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Organizacao de: Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira A: Historia vai ao ac. Cinema comentados.por historiadores s s Eg . : K PS Sen es, Minha geragao é “cinemeira’, como dizia minha avd; como Lenin, acho que o cinema foi a arte do século XX, e os filmes agora nao sao mais vistos somente no delicioso escurinho do cinema mas também na_televisdo ou video. Os intelectuais, mesmo aqueles mais isolados em sua torre de marfim, apreciam cinema. "Papos-cabeca", tentando entender e/ou mudar o mundo ou o pais (ou mesmo a nds mesmos, 0 Gue é tao dificil Quanto o resto), se deram muitas vezes a partir de discussdes sobre filmes que nos toca(va)m mais profunda- mente. E ver o filme como recurso didético vem do velho Jénatas ‘Serrano no comego do século. Assim, esta coletdnea tem papel importante e Util, e sur- preende-me Que esta idéia — com filmes nacionais com sucesso de plblico-e critica — nao tenha surgido antes. A selegao dos filmes e comentadores (especialistas nos temas e objetos) é feliz por cobrir temidticas fundamentais. Nas andlises dos “filmes de autor", de- ‘fsrugades Sobre 0 povo e histéria do Brasil, em diversos tempos e espagos, surgem nossas grandes Questdes: a questao democratica e a nacional, a desigualdade social, nossa identidade cultural, as cha- madas "minorias" (mulheres, negtos, trabalhadores...), como se pen- sar 0 individuo na historia ete. Cinema, literatura, histdria tratam de estdrias e historias de formas cada vez mais préximas. Numa diversidade do caleidoscopio, a historia — cada vez menos uma régua de medit, com seu relato li- near.— me parece progressivamente mais fascinante: néo é um pas ‘sado nico, morto, mas diferentes representagdes Que, através de documentos do passado, so passiveis de construgao. ‘0 tempo é intrinseco ao homem, em toda sua concretude, € se efetiva nas andlises num feixe de temporalidades em cruzamento: 0 tempo do objeto do filme, o do momento em que o cineasta fez 0 cap-trbi. Catalogagio-na-fonte | Sindcato Nacional dos Eaitores de Livros, 30 decors se Kae ey 2 Soares, Mariza de Carvalho: sessh A Wistria vai ao cineha / Mariza de Carvalho Soares, Jorge 3H ed Foe, He - Re de Jani: Ree, 208 1. Cinetia'@Fistria. 2. Filmes histricos - Brasil. 3. Cinema - Brasil - Historia. T Femeira, Jorge. 1. Titulo, 00 - 791.430981 00.0751 cu - 791.43(81) Copyright © 2001 by Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira Design: Tita Nigri Editoragio: Cristiano Terto Fotos dos artigos: “Dona Flor e seus dois maridos", “Memérias do cércere” e “De razées e sentimentas”, de producées Cinematograficas L. C. Barreto LTDA; “Aleluia Gretchen”, de Sérgio Sade, do acervo CEDOC/FUNARTE; “Carlota: caricatura da Histéria’, de Elimar Producoes Avtisticas: “Imagens de Canudos”, de Morena Filmes LTDA “As ts faces de Kica”, de Rio vermetho Filmes; “Central do Brasil’, de Video Filmes. ‘As imagens dos demais artigos pertencem ao acervo CEDOC/FUNARTE. Diretos exclusives desta edicdo reservados pela: EDITORA RECORD LDA, Rua Argentina, 171 - Rio de Janeiro, R) ~ 20921-380 - Tel 2585-2000 Impress no Brasit 1S8N 978-85-01-05872-0 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Casa Postal 23.052 Rio de Janeiro, Rd - 2092-970 2 DOACGAO VENDA > \ PROIBIDA a o Prefécio Silvio Tendler Introducso Marisa ce Carvalho Soates e Jorge Ferreira Dona Flor e seus dois maridos: viagem a um mundo que muda Joa José Reis Aleluia, Gretchen: um hotel para 0 Reich Marion Brepohl de Magathaes Emecio e razio numa ligdo de amor Manica Pimanta Veloso As ts faces de Xica aviea de Carvalho Soares Lice Flavio, passageiro da Histiria Marcos Luiz Bretas Bye bye Brasil e as fronteiras do nacional-popular Ana Maria Mauad Armadilhas nordestinas © homem que virou suco Frederico de Castro Neves Gaifin. 0s caminhos da tiberdade: tempo e Historia Maria Ligia Coelho Prace Pixote: a infancia brutalizada André Luie Vieira de Campos Eles no usam black-tie: virias histérias, muitos protagonistas (alos Fico Pra frente Brasil: @ retorno do cinema potitico Claudio H. M. Batatha 2 ‘Sumatrio} Memérias do carcere: do livro a0 filme, do filme & Historia Eliane de Freitas Dutra Como as sociedades esquecem: Jango Jorge Fernira Cabra marcado para morrer entre a memoria ¢ 2 Histéria Antan‘o Torres Mantenegio Marvada carne: uma comédia caipira épica Jayme de Almeida Eternamente Pagu: impressoes de uma historiadora Rachel Soihet De razées e sentimentos: 0 quatritho na tela Sandre Jatahy Pesavento Carlota: caricatura da Hist Ronaldo Veinfas Imagens de Canudos Jacqueline Hemann Histéria e mobilidade em Central do Brasil Bias Thowé Saliba Ficha técnica dos filmes 0s autores CARLOTA JOAQUINA PRINCEZA DO BRAZ ORDEM DO DIA Teese ‘el, 268 3588 - S37 0330 Jia a6 Producdo DATA * < INT #X< a 22501 DIA —-NOITE * acacko SRA AR. DA FHOERATRE® : SEQ giuseto de 54 Be F1& ones ba EQUIBE seenpeeteensh - | LENCO oe Seq ‘Personagem | Ator (Fig Maq | Se roranos Hesin Catete Mevctn NEB AS Produtora Few | Kea 401 Modis tokS tS Set {4 0t FA earn, MA Giga 1590 | 46 Filmande fy 40 “pA | Fedentn ne] Romen Praudy 45: BO | tS re : 5 a a Amey ok v4 | end fiteg 4 Braun Fr i 46 6 | OBS | CONTRA-REGRA ~ FIGURAGAO on. esc Nos idos dos anos 60, estudante que se prezasse e quisesse jogar pedras na ditadura deveria buscar fundamentos te6ricos em Historia do riqueza do homem, de Leo Huberman. Logo nz aberture, o autor, para falar de dinheiro, usa uma cena de cinema como exemplo; Georges Duby, um dos mais importantes medievalistas franceses, abre um de seus ensaios sobre a Idade Média escrevendo: "Imaginemos." Desde sempre, imagem e imaginacao fazem parte do conhecimento da historia. Quando em 1974 Jacques Le Goff e Pierre Nora coordenaram a publicacao de Faire de (Histoire, estavam evidenciando novos horizontes para 2 historia, que saia entao da dicotomia factual versus interpretativa para buscar novas relagdes com seu objeto de estucdo. Nos rescaldos pos-maio de 1968, uma série de historiadores franceses discutiam novos problemas, novas abordagens, novos métodos. Marc Ferro participa desta coletnea com seu artigo ‘0 filme: ume contra-andlise da sociedade?”, no qual aborda a questo do cinema como fonte da histéria. Mais do que introduzir, esse artigo servira para legi- timar uma relago que ja vinha se desenvolvendo havia muitos anos e que Ferro trans- forma em seminério, com o nome de Cinema e Historia. Por outro lado, desde o nascimento do cinema, a historia é sua fonte. 0 nasci- mento de uma no¢do, de David Griffith, nos Estados Unidos, e 0 encouracado Potemkim, de Sergei Eisenstein, na Uniao Soviétice, so alguns dos muitos filmes em que, através de cowboys, carruagens, reis e rainhas, a historia esta presente. MR 2a ‘Gacques Le Gofi e Pierre Now. Histéia: novos objetos. Kio de Janeiro. Livrara Francisco Alves Editcra, 1976. Em 1937, 0 documentarista holandés Joris Ivens, ao filmar a Guerra Civil Espanhola em parceria com Ernest Hemingway, registra nos créditos do filme Terra espanhola a pro- dugdo da Contemporary Historians Inc. Neste caso o cineasta define-se como historiador e, mais do que um documentério de dentincia da ascensdo do fascismo ao poder na Europa, sente-se fazendo historia. A coletdnea de artigos que compée este tivro segue na trilha original apontada por Marc Ferto: o estudo de filmes como fonte de conhecimento e 0 que Ferro chama de contra- analise da sociedade. Em seu artigo, considera que o estudo da imagem pode fornecer ele- mentos de andlise que ultrapassem 0s limites das intencies do autor ou de quem as captou. A "leitura” dos filmes nao se restringe a uma interpretaco "colada" na obra. No caso deste livro, os autores fizeram uma releitura da obra cinematogrifica, relacionando com uma abordagem histérica, confrontando filme e histéria. Esta coletanea de ensaios chega em boa hora. A hist6ria do século XX sera con- tada com recursos audiovisuais e a partir da producao audiovisual do século XX. 0 con- junto de artigos € de alto nivel, merecedor de leitura, exercendo importante funcao didatica que aponta mais um territério a ser explorado pelo historiador. Alguns limites foram estabelecidos no critério de selecao dos filmes: apenas filmes nacionais, e 0 corte temporal foi determinado pelo periodo de producio dos filmes, que foi de meados dos anos 70 ao final dos anos 90. Os temas sao 0s mais diversos, nem sempre trabalhando a historia de forma direta, mas refletindo a formacio brasileira a0 longo dos séculos. Diversos historiadores dividiram entre si a missdo de esmiugar @ pro- ducao cinematografica, 0 que transforma este livro num raro painel que retrata a plurali- dade e a diversidade de nossa producao. Por nao ser obra de um autor mas uma coletanea de textos com enfoques diferen- ciados, torna-se mais rico ainda devido variedade de olhares que se projetam sobre a diversidade das obras. Tem, além disso, o mérito de registrar a fecundidade do cinema brasileiro nesses anos 70/80/90 e sobretudo sua importancia cultural, tornando-se o melhor amrazoado em defesa do cinema brasileiro, de sua pluralidade, diversidade e criatividade. Em sua maioria, os estudos aqui desenvolvidos servem também como uma aula de historia, uma vez que sio acompanhados de citacdes que transcendem a obra abor- dada para situd-las em seu tempo, cescrevendo suas fontes, influéncias ou precedéncias. Esse universo que circunscreve a obra faz com que este livro se torne objeto de consul- ta essencial para quem estuda ou quer conhecer mais profundamente as obras e o tempo abordados dentro do trinémio cineme/Brasil/historia. Aqui esto sendo analisados fimes que retratam migrantes e imigrantes, a mulher, (0 negro, as circunstancias histéricas, 0s acontecimentos e as personalidades. Filmes de ‘Jodo Batista de Andrade (0 homen que virou suco, 0 migrante massacrado), Tizuca Yamasaki (Gaijin, a imigracao japonesa), Eduardo Coutinho (Cabra marcado para morrer), ‘0 meu (Jango, reconstrucao da histéria), Norma Bengell (Pagu, a mulher libertaria que foi contra a corrente de seu tempo mas a favor da historia). 0 Brasil dissecado pela lite- ratura e o incrivel desafio de transformar letras em imagens: Mario de Andrade, Jorge ‘Amado, Graciliano Ramos imaginades pel cinema; livros que se tornam filmes pelos othos de Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro, Eduardo Escorel, Bruno Barreto. A pluralidade registrada pelos filmes e os estudos correspondentes aos anos de chumbo observadas nao apenas pelo viés da politica mas com ampla visdo da época do "seja marginal, seja herdi", grito ce rebeldia do artista plastico Hélio Oiticica sobre a imagem do bandido Cara de Cavalo, marca dos anos 70: 0 cinema mostra, com Licio Flavio, o passageiro da agonia, o marginalnecessario para apontar as mazelas da policia ("Policia é policia, bandido é bandids"), tanspassado das reportagens literarias de José Louzeiro para as imagens de Hector 8abenco; 0 mito registrado em Xica da Silva ou o pats trocando de pele em Bye bye Brasil, Fimados por Carlos Diegues. Em Eles néo usam black-tie, de Leon Hirszmann, a classe operdria vai ao cinema, e o Brasil caipira em A marvada carne, de André Klotzel. Este livio também supre uma lacuna: como a critica cinematografica pratica- mente desapareceu, e a cada dia tomam-se mais raras as publicacdes especializadas, e por conseguinte a analise e o debate em torno da produco cinematografica, transferiu- se pata o historiador a tarefa da critica, 0 que valoriza ainda mais o presente livro. A abordagem diferenciada do historiador — profunda e analitica — foge da superficiali- dade da informagao jomalistica, necessaria para divulgar a existéncia da obra mas insu- ficiente para informa-lo sobre a obra. Mesmo quando a andlise é desfavoravel ao filme, ainda assim & melhor a publi- cacao, que abre caminho para ¢ discussao e a polémice, do que condené-lo ao siléncio e a0 esquecimento. Nos anos 50, época de nacionalismo na politica ("0 petréleo & nosso") e das "chanchadas" no cinema, em sua defesa foi cunhada a frase: "Falem mal, mas falem do cinema nacional", logo sintetizada no bordao '0 abacaxi é nosso’. "Avacalhar” (expresso propria da época) era a forma de proteger e divulgar. Logo, este livro ajuda a resgatar nossos filmes, rompendo o cerco do sil€ncio e do esquecimento. 0 filme torna-se matéria de sala de aula, servinéo como objeto de estudo e conhe- Cimento. Em hipétese alguma o filme substitui o professor. Sua "leitura” correta esta condicionada a um corhecimento prévio, sujeita a orientacdo do professor. Confrontar veracidade com verossimilhan;a — real versus aparéncia do real — € uma das responsa- bilidades do professor que evitaré a trilha de um caminho equivocado e cuja auséncia oder induzir a erros de abordagem diante do fascinio e da facilidade da histéria recria- da em imagens. Quanto a psssado versus presente, é bom dizer que o filme de tema histérico geralmente tem maisa ver com a época em que é produzido do que com a época abordada. Assim, por exemplo, uma abordagem do passado muitas vezes ¢ mais rica quando analisada sob 2 luz do conhecimento e das angistias do tempo presente. Um grito de alerta: querem apagar a historia. Jovens de 20 anos ndo sabem o que foi a Guerra do Vietnd, como foi a descolonizacao da Africa, as lutas populares por liberdade, contra a ditadura, a tortura. E 0 mais grave: livros, filmes, pecas de teatro, pen- samentos e personalidades que escreveram um projeto de Brasil so apagados da histéria. Em tempos que privileciam o efémero, 0 volatile o descartavel, este livro é pega essen- cial na "guerra santa" que travamos contra a amnésia historica que querem nos impor. Silvio Tendler Introdu As vésperas do século XXI, constituimos sociedades dotadas nao apenas de tex- tos escritos e falados, mas de um vasto conjunto de imagens. Um filme nao é um Livro. No entanto, estatica ou em movimerto, uma inagem pode ser "lida" de naneira similar a um texto escrito, Quando um filme é apresentado ao piiblico, ele surge como o resultado de uma intertextualidade que combina diferentes linguagens: textos orais — a palavra fala- da ou cantada —, escritos — letreins e legendas — e visuais — a propria imagem pro- jetada, os cartazes publicitarios, a propaganda dos jornais, entre outros. Na intersecao entre elas, surgem nos filmes personagens que muitas vezes podem ser ficticios, mas onde as cenas vividas sao "reais", pois as elacdes sociais e o mundo representado na tela foram retirados da propria sociedade. £ justamente essa riqueza e multiplicidade de linguagens que vem despertando a atencao dos historiadores. Na conversa entre Cinema ¢ Historia, para usar a expressdo cunhada por Marc Ferro, um longo caminho tem sido percorrido e as possibilidades vao desde o uso didati- co até biografias e andlises sobre aindistria cultural. Uma das alternativas, talvez das mais instigantes, ¢ a que explora a relagao entre memoria e historia, Parte representati- va da filmografia brasileira, por exenplo, trarsita justamente neste campo, no qual lem- brancas pessoais, memérias de grupos e mesmo pesquisas historiogiaficas mais sis- tematicas tem levado a elaboracio ¢e filmes que constituem, hoje, quase um género nar- rativo, com caracteristicas proprias. Assim, desde os primérdios da producdo cinematografica no Brasil, surge uma vertente que privilegia o que se poteria designar como um cinema hist6rico-social. Um dos ramos mais ricos € 0 que exploa, sob varios pontos de vista, temas “cléssicos" da s 3 2 : : Hist6ria do nosso pais: 0 descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, Sinhd Moca (1953), de Tom Payne, Paixdo de gauicho (1958), de Walter G. Durst, Deus e o Diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, Como era gostoso o meu francés (1971), de Nelson Pereira dos Santos, Os inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, Os libertérios (1976), de Lauro Escorel, 0 pais dos tenentes (1978), de Joao Batista de Andrade, Coronel Delmiro Gouveia (1978), de Geraldo Sarno, séo alguns exemplos. Nesse sentido, a repre- sentacdo da Historia na obra de um grupo significativo de cineastas nos permite con- siderar que este segmento do cinema brasileiro se instituiu, no dizer de outro historiador, Pierre Nora, como “lugar de meméria" onde diretores, roteiristas, atores e produtores, bem como o proprio publico que prestigiou os filmes, se esforcaram em retomar e monu- mentalizar certos acontecimentos ou problematicas da Histéria do Brasil. Mas 0 trabalho do historiador vai muito além do esforco de preservacao de uma memoria da produgao cinematografica. A questo de como filmes e videos poderiam se constituir como mais um suporte possivel para a divulgacao da narrativa historica € importante porque permite, entre outras razées, alertar para o lugar do trabalho do his- toriador em uma obra memorialistica coletiva. Foi com olhos de historiador que con- cebemos esta coletanea e, enquanto tal, estamos tomando 0 cinema como um importante veiculo para a construgao da meméria de determinados grupos da sociedade brasileira contemporanea. Voltamos, novamente, aos "lugares" de que fala Pierre Nora, para indicar como a meméria nacional, antes expressa em prosa, verso e bronze, comeca a se expres- sar em filmes e, mais recentemente, numa quase infinita producao de pequenos videos, mais ou menos bem acabados, que circulam tanto no ambiente das elites quanto nos movimentos sociais. 