 porta, como se Fosse partir imediatamente, A noite seria~impossivel. Poderia se perder, softer um acidente. a A Espingarda Agitou-se em providéncias, com uma energia incansével. Pegou © lampifi, ficou agitando-o na janela. Seus bragos estavam can- sados, «luz vermelha)permanecia imével. Lembrou-se de deter- 'minar sua posigio, Trouxe de baixo uma pequena mesa, Colocou- a diante da janela ¢ levantou duas pilhas de coisas achadas pelo quarto, Othando pela primei as como se fizesse mira em diregio & luz. Depois recomecou os sinais, sem resultados, Resolveu deitar-se, descansar para a caminhada do dia seguinte. Nii conseguia dormir, levantava-se para espiar a jancla, Acabou arrastando a cama para tras da mesinha, Sentado na cabeceira, com o travesseiro nas costas, enxergava 6 ponto brilhante. O sono © tomou, nessa posigio. Acordou com o primeiro claro da madrugada, Esfregou os olhos pregados, foi espiar na diregio marcada. Era longe, podia distinguir pontos claros de constru- ges, entre a neblina difusa, lavam situados entre um morro fee alto 4 esquerda ¢ pedras salientes a direita. Era um ponto de referéneiaf Excitado © nervoso, preparou seu alimento, selecio- nou os que levaria, arrumou a sacola e partiu. Os pés levaram-no para a frente, os olhos conferindo 0 rumo. Os pensamentos o pre- cediam no destino, um ser humano diante dele, respondendo per- guntas. Na metade do dia parou para alimentar-se. Via ao longe um amontoado de casas, cidade ou povoado, onde enxergara a luz. Transpirava, as costas doloridas com o peso da sacola, O ere- ptisculo se aproximava quando entrou na pequena cidade, costas __inclinadas, a barba ‘imida de suor. Os passos mantinham a forga. TO morro & esquerda, as pedras a direita,)Fora dali, nfo havia Sngano. Espiava pelas portas e janelas. Afidava depressa, gritan- do, 2 espera de uma resposta que nao vinha. Chegou a uma praga, com uma grande construc, cercada de muros altos.{Convento ou sanatério, talvez um colégid.)O portio, muito grande, de tabuas grossas, estava fechado, Seguiu pelo muro, rodeando 0 quarteirao, Encontrou outra entrada, também cerrada, O muro teria quase trés metros de altura, Gritava a intervalos, perguntan- do se havia alguém, Siléncio. Afastou-se para outras ruas, mas acerton —s8— André Carneiro hhavia algo que o fez voltar até a casa dox muros altos. Qualquer coisa the dava a convicgdo que alguém existia kf dentro, Gritou, Jjogou pedras, inutilmente, As duas portas eram sélidas, levaria tempo para arrombé-las. Pensou em escalar ¢ muro, Com um gancho e uma corda nao seria dificil. Chamou mais uma ver, gri- tando que fie ninguém aparecesse, destruiria a porta} “Um estrondo como de um trovao, deixou-o surdo. O susto fe > Jo tombar para tris, © coragao disparado.|Num gesto instintivo cobriu a cabega com o brago.\Olhou para cima, Perto da porta principal, surgindo acima do murofviu um vulto com uma espin- gard apontada para eld) Aparceia em silhueta contra o claro do ccéu da tarde, Parecia apoiado em uma escada, Nao se distinguiam suits feigdes, nem o mover dos labios, quando disse: — Desapareca d Com a sacola ainda nas costas, barba comprida, Foupa sua, li de baixo ele fentou argumentar, perguntar “por qué?”. Um segun- do {iro atroou pelas ras desertas, © eco trazendo de volta num reboar surdo, Pareceu-lhe ouvir 0 silvo do chumbo perto da cabe- G0. Correu até a esquina prixima, esperando que uma baka the perfurasse o corpo e ficasse estendido, a esvair-se em sangue. Em tum canto onde nao poderia ser atingido, ofhow novamente, O outro desaparecera, Sentou-se, encostado & parede, o corpo tré- mulo, a testa mothada de suor. Ficou ali, a cabega tombada, os ibios movendo-se em palavras esbogadas. Quando levantou-se era quase noite, Sombras compridas cortavam as ruas, recomevou a tarefa de procurar abrigo, onde pudesse alimentar-se © dormit Penetrou na sala de visitas de uma casa, Existia um sof, onde dormiria, Fechou a porta de comunieaga Nao queria ver nenhum morto, Sob a luz da lanterna preparou leite condensado, comeu o que trazia, Fechou a porta e a janela, deitou-se no sof, Estava proximo 0 quarteiio dos muros altos La se escondia um homem, Othos abertos, na auséneiat que pr cede 0 sono, esquecia-se do tiro, Conversaria com o outro, no dia seguinte. Teria paciéncia, quem sabe 0 softimento que pass 9 com © resto da casa. A Espingarda Juntos, seriam mais eficientes, arrumariam um trator, que saisse das estradas, avangasse pelos campos... Levariam_mantimentos, |_remédios, haveriam de descobrir outros homens,..