0 historiador tem hoje uma consideravel intimidade com fontes nao escritas, mas que sio, de alguma forma, controladas por processos cognitivos semelhantes ao da andlise desta documentagao. Por exemplo, os depoimentos orais sao transcritos e, na ver- dade, mais lidos do que ouvidos. A fotografia e outras imagens fixas, como gravuras e cartuns, so consultadas nos arquivos, muitas vezes em livros ou Albuns, e 0 contato do historiador com elas nao deixa de ser uma forma especial de leitura. Diferente dessas aa experiéncias, em que o historiador nao se afasta do documento escrito, o filme projeta~ do a distancia, numa tela de cinema ou TV, resulta de uma combinagao de técnicas e suportes que ainda the so pouco familiares. Por outro lado, acostumado & solidao de suas pesquisas, lie é também muitas vezes estranka a experiéncia do trabalho em equipe. A autoria de um filme ¢ muito mais explicitamente compartilhada por um conjunto de profissionais envolvidos do que no caso da autoria de um livro. E verdade que o histo- riador nao produz sua obra individualmente: diversas contribuicdes, académicas ou nao, influenciaram nas suas reflexdes. No entanto, se observarmos a ficha técnica de um filme, a autoria (mais estritamente entendida como direcao) € compartilhada pela producao, argumento, reteio, fotografia, misica, montagem, figurinos, enfim, participagées indis- pensdveis e insubstituiveis. Neste caso, o resgate do passado e 0 dominio do diretor sobre seu tratamento séo apenas alguns dos comporentes ¢a obra. Portanto, nosso objetivo, com a coletanea, nao é oferecer uma receita de como 0 historiador pode fazer historia através do cinema, mas sim contribuir, de maneira bastante diversificada, para a discussdo das relagies entre Historia e Cinema, Embora muitos cen- tros de ensino e pesquisa venham produzindo reflexdes nesse sentido, s80 escassas as pu- blicagées que alcngam um pablico mais amplo. Preocupados com a lacuna, selecionamos vinte filmes que, por razes diversas, convenceram milhares de pessoas a irem ao cinema assisti-los. € verdade que, pera um critico de arte, mais preocupado com aspectos inter- nos a obra, 0 critério que alude ao sucesso de piblico e de critica nao € 0 mais impor- tante. No entanto, para o historiador trata-se de um critério que néo pode ser despreza- do, pois a sua preccupacdo nao € apenas com o filme, mas com a sociedade que 0 pro- duziu e se utlizeu dele para discutir determinados temas que the interessam. Assim, de Dona Flor e seus dois maridos (1976) a Central do Brasil (1998), percorremos vinte anos do cinema brasieiro, abarcando um period importante na producéo cinematografica nacional. Conbirando algumas preocupacdes do Cinema Novo com um maior espirito empresarial, alén do trabalho de divulgagao junto a um pdblico mais amplo e diversifi- cado, nos anos 70, 0 cinema nacional, mais uma vez, "renasceu'. Um exemplo dessa receptividade é 0 filme Dona Fior e seus dois maridos, cujo pablico atingiu 10.735.000 espectadores, uma bilheteria comparavel a de Tubardo que, na mesma época, levou 13.035.000 pessoas ao cinema em todo o Brasil.* Como em qualque: escolha, o critério adotado pode ser questionado. 0 leitor, cer- tamente, se ressentira da falta de um ou outro filme. No entanto, toda selecdo é, tam- bém, um ato de excluir. Os cortes, assim, sao diversos. Alguns filmes foram inspirados na literatura, revelando situagdes da vida cotidiana e da familia, a exemplo de Marvada carne, Li¢do de amor e 0 quatritho; das mulheres em Dona Flor e seus dois maridos; e de temas da histéria politica contemporanea, como em Memérias do cdicere, Eles no usam black-tie e Pra frente Brasil. Os temas politicos se repetem também nos documentarios Jango @ Cabra marcado para morrer. 0 esforco de reconstrugio do pasado historico brasileiro esta presente com Canudos e, enfatizando novamente o papel das mulheres na sociedade, em Xica da Silva, Carlota Joaquina e Etemamente Pagu. Aqueles voltados para temas da sociedade brasileira contemporanea surgem em Licio Flavio, 0 passageiro da agonia, 0 homem que vircu suco e Pixote — a lei do mais fraco, todos focalizando a vio- lencia urbana; Aleluia Gretchen, Gaijin — os caminhos da liberdade, Bye Bye Brasil Central do Brosil, por sua vez, apontam para a diversidade da sociedace brasileira. ‘Além da selec dos filmes, nosso outro desafio foi o de convidar historiacores, reconhecidos pela sua producdo académica, originérios de universidades de varios esta- dos brasileiros, para refletirem a partir de um suporte que thes é, por tradigdo de oficio, como dissemos, pouco faniliar. A escolha dos autores procurou levar em conta as temati- cas estudadas. Mas insistimos com eles que as andlises abrangessem, tal como os filmes, um pablico mais amplo: aquele que gosta de cinema. Nossa intencao foi que cada um — a partir de sua trajetéria intelectual, suas leituras e suas reflexdes sobre metodologia, arte, literatura etc. — eleborasse, com liberdade de interpretacdo e escrita, uma andlise uO 27.3 ‘Embora faja a propos desse live ¢ importante lembar que entre 1977 2 1982 a Embraflme langou quatio filmes dos Trapalhbes que, somades, ultrapassaam 20 ruilhées de espectaores, transfornando-se er. clasics da fimografia infantil brasilexa, Sobre os aimeros aqui ctados ver Faulo Sérgo Almeida. “Por dentro do mevcae". oiler. x13, juno, ano 2, 00. p. 28 sobre o filme indicado. Trata-se de uma oportunidade em que o historiador, sem abrir mao de seu rigor profissional, faca suas idéizs chegarem ao publico nao especializado. E como se ele comentasse 0 filme com um amigo, an6s sairem do cinema. Este, portanto, foi o desafio do Livro: convidar um grupo de historiadores, reconhecidos por seu trabalho académico, a escrever para pessoas que gostam de cinema — 0 que nao é pouco —, em- bora nem sempre leiam livros de Histora, Trata-se, igualmente, de uma rara oportunidade de conhecermos uma outra face de nossos colegas, mais a vontade para escrever e menos cerceados pelas regras de nosso propio oficio. Portanto, o livro apresenta os varios olhares que historiadores brasileiros ocdem lancar sobre a filmografia brasileira nos Ulti- mos vinte anos. Convicamos, entao, o leitor air ao cinema conosco. Ao final da fita, iremos comentar 0 que vimos. Muitos concorcardo com nossas idéias; outros irdo aceitar parte do que dissemos, acrescentando obse-vacdes sob critérios diferentes; outros, por sua vez, categéricos, irdo discordar. Mas nao pederia ser de outro modo. Afinal, nao é assim que fazemos quando saimos do cinema? A coletanea 6 0 resultado co pojeto Historia em Video desenvolvido no Setor de Tconografia do Laboratério de Histéria Oral e Iconografia, vinculado ao Departamento de Histéria da Universidade Federal Fluminense, Agradecemos a Angela de Castro Gomes pelo apoio constante, aos bolsistas CNPq/UFF Francisco C. Marques e Samuel D. Tavares, aos fun- cionarios do Centro de Pesquisa e Documentagio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e do Centro de Documentagao da Funarte. Por fim, agradecemos a todos os profissionais de cinema e aos colegas historiadores que colaboraram nas varias etapas de elaborac3o desse livro, que resultou, antes de tudo, da confianga no sucesso do trabalho coletivo. Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira ® mundo que muda I aie Bitte cache Joao José Reis Dona Flore sus dis mardos:viagem aur mundo que mide Nao se trata de fazer aqui critica de cinema, mas quero comecar dizendo que acho o filme Dona Flor e seus dois marides (1976), de Bruno Barreto, uma boa adaptacao da obra de Jorge Amado. Assim, tal como 0 comance, o filme pode ser visto como uma janela através da qual se descortinam diversos temas do imaginario, dos valores e do comportamento brasileiros num passato relativamente recente.* Ambientado numa Salvador provinciana da década ce 40, 0 filme é a historia de uma bela muther, da classe média baixa, esposa fiel, integra, trabalhadora, professora de culinaria, cujo marido € vadic, mutherengo, jogador inveterado, desonesto e arrogarte, bom de cama, malandio tipico, antipatizado por alguns, amado por muitos, inclusive pela esposa. 0 mari- do, Vadinho (José Wilker), morre, caracteristicamente, em plena folia de um domingo de car- naval, dos maus-tratos a que submetera seu corpo durante longos anos de farras cotidianas. Sua viva, Dona Flor (Sénia Braga), sofre profundamente a perda, enluta, mas termina por casar-se de novo com Teodoro Madureira (Mauro Mendonca), um farmacéutico metédico, tra- balhador, apreciador e praticante da misica erudita, esposo decicado e respeitoso, mas um incompetente na cama. O inverso do primeiro marido. Um ano apés 0 casamento, bate em Flor uma saudade profunda do defunto, que assim invocado se materializa nu para a ex-mu- ther, e s6 para ela, que, honesta, inicialmente resiste a seu assédio mas termina cedendo aos proprios desejos. Passa entao a viver com os dois maridos, tendo do vivo a seguranca de uma vida provida e regular, e do morto (sempre nu) uma relacao amcrosa intensa e picante, Sexo, morte, festa e comida sio elementos que estruturam a narrativa e a concepcao da trama, evocados como valores fundamentais e culturalmente entrelacados no imaginério Ts A Wissre val ae cinema brasileiro, particularmente 0 baiano. 0 filme comeca num dia de carnaval. com Vadinho fan- tasiado de mulher — inverso carnavalesca que acentua o carter transgressor do personagem —, bebendo e cantando numa mesa de bar com amigos, um dos quais alerta para a aproxi- macio de uma "gostosa mulata” que sobe a rua a frente de um bloco camavalesco. 0s ami- gos vao ao encontro do grupo e Vadinho danca lascivamente em torno da mulata, balancan- do um pénis postico de pano instalado sob a saia que veste, 0 que radicaliza a dubiedade da fantasia de inversdo sexual. Acometido de mal sibito, neste exato momento tomba morto. Morte dangando e imitando 0 ato sexual, na rua, quase defronte a sua casa, de onde sai Flor desesperade ao saber 0 que acontecera. Nesta cena se realiza imageticamente a dialética entre casa e rua sugerida por DaMatta — a rua como lugar do homem, da liberdade car- navalesca e da aventura, mas também do perigo; a casa, 0 espaco da mulher, da contencio doméstica e também da seguranca fisica e moral. No entanto, a proximidade entre casa e rua 6 tamanha que sugere mais contiglidade do que oposico, como ainda acontecia numa Bahia tradicional, conhecida por seu longo século XIX, que se estenderia até a década de 50 do século XX, quando a instalacgo da Petrobrés "modemizou" o lugar. A mencionada contigiii- dade se confirma nas cenas seguintes. Sao cenas do vel6rio de Vadinho, velério feito em casa, como era o mado antigo de morrer, tempos da morte assistids, domesticada, quando ainda predominava, mesmo no mundo urbano dos anos 40, a contigiidade entre vida e morte que corria paralela aquela entre casa e rua. 0 defunto é velado noite adentio na indiscriminada companhia de adultos e crian- 25, homens e mulheres, parentes, amigos, vizinhos.* No caso desta morte, ha uma dot maior Por ter sido inesperada e prematura, acontecida aos 31 anos de Vadinho. Mas a morte no Perde seu aspecto celebrativo; pelo contrario, intensifica-o com o objetivo de melhor satis- fazer 0 morto, em consonincia com sua trajetéria terrena e em beneficio de sua gléria extraterrena. No filme, 0 camaval progride na rua em frente a casa do boémio, ndo como uma antitese da morte, mas como vida que celebra a morte, uma festa que celebra o morto. A mera por um instante divide a imagem da tela entre o afoxé na rua e — penetrando através da janela da casa de Flor — 0 velério que se realiza na sala de visitas, 0 morto instalado em seu caixdo preferido, doado por um agente funerario que era seu companheiro de jogo. Eis que escrevi um livro sobre antigos ritos fnebres na Bahia, ndo pude deixar de apreciar a cena com particular interesse.’ E a tomada se prolonga, como antigamente se esticava noite aden- ana Flore seus dois marios: viagem a um mundo que rude tro esse ritual de separacao entre mortos e vivos, uma verdadeira manifestacao social. Ao ato nao faltam bebidas espirituosas e comida, nao faltam as conversas que celebram e as que detratam © morto em vida. Um amigo de Vadinho se aproxima da vidva e garante: "Era um batathador!" Ja a sogra, confirmando a mé reputagio que tém as sogras em nossa cultura, celebra a morte mas nao 0 morto, que segundo ela seria "um sujeito vagabundo, cachaceiro, gigol6... picareta, sem-vintém e jocador". Durante o velério a vidva descobre, nos olhos umedecidos de uma aluna de culinéria, que nao apenas a ela faltaria, doravante, o prazer da vadiacao com 0 defunto. Do ponto de vista etnografico a cena é um ponto alto do filme. 0 filme é, em grande medida, sobre a morte e sobretudo o morto, em torno de quem giram personagens e emocdes.* Assim se desenrola a viuvez ortodoxa de Dona flor, sempre cercada de amigas e comadres que lhe aconselham a deixar 0 luto fechado e providenciar novo casamento. Mas 0 luto serve precisamente para piolongat, como meméria, a presenca do morto. Uma presenca que, no caso de Vadinho, tera funcao estruturante nesta histéria. Num dia de luto, a caminho do cemitério, uma negra informa a Flor que seu defunto é filho de Exu, orixa dono da encruzilhada, mensageiro também fortemente associado a sexualidade e personagem matreiro, enganador, um trickster que no entanto funciona como elo de ligacao entre devotos e divindades, entre este e 0 outro mundo. A negra comunica @ vidva que o espirito de Vadinho esta desassossegado. Ela insinua que ele ainda daria trabalho a Flor, que continuaria rondando e brincando com os vivos, conforme se comportam entre nés as almas penadas. E realmente, bastou que ela pensasse mais ardentemente no morto para que ele retornasse a ela, exatamente quando se cumpria um ano de seu novo casamento. Neste ponto dos orixés & novamente trazida para o centro da trama porque Flor, nao desejando trair 0 segundo marido, busca no candomblé meios de se livrar do espirito do primeiro, de fazé-lo integrar-se definitivamente ac mundo dos mortos. Mas ao mesmo tempo deseja com tanta forca o amor vadio de Vadinho que prejudica o ritual que o afastaria de vez de sua vida. Seu desejo demonstra mais eficdcia do que o ritual dos mortos. 0 amor derruba a barreira da morte, ou Eros vence Tanatos, como gostavamos de dizer na época da contracultura. Morto Vadinho, Flor pensa nele ao cozinhar uma deliciosa moqueca de siri-mole, prato predileto do defunto, cuja receita é ditada e ilustrada na tela, a camera passeando gos- tosamente entre a comida e as coxas da professora de culinaria, que cozinha de camisola preta, pois o bom luto também se expressa nas pegas intimas do guarda-roupa feminino. Ela a aa Eee lembra dos labios e da lingua compe- tentes do marido, molhados de azeite- de-dendé: "seus dentes mordiam siri mole... nunca mais seus labios, sua Uingua". Siri que é na Bahia um dos muitos vocétulos para designar 0 sexo da mulher. Um mergulho da camera no prato de moqueca nos leva ao passado, a vide que Flor © tit (PUTED yacinho tiveram juntos, a cena seguinte, de sexo na noite de ndpcias. E uma refe- PT i Fencia didatica, Gbvia até demais, 2 comida como metafora do ato sexual. A meméria de Flor nos revela nao apenas o lado bom de sua relacio com Vadinho. Na mesma noite nupcial, depois de “vadiar’ com a esposa, ele troca a cama conjugal pelo Cassino eo castelo. Até os companheiros de farra estranham vé-lo ali, chamam-no de malu Co, mas ele era sim um boémio radical. E seguem-se muitas noites nas quais Flor é por ele abandonada. Ela n3o se conforma com o estilo de vida ¢o marido, pois “queria ser um casal igual aos outros’, queria filnos etc. Vadinho ironiza, e quanto a filhos diz que haveria tempo para pensar nisso. Suas diferen¢as provocam violéncia numa cena fundamental do filme. Sem dinheiro para jogar, ele toma o dela debaixo de pancadas. Depois volta, arrependido e roman- tico, dedicando-the serenata sob a janela e presenteando-a com um colar trocado por uma ficha de jogo com uma dama da noite. Flor perdoa a surra que levara. A posicéo subalterna das morenas e mulatas amadianas — anteriores a Tieta e Teresa —, boas de cama e azeite- de-dendé, que aceitam maus-tratos de seus homens, reforca estereotipos consagrados em nossa historia cultural e jé foi assunto de uma critica, azeitada a diesel, de Walnice Nogueira Galvéo.’ 