|Dormiu, No “outro quarteirio, cereado pelos muros{ na janela a esquerda, (re- mulava uma luz de lampiaoJA distincia seu brilho parecia uma estrela, fogo de troglodita no mundo despovoado. Teve um sono sobressaltado no soffi. Antes que 0 sol surgisse, estava de pé Consumiu a tltima garrafa de agua com leite em pé. Sentia-se sujo, precisava limpar-se, mas © pensamento concentrava-se em planos ¢ suposigdes. Abriu a janela, a claridade entrou, Retratos nas paredes, um armério de armas em um canto, Estava aberto. Havia uma espingarda calibre 22, outra, de dois canos, calibre 12. Junto ds coronhas, caixas de balas e cartuchos, Tirou a espingar- da maior do suporte, abriu © cano, introduziu dois cartuchos no ugar. Apoiou-a no ombro, como quem [xz pontaria € recolocou- a no lugar, Deixou a sacola, saiu para a rua, Manha fria, uma névoa clara erguia-se das calgadas. Seus passos ressoavam no siléncio. Virando a esquina, viu os: inne janela esquerda ja nfo filtrava nenhuma luz. O outro dormig\A proximidade de um semelhante vivo fazia-o otimista, Haveria de ter paciéncia, con- veneé-lo a deixar a arma, discutir, acertar uma resolugao qual quer. Resolve escrever-he uma mensigem. Procurou pela praca, entrou cm uma loja de fazendas. Arranjou um kipis verme: Iho e um grande papel branco. Escreveu: “Somos os ti homens vivos. De qualquer maneira, precisamos entrar em acor- do, para nosso beneficio. Espero que possamos conversar amiga- velmente.” Releu, acrescentou uma virgula e um “talvez” depois de “vivos”. Com receio que © papel se perdesse, colocou-0 em uma caixa de papelio. Atou a eaixa com barbante, sem cortar 0 fio, Saiu & rua, banhada de sol, foi até o local de onde o desco- nhecido atirara, Fez a caixa ultrapassar 0 muro, presa pelo bar bante, pendurado do lado de fora. Afastou-se correndo. tinha de esperar. Olhou a paisagem, as casas silenciosas, Andou pela cida- de yazia, para passar o tempo. Quando pressentia um cadiver, cos 6 André Cameiro mudava de directo, voltava para tris espiando pelas janelas. Retornou aos muros altos. O barbante desaparecera, Sua mensa- gem fora lida, Afastou-se e gritow: — Venha, para conversar. Ouviu rufdos, do outro lado, O outro subia a escada, surgindo cantelosamente, a espingarda na mo direita. Gritow — Vé embora, desaparega daqui. A resposta veio imediatamente: — Por que, ir embora?! Andei centenas de quilémetros, para achar uma pessoa viva. Nao quero nada do que voeé tem, 36 ajudé-lo, conversar, procurarmos juntos os que est (Aceito qualquer condigao, no pretendo modificar sua vida.) “Tenho pritica desta desgraga. Sei arrumar mantimentos, gus. Conheco aqui perto um lugar com um trator... © outro mudou de posigiio no muro, interrampendo’ — Nao, nao quero voeé aqui nem que fique ma cidade. Se nio partir logo eu vou atirar. — Mas niio € possivel que me expulse assim, sem uma Por que niio posso ficar, por qué? _ Acypingarda descreveu um circulo, enquanto ele respond (~_ —Voct veio do su, est contaminado. — Levanto o brago, | com édio: — Veja, a cidade inteira morreu contaminada, Vink (+ || 08 do sul, morreram todos, todos. Va embora, niio quero nin- guém aqui. Othando cautelosa mais, Nao & verdade que contaminaram a cidade, @Wesgiag@) leaats todo o mundo, Veja, eu estou bom, Bebo agua de garrata, andei quilmetros ontem, sem me cansar. Devemos ser amigos, trabalhar juntos, Se vocé tem medo de algo, eu poderia dormir em quarto distante, conversarfamos de longe, como agora... | —Nio, ndo quero, voe’ est contaminado, v4 embora senio eu atiro. — E absurdo dizer que estou contaminado. {Re ha sul nem 0 vivos. mente © yulto no muro, ele aproximou-se A Espingarda norte, Tudo é a mesma coisa. Nao existem [ronteiras, s6 gente ‘morta em toda parte Sei de um lugar onde existe um trator. Podiamos viajar nele, procurar onde hi vida. — Procure voe®, sozinho, mas desaparega daqui, hoje. — Mas voce nao tem o direito de me falar assim. Nao é dono da cidade, nem de onde vocé esté. Se somos dois vivos, metade me pertence. Vocé nia pode me expulsar. — Posso — o outro interrompeu, levantando a espingarda —, posso expulsé-lo, esta € a minha cidadk niio prestam, vie- ram do sul, mataram todos. — Niio matam§ ninguém.