0 filme, como boa parte da obre do escritor baiano, retrata mulheres que parecem adaptar-se ao absolutismo patriarcal. Num momento (1976) em que o feminismo ainda era incipiente no pats, a pelicula aparentemente reforcava o papel subalterno das mulheres em nossa sociedade Mas conforme Roberto DaMatta, a critica social esta presente no romance, nao na luta de classes que marcara uma fase anterior da obra de Amado, mas no cardter hedonista, tora Flor e seus dois mardos: viagem a1um mirdo cue muda carnavalesco de Vadinho, que supostamente subverte os velores burgueses do trabalho e a moral sexual pequeno-burguesa do casamento convencional. Sexo e trabalho, alias, sao ter- mos antagénicos na narrativa, dai o termo vadiagem como sindnimo do ato sexual. Dai Vadinho. Sua preguiga e sensvalidade se erguem como elementos subversivos do mundo da ordem, do trabalho e da temperanca representado pelo segundo marido de Flor. Teodoro da a ela conforto, reqularidade, segurenca, e também busca envolvé-la em sua vida social: leva-a para sonolentos concertos de mésica enudita ou para palestras incompreensiveis sobre far- macologia. Ela, em seu reduzido alcance intelectual, encara a cultura livresca de Teodoro com grande admiracao: ele "sabe de tudo". Aceita inclusive que ele mude as regras do Gnico espaco reservado ao peder feminino, o ambiente doméstico. Em casa, 0 fermacéutico impoe seu lema: um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. Acometido de uma mania clas- sificatéria, 0 marido chega a etiquetar 0 lugar dos objetos nos cémodos e comodas da casa, etiqueta inclusive o lado que cada cOnjuge devia ocupar na cama. Regulamenta com precisao © espaco, e também o tempo. Sexo sé em dias marcados, uma cépula burocratica sob os lencéis, estilo papai-mamae, temperado a ejaculagao precoce. Eis a vidinha ordinéria de Flor que o marido morto ven subverter, mas atendendo a uma convocacao dela. Flor no desgosta de tudo nos modos do segundo marido, ordinario mas, como acabei de dizer, respeitador, provedor, presente. Entretanto, dengosa amadiana que é, quer também a excitagéo amorosa, a desordem moral promovica pelo primeiro marido. E quando este retor- na, depois de alguma hesitacao, ela o aceita e sua vida fica dtima. Ao decidir manter os dois maridos, Flor conquista o melhor dos dois mundos, como fica registrado na Gltima e otima cena do filme. ‘A obra de Jorge Amado — e 0 filme lhe é fiel — propde uma saida negociada para a mulher, Apesar de Flor manter-se perfeitamente dentro dos padres de comportamento vigentes, sem abalar estruturas patriarcais na sociedade dos vivos, ela consegue o que afinal deseja através de uma digamia clandestina, invisivel e silenciosa, envolvendo um membro da sociedade dos mortos. Ela explora a terceira via, a via do meio, aquela que segundo DaMatta melhor expressa a dinamica da cultura brasileira. Nao se rebela contra sua condicdo, mas nao desiste de ser feliz, sobretudo de assumir sua sexualidade explosiva. A historiografia republi- cana recente revela que Flor nao estaria sozinha nessas demandas, embore a maioria dos estu- dos se refira a mulheres das camadas populares, o que nao era exatamente o caso dela.’ 0 fato A iscia vai 20 crema 6 que a personagem nao se acomoda a sua condi¢do. Essa é uma leitura do filme que tem um Pé também na teoria da resisténcia social molecular, que privilegia os pequenos gestos indi- viduais de ruptura no cotidiano opressor, em lugar da ruptura coletiva com as estruturas que condicionam este cotidiano. Nesta perspectiva, escravos, operarios, mulheres e outros gru- Pos sem poder estrutural garantiriam alguns ganhos através de artimanhas pessoais e da manipulagéo dos que detém tal poder. Com isso, sem se transformarem em herdis, seriam liberados daquela posicao de eternas vitimas a que os empurram as teorias convencionais de dominacao social.” Esta é uma leitura possivel da posicao da personagem central. Mas ha um herdi nessa historia, embora daqueles quase sem carater, um vencedor chamado Vadinho. Se a historia é de Flor, Vadinho também conquista o melhor dos dois mundos. Malandro fino, na vida e na morte ele parece existir para ser servido. Na morte, alids, ganha condicdes de melhor ser servi- do, mas também de servir, como € 0 destino dos herdis. Reconquista o amor de Flor, agora em Perfeita harmonia, e adquire sucesso permanente na roleta, cujo resultado antecipa através de seus poderes de entidade do além. 0 jogo e Flor, esses os dois amores definitivamente ganhos Por Vadinho. £ realmente um porreta, como afirma 0 amigo preto no seu entero Esse negro é interpretado pelo ator baiano Mario Gusmao, que trabalhou fazendo Pontas com Glauber e outros diretores do Cinema Novo.* Gusmao, que morreu na miséria em 1996, € um bom guia para um outro aspecto do filme que quero comentar. 0 negro diz que Vadinho um porreta — e o que ele (0 negro) &? Em primeiro lugar, parece uma sombra que vaga silenciosa na tela entre os amigos do morto e cuja Gnica fungio 6 precisamente dizer, em duas cenas, no cassino e no cemitério, que o branco louro Vadinho & um porreta. Ah, ele também acende, solicito, 0 cigarro de Vadinho numa das cenas. Os personagens negros sao raros neste filme ambientado numa Bahia tao cultural e demograficamente negra, e, em geral, se encaixam nos papéis tradicionalmente reservados a eles na sociedade baiana: prostituta, praticante de candomblé, folio de afoxé, mtisico, malandro (embora o rei dos malandros aqui seja 0 branco Vadinho, a0 que voltarei adiante). Esto todos ali principalmente para servir e homenagear os protagonistas centrais, que séo brancos ou mesticos claros. Inclusive Flor/Sénia Braga, que aparece como branca baiana na Gnica fala em que o discurso racial emerge explicitamente. E quando a prostituta negra Dionisia, inquirida sobre 0 assunto por Flor, lhe responde que o pai do filho dela, também apelidado Vadinho, nao é 0 Vadinho de Cena For e seus dois mares: viagem a um mundo que muda ee 67.) homem de Dionisia € negro e nao gosta de branca. Este ¢ 0 Gnico toque de tensao racial no filme, e vem da boca de uma negra. E de se refletir por que, entre os varios contrastes que separam os dois maridos de Flor, nao se inclui o contraste da cor, no filme ou no romance. Vadinho nao podia ser um negro? Fiel ao romance, no filme ele também é branco e louro, se " fixando nos limites da civisdo de classe e cultura, 1 a Re, Mew. AD certamente mais palataveis pare a indUstria cultural da 6poca. Pois como seria empregar, ha trinta anos — e talvez ainda hoje, ano 2000 —, um ator negro nas cenas ardentes que José Wilker divide com Sonia Braga? Teria a censura mili- tar, que inicialmente proibiu tais cenas, liberado tudo como mais tarde o fez, embora ja pas- sados quatro anos do langamento do filme?’ E teria o filme resultado ne sucesso de piblico que teve? Para além da ditadura militar, é importante considerar o Brasil que entao tinha- mos, onde, tal como no caso do feminismo em relacao a mulher, os movimentos negros eram embrionarios e ainda nao haviam levado o pais a pensar suas mazelas raciais. Na época teria sido realmente iconoclasta um negro no papel de Vadinho, porque, apesar da nossa mestigagem cantada em prosa ¢ verso, estariam sendo levadas para a tela, para o plano da arte visual de massa, relacdes que na verdade pertenciam aos bastidores e as margens da nossa sociedade.” A mesticagem & um dos mitos de origem do pais, e em Jorge Amado repre- senta quase uma ideologia politica. Mas na pratica ela em geral ocorre fore da familia legiti- mamente constituida. Casamentos inter-raciais na altura do lancamento do filme Dona Fior, apesar de mais fregiientes aqui do que nos Estados Unidos, por exemplo, continuavam minoritarios no nosso mestico pais. Segundo 0 censo de 1980, apenas cerca de 20% dos casa~ mentos no Brasil eram inter-raciais, a maioria acontecendo nas fronteiras do gradiente de cor de pele, ou seja, entre pardos e pretos ou entre pardos e brancos. Em Salvador, a proporcao dobrava para 40,5%, mas a de brancos casados com pretos representava apenas 3,2%, peque- nna mas mesmo assim a segunda maior proporcdo num centro urbano (a primeira seria Sao Luts, com 3,3%)." Seria politica e comercialmente temerério fazer um filme sobre casamento que, no caso do pblico baiano, refletisse a realidade de apenas 3,2% da populacao casada, pro- a A Historia a 2 cinema orgao perto de zero no caso da maior parte do Brasil urbano. Para serem amados pelo pabli- Co pagante brasileiro, majoritariamente branco, Vadinho precisava ser branco, e Flor também. Como sao varios os angulos de uma historia, € possivel também argumentar que a presenca de um malandro branco, além de ser fiel a0 texto amadiano, tinha seu charme de subversao, sobretudo sob um regime militar, enquanto a de um malancto negro apenas con- firmaria esteredtipos racistas consagrados no Brasil. Com o capital simbolico que representa- va a cor de sua pele, Vadinho poderia ascender socialmente, mas preferiu a vida de boémio Pobre. Era um branco porreta, afinal de contas. 0 problema é que neste filme todos parecem sé-l0 quando a questio é racial. Acompanhando o diagnéstico — alias predominante na lite- Tatura académica dos anos 40 e 50 — de que existia na Bahia preconceito de classe e nao de raca, o filme silencia sobre 0 assunto. Um siléncio revelador. No filme, a aparente demo- cracia racial, com seu equivalente sincretismo cultural, suporta a presenca de apenas um negro no circulo de amigos de Vadinho — um verdadeiro token black —, uma negra entre as amigas de Flor, mesmo assim nao do seu circulo mais intimo de amizades. Ambos repre- sentam negros que ganham espaco social através da associago com brancos, e nao de acaes solidarias dentro do proprio grupo (a0 contrario, por exemplo, do personagem Pedro Arcanjo de Tenda dos milagres, romance e filme). Ele & 0 Gnico negro entre os freclentadores do cassi- no, ela, uma prostituta ligada ao candomblé, que se torna comadre de Flor — esta lhe bati- za 0 filho —, sendo o compadrio uma forma consagrada de aproximacao entre desiguais no Brasil, e 20 mesmo tempo um rito que consagra a desiqualdade. Assim, embora com algum esforco, € possivel perceber uma Bahia mais real, com componentes de segregagao racial, mas onde brancos da classe média beixa provinciana, ou melhor, da pequena burguesia baiana — aqui representada por Dona Flore seu primeiro mari- do — circulam por ambientes e praticas culturais que seriam predominantemente negros. Tanto Flor como Vadinho tém contatos com o candomblé, ela & mestra da culinéria negrobaiana, ele gosta de samba etc. etc. Havia e hé gente assim na Bahia e pelo Basil afora. Resultou @ @ desses comportamentos ndo convencionais de brancos remediados que muitas manifestacoes da cultura deixassem de ser consideradas "coisa de preto” para se legitimarem como parte da “identidade nacional’. Mais do que Flor, é Vadinho, no entanto, quem desempenha um papel mais ativo de medizdor cultural, porque circula também nas esferas afluentes da sociedade, sobretudo entre os elegantes que freqiientam 0 cassino, dos quais, quando vivo, arrancava Dora Flere seus co's mars: visgem a um mundo que muda favores, Ainda como mediador, circula também entre 0 mundo dos vivos e 0 dos mortos.* Neste sentido contrasta mais uma vez com o segundo marido de Flor, um personagem social e culturalmente fixo, freqiientador apenas da "boa sociedade’, dos circulos académicos, dos concertos de musica erudita e da Igreja Catélica carola. 0 catolicismo é um outro espaco fisico e mental de circulac3o constante dos per- sonagens, Lé esta Dom Venancio, um padre disposto a emprestar a Vadinho dinheiro da paréquia a fundo perdido, ou que ouve paciente as confidéncias de Dona Flor a respeito de uma espécie de mal-estar existencial causado pela falta de emogdo em sua vida afetiva com o farmacéutico. 0 padre é um sujeito compreensivo, personagem apropriado para uma religiao representads como tolerante diante dos desvios de seus adestos, nao a igreja inquisitorial de 0 pagador de promessas, de Dias Gomes. 0 malandro Vadinho sente-se em casa nessa igreja. Na visita em que arranca um empréstimo 2 Dom Venancio, ele comenta com este sobre a cara descarada da imagem de um anjo no altar de Nossa Senhora, "cara manjada de gigol6", de "anjo fretando a santa*. Para Vadinho sexo & coisa sagrada, "vadiagem & coisa de Deus", pois Ele teria dito: "Vo por ai, meus filhos, fazer neném." E a religido sensualista de Gilberto Freyre a Jorge Amado, um catolicismo cujos devotos desde os tempos coloniais brincam de sexo pra valet, € das mais diversas e criativas formas, como revelam os estudos recentes baseados nos documentos do tribunal da Inquisicao portuguesa.” Entre os pecadores incluam- se 0s padres, como atesta aquele olhar interesseiro que Dom Venancio dirige 4 magnifica bunda de Flor. Mas hé também a Igreja hipécrita, aquela das amigas beatas de Flor, a quem \Vadinho ofende e espanta mostrando-thes seu traseiro branco na entrada da missa. Essas mes- mas mulheres conversam sacanagem entre si, em geral tematizando o luto excessivo de Flor. Quando esta queixa-se de uma dor de cabeca, Dinord (Nilda Spencer) comenta: "Enxaqueca de vitiva é falta de homem." 0 filme trabalha bem 2 idéia, antropologicamente correta, de que afinal de contas quem faz a religiao sio os devotos e nao os tedlogos. Ou melhor, estes fazem 2 religiao, aque- les a religiosidade. 0 proprio retorno de Vadinho do mundo dos mortos nao esta previsto na doutrina, sempre desconfiada de que tal fendmeno — espécie de atavismo pagao relaciona- do com 0 culto dos antepassados — desviasse o fiel da devogao devida exclusivamente aos santos e 3 Divindade. A relacdo com os mortos é um aspecto da religiao vivida, e realmente assunto mais bem tratado fora da Igreja, através do espiritismo ou do candomble, no qual a7 Astra val ao cinema, alias a catélica Flor vai buscar remédio. Remédio para tratar de morte mas também de vida, pois é lé que ela procura meios para engravidar, ‘Apesar de inevitavelmente caricatural em muitos aspectos, Dona Flor e seus dois Imaridos é prato cheio para se pensar historia e cultura brasileias, sob diversos dngulos. Mas 0 Brasil urbano de Fir e Vadinho é um mundo que, para melhor ou pior, estamos rapidamente deixando para tras, diante da emergéncia de outros valores e comportamentos, manifestos por @eemplo na expansio de novas formas, ideologicamente mais militantes, de religiosidade; no avanco de formas mais competitivas e individualistas de trabalho e lazer, de viver e de mor- ‘er; na formagao de identidades coletivas que celebram e defendem a alteridade e nao a mis- tura social, racial e sexual. Mudancas sobretudo no que diz respeito ao papel da mulher na Sociedade brasileira. Embora os Vadinhos continuem a brotar, mesmo se de roupa nova, quase nao existem mais Flores como antigamente. deco os comentarios fetos fer Mariza de Carvalho Somes a este text Roberto DaMatta escreveu un ensio impersivel sobre o scmance de Jonge Amato on objetivos semelhantes, o qui estarei sempre retorrando neste texto. Micha discussdo do filme converge om a tos aspectos, mas também tems nos- sas Giferencas. Ver Roberto DaMaca, A case & a rua: especo, cidadenia, mulher € norte no Bras, ¢*ed., Rio de Jara bara Kogan S.A., 1961, pp. 103-161 séptica, solitaria e hospitalar de or ons dit Seal. 197 nice Nogueira Galva, "énadk creas (Sa0 Paul, D por exemgplo alberta ke 0, "Salvador das mulheres: condiso feminina e cot ita, Dissertacéo de Mestrado. UFBa Faz e Terra, 1989. Ver a este respets a excelete atordagem de personagens machatlianos por Sidney 0s politico: em Machado d: Assis’, in Sidney Chalnoub e Leonardo (orgs.).A hist cavitulos de histéria socal da iterate Janeiro: ova Fntera, 198, cp. 4 ver Jeferson Bacel, "Matic 1920-1996): 0 Sante Guerreiro Dragio ds Maldade’, frodsia, n° 19/20 (1997), pp. 257-27 1976, apenas er fe se: exibido por inteiro. eracio pelo Conselho Saperia mente noticiaia. Ver po Sto imprecisos os dados «bre na Bahia de Dona Flor. Em meados da léada de 30, Pietson acho: que» mntos inter-racais andavam. na casa dos 3% de uma amostra de 1.219 ti jesconfiava ser esta uma prozoryéo astante subestimada; ja Tales ene, que aquela. prozor Ps, MS, as Pa A Pa a il atingir 20 por cent cose pret Nacional, 19 Ver Eiza Bercué, “Como se cazam negras € no Brasil” in Peggy Lave (0 30 Bras pordneo, Belo Horizonte: UFMG/Cedoplay, 1 Racial Distance and Region in Brazil: Interma Research Review, p assurto, Nelson do Valle 5 Hasenbalg, Relap de Janeiro: Ric Fundo Etitora, 1992, caps. 2,32 4; eF 4ecismo cordial, Seo Paulo: Atica, 1995. yp. 181-191, em que, a partr de uma ampl: Pesquisa (5.081 entrevistados) feita em 1995, cencluise que a esmagedora maior dos brasilaincs ce todas as cones se declara sem preconceito quanto 20 casanent por exempl ahia, oviginalmente publiceéo em 42; € Azevedo, At elite Ver Peter Fry, Fora inglés ver: identidace e politica na cultwa brasie Janeiro: Zahar, 1882, cap. 1 # Hermano Vianaa, 0 mistério do samba. Jorge Zaha: /EDUFRJ, 1995. DaMatta, op. cit, p. 168, prefer acer‘uar 0 papel de Fl ¢ da magicamente ertze dois mundes, ser relaconal sor excelénc, por exemplo Ronaldo Vans, Tépices d Rio de Jareir: Canpus, 18 a7 AE TP Pk MF PP Mg MP al Pa ill PY MW in ct situaitn Thabe Marion Brepohl de Magalhaes Alluia, Gretchen: un hotel para © Reich a A imaginagao é a memoria que enlouqueceu. Mario Quintana A semeltanga do historiador, o diretor de cinema faz uma montagem do passado, real ou imaginado, ¢ 0 revela, a partir do filtro de sua camere, ao espectador. Ali, cada imagem- movimento — angulagao, enquadramento e composicae, iluminagao, edigao de som, e ainda © ritmo (mais apressado, sugerinco acao, mais lento, sugerindo reflexio) — sera integrada as demais, cuidadosamente produzidas e ordenadas en seqiiéncias, cujo produto final é o filme: uma visdo de mundo, um fragmento do acontecico, que se expressa ao oltar do espec- tador, desocuttando' detalhes que escapam a fugacidade do olhar natural. Como no oficio do historiador, 0 que é elidido da "montagem" nem sempre & mostrado ao piblico; o que ele recebe é uma filtragem mediatizada pela experiéncia de outrem. Mas, diferentemente do historiador, que busca atingir a consciéncia do leitor, o filme penetra nas fantasias e nos sonhos do espectador, dialogando todo 0 tempo com o seu in- consciente visual. € a partir dessa interacao — o olhar do que produz o documento a ser revelado de acordo com uma determirada lente, e 0 do espectador — que me proponho a comentar Aleluia, Gretchen. Eu, espectadora privilegiada, uma vez que, como Sylvio Back, também reali- zei um percurso pela documentacao que trata da imigrecéo alema e do comprometimento de muitos membros desse segmento social com o nazismo.” Aleluia, Gretchen na obra de Sylvio Back Um dos grandes méritos de Aleluia, Gretchen é que ele representa a primeira elabo- taco a tematizar o fendmeno nazista no sul do Brasil. A istéia vai ao cinema Antes deste filme, a influéncia nazista entre os imigrantes de origem germanica so fora tratada na literatura, por Erico Verissimo (1935) e Vianna Moog (1940), ou em livros n3o- académicos, de autoria de jornalistas ou delegados de policia, em tom panfletario e conspi- fat6rio, caracteristico do nacionalismo xenofobico dos anos 30. Da parte dos historiadores brasileitos, a imigragao germanica fora até entdo celebrada como uma contribuicgo de ines- timavel valor para 0 progresso da racdo brasileira: afinal, aqueles homens eram brancos, Morigerados e laboriosos, 0 que cooperaria para o desenvolvimento econdmico do pais e para © branqueamento da raca.* E neste contexto que o filme de Back, produzido em 1976, intervém como uma con- tra-historia, 0 que ros remete ao contexto cultural da cinematografia brasileira daquele perio- Go; da mesma forma como 0 Cinema Novo elegeu a "realidade nordestina" como parabola Politica do Brasil moderno, com uma estética desagregadora e agressiva, Sylvio Back “deso- culta" @ regiao Sul freqiientemente enaltecida pela historiografia como sinénimo de pro- gresso € convivéncia harmoniosa entre racas e classes sociais. Por esta razdo, creio ser inte- ressante resgatar dois outros longas-netragens de Back: Lance maior (1968) e A querra dos pPelados (1971) que com Aleluia, Gretchen compdem uma trilogia considerada por alguns criti- Cos como “a fase regionalista" do cineasta, posicdo da qual nao compartilho inteiramente. Lance maior € um filme que trata, nas esteiras da nouvelle vague, muito mais do moralismo classista e da sedugao da sociedade de consumo do que de uma tematica especificamente regional. 0 filme narra as angdstias cotidianas de trés personagens que compéem 0 tridngulo amoroso do enredo: a burguesinha alienada Cristina (Regina Duarte), 0 estu- dante universitario e bancario Mario (Reginaldo Faria) e a balconista de subirbio Neusa (Irene Stefania) Nesse filme, segundo o proprio autor, elu, Gretchen: um het para o Reich ‘A cidade de Curitiba e o Parané sulino e litordneo assumiam uma visibilidade fiecional imagética e verbalizada a partir de um projeto autéctone. A alma do roteiro e o olho no visor tinham cordées umbilicais atados a realidade paranaense [...] no entanto, 0 filme guardava indisfargavel parentesco com ‘0 cinema renovador dos anos 60, como Sao Paulo $/A, de Luiz Sérgio Person, e Barravento, de Glauber Rocha.’ Em A guerra dos peiados, Back representa o conflito do Contestado, ocorride na divisa do Parana e Santa Catarina ne primeira década do século XX, em que os "pelados' (posseiros da regio) sao massacrados pelos "peludos" (os latifundiarios, as empresas estrangeiras de colonizacdo e 0 exército). Apesar de ser um dos capftulos mais contundentes da historia suli- na, 0 filme parece dialogar, enquanto universo ficcional, com Os sertdes, de Euctides da Cunha, ou com Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. Finalmente, em Aleluia, Gretchen a regio Sul € novamente 0 cenério em que se desen- volve o enredo, mas as seqiiéncias, a sonoplastia, as imagens-movimento evocam temas uni- versais, como 0 racismo, as relacoes familiares, a ditadura (hitlersta, getulista e peronista). Imigrantes e nacional-socialismo: fragmentos de um diario 0 filme narra a saga da imigracdo de uma familia alema para 0 Sul do Brasi, @ familia Kranz, um microcosmo por onde circulam, ao longo de 40 anos, varias conviccies e senti- mentos que convergem a experiéncia social do nazi-fascismo. Na primeira parte (1937), a chegada desses imigrantes e seu estranhamento 2 comu- nidade local. Na segunda parte, as vésperas e durante a Segunda Guerra, a familia, que se soli- darizou ao nazismo e ao integralismo, softe violentas represétias por parte dos “naciorais", 0 que nao a faz abdicar de suas idéias, Na terceira parte, anos 50, ex-oficiais das SS, em trinsito para a Argentina, hospedam-se no hotel dos Kranz, fazendo-os reviver sonhos e frustragies da ‘Alemanha nazificada. Finalmente, nos anos 70, a familia se reine em tipico piquenique alemao para homenagear sua matriarca, momento em que, 20 som da “Cavalgada das Valirias”, em ritmo de rock," e de uma batucada tipicamente carioca, inicia-se uma danca que encera o filme. Para intercalar as seqiiéncias do filme, interpdem-se fotomontagens que mesclam imagens da Juventude Hitiersta, desfile marcial, marchas e outras, as quais deven dotar de AWistéria vai ao ciema significado, segundo o autor, a propria narrativa.’ Afora essas imagens, os personagens falam mais do que 0 propio argumento: mas nao se trata de um filme de carater psicoldgico, que busca aprender 0 universo subjetivo dos individuos; pelo contrario, cada um deles é uma alegoria a respeito ¢e sentimentos @ conviccSes cue tornaram possivel 0 nazismo. Na primeira tomada, 0 foco da narrativa se concentra na chegada e instalacéo dos Kranz no Hotel Florida, que acabaram de comprare que sera "seu negécio" no Brasil, A esco- tha do hotel como cenério principal nao se da obviamente ao acaso. Num hotel, nao se tem Passado ou futuro, 3 intimidade do lar impde-se 0 contato com gente de todo tipo. Trata-se de uma estadia provis6ria, como certamente os imigrantes nazificados passaram a imaginar 0 Brasil. Além disto, todo o seu interior foi decorado com moveis e objetos tipicamente alemdes, 0 que simboliza as fronteiras entre Brasil e Alemanha: o primeiro, ensolarado e ale- gfe, 0 segundo, escuo e misterioso. Alias, & curioso observar como raramente os membros da familia deixam este espaco circunscrito; algumas vezes aparecem na janela, tecendo comen- tarios sobre seu novo ou velho mundo, e quando saem, limitam-se ao seu proprio jardim, sem manter contato com quaisquer outras pessoas. Dos personayens, Heike (Kate Hansen), filha mais velha dos Kranz, est gravida; foi seduzida (ou violent:da?) por um oficial das SS, nao por amor, mas pela intencao dele em gerar filhos arianos ara Hitler. Dela nascera Gretchen, que simboliza a esperanca de se criar uma outra Alemanhaem solo brasileiro. Gudrun (Selna Egrei), a outra filha, representa a miscigenacdo — ela se casa com um brasileiro, Eurico (Carlos Vereza), oportunistz para quem nao importa qualquer ideologia, e sim suas chances de ascensao social. Josef (Lorival Gipiella), 0 filho mais novo, encama a Hitlejugend; fanatico, violen- to, voluntarista, logo se decide pelo retorno 2 pitria de origem (sonho alias acalentado por todos), de onde nunca voltara; “ha mais juventude na guerra do que no amor’, declara. O negro Repo (Narciso Assumpcao), servil criato, e a cozinheira Frau Minka (Lala Schneider) epresentam, para a imtacéo das esquerdas dos anos 70, a classe trabalhadora sem qualquer cons- ciéncia revolucionaria. Repo revela, com toda @ nitidez, como o imaginério politico do colonizador subjaz na consciénciz do colonizado; sob a coergo moral dos Kranz, ele absorve as seus valores, tomando-se inclusive anti-semita. Sua maior devogao é para com Mami, matriarca da familia. Frau Minka, 20 contrario, odeia os Kranz, mas também rejeita a sua propria classe a Alslua, Gretchen: um hotel paz o Reich social, depositando suas esperancas de libertacio no "retome a patria de origem” ou ro filho Wilhelm (Rafael Pacheco), um arrivista cuja subserviéncia sugere o colaboracionismo. Nao menos importarte é 0 agregado Aurélio (José Maria dos Santos), um brasileiro que j4 pertencia ao mobilirio da casa, adepto fanatico do integralismo e admirador incon- teste de Hitler. Tannenbauer (Joel de Oliveira) & o pastor luterano, dersonagem ambiguo, que reve- rencia os Kranz, mas também se afasta da ideologia nazista e deruncia o antigermanismo do Estado Novo e as persegui¢des de que foram alvo os imigrantes e a propria Igreja Luterana, enquanto uma confissao religiosa a-catélica. E a personagem principal, Lotte (Miriam Pires), @ a figura central, que exerce domi- ago sobre todos cs membros da familia; Mami, alegoria da mae-patria Alemanta, ¢ espe- cialmerte caracterizada em seu relacionamento com o marido, Ross (Sergio Hingst), um live- ral que fugiu da Alemanha por suas conviccdes politicas. Este professor, permanentemente culpado pela sua propria derrota, rejeita todos os aspectos co comportamento de Mami: sua postura assexuada, sua hostilidade aos intelectuais, a rigidez moral, mas subordina-se a ela, pois dela depende seu sustento. Ross deixz-se torturar todo o tempo pela sua mé conscién- cia (schlechtsgewissen), nutrinéo uma secreta simpatia pelo Brasil. Quando a pequena Gretchen morre, ele, sozinho no cemitério, confessa: — Eu pretendia resistir. Juro pra mim mesmo. Sabia de antemdo que acabaria encurralado pelos outros. Toda uma geracao contra a parede, professor Huller. Quando vi, queimavam meus mestres. Cada pagina que virava cinza retorcia no meu coragio. Me enganei. Outros também... Resistir passivamente, ficar na segunda fila, no canto da sala, em siléncio. [...] Como é que eu podia agiientar 0s questionGrios, acareacdes com os alunos? Uns meninos, garotos que vinham de uniforme me acusar. Dedo em riste. Lotte, e vocé? Nosso proprio filho... Fingi tanto, menti, desmenti. [...] Fui fraco, ndo, sou fraco, Ou minhas idéias que sao velhas? Desde quando discordar é anacrénico, Lotte? [...] A maldigao foi cairem cima desta crianga. Queriam o qué? Meu internamento? Que eu morresse? Por acaso jé ndo mort? [...] Fique aqui, Gretchen (chorando) [...] vocé precisa viver, Gretchen, eu cuido de vocé, Gretchen, nao deixo a Lotte te pegar. Aeesta Alemanhaa fragilizada e impotente se contrapde a Alemanha de Lotte. Na noite de Natal, ela se levanta do lugar principal da mesa e discursa para a famili — Hinguém, nenhum de nés se acostuma com a auséncia do pequeno Josef [...] fico até envergorhada com o meu egoismo [...] Quando todo o pais entregou sua juventude para defender um ideal, ficamos nés a lamentar a falta de um ente querido. £ um tempo de miséria e salvagao nacional [...] é © prego de um futuro glorioso. Ha luta e os nossos estéo lutando. Eles per- tencem é nossa querida Alemanha. As cenas entrecortadas, as elipses propositadamente exageradas, o uso de tons escuros quando 0s didlogos remeten ao quinta-colunismo, sugerindo complé, adquirem maior intensidade no momento em que os amigos de Kranz chegam ao Brasil, na década de 50. Refugiados da Alenanha p6s-hitlesista buscam acolhida na Argentina de Perén, o que nunca se realiza, para desgosto de Eurico — que acaba pagando a conta quando da decadéncia econdmica da famitia —, e para o prazer de Lotte, que naturalmente odeia o genro, e que vé em seus eternos hispedes um pedaco da Alemanha em seu hotel. Serdo eles, numa cena grotesca, que representerio as conexdes entre a ditadura militar brasileira e a alema. Face a resisténcia de Eurico em permitir que permanecessem no hotel, os héspedes, vestidos de SS, o seqiiestram no meio da Noite, com o consentimento de Gudrun, e 0 torturam com técnicas semelhantes as do DOI-Codi e da Gestapo: quem nao quiser ser expulso deve saber expulsar.. Ao Nesta seqiiéncia, ao mesmo rev es, (PP ee AT tempo em que se tortura, Rose Marie (Lilian Lemmertz) acaricia as coxas e 0 pénis da vitima, e por este gesto excitam-se também os dois SS que, de repente, abracam-se e passam a dancar freneticamente com a mulher. Alluia, Gretchen: um hotel gate o Reich Esta cena prepara o final da narrativa. Vinte anos depois, os personagens, com a mesma idade do inicio, aparecem no piquenique para homenagear Mami, e neste momento quase todos so tomados por uma euférica nostalgia, ao som de Wagner e de uma batucada tipicamente carnavalesca, cena que nos faz lembrar Terra em transe, de Glauber Rocha. E Ross declara a ume amiga da fami — Que bela Hitlerandia, hein, inge? — Professor, uma coisa é certa. Passaram tantos anos mas ainda esta fecun- do o ventre de onde saiu essa gente imunda. 0 filme e seu ditetor Contrariando as expectativas de fimes nacionais daquele periodo, Aleluia, Gretchen teve uma excelente bilheteria. Foi também um filme que recebeu diversas premiagées e, logi- camente, pelo tema abordado, suscitou muita polémica. Admiradores de Getiilio Vargas sen- tiram-se insultados, a censura cortou algumas imagens dos jovens nus, a colOnia alema sen- tiu-se ultrajada. Merecem destaque es afirmativas de que o filme de Syivio Back ndo possuia uma unidade dramatica que estabelecesse unidade causal entre a totalidade das seqiiéncias, 0 que dificultava a compreensao do roteiro, e que 0 filme retirava dos personagens sua respon- sabilidade pelo nazismo." Segundo nossa avaliagao, este ¢ um julgamento que exige do filme a mesma inteligibilidade de uma narrativa literaria ou hist6rica. Nao € esta nossa posi¢ao. Ainda que em Aleluia, Gretchen, como é freqiiente no cinema brasileiro desse perio- do, realizem-se enquadramentos muito proximos a linguagem do teatro, e ainda que os dialo- gos muitas vezes estejam descolados da imagem, o filme deve ser interpretado enquanto dis- curso cinematografico. Cabe portanto atertar para as cenas que escapam ao saber dos per- sonagens, € que sao expressas apenas ao olhar do espectador," a quem cabe produzir suas proprias intervencées na narrativa: referimo-nos aqui a algumas imagens que se interpoem entre os quatro episédios narrados. Se estes so apresentados como fragmentos de meméria, aquelas dotam de significado a saga dos Kranz, desfazendo ou pelo menos atenuando as elipses entre uma e outra experiéncia. Sao elas, talvez, 0 meganarrador do filme. Citemos alguns exemplos, a guisa de ilustragao. yv A istra ai 20 cinema Antes mesmo de se iniciar a trama, © nome do filme ¢ apresentado em letras goti- Cas, seguindo-se a apresentacao do elenco e da equipe, ao som da “Cavalgada das Valquitias”, A miisica de Richard Wagner, que evoca 2 Alemanha hitlerista, reapareceré quando da chega. da dos $8 no Brasil, e ao final, durante o piquenique. Esta sonoplastia conduz o espectador 2 um outro lugar que nao o Brasil, e que assume forma no Hotel Florida, primeira cena do filme, cujo interior, como ja se mencioncu, reproduz uma tipica residéncia germanica, Uma outra seqiiéncia que € exclusiva ao olhar do espectador: um acampamento da Hitlerjugend, com a bandeira nazista no centro do quadro. Jovens nus correndo na floresta, fute bol, 0 som da cometz, fogueira. Nos fotogramas que sucedem, o nascimento de Gretchen, que no entanto teré curta vida, 0 que leva sua jovem mae & loucura. No funeral de Gretchen, que rep- resentava 2 nova Alemanha no Brasil, (é-se 2o fundo da sala numa grande flamula: “Wir lieben unseren Fiihrer” (nés amamos nosso lider). A terceira cena que destaco é a que apresenta as evolugdes de um desfile de uma banda escolar," sobre a qual se sobrepde a imagem (em primeiro plano), e depois, misturan- Go-se aos integrantes da banda, de criancas trajadas com uniformes da $5, maquiadas de branco. De metrathadoras na mao, atiram em direcdo a cémera. Atrés delas, no terceiro plano, imagens répidas e entrecortadas de pessoas mortas, caidas no cho. Apenas um menino fan. tasiado de indio permanece de pé. Os fotogramas que se sucedem, apds abrupto corte, sao de retaliagdes dos "nacionais" ao Hotel Florida, no meio da noite. Inicia-se a guerra na Europa, mas também no Sul do Brasil, entre dois nacionalismos irredutiveis: 0 dos adeptos do nazismo e 0 dos adeptos do regime de Vargas. E a quarta cera, talvez a mais importante de todo o filme: no discurso de Mami na de Natal, em camera alta, Lotte esta em primeiro plano, na cabeceira da mesa de jantar, Porém de costas para o piblico. Conforme ela vai falando, a camera abaixa até o eixo do olhar, focando, em close, 0 perfil da mulher. No fundo, ocupando todo o espaco da tela, a bandeira nazista. Em sequida, sio filmados os semblantes dos membros da familia: respeito, medo e édio. E firalmente, no epilogo, a fuséo da misica de Wagner ¢ a batucada carnavalesca, aludindo ao 1V Reich e a ditadura brasileira. Assim compreendo esta narrative cinematografica, cuja linguagem ngo pode ser confundida com nenhuma outra. As imagens adquirem sentido no momento em que atingem 0 olhar do espectador. € a ele que cabe dotar de unidade 2 meméria da familia —n Aleuia, Gretchen: um hotel para 0 R'ch Kranz. De resto, lembre-se que Sylvio Back nasceu em 1937, em Blumenau, descendente de alemaes e de htingaros, e estreou seu filme primeiramente na Alemanha, em Berlim, @ no Brasil, em Curitiba. Gracas as técnicas do cinema, o diretor conduziu esta hist6ria para © lugar em que ela foi produzida. MR. ao 1 termo, empresado com toda a propriedate,é de Isnail Kaver. "Cinema; revelaio ¢ engeno". In Novaes, Adauto (ot). 0 ofa. SP, Companhia tas Letras, 1988, pp. 367-383. ‘Além das refertacias citadas nas notas, yaa o maior aprofundamento do assurto ver Back, Sylvie. Syvio Back no ci do. Cur Brepohl de Magilhdes, Marionilde Dias. Pangermanismo alert rumo a0 Easi. Campinas, Editor d Unicamp/Fape Cinena a 0 Brasiense, 1985; Le. Goff Documento-Mozumento pédia Finale, Memoria-Histia Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984, pp. 95-106; Moog, Vanna, Petto Alege, Globo, 1940; Verissimo, , dose Aguilar, 1966. pp. 579-8 se dois trabalhos coetdneos ao de Syvio Back, mas que foram levados a p 0, como lio, em data posterior: A sudstica sobre o Basil, de Stanley Hilton (Rio e Janeizo, Civiizacio Brasleza, 1977), e Nacionaismo e identidade étrica, de ja Seyferth (Roriandpolis, Findacao Catarinense de Cultura, 1981). Mencione ainda um Uo de 1968, publica na Alenanha, listsche ‘Aussenpoiiit, de Hans-Adolf Jacobsen, (Frankfurt: Alfred Metzner, 1968), que foi tadurido para 0 portugués mse, plo mi titulos que denunca lson Martins (2° ed, Sto Paulo, 7.* Queioe, brasileira, de Kar. Oberacker Jr. (Rio de Jato, Pesenca, Back, Sylvio. Files noutra margem. Cuitha, Secretaria de Estado da Cultara edo Esporte, 1992, p Arranjo do conju ‘Folha de S. Pa oct esté neste filme’ p32 nome do hotel um anagrama de Adolfo Hite, segundo Carls Alberto de Matto (in Back, Syvio. Op lo tratamento é foi inclusive taxado de fascist. Ver, a Sher. polémica em Sao Paulo. 0 Liberal. Belém, 27.5 Aleluic, 6 Carlos Etuardo Nac duard Carll, “Aelia, Gretchen, etica Movirento. RI, 1.4 'Arespeito da importancia da focalizaco de espectador num fica, ver Baptista, Mauro. “Naratologia: panorama de uma nova teora do cinema”, In 1agens. Campin, Editora da Unicamp, v Banda marcial da Escola Técnica Federal de Parand —2 PDP la PN le Al DT ad 7 5 a 1 + Emogao e razao Mure de amor MD asin outs Trellis Ménica Pimenta Velloso + Emogao e tazao numa liad CMW dain suit el Ménica Pimenta Velloso Emocio ado numa lcie de amor a\\ 0 texto e o filme “Meu destino ¢ lembrar que existem mais coisas que as vistas e ouvidas por todos." Esta frase Mario de Andrade confidenciou a Manuel Bandeira, em carta datada de outubro de 1924.’ Na ocesiao estava as voltas com a pesquisa de um "linguajar brasileiro", tentando romper a imensa distancia cue sentia existir entre a linguagem falada e a palavra escrita. Nas péginas de Amar, verbo intransitivo (1927) Mario iria reinventar os registros da cul tura brasileira, revirando pelo avesso formas de ver, de ouvir e de dizer. Transposto para o cine- ma, em 1976, © texto resulta no sensivel e belissimo Ligdo de amor, dirigido por Eduardo Escorel. Construindo o seu filme sobre algo que necessariamente "nao € mostrado", Escorel buscou criar uma nova tarrative, trabalhando com o voyeurism do espectador.' Por meio da expresso facial dos atores, dos seus gestos e cenografias, sugere a existéncia das coisas, sinalizando malti- plas possibilidades de compreensdo. Desdobramento incansdvel da linguagem no esforco de buscar novos significados além do ja visto, além do ja cuvido... E nesse ponto que percebo a sintonia profunda entre o texto e o filme, Ambos explo- ram de diferentes maneiras, é claro, 0 universo sinuoso e sutil da linguagem. Inspirado na estética expressionista cos anos 20, Mario trabalha com cenas e quadros, criando uma atmos- fera suspensa parecida com a do cinema.’ Para os modernistas, desejosos de romper com a narrativa linear, a linguagen instantanea — estilo "kodak"— impunha-se como conquista dos novos tempos. Egresso do Cinema Novo de meados da década de 1960 e inicio dos anos 70, Escorel vai redimensionar a forca dessa narrativa sofisticando ao extremo as técnicas de captar ima- gens, envolvendo e impactando 0 espectador. Nesse processo € que se percebe mais clara ‘A Histria val ae cinema mente a releitura do texto de Mario. Eduardo Escorel se detém preferencialmente em algumas cenas, concentrando ai a trama que vai dar sentido ao seu filme. A estrutura da familia burguesa com o seu bem-articulado jogo de controles rouba a cena (no bom sentido). Este é um dos fios que ligam fortemente o Brasil da década de 1920 20 Brasil de 1970. La tinhamos uma burguesia ainda balbuciante mas ja se impondo poderosa © auto-suficiente, conforme a percebeu Mario. Em meados da década de 1970, a idéia do milagre econ6mico jé nao convencia. Respiravamos fortemente os ares da contracultura, dos ideais libertarios e da rebeldia afiada a todo e qualquer tipo de autoridade. 0 discreto charme da burguesia era altamente mobilizador, desvendando mascaras sociais, estruturas de poder e microfisicas do desejo. Tomando 0 pulso do texto por ai, Eduardo Escorel conseguiu passar um quadro vivo do pats, fazendo-o respirar ritmicamente dos anos 20 aos 70, com igual intensidade. Entrando no time... ‘Ao abrir 0 pesado portao de ferro da mansdo dos Sousa Costa, 0 mordomo Tanaka convida 0 espectador a entrar no filme. 0 cenario é Sao Paulo, décade de 1920. Junto com o taxi que traz a governanta alema ao convivio dos Sousa Costa, somos leva- dos a penetrar na vide privada da nascente burguesia urbana paulista. Felisberto Sousa Costa, © chefe da familia, € quem preside 0 jogo do poder na mansdo. £ € em tomo da sua figura que se movimentam a esposa, o filho, as filhas, a governanta e os demais empregados da casa. 0s protagonistas séo Carlos — 0 primogénito da familia Sousa Costa — e Elza (Fraulein) —, a governanta contratada para dar aulas de piano, alemao e também de sexo. 0 close dos olhos, ouvido e boca é insistente, delicado, as vezes provocante. Oscila entre Elza e Carlos, Carlos e Elza. Encontro de duas pessoas que se traduz no encontro de duas culturas: Brasil e Alenanha. Ligdo de amor? Quem aprende com quem? 0 qué? E sobretudo, como se aprende? Vamos tentar seguir 0 percurso de algumas cenas do filme, na perspectiva de con- textualizar determinadas questies. Algumas dessas cenas — as mais significativas — se passam no escritério da man- 0 dos Sousa Costa, que se configura como espago do aprendizado e do exercicio da seducao. Emocio e rezio numa licao ce ano: Elza, de costas para Carlos, vai a0 quadro-nesro para escrever a licao. Carlos distrai- se em devaneios... Vé nao mais 2 Fraulein que ensini: de cabelos presos, trajes vetustos, ar professoral. Vé Elza: a linda Elza, que se desnuda 1a intimidade do seu quarto. Deixando lentamente a Agua cair do jarro sobre seu corpo, eb se olha no espelho, cabelos soltos... Idilica, a imagem de Elza se descola co cotidiano suyerindo uma tela de Ingres. Corpo alon- gado, as costas voltadas para a tele. £m primeiro plano, o enigma. Sibito, Carlos sai do seu devaneio. — Fraulein, seu grampo caiu! A partir desse momento 0 "icilio" entre Carlos ¢Elza comega a tomar forma. Desprendido ‘0 grampo dos cabelos de Fraulein, desencadeia-se a aptoximacdo. Elza e Carlos esto no jardim da mansio dos Sousa Costa. E @ ai precisamente que # estabelece 0 dislogo. Algo que parece casual mas nao é. Elza é a professora contratada per Feisberto Sousa Costa, patriarca da fam para iniciar 0 seu primogénito nas artes amorosas. Elatem, portanto, uma meta a cumprir. Por {sso age, visando a esse fim. Tentando entabular assurto, ela interpela Carlos: — Jogou muito? — Assim... Carlos & monossilabico. Nao s6 por timidez. 4 incompletude, as retic€ncias, 0 deixar a frase no ar parecem fazer parte da fala de Carlos, & sua propria identidade. Ele é assim. Ja Elza se apresenta como assertiva, pratice, embora no intimo nao o seja inteira- mente. Quando indaga gosta de ouvir a resposia completa. Nao aprecia expressdes mem & & intefinidas, sensacies inconfessadas. Prefere infor- macées quea situem concretamente frente ao seu interlocutor A forma de expressio, os cédigos lingiiisticosa que recorrem Elza e Carlos traduzem diferentes fliacdes culturais que tem @ ver com a questo do carater nacional. Calos 6 0 impulsivo, 0 enamorado, aquele que lé nas entrelinhas e sobretudo intui, adivinha. Elza é a queindaga, cortige, direciona e raciocina. een i 2 ——45 ‘AWistéria ve ao cingma Podemos ver ai duas cultures em confronto: o volatil, o ar, representado pelo Brasil, © 0 sélido, a terra, pela Alemanha. 0 recurso as metaforas de oposi¢ao era freqiiente na obra de Mario de Andrade. Ele mostrava forte interesse pela cultura alema, numa época em que o modismo francés era forte nna nossa cultura. Conhecia a fundo a literatura cientificista, a estética expressionista e tam- bém alguns estudos alemées sobre a nossa cultura. De alguma maneira apreciava a acuidade desse povo e a queria ver presente no Brasil. Achava que o brasileiro, mais do que qualquer ‘outro povo, carecia de uma “base fisica bem cermanica para o seu espirito". Argumentava que nao nos faltava a "brilhacao espiritual’, o "fogo de artificio", a "inteligéncia fruque-fuque".* As metaforas do carater nacional — trabalhadas longamente por Mario — nos so sugeridas através das figuras fortemente contrastantes de Lilian Lemmertz (Elza) e Marcos Taquechel (Carlos), que representam respectivamente a maturidade e a puberdade, a razdo e ‘a emocdo, 0 senso pratico e a fantasia, mestre e aluno, Significam, enfim, uma possibilidade de uniao dos contrérios, através da qual se dé 0 equilibrio precario entre duas culturas. Esse confronto — que também é justeposi¢ao e interacao de identidades — segue por todo o filme. Uma outra cena, também passada no escritério da mansdo, vem reforgar essa idéia. Elza lé o texto para Carios em alemao. Em seguida indaga: — Entendeu, Carlos? — Nao, adivinhei Elza nao aceita a explicacao: — Vocé nao estava prestando atencao! Carlos, entao, lé em voz alta. Nas lé no que esté no papel, mas o que lhe sugerem a imaginagao e o desejo. 0 texto escolhido propositalmente por Elza trata de uma cena de iditio amoroso. Em vez ¢e ler 0 pronome singular, "ele", Carlos o pluraliza soletrando "eles"... Fraulein 0 corrige ternamente mas com firmeza. 0 que vale é o registro e nao 0 que se adivinha, ou 0 que se deseja que seja. E 6 ela quem encerra @ licdo: — Pronto, por hoje é s6! Ligdo de amor € rico em contectualizacio histérica, presentificando acontecimentos que marcaram vivamente a década de 1920. Mostra os resquicios da sociedade escravista, a ascensao da burguesia paulista e o seu carater compésito (agricola e industrial), 0 universo Emoclo ¢ razdo numa ticle de amor privado dos seus valores, 0 jogo dos papéis sociais na familia, a questdo da educagao e da sexvalidade, a problemética da imigracao, a questéo do cardter nacional. Essa tematica da jdentidade, t20 cara a Mario, recebe tratamento especial no filme intercalando-se no perfil dos personagens e nos seus dislogos. AA paulicéia da década de 1920 Licdo de amor mostra 0 encontro entre Carlos @ Elza como 0 embate classico de duas pulsées, presente tanto na histéria dos individuos como na das civilizagées: emocao versus razio. Contextualizando esse conflito no universo privado da burguesia paulista, na “paulicéia desvairada" dos anos 20, Escorel enriquece sobremaneira o tema. Felisberto e Friulein sé adeptos da razdo, mas divergem nitidamente quanto a maneira de ministrar a “ligao" em Carlos. Ensinar o amor disciplinado, privilegiando 0 "senso pratico" em vez da filosofia, era 2 prosposta de Fraulein. Ja para Felisberto a questo se reduzia simplesmente a assegurar o seu controle sobre a sexualidade do filho, garantindo os pilares da institui¢ao familiar. ‘A diversidade de perspectivas culturais, étnicas e éticas de Sao Paulo na década de 1920 @ um dos temas fortes do filme de Escorel. 0 Brasil "alma crivada de racas", o Brasil que veste uma "roupa arlequinal” em que cada parte traduz uma etnia, esté fortemente presente na década de 1920, na mansao dos Sousa Costa. Faz-se representar pela preceptora alema e pelo mordomo japonés Tanaka. Também 0 Brasil negro, recém-saido da escravidao, esta la. Ele aparece nos espacos mais recénditos da case, como no quarto das meninas, na cozinha, e também numa das fotos em familia na qual esta presente a baba das criancas. Apesar de transitarem no mesmo espaco — a manso des Sousa Costa —, essas culturas estio sensivelmente separadas. Eduardo Escorel usa um belissimo recurso de imagem para expres- sar tal idéia. Mostra, em imagens aiternadas, uma escultura feminina no jardim e a cozinheira sentada num canto da casa. Silenciosa, ela vistumbra pela vidraga o jardim da manso. 0 olhar (a camera) vai se deslocando entre o interior e o exterior. € a partir desse olhar que se estabelece © contraste e a distancia entre esses universos culturais. A que v8 e a que é vista. Os de dentro e 0s de fora e a simultaneidade dessas perspectivas no abrir e fechar as janelas. A figura da mulher negra € encorpada, pesada, imével, ¢ esta fixa num canto escuro da casa, Jé a branca, que se encontra no jardim, sugere leveza, luz, nudez. |) A Histone vai 20 cinema Ambas as mulheres esto, no entanto, imobilizadas e compartimentadas na mansao. A camera enfoca a distancia, quase intransponivel, entre essas figuras. forte 2 oposicao entre a situacao fechada dos Sousa Costa e as aberturas para a sociedade brasileira da época.” Encerrando-se entre os muros protetores da mansio, distanciando-se o quanto pos- sivel da vida cotidiana e da cultura popular, os Sousa Costa langam mao de uma série de artifi- Cios para ver salvaguardada a sua posigao de distinggo em relacéo ao conjunto social. Ensinar © idioma aleméo aos filhos, garantir uma prole saudavel (casamento entre *iguais"), controlar os impulsos libertarios das criancas, vigiando nao s6 Carlos mas também as meninas. Nas suas brincadeiras, elas dramatizam os acontecimentos Cotidianos da casa: seja através de uma conversa de bonecas, entre 0 bem-me-quer e o mal-me-quer das flores ou que- brando bruscamente as asas de uma borboleta. Tambémé no Jardim, fora do alcance do olhar materno, que as irmas trocam impressdes sobre as novidades da cidade, como o circo. Encenando as cags do pathaco Piolim, elas o arremedam. — Viva a Repdblica! No andar vacilante do palhaco, experimenta-se a danca ainda incerta do regime. 0 filme de Eduardo Escorel € particularmente rico nesse ponto, quando mostra os varios lugares sociais a partir dos quais se vivenciam as acdes. Os olhares das ‘meninas, do adolescente, da esposa, do negro, do imigrante, vao captando e reconstituindo o cotidiano nas suas mais distintas percepgdes. Cumpridas as obrigacdes da mansio, Friulein e Tanaka falam dos seus universos dis. tantes ¢ da imensa sotidao que sentem no Brasil. Um Brasil de “criangas mal-educadas" e vo- luntariosas, casas barulhentas, gente rispida que "olha de cima". Sao Paulo, considerada a “capital espiritual do Brasil", hes parece grosseira e superficial. Fraulein lamenta a falta de Gisciplina e de senso pratico do povo brasileiro. Reclama Sobretudo do “nariz empinado" e da empafia de Laura — esposa de Felisberto — ao pagar o seu ordenado. Sao as valores da nova burguesia paulista avaliados pelos que vieram "fazer a América". Premidos pelas dificuldades financeiras e sem lugar numa ordem que julgavam aberta, flexivel democrata, eles se rebelam contra a condicao servil que Lhes coube exercer. Criticam acida- mente © comportamento dos patroes, sobretudo a sua usura e mesquinharia de novos-ricos. Mario de Andrade criticava 0 “burgués-niquel", os "duques-zurros" que "vivem den- tro de muros sem pulos".