(os culpados estio Tong; talvez mortos. Aceito qualquer condigao, vamos entrar em um acordo. — Nao, nenhum maldito me dard ordens. Va embora, depressa! — Maldito € vocé, que se julga dono da cidade, porque esté armado, ‘Tenho uma espingarda, mas no a trouxe. Quero paz, amizade. Se vocé me mata, o que ganha’ Nada, nada!.. O outro levantou mais um pouco a i enquanto gritay. Nao quero ouvir coisa nenhumalEstou cheio de mentiras. Nao agiiento mais)Vou Ihe dar um tiro, entendeu, vi embora — Vou quando quiser Teno direito de entrar ness fortaleza cde mentiras. E vou trazer o argumento que voce entende, a espin- garda...) 0 fuido reboou pela praga. © outro atirara de cima do muro, quase sem apontar, Ele sentiu um repuxar no ombro, voltou-se, saiu correndo, Um segundo tiro estourou, ele fugia desesperado, uma sensagio no ombro, nao sabia se estava ferido[Lembrava-se de historias, homens atingidos mortalmente a correr, tombando fulminados, de repenie) Seu sangue pulsava, via a rua, as casas passando, entre a onda vermelhide raiva desespero. Andar qui- lémetros, sobreviver entre as’podridées, para ser liquidado assim. Chegou ao quarto onde guardava a bagagem. Abrru 0 armario, pegou a espingarda carregada, saiu para a rua, sem se deter. O peito arfava, como se tivesse asma, repetia “maldito”, “maldito” ” André Carneiro © caminho de volta como um pesadelo, seu controle tombado em frangalhos. Nao sabia se pensava ou estava gritando. Sobre o muro, 0 vulto odiado, Foi comendo em sua diregiio com a espin- garda levantada, 0 dedo puxando o gatilho. Sentiv 0 cvice no ‘ombro, tio forte que o desequilibrou. Pareceu-lhe que 0 outro cafra para tris, mas poderia ter-se escondido, Recuou até a calga- da, 0 bater do coragdo ecoavae-lhe no duvide. Afastou o palets, vviu a camisa manchada de sangue. Gritava “maldito” solugando de raiva, o rosto manchado de kigrimas, Ainds correndo foi ao outro lado da praga onde vira uma farmacia, Procurow nas prate- leiras, achou litros de alcool, que earregou até 0 portao fechado. Arrastou cadeiras e dois eaixGes vavios ct loja de fazendas, empi- Ihando-os encostados no porto, Abriu dois litros, aspergit na a haixo, riseon um tésfarel 0 foga pegon cam mm estonro, cobrindo tudo com chamas(azuis &: vermethas/Quando dimi: |, jogava outros litros, © a prépria madeira se inflamou, ‘a para as chamas, ofegando do esforgo feito. Acompanhava © progredir do fogo, as tahuas se transformavam em carvao, as Mtia No resto o calor, mas nao se afas tou) Um trecho do patio aparecia, pelo buraco de uma tibua la. As chamas acabavam. O portiio, desconjuntado, tombava, Jangando faiscas, soltando fumaga de carvoes se consumindo. trouxe uma vara comprida, derrubou as tébuas mais altas. Pisou com os sapatos as brasas do chio e pulow para deniro do patio, Aos pés de uma escada, viu a espingarda, jogada, Um rastro no cchao, com pingos de sangue. O outro estava perto da casa, os bra {g08 estendidos, as mios em garra, Arrastara-se uns dez metros. O chumbo grosso atingira-o na garganta. No se via seu rosto, encostado na terrJEstava morto, Ficou contemplando-o uns instantes e encaminhou-se pari casa, Seguiu por um corredor a procura de um banheiro, Diante do espetho tirou o paleté ¢ a camisa cheia de sangue. A bala fize ra-lhe um talho no ombro. Comecava a doer, Achou algodio. desinfetante, limpou tudo. Pés um chumago de gaze, preso com A Espingarda esparadrapo. Terminando, foi até a cozinha, Havia latarias e égua Fez um pacote do que interessava e saiu, No patio, parou diante do cadaver. Os cabelos, sujos de poeira, agitavam-se com a brisa Saiu., passando com cuidado pelo portdo, Distante alguns metros, viu sua espingarda, Parou diante dela, a pensar. Abaixow-se ¢ pegou-a. Virou a esquina em diego ao quarto onde dormira, Lé aurrumou 0s mantimentos na sacola de escoteiro, Preparou um copo de leite © bebeu, Ajeitou a sacola de lado, para ferida, que dofa. Abriu o armeirio, tirou alguns cartuchos, que di tribuiu nos bolsos. Dobrou o cano da espingarda, tirou 0 eartucho vazio que substituiu por outro, carregado, Ajeitou-a como pide, por cima da sacola, Saiu para a rua. O peso era desagradivel, a ferida_ardia, Atravessou ruas € quarteirdes, sem olhar para os Inds Eta no fim da cidade, Havia uma estrada em dirego montitthus. Parou alguns instantes, olhando, depois seguitt com passos cansados. A estrada levava para ee 140 homem tocar na partiu, com mantimentos e uma espingardc}

Vous aimerez peut-être aussi