* Felisberto Sousa Costa encarna justamente o protatipo desse bur- gués novo-rico que vive — junto com o seu cla — "dentro de muros sem pulos". io ¢ razio numa ligdo de anor A cidade e a casa Felisberto percebe a cidade como uma ameaca desestabilizadora para a ordem familiar burguesa. Por isso busca evitar 0 quanto possivel que os "seus" entrem em contato com esse tuniverso regido pelo vicio, pela doenca, pela exploracdo e jogatina. Tentando convencer a esposa do perigo que ameacava o filho, ele argumenta: — Vocé vive dentro de casa com as suas plantas. Nao sabe... No discurso higienista burgués do inicio do século, é clara 2 oposi¢ao rousseauniana natureza versus sociedade. A cidade aparece como foco irradiador de doencas e desordem, fre- qiientemente condenando-se as praticas e estratégias de sobrevivéncia das camadas popu- Lares. Felisberto Sousa Costa refere-se a Sao Paulo como "cidade invadida" por prostitutas, aventureiros, miseraveis e viciados. Considera que s6 0 lar, 0 ambito privado das relacGes poderia assequrar a ordem social. Felisberto faz um tipo sistematico, mantendo habitos de vida extremamente rotineiros. Quase todas as noites vai ao club. Porém, antes de sair de casa ou na sua volta, obriga-se a um verdadeiro ritual de passagem. Defronte 20 espelho, passando a escova no terno, confere cuida- dosamente cada detalhe fisionémico. Tentando apagar os vestigios da noite e da rua, ele recom- pée a face do marido exemplar, do pai de familia, do chefe e do abastecido negociante de gado. 0 seu referencial sdo os negécios. Avalia a vida como um livro em que sao com- putadas as perdas e ganhos. Observa, um tanto contrafeito, que a iniciagao sexual do filho the custou 0 mesmo preco de um “touro caxambu". Defensor da assepsia, da moral e dos bons costumes, ele nao hesita em armar uma verdadeira cilada contra seu proprio filho. Deixa que Carlos exponha seus sentimentos, envol- vendo-se amorosamente com Elza, para depois "pega-lo em flagrant” com o consentimento da esposa e também de Elza. ‘A cena funciona como um alibi para legitimar a expulsdo de Fraulein, dando por encerrada a sua fun¢ao na casa. Na sociedade de valores ainda patriarcais que é o Brasil da década de 1920, Felisberto é€ quem traca as regras do jogo. As mulheres — tanto a esposa e as filhas quanto 2 governanta — nao tém saida senao acaté-las. Mesmo que sejam prejudicadas — no caso principalmente de Elza — elas sao obrigadas a fazer o jogo do mais forte. Uma das idéias centrais do filme — conforme destaca a critica da 6poca — é justa- mente essa habilidade da familia para reverter os impulsos libertarios do filho em seu préprio proveito.’ Mas esse jogo de controle — longe de ser transparente e unilateral — marca-se pelas ambigilidades profundas. lis 2 storia vai ao cinema, Estrangeiros: os de dentro e os de fora A figura do outsider, no caso a Fraulein — a estrangeira —, se constréi em intima conexao com a de um membro da familia, que é Carlos. Fraulein pretende ensinar o amor sem sentimentos e emocies desenfreadas, mas ela propria nao consegue manter total controle sobre a situacao. Entra no jogo — quando contratada por Felisberto para ministrar a sua licdo — mas ao mesmo tempo é vitima dele. Nao consegue encontrar safdas e por isso joga, vis- (umbrando na prostituigéo uma forma para obter recursos que a possibilitem voltar para sua terra natal. Deixar para trés a ‘América das ilus6es", retornar aos seus. Apesar da atracao que sente por Carlos, esse é 0 objetivo que acaba prevalecendo na escolha de Elza. No filme, a tematica do estrangeiro é tratada com profundidade e sensibilidade. Ha um flash particularmente expressivo: recostado ao colo da Fraulein, Carlos recita a "Cancdo do Exilio" em alemao. Irmanados no desenraizamento — ela longe da patria, ele antevendo a proximidade da separacéo —, ambos sao estrangeiros de uma ordem que nao controlam. Trabalhando fundo a visio de mundo dos seus personagens € as emocées que os movem, Eduardo Escorel nos da uma belissima licdo de cinema e de apurada sensibilidade historica. Tematizando questdes do nosso passado com o olhar atento no presente, ele vivifi- ca muito claramente 0 espectro do autoritarismo politico dos anos 70 e dos "podres poderes" que pairavam como ameaca aos impulsos libertarios das relagdes pessoais e afetivas. hee Notas ‘Lopes, Telé Ancona. "Uma dificil conjugacio", In Amer, verbo intransitive. Belo Horizonte, Itatiia, 1989 neon, Randal. “Lesson of lore’ In Johsor Randal ¢ Stan, Robert. Bresifon Cinema. anlegh Dickinson Univenty Pres, 1s82. ‘Lopes, Tel@ Ancona. Op. cit, p. 13 ‘Sebre o assurto consultar Neves, Margarida de Sousa. "Da waloca do Teté 20 império da mata virgem: Mirio de Andrade”, In Chalhoub, Sicney eFereira, Leonardo Affonso de M. A Historia contada. 83, Nava Fronteira, 1998, e Sandroni, Carlos. Mario con tsa Nacunaimra. SP, Wertice, 198. Figueiredo, Tom. "Licdo de amor, uma licio de cinema’. In 0 Estado de S. Paulo, 16 de maio de 1976. ‘Ver a poesia "Ode ac burgus" Figusitedo, Tom. Op cit. ohson, Randal. Op. p. 212, = ry ees ’ As trés faces de CMW din ait Shade Mariza de Carvalho Soares As tids faces de ica As ertnicas de Joaquim Fico dos Santos Em 1860 comeca a ser publicado ra Vila do Principe (antigo Arial do Tijuco e atual cidade de Diamantina) 0 jornal 0 Jequitinhonha. No ano de 1862, seu principal redator, Joaquim Felicio dos Santos (1828-1895), escreve uma série de artigos sobre o Distrito Diamantino. No ano de 1868, a Tipografia Americana da cidade do Rio de Janeiro redine esses artigos no livro Menérias do distri- to Diamantino da comarca do Ser Fiio (Provincia de Minas Gerais).' Entre os temasai tratados esta a historia de Joao Fernandes de Otiveira, dltimo contratador de diamantes do Tijuco.! Joaquim Felicio dos Santos descreve Joao Fernandes como um homem que, ..rico como um nababo, poderoso como um Principe, tornara-se um pequeno soberano do Tijuco. [...] Sé uma mulher partilhava 0 seu poderio; era a sua amante Francisca da Silva, vulgarmente conhecida por Chica da Silva. Quanto a Chica, ele diz: Francisca da Silva era uma mulata de baixo nascimento. Fora escrava de José da Silva e Oliveira Rolim, que a libertou a pedido de Jodo Femandes. Tinha as feigdes grosseiras, alta, corpulenta, trazia a cabeca raspada e coberta com uma cabeleira anelada em cachos pendentes, como entiio se usava; néo possuia grara, néo pos- suia beleza, néo possuia espirito, ndo tivera educagao, enfim, nao possuia atrati- vo algum que pudesse justificar uma forte paixéo. A Historia val a0 cinema Anarrativa de Joaquim Felicio termina com o retorno de Joao Fernandes a Portugal. Sua volta é associada ao clima revolucionério que se espalha pelas colGnias americanas e & dentincia de que o contratador guardaria para si os diamantes que, por contrato, devia enviar aos cofres régios. Segundo 0 cronista, o governador da capitania da Minas (0 conde de Valadares) teria sido enviado ao Tijuco com a incumbéncia de levar Joao Fernandes de volta a Lisboa. Joaquim Felicio dos Santos nao fornece detalhes sobre a vida de Jodo Fernandes e Chica da Silva. Nos fatos narrados, a paixio que Chica desperta em Joao Fernandes fica sem explicagao, mas seu poder é atribuido ao proprio Joao Fernandes: 0s grandes, os nobres, que vinham ao Tijuco, os enfatuados de sua fidalguia, ndo se dedignavam de render-Ihe homenagem, curvavam-se a beijar a mao & amante de um vassalo do Rei. Tal é 0 poder do dinheiro! Esse vassalo era um miliondirio, e em todos os tempos o ouro foi sempre o escolho em que se que- brou o orgulho da fidalguia, ° A memoria também nao vai além de breves informacées ao tratar do destino dos filhos do casal ou da vida de Chica apés o retorno de Joao Fernandes a Portugal. A partir da volta de Joao Fernandes a Portugal, Joaquim Felicio narra os fatos ocorridos no Reino: descreve a disputa pela heranca do velho capitdo-mor do qual Joao Fernandes fora feito herdeiro, da o rol de seus bens e seu Morgado. A crénica termina informando ter o desembargador Joao Fernandes morrido em Lisboa, no ano de 1799.* Nao ha, nas memérias de Joaquim Felicio, qualquer mencio a Chica depois da partida do contratador ou a existéncia de filhos, frutos desta relacdo. Ao contrario do que fazem crer as cronicas de Joaquim Felicio, Chica subverte a ordem, desmonta hierarquias mas quer um lugar naquela sociedade e, ao que hoje se sabe, acaba conseguindo. Chica da Silva tem ao todo qua- torze filhos com Joao Fernandes, sendo que os quatro homens acompanham 0 pai quando de seu retorno a Portugal. As filhas casam-se com homens bem situados na sociedade local. A propria Chica, num sinal de aceitago de sua presenca na cidade, entra para varias irmandades. Ao morrer, em 1792, é enterrada na Igreja de Sao Francisco, com funeral reservado aos bran- cos, de "sangue limpo".* Seu funeral € uma mostra de que consegue, nos vinte anos, a contar do retorno de Joao Femandes a Portugal, impor sua presenca na Vila do Principe.* 6 As ts faces de ica ‘A selegao dos fatos narrados e 0 modo como a natrativa é apresentada mostra que 6 Joao Fernandes, e nao Chica, o alvo da atengdo do cronista diamantino, Se a vida do con- tratador explica sua riqueza e seu poder, nao explica sua paixdo por Chica. E este vazio nao preenchido pela meméria que abre as portas para o surgimento de uma outra Chica. Enquanto 0 contratador se perpetua no campo da hist6ria e da meméria no século XIX, Chica atravessa dois séculos e reaparece na misica, na poesia, no cinema. Por fim, através de cada uma dessas manifestacdes invade a intimidade das mulheres. Sejam elas negras ou nao, colocando em xeque seus cabelos, sua forma de vestir, sua sexualidade e seu lugar na sociedade contemporanea. Chica na “cultura popular": de Cecilia Meireles a Arlindo Rodrigues 0 barroco, visto na Peninsula Ibérica como culture propria a uma sociedade conser- vadora,’ o chamado Antigo Regime, é revalorizado pelas artes e pela literatura contemporanea como 0 primeiro movimento artistico e literdrio latino-americano. Escritores contemporaneos de varios paises latino-americanos como Lezama Lima, Alejo Carpentier e Octavio Paz vao buscar inspirag0 no passado colonial. Em 0 reino deste mundo (1949), Alejo Carpentier, escritor cubano, narra a luta dos negros no Haiti contra os franceses. Outros tantos romiancis- tas da vanguarda literaria modemista e pés-modernista colocam a questao do barroco, atribuindo-the um caréter ndo apenas de subverséo da ordem no interior de uma sociedade conservadora — j4 proprio ao barroco seiscentista europeu —, mas revolucionario, capaz de alterar efetivamente a ordem das coisas. Eo neobarroco.” Também a poesia de Cecilia Meireles (1901-1964) volta-se para o passado colonial. Em Cecilia, o resgate do barroco transparece em sua ligacao com a poética luso-brasileira e com uma literatura calcada no que se convencionou chamar "raizes da cultura brasileira’, tematica to cara aos intelectuais brasileiros dos anos 30.’ Em 1953 conclui seu Romanceiro da Inconfidéncia.® © Romance VIII fala de Chico-Rei, o IX de Santa Efigénia, o XIII do con- tratador Jodo Fernandes, o XIV e o XV de Chica da Silva. Assim, inspirados no texto de Joaquim Felicio, Chica & descrita em alguns trechos do poema: ‘A Wistéria vai a0 crema Cara cor da noite, olhos cor de estrela. Vem gente de longe para conhecé-la. (Por baixo da cabeleira, tinha a cabeca rapada @ até dizem que era feia.) [...] E curvam-se, humildes, fidalgos farfantes, a luz dessa incrivel festa de diamantes. [...] Nem Santa Efigénia, toda em festa acesa, britha mais que a negra na sua riqueza. Contemplai, branquinhas, na sua varanda, a Chica da Silva, a Chica~que-manda! Mas Chica tem mesmo vocacao para o barroco e para o “popular”. No ano de 1963, Chica da Silva faz sucesso no carnaval carioca. A escola de samba Académicos do Salgueiro ganha 0 campeonato com um enredo do carnavalesco Arlindo Rodrigues, que revoluciona os desfiles das escolas de samba e forma uma nova geracdo de carnavalescos, entre eles Joaosinho Trinta. Terminado o desfile na avenida, a Chica do Salgueiro, Isabel Valenca, con- corre com a mesma fantasia & categoria de luxo feminino no Teatro Municipal e ganha o primeiro lugar. Fica na meméria popular a imagem de Isabel Valenca, também parda, ja sem As tres Faces de Mica juventude e de beleza duvidosa. Isabel Valenca, a Chica da Silva do Salgueiro, € mulher do bicheiro patrono da escola que financia o desfile. A Chica do Salgueiro esta muito proxima Chica de Joaquim Felicio e de Cecilia. Todas ganham poder por meio de seus homens que, por sinal, enriquecem e tornam-se poderosos pelos escusos métodos da contravencdo e do “descaminho", como entao se denomi- nava 0 desvio do oure e dos diamantes. Mais uma vez € a “Chica-que-manda". Mas por que essas mulheres pardas e feias des- pertam paixao sobre esses homens ricos poderosos? Mais uma vez a pergunta fica sem resposta. LOT NE AT ET MTT TT 0 novo cinema novo de Caca Diegues: A historia de Chica da Silva chega as maos do cineasta Caca Dieques através de Joao Felicio dos Santos, autor do argumento do filme e sobrinho-neto do cronista mineiro. Inspirado nas memérias do tio-av6, 0 romancista Joao Felicio escreve, em parceria com Caca Diegues, 0 roteiro de Xica da Silva. Terminado o roteiro escreve Xica da Silva: 0 romance. Livro e filme sao lancados, simultaneamente, em 1976.” Chica da Silva, parda, forra como tantas outras da Minas setecentistas, destaca-se por usar todos os recursos que tem para, como qualquer fidalgo de seu tempo, ascender na hierarquia social. Segundo Joaquim Felicio, além da réplica de um navio, Joao Fernandes da a Chica um teatro onde sao encenadas conhecidas pecas teatrais da época.” Tudo em sua vida é extravagante, falso e transgressor. Talvez, sem que 0 proprio Joaquim Felicio perceba, 0 cronista deixe, ao descrevé-la, transparecer o perfil de uma mulher que é emble- ma de seu proprio tempo e da sociedade onde vive. £ a Xica setecentista, barroca e, no dizer do Modernismo e do Cinema Novo, revolucionéria, que os dois roteiristas vao buscar nas entrelinhas dos escritos de Joaquim Felicio. Como alguém que abre uma janela para outro tempo, eles véem a Xica barroca, que eles escrevem com "X", como entao se usava. 0 roteiro do filme mostra uma Yica vista "através", ou melhor, “por entre" as palavras do critico cronista do século XIX. ys A Wistiia vai ao cinema Rompendo a associacao da imagem de Chica da Silva a do homem poderoso (no dizer de Cecilia, a "dona do dono do Serro Frio"), Chica reaparece, nos anos 70, com uma nova face: sensual e aliada aos persequidos. 0 jovem com quem rola no porao nas primeiras cenas do filme que reaparece no final dando-the abrigo € o padre Rolim, importante inconfidente. A novi- dade é que o filme Xica da Silva promove um deslocamento tanto no que diz respeito ao género = narrativo quanto a construcao da personagem de Xica. 0 filme abandona o tom dos textos ante- s riores, preocupados em "tecontar" a historia (a memoria, a poesia e mesmo o enredo de car- naval pretendem essa aproximacao com a verdade historica), e cria uma narrativa alegorica. Para 0 critico José Carlos Avellar, em artigo publicado no Jornal do Brasil,” Caca Diegues retoma em Xica da Silva (1976) a idéia de alterar a ordem prevista das coisas pre- sente em outros filmes do Cinema Novo. Em Deus e 0 Diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) 0 cangaceiro Corisco propde desarrumar o que esta arrumado; em 0 bandido da luz ver- metha (Rogério Sganzerla, 1968) fica marcade a frase: “Quando a gente nao pode fazer nada, a gente avacalha." O proprio Cacé Diegues em Quando o carnaval chegar (1972) inverte a sabedoria popular e propée agir antes de pensar. Ainda segundo Avellar, agir sem pensar, desarrumar, enfim, avacalhar é o ponto de vista da Xica: ela morde o intendente, enche a cara de p6-de-arroz, cospe na comida. E essa avacalhacao que, segundo Avellar, liga Xica da Silva a0 Cinema Novo e, acrescento eu, também as farsas do século XVIII a que Chica certamente assistia, em seu teatro particular. 0 que diferencia a avacalhacdo de Xica daquela de Glauber Rocha e Rogério Sganzerla € que Xica é popular no porque fala do "povo" ou em nome do “povo", como pregam os cinemanovistas, mas porcue fala a lingua do "povo". Por isso faz rir, como faziam as chanchadas, e atrai piblico: 0 que eu gostaria mesmo é que este filme trouxesse um pouco de esperanca a cada um que o visse e, em cada um que o visse, fortalecesse a fé nas quali- dades do povo deste pais, que é sempre maior que as circunstdncias histéricas que, as vezes, o imobilizam. * Caca Diegues quer, ao mesmo tempo, o piiblico das chanchadas e o discurso "intelectual, de esquerda” sobre o carater popular da cultura brasileira. Desde menino, através de seu pai, con- oe As tbs faces de Mica vive com os estudiosos da “cultura popular". Cacé é filho do sociélogo e antropélogo alagoano Manuel Diegues Jr. (1912-1991), que foi membro do Consetho da Campanha de Defesa do Folclore e do Consetho Federal de Cultura. Numa carta escrita a José Carlos de Oliveira e publicada no Jomal do Brasil, Cacé Dieques afirma: "Gostaria de ser reconhecido como um cineasta popular brasileiro, na mesma e humilde medida em que existem 0 compositor ou 0 poeta brasileiro."* Xica da Silva é o primeiro grande sucesso de bilheteria do cinema brasileiro desde o tempo da chanchada. Com milhdes de espectadores no Brasil e no exterior, Cac Diegues chega onde queria. De Gonga Zumba (1964) a Xica da Silva (1976) percorre um longo camin- ho entre um cinema que pensa 0 "povo” e um cinema que fala, se nao para 0 "povo" (cate- goria de dificil identificacao), pelo menos para uma ampla platéia que enche os cinemas das principais capitais do pafs. Seu filme atinge aquela parcela do piblico que vai ao cinema porque "cinema ainda é a melhor diversdo". Xica da Silva atrai um piblico que ia assistir as chanchadas e que nao viu 0 Cinema Novo passar. E assim que, segundo seu proprio diretor, 0 filme inaugura uma nova fase do Cinema Novo: "O Cinema Novo, nesta segunda denticao, morde mais fundo: o povo nas telas e nas salas.""* A Xica de Cacé Diegues e Joao Felicio — a diferenca da de Joaquim Felicio, Cecilia e Arlindo Rodrigues — troca 0 poder dos diamantes pelo poder da sensualidade. £ esta imagem que chega as telas, a critica e ao pablico, no Brasil e no exterior. A nova imagem de Xica é tao forte que ela até parece ter sido sempre assim: "simbolo de sensualidade mas tambén de liberdade, Xica tornou-se uma lenda, um mito da tradigo brasileira transmitido através de poemas, pecas de teatro ou sambas do car- naval do Rio. Ela agora é a heroina do primeiro filme brasileiro historico, ‘en costumes’: Xica da Silva, de Carlos Diegues. Lancado esta quarta-feira em Paris ja ¢ um triunfo nacional: 5 milhdes de espectadores no Brasil." ‘Ao contrério do que diz a noticia, é apenas no filme que Chica se apresenta como sim- bolo da sensualidade, explicitado na masica de Jorge Ben: "Xica da, Xica da, Xica da Silva Enquanto no Cinema Novo é comum a trilha musical nerrar uma histéria paralela, em ica da Silva a masica nao narra, ela identifica, representa, emblematiza: "Xica dé, Xica dé, Xica da Silva". Numa releitura peculiar da obra de Gilberto Freyre e das teorias sobre a miscigenacao e democracia racial, Xica ascende socialmente pela seduco, deixando de lado a procriacdo e 0 embranquecimento. Talvez por isso, no filme, sua queda seja tao rapida. A Chica do filme é uma A tisca vai ao cinema negra que nao quer ser branca e que usa os signos do embranquecimento de forma grotesca (cena em que se veste de branco dos pés a cabeca e cena em que cobre o rosto com po-de- arroz bem branco). De parda ela se faz negra. A careca é substituida por um corte de cabelo e uma maquiagem com visual "black is beautiful” que antecipa a "beleza negra’ dos anos 80. A atriz Zezé Motta, que faz o papel de Xica, é alcada a simbolo da mulher negra, da beleza e da sensu- alidade. Se a Chica recentemente ip crit pela historiaora Junia alk Fy é mai filhos,” a Xica Mitral (Muu AW APMNER ST Facade a de 14 Fis a ca servico da seducao dos homens que deseja: nao tem filhos, nao resiste aos homens, e € — tanto para os homens que com ela convivem quanto para o publico que a assiste — assustadoramente atraente e bela! Esta nova versio de Chica da Silva se consagra na cena da farta ceia oferecida ao conde como Gltimo recurso para livrar Joao Fernandes. A recep¢ao 20 conde é descrita por Joaquim Felicio como bailes, teatros, cagadas, passeios, ricos presentes, jantares opiparos cotidiana- mente, para os quais se convidavam as principais pessoas do Tijuco, nada poupou o Contratador para obsequiar seu nobre héspede.” No filme, além dos presentes, @ oferecido ao conde um banquete. Ao servir variados pratos da "comida africana", dispostos no chao a moda de um feitigo, Xica se oferece, ela mesma, ao conde, Os opiparos jantares freqlientados pelas "principais pessoas do Tijuco” séo transformados numa bacanal negra que termina com Xica se entregando ao conde. Joaquim Felicio narra a histéria de Chica da Silva do ponto de vista dos descendentes dos moradores do Arraial do Tijuco, no século XIX. Para uma sociedade que procura espelhar- As tes faces de ica se na Belle Epoque européia, Chica no poderia mesmo ter qualquer encanto. J4 no filme, o roteiro mostra uma Xica que vai ser vista por mulheres que, justamente nos anos 70, quando o filme é langado, esto discutindo sua sexualidade e seu lugar na sociedade. No filme é Chica que otha a sociedade que a rodeia, e nao a sociedade que olha para ela como na narrativa de Joaquim Felicio. 0 que 0 filme mostra sao seus desejos, seus valores, sua maneira de ver mundo. € 0 olhar de Xica que conduz a narrativa. 0 filme deve ser visto como uma autobiografia. Accena em que Xica anda em direcao a platéia indica que é ela quem fala ao piblico. E a propria Xica quem responde a pergunta sobre que encantos teria ela para des- pertar tao forte paixdo. A resposta esta em sua sensualidade, esta nos segredos da mulher que muitas vezes s6 se manifestam as escondidas, longe dos olhares curiosos do pilbtico € até da camera. 0 filme termina sem que seja revelado o segredo de Xica para agradar seus homens. E nesse sentido que a narrativa de Joaquim Felicio € como uma cortina que oculta © palco onde Xica se mostra. Quem ilumina a cena e permite ver Kica é justamente a sen- sacao de desconcerto do cronista que nao consegue explicar @ paixdo de um homem rico e poderoso por uma escrava. E a partir do nao-dito (da paixdo inexplicada) que Joao Felicio e Carlos Diegues concebem a "Xica da", que transforma o poder que advém do homem no fascinio que ela exerce sobre eles. Todos os homens do filme deixam-se encantar por Xica: 0 velho, seu filho José, Jodo Fernandes, 0 conde e até mesmo Teodoro, que arrisca a vida por sua mulher que acaba de ter um filho. ‘Ao construir uma Xica da Silva diferente da de Joaquim Felicio, estariam os roteiristas do filme mudando 2 historia ou teria sido ela mudada pelo cronista do Oitocentos? Nao teria ele encoberto o poder de seduco da came, tema malvisto no Oitocentos (embora tao caro aos escritos barrocos), para destacar a sedugao do dinheiro? "Chica" vira "Xica" nao como uma novidade, e sim como um proposital arcaismo. E com 0 "X" usado no século XVIII, um arcatsmo ortografico, que 0 filme escreve Xica. A Xica do filme representa a possibilidade de subversao da ordem escravista da ditadura militar vigente nos anos 70. Na segiiéncia do confronto entre os poderosos e oprimi- dos (0 conde versus 0 garimpeiro), Jo30 Femandes fica do lado do poder e entrega Teodoro, 0 garimpeiro quilombola goliticamente correto. Numa trajetéria oposta a de Joao Fernandes, Xica vai de encontro a José, filho de seu antigo senhor, ja entao feito padre e inconfidente. A politica entra no filme através de José (0 padre Rolim) e de Teodoro (negro garimpeiro e quilombola, inspirado em Chico Rei). Ambos sucumbem aos encantos de Xica, € A Histeria vai 20 cinema & com eles que Xica termina, juntando-se aos revoltosos. Xica representa o préprio "povo brasileiro” num momento em que, no Brasil, sé é possivel falar de politica por alegorias. No fim do filme, depois de perder tudo que conseguira, Xica recomeca sua vida de posse apenas de sua carta de alforria e, como sempre, caindo na tentacao da carne... Como quer seu dire- tor, Xica "da” esperanca a cito milhdes de espectadores que vao ao cinema para vé-la. £ para ‘sso que, segundo o préprio Cacé Diegues, ele faz o filme: Eu andava muito triste, emburrado, pessimista [...]. Entdo eu achei que esta- va na hora de alguém fazer um filme que “desemburrasse” a gente, que desse algura esperanga e jé no povo.” No filme, sexo e escravidéo sio pretextos para falar de relacdes de poder: submissao e subverséo da ordem. Xica é vista como uma figura carnavalesca que danca e ri e busca seu proprio prazer. S6 que faz isso fora do carnaval. Ao contrario do samba-enredo, que leva o Piblico as arquibancadas da avenida durante o camaval, o filme carnavaliza o cotidiano da cidade de Diamantina e também as tardes € noites do espectador que sai de casa para ir ao cinema. No ano de 1976 esse piiblico, assim como o préprio diretor, est em busca de alguma esperanga, de crer na possibilidade de, pelo menos num sabado a noite, numa sala de cinema, subverter 2 ordem. A esquerda critica, ‘patrulha", mas 0 pablico gosta, paga para ver Xica. "Nao, Kica, iss0 nao, isso nao, Xica!l!" Xica subverte. Assumindo atitudes que desafiam 2 moral e 0 comportamento, Xica faz ver que — seja na sociedade mineira setecentista, seja na sociedade contemporanea —, para além dos cédigos e das normas estabelecidas, existem outras coisas... 0 filme transita entre sexo e politica o tempo todo. E 0 piblico sai do cine- ma curioso, se perguntando: afinal, 0 que Xica faz para levar seus homens ao delirio? E per- gunto eu: quais seriam, em 1976, os atos de prazer inenarraveis? Estariam eles restritos a epressao sexual ou abrangeriam também outros prazeres proibidos, frutos de outras repressdes, como enfrentar os politicos corruptos, cuspindo em seus pratos, como ela cospe no prato do conde? No fim do filme Xica perde seu contratador, suas escravas, e vira alvo do deboche dos moradores do Arraial. Ela "cai" como haviam “caido" os inconfidentes do século XVIII e os militantes dos partidos politicos clancestinos nos anos 60/70. Mas o final de Chica é como o == pe: As tts faces de X final da HistOria: Tiradentes vira martir, nome de cidade, praca piiblica e Chica vira crénica de jornal, enredo de escola de samba, filme, novela de TV e tema de pesquisa historica. Todos querendo mostrar, afinal de contas, quem € Chica da Silva, Nota: sn uin Felico dos Santos. Memérias dio distrito diemantino dia comarea do Serro Fri fe Mario Guimaraes Ferri. Prefcio bistiogafia de Alexandze Euldlio qu coligiu os spandices; notas de Nazazé Menezes (1924) e José Teixeira Neves (1956), 4 tdigdo 1868). Belo Horizonte/Sio Paulo, atiaia/ EAUSP, 1976. de dianartes por conta éa Fazen es 2 Portugal (1772), foi estabeleciia a extr Real e nao mais pot contrato com partic: Joaquim Felicio dos Sintos. Op sit., pp. 123-124 ir de 1770, com a instituigdo do morgadio, 2 nobreza portuguesa passa jestinar a herarga paterna ao filho primogénite, o que garante a integrida adas de "sengue limpo" as pessoas que nic descendem de judeu: Entrevista da historiadora mine 1a Furtado que atualmente pesqu sobre Chice da Silva, para 8. (Arquivo da Cinemate do MAK/R3, s/éata) ozo, Ansdlise de uma estrutura histérica. ica, Modalidades poéticas colonia". Ia Ana Pi 1A situagio colonial. 5 993, pp. 299-336; Balla Josef. Histéria de o revista e axpliaa. Ri de Janeiro, Francis Alves, 1989. MEP Re a MR ad A a A A Histiia vai ao crema neste ambiente de construgdo de uma “cultura brasileira” que, a parts de 1948, ecfia passa a colaborar coma Comisséo Wacional de Folclere, tendo tido par pacio ativa no I Congresso Nacional de Felclore, em 1951. Cecilia Meiseles, Romanceiro da Inconfidéncia. SE/Cizculo do Livro, 1975, f. 267 Cecilia Maireles. Op. cit JoHo Felicio dos Santos. ica da Silva: o romance. Nota introdutéria por Catl Diegues. Rio de Janeiro: Civiizagéo Brasileira, 1976. Em 1954 Caca Diegues havie feit Zumba, cujo roteize baseia-se no romance Ganga Zumba (1962), do préptio Joie Felicio dos Santos, “ais como Encantos de Medéla, 0 anfitedo, Pocfia: anando, Xiguinha por amor de Deus. Joaquim Felicio des Santos. Op. cit, >. 124 José Carlos Avelar. "Uma grande festa”. Filme Cultura, 29 de maio, 1978 (Clos Diegues, revista Filme Cultura, n? 29. 1978, p Entrevista de Caci Diegues ao Joma do Brasil (Arquivo da Cinemateca do MAM/32, s/ ata) ‘Cais Diegues. “Dossé crtico'. Filme Qultura. n® 29. 1978, gp. 81-93. Materia do Le Journal du Dimanche (Arquivo da Cinenateca do NAM/RD, s/deta). una Fervera Furtado, na ja citeda entrevista aquim Feliio des Santos. Op. cit. p. 126. Entrevista de Cacé Diegues 20 jomal 0 Globo (Arquivo da Cinerateca do MAM/R0, s/éai). Mm Ta TP PA le, Al Marcos Luiz Bretas Lic Rivio, passageio da Histria Ao dar os Gltimos retoques neste artigo me vem as maos uma noticia de jornal: em meio 4s indmeras curiosidades encontradas nos depositos da Justica so mencionadas duas pulseiras de ouro pertencentes a Licio Flavio, um famoso bandido da década de 1970. 0 personagem, que enchia as paginas dos jornais tao censurados do governo Médici, hoje um passado razoavel- mente distante, tornou-se uma peca de curiosidade hist6rica, um sabor de seu tempo, que talvez encontre sua melhor preservacdo no filme de Hector Babenco, langado em 1978. A dura- bilidade da obra "ficcional” suplanta 0 personagem real e ganha foros de verdade historica, con- tando como tudo aconteceu... Para meus alunos, nascidos quando Liicio Flavio morria, ele "aquele do filme". Importa, entao, perguntar ao filme: afinal, o que foi que aconteceu? Cenario | - De volta aos bons tempos Os anos 70 ja representam, na discussao da violéncia urbana, um agradavel passado ao qual muitos gostariam de retornar. 0 filme pode muito bem ser visto por este angulo. E claro que poucos gostariam de retornar aquele horroroso visual que nos sentiamos orgulhosos de ostentar — os mais otimistas diriam que, naquela época, a0 menos tinhamos cabelos, € como tinhamos —, mas a impress saudosa se instala no primeiro assalto a banco. Os meliantes simulam um defeito no carro em frente a uma pracinha — com direito a coreto, bancos de pedra e arvores pintadas de branco — e, enquanto um finge consertar, os outros atravessam a porta do banco — sem travas ou detetores de metal! —, rendem um sonolen- to seguranca posto em sossego a ler o seu jornal junto a porta, e, com seus poderosos 38, roubam 0 semivazio estabelecimento, onde nao havia sinal de computadores, caixas eletroni- a oe AWistria vai a cinema cos ou outras engenhocas semelhantes que contribuem para fazer de nossa vida o que ela 6, Na saida, Licio Flavio da mostras de sua maldade: chuta o saco do seguranca... Sem diivida podemos encontrar muito do que sentir saudade; tanto as armas dos meliantes, suas maldades, como a seguranca bancaria fariam corar de vergonha qualquer Jovem olheiro de boca habituado ao manejo de fuzis AR-15. Mesmo a policia é capaz de ati- tudes surpreendentes: ao encontrar num bar o velho padrinho do assaltante, opta por tortura lo com o oferecimento de largas doses de cachaca. De todos os lados brota uma impressio de que havia ainda algum respeito a populacao civil, Nao havia ainda um general para esclare- cer que em toda guerra existem vitimas entre a populacio civil... Mas se & possivel ler o filme através deste cendrio de um bom tempo que nao mais retorna, talvez seja também possivel olhé-lo de forma menos agradavel. Cendrio 2 — Os anos de chumbo ‘Ao mesmo tempo em que as imagens produzidas ainda nos anos 70 nos mostram uma realidade que em tudo parece mais amena, o filme todo transcorre sob uma sombra, um fan- tasma que pesa sobre a hist6ria narrada e mesmo sobre sua estruturacdo cinematogréfica, E © peso de lembrancas ruins reconhecidas como censura, tortura e ditadura. 0 fecho do filme um momento significativo: os bons policiais federais — explica-nos um texto escrito apos- to as imagens — puniram os maus policiais envolvidos com o crime... 0 que se iniciou como tragédia termina como farsa; os autores se permitem facilmente esta concessao a censura cer- tos de que 0 piiblico compreenderia nao ser aquele final parte do filme, mas dos tempos vivi- dos. Eram tempos em que todos se especializavam na arte de tresler. Boa parte de nosso desconforto no filme se origina nao do que € exposto como crime e violéncia, situagdes que ainda nos so dolorosamente familiares, mas do que perpassa e nao se esclarece devidamente. Policiais batendo em meliantes ou suspeitos séo imagens identi- ficéveis, mas quem — ou 0 qué? — sao aqueles torturadores profissionais, ou amadores que participam das sessdes e que, mesmo 2o se transformarem em vitimas, num momento em que 0 bandido vira herdi, tém o direito de nao ter sua morte anunciada? Amadores/profissionais da tortura estatal que saem de suas prosaicas casas de subiirbio para extrair "informacées", palavra magica que gerou a perversio de um servico nacional. Constancio Ramos € um dos muitos Monsieur Verdoux do cotidiano das ditaduras. Licio Flavio, passageiro da Histéria 0 filme ja parte da presenca ra sociedade carioca do esquadrao da morte, mas, 20 mesmo tempo, acompanha a elaboracio de seu ideal. Assim como a ditadura e a esquerda valorizavam os ideais de organizacao, os policiais ligados ao crime e 2o exterminio anunciavam também sua adesdo aos valores organizeconais. Nao admira que pouco depois o crime também passasse a se fazer organizado. A celebridade Sem divida, um historiador con espirito de antiquario pode ir longe ao tracar a meméria dos grandes criminosos cariocas, gente como o Carleto ou o Dr. Anténio, para ficar no inicio deste século. Mas ha que recontecer cue sao em sua quase totalidade figuras esque- cidas que teriam de ser explicadas pare 0 pablico. A meméria mais antiga diz respeito talvez a crimes mais que a criminosos, como os casos Aida Curi ou Dana de Teffé, 0 crime da ladeira Sacopa, crimes envolvendo a elite da cidade, mais lembrados pelas vitimas do que pelos acu- sados. E nos anos 60 que comecam a apatecer nomes identificdveis, inimigos pablicos no sen- tido norte-americano, como Tigo Medonho — também personagem de cinema —, Cara de Cavalo ou Mineirinho. A criminalidade pooular, ao se armar, comega a ter uma cara, ainda que de cavalo. Nesta fase herdica, a policia tanbém busca produzir nomes reconheciveis: Le Cocq, Perpétuo ou os Homens de Ouro — dos quais fazia parte Mariel Mariscott, alter-ego do Moretti, policial do filme. Com o passar do tempo, de um lado e de outro, o desenvolvimen- to organizacional, cu em escala, acelenara a rotatividade e tornaria mais € mais dificil 0 surgi mento da celebridade individual, substituida pelos quinze minutos dos Buzunges. Lacio Flavio talver tenha sido o iiltimo inimigo pddlico da fase heréica, anterior 20 Comando Vermelho. Vale lembrar que o jornalista Carlos Amorim sugere que o assassinato de Licio Flavio pode- ria ter como motivo a tentativa de grupos organizados de presos — origem dos atuais coman- dos — de fazé-lo parte de uma organizayao. Mas ainda permanece uma questio importante: por que Lécio Flavio adquiriu tamanha celebridade? Sem diivida, as fugas da prido tiveram muita importancia. Os muros das prisdes constroem uma barreira entre o interior e o exterior que sé pode ser derrubada pela imagi- nacdo, De formas diferentes, mesmo artes da generalizacdo da pena de prisio no século XVIII, j4 existiam 0 fascinio pelo cércere e um largo ramo da literatura popular composto de historias — se possivel veridicas ou que o parecessem o mais possivel — sobre fugas de ee ae A Mistrial ao cine prises. Licio Flavio toca neste ponto da sensibilidade popular: muros e algemas parecem incapazes de conté-lo. Mas 2 escolha popular através da imprensa nao se da apenas pela capacidade de escapar. Licio tinha outros apelos. Nao foi despropositada a escolha do gala Reginaldo Faria para representar 0 personagem: Licio apresentava um visual que ndo se encaixeva no estere6tipo de bandido construfdo através da midia, que povoava os pesadelos da pequena burguesia. Ao contrario, o meliante de olhos verdes, articulado, oriundo de uma baixa classe média, dotado dos recursos de poder que suas aces armadas the conferiam, parecia ao pabli- co leitor parte de uma charada magnifica, uma sedutora opcao por enfrentar o “sistema” — neste caso nao o da ditadura, mas o da ordem, que talvez naquele momento se confundisse. Um lutador admiravel diante de um opositor terrivel: até quando ele poderia resistir? De forma reprimida ou nao, havia uma expectativa de que ele mais uma vez se sairia bem, escaparia mais uma vez. 0 Licio Flavio visivel nao era a outra face dos policiais coruptos, mas um grande burlador, que deixava em aberto a possibilidade de revanche contra a ordem, nao podia ser equiparado a criminalidade pé-de-chinelo que andava por ai. Lucio Flavio: o filme Lucio Flavio encontra seu destino esfaqueado numa cela carioca, em janeiro de 1975, €0 filme € produzido dois anos depois. 0 momento histérico da chamada abertura promovi- da pelos militares no poder permitia uma certa discussdo dos problemas sociais, e motivava uma expectativa sobre o que viria a aparecer no campo artistico, supostamente impedido de se desenvolver por causa da censura e da repressao. Da mesma forma, o cinema brasileiro bus- cava recuperar 0 seu piiblico, desviado para as pornochanchadas pela falta de apelo popular da linguagem do Cinema Novo. 0 filme Lucio Fidvio tinha um tema de apelo popular e fazia questao de afirmar a moderidade de seus recursos técnicos; ao cortrario da caracteristica geral do cinema brasileiro, nao seria malfeito, podendo ser equiparado as produgses de Hollywood. Revisto hoje, este aspecto técnico nao parece tao evidente, mas ainda assim o filme apresenta qualidades que nao fariam inveja as mais recentes produces hollywood'anas. 0 filme € agradavelmente moderno em sua recusa a oferecer explicacies para o comporta- mento dos personagens, apresentando uma narrativa que se aproxima tentadoramente do que poderiamos chamar de neutra. € claro que a intencao nao é de neutralidade, que talvez essa ico Flivio, pasagere da Histria estratégia de evitar conflitos com a censura — que poderia nao gostar das respostas dadas. Mas a qualidade do resultado € 0 espaco de interpre- tagao deixado ao espectador. Visto apés uma avalanche de filmes que explicam como criminosos viraram criminesos por eventos de sua infancia — 0 que seria perfeita- mente cabivel no caso deste crimi- oso diferente, vindo de um extrato mais elevado, onde as concepcdes usuais sobre por que dedicou-se ao crime nao se aplicam —, 2 op¢ao do filme de nao mostrar © pequeno Doquinha faz um enorme bem. No maximo temos Grande Otelo a nos explicar que © descaminho se deu por desatencao a Mae Janaina, versio que nao ocorreria a Brian de Palma e, provavelmente, tao valida como qualquer outra. Outra verso paralela que é igualmente evitada é fazer de Licio um bandido social, na melhor tradicao de Hobsbawm; neste caso mais para bandido Giuliano do que para Robin Hood. Argumentos para isto nao faltariam: o proprio Liicio falava que roubava bancos — dinheiro sem dono, coberto por seguradoras — e nao trabalhadores. Além disso, a onipresenca da ditadura militar permite o argumento da resisténcia, de tentar ler 0 crime como uma forma de protesto contra a exploracao, ainda que desprovida da verdadeira consciéncia necessaria na luta contra o regime. Naquele momento, assaltos 2 banco eram de fato formas de luta. Mas 0 filme nao se permite qualquer proselitismo através do personagem; prefere fazé-lo individualista e violento em suas circunstdncias. Aqui mais uma vez as possibilidades sao indmeras. Quando lembramos que, mais recentemente, o cinema através do filme 0 gue é isso, companheiro? procurcu nos mostrar que os revolucionarios eram, de fato, individualistas e violentos, talvez reste uma porta aberta para concluir que Licio Flavio foi também um militante. ‘A expectativa gerada pelo final da ditadura era de uma exploséo de grandes obras artisticas, escondidas nas gavetas pelo temor da censura. Como isso nao ocorreu, surgiu uma contra-hipétese sugerindo que o exercicio metaforico promovido pela necessidade de viver A Wiseria vai ao cinema sob censura teria gerado um periodo artistico de grande qualidade. Colocado no quadro da abertura, 0 filme Lucio Fidvio permite pensar esta questdo: optando pela narrativa seca — sinto-me tentado a dizer académica, mas, para tantos, infelizmente, este termo se tornou pejorative —, o filme evita problemas, escapa de fazer cinema dendncia, e por isso, volun taria ou involuntariamente, escapa de ser um filme de época, datado pela excessiva contex- tualizacao, para abrir-se a leituras temporais diferenciadas. Impossivel dizer até que ponto esta op¢do é resultado do britho de diretor e roteirista ou parte da datacao do filme, mas, de qualquer maneira, contribui enormemente para que ainda seja atual. Para todos aqueles que buscam compreender as razdes para o crescimento da violéncia carioca ou brasileira, o filme talvez ofereca elementos de reflexio, mas nao respostas. Licio Flavio nao é nem tenta ser chave de compreensao nem do passado nem do presente, mas um resgate de uma peca do imenso quebra-cabeca da nossa realidade. e as fronteitas do nacional-payie ‘cs = 1m con Miva Our Ana Maria Mauad Bye Bye Basil eas fonteras do nacional-popular “Eu vi um Brasil na TV... Aquarela mudou Na estrada pegou uma cor” (Bye Bye Brasil, Chico Buarque) O cineasta e 0 poeta Em 1957, a peca 0 Auto da Compadecida, do autor pemmambucano Ariano Suassuna, é encenada no Rio e em Sao Paulo com grande sucesso. Um ano depois, ja com idéias na cabeca, mas ainda sem uma camera na mao, Glauber Rocha vai procurar Suassuna. Desta con- versa, Suassuna relembra o fascinio de Glauber pelo Auto, sua intencao de leva-lo para o cine- mae a confissao do poeta de que seu sonho cinematografico era o de fazer uma épica pobi um espeticulo total brasileiro, com 0 canto, a miisica e a imaginacao do povo.' Este sonho embalou toda uma geracao de intelectuais associados aos Centros Populares de Cultura, aos ‘deais do nacional-populare aos movimentos de vanguarda artistica. Uma expressao tipica~ mente popular que criasse uma identidade nacional, possivel de resgatar uma brasilidade per- dida em alguma reviravolts da historia. Os anos 50 embalaram sonhos que os 60 teriam a obrigacao de atualizar e 0s 70 de colocar um definitivo ponto final. Bye Bye Brasil, filme escrito e dirigido por Cacé Diegues, cineasta integrante do movi- mento cinemanovista e embalado pelo mesmo sonho de sua geracio: dar conta do pais em que vivia através de sua arte, 0 cinema. Antes de Bye Bye, Diegues ja havia realizado varios filmes, uns mais ligados a estética classica do cinema novo — camera na mao do fotografo sem preocupa¢de com a nitidez da imagem, uma cémera "nervosa", para dar conta da pulsdo edo movimento —, tais como: A grande cidade, Ganga Zumba e Os herdeiros; outros, inscritos uma outra temporalidade, voltada para as transformagdes do pais e da indiistria cine- matografica, dentre os quais destacam-se Joana francesa, Chuvas de verdo e Xica da Silva, este iiltimo um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro. 7 ais: A Historia vai ae nema Comentar o filme Bye Bye Brasil através do olhar do historiador nao é tarefa facil, pois, sendo um filme recente, corre-se o perigo de cair nas armadilhas do devaneio, ou até mesmo no impressionismo de uma pseudocritica cinematografica. Para evitar estes dois peri- gos, mas sem deixar de confessar que rever Bye Bye Brasil me fez lembrar de muitas coisas (ai, 0s meus idos dezoito anos), vou embarcar na trupe da Caravana Rolidei com Lorde Cigano, 0 magico dos magicos, Salomé, a rainha da rumba, Andorinha, o homem mais forte do mundo, Cico, 0 sanfoneiro e Dasd6, sua mulher, e tentar detimitar as fronteiras do nacional-popular no mapa da internacionalizacdo da cultura, ponderar até que ponto o ideal antropofagico modernista nao € 0 alimento, ainda hoje, de nossa substancia cultural e quem sabe, com isso, entender o sonho de Suassuna. Memorias de uma garota bem-comportada Fui ver Bye Bye Brasil, em 1979, no cinema Veneza, um cinema de grandes e con- fortéveis poltronas vermelhas, ali perto da UFRJ, no finalzinho da Av. Pasteur, no limite dos bairros da Urca e de Botafogo, no Rio de Janeiro. Depois do cinema a gente ia direto para a cantina Fiorentina, no Leme, aquela que tinha a parede cheia de assinaturas de artistas famosos. Até Vinicius de Moraes, o poeta maior, jé havia deixado sua marca por la. Casquinha de siri, chope gelado e papo cabeca no menu principal. Em volta da mesa, criancas vagando em grupo ou dependuradas no colo das irmas mais velhas, vendedores de flores, ciganas, a eterna noite de Copacabana. 0 ano de 1979 nao foi daqueles glamourosos, a0 qual alguém dedicasse um livro. Mas foi o ano da revogacao do AI-5; da anistia; da extincao da Arena e do MDB; de uma série de shows no MAM; da estréia da peca Rasga coragdo, de Vianinha; do lancamento do livro do Gabeira; da gravagao de Calice e Apesar de vocé. Foi o ano das bombas; do novo sindicalismo. Foi, também, o ano em que eu entrei na UFF, para cursar Historia. Um ano para o resto de nossas vidas. Uma avaliacéo interessante desse momento foi feita por Caca Diegues na apresen- tacdo que faz de seu filme, na versao para videocassete. A idéia do filme surgiu quando o cineasta, numa tipica viagem de redescobrimento do Brasil, fazia um documentario sobre reli- giosidade indigena, no Amazonas. A permanéncia no interior do Brasil, no coracdo e no est- Bye Bye Bresi e as fronts do nacional-popular mago do Brasil, como ele mesmo denomina, serviu a Diegues de inspiracao para elaborar a historia que iria filmar logo depois. Nela o Brasil que se vé na TV da de cara com o Brasil mambembe, circense, latino-americano, mestigo e tenso. Essa tenséo é interpretada pelo Cineasta com base na teoria dos dois Brasis: [...] a idéia era exatamente fazer um filme sobre um pais que comecava a nascer no lugar de um pais que comegava a acabar, a troca de pais, quer dizer, e num momento em que esta troca néo havia sido feita, que ainda coexistia 0 arcaico com o moderno, em que ainda havia aquele Brasil antigo, existindo ao mesmo tempo que o Brasil moderno [...] de certo modo eu estou anun- ciando um Brasil novo, um Brasil diferente daquele que a gente conhecia, sobretudo um Brasil que fosse baseado, inspirado na mistura disso tudo, mis- tura das mais diferentes culturas, sejam aquelas da nossa origem enquanto nagdo, sejam aquelas que estéo nos influenciando hoje no dia-a-dia, e por- tanto eu acho que este filme foi feito com muito amor, um amor muito grande ndo s6 pelo pais onde se passa, mas também pelos personagens que atraves- sam este pais. [...] Neste sentido, eu acho que Bye Bye Brasil é antes de tudo um filme sobre a mudanga. Mais uma vez a busca de um Brasil essencial é atropelada pelo caminhao hibrido e antropofagico que se alimenta das novidades de outras paragens para deglutir sua propria cultura. 0 contetido da mudanca apontado por Dieques é 0 eixo condutor de sua narrativa cinematografi- ca, marcada pela capacidade dos personagens em serem os agentes deste processo. Todo 0 filme & acompanhado pela mudanca dos lugares, da atitude dos personagens, das condigbes de vida, das emogGes e relacdes. No filme de Diegues, nada seré como antes neste Brasil de amanha. ‘Um filme dedicado aos brasileiros do século XXI A Caravana Rolidei, trupe mambembe, dona de um caminhao com eletrola e alto- falante, faz do Nordeste seu publico-alvo. Em seus shows realizados nas cidadezinhas do sertdo, misturam ntimeros de magica, danca sensual e demonstracao de forca. Em uma dessas cidades — Piranhas, no serto alagoano — deparam-se com Cico, 0 sanfoneiro, e sua mulher, Rv i : , : A Wit vai a0 cinema Dasd6, em avancado estado de gravidez. Do encontro do grupo surge uma historia que, no cinema americano, poderia ser considerada um road movie (filme de estrada). Como foge a uma busca individual e introspectiva tao propria a esse género de filme, Bye Bye Brasil pode ser considerado uma comédia que trata de assuntos sérios, talvez um pretexto para, como diria a Gradina do Henfil, o "sul maravilha” redescobrir o Brasil. A historia € a seguinte: o grupo da Caravana Rolidei encontra 0 sanfoneiro e sua mulher, € todos juntos partem rumo a Altamira, na Transamazdnica, coracao do Brasil. Descrita pelo caminhoneiro incentivador da viagem como 0 paraiso na Terra, como a realizacao do mito do El Dorado, Altamira torna-se o objeto de desejo do grupo. Comeca ai uma aventura cheia de adver- sidades, caminhao atolado, animais mortos, indios ouvindo Chico Buarque, Dasd6 dando a luz nia boléia do caminhao, um malfadado destino. 0 sonho de nao trabalhar e parar de envelhecer € na verdade um engodo. Altamira é uma cidade de passagem, lugar para arregimentar mao-de- obra barata para projetos suspeitos, como o Projeto Jari, mencionado no filme. A expectativa de riqueza e abundancia é revertida em pesadelo total. Perdem tudo e partem rumo a Belém do Para. La chegando, o grupo se separa. Para Lorde e Salomé as alter- nativas sao a prostituicgo e os negécios escusos. Cico e Dasd6 vao para Brasilia, em busca de trabalho decente. Alguns anos depois a sorte volta a sorrir para 0 grupo, o reencontro se da quando a Caravana Holiday, com 0 nome redigido em nova grafia, recomega a sua viagem Brasil adentro, rumo a Rondénia. Antes desta nova viagem, Lorde e Salomé convidam Cigo e a mulher para se juntarem novamente ao grupo. 0 sanfoneiro, j4 entao estabelecido, com uma casa de espetaculos para forr6, rejeita o convite, desejando-Lhes boa sorte. 0 filme termina com Lorde fazendo um novo amanha com suas palavras magicas, algo em torno de: "Ora arri- ba me voi", falado bem depressa. Uma historia simples, que a principio parece linear, aos poucos transforma-se num mosaico de tipos e idéias, depois de um olhar cuidadoso na dinamica dos personagens, lugares e situagées. A narrativa esta estruturada em toro de oposicdes: umas so fundado- ras da ideologia do nacional-popular e da construcao da nacionalidade; outras jé anunciam a reconfiguracao do espaco cultural e 0 processo de internacionalizacéo da cultura. Como o objetivo aqui nao € analisar o filme como linguagem ou obra estética, mas pensar a partir dele a realidade que ele encena, optei por trabalhar com trés niveis que integram a narrati- va do filme, a saber: a dinamica dos personagens, dos lugares e das situacdes. Bye Bye Brasil eas fonteiras do neconel-pepuiat A dinamica dos personagens Lorde Cigano é o lider da caravana que anda nas estradas em busca de "um lugar onde este negécio brochante de televiso nao tenha chegado’. Salomé € a dancarina de rumta © prostituta nas horas de necessidade. Faz par com 0 Lorde e & objeto do desejo de Cico. Cigo 600 sertanejo sanfoneiro que quer conhecer o mar e Dasdé é sua mulher. Com 18 anos, grivi- da, e depois mae, é o contraponto de Salomé. Calada, consente que o marido se deite com Salomé, mas na oportunidade certa, se entrega aos carinhos de Lorde. Na dinamica dos personagens, Lorde se opde a Cigo. Enquanto o primeiro recebe atributos de amoral, trambiqueiro, alegre, sacana, aproveitador, civilizado, internacionaliza- do e moderno, o segundo é justamente o oposto: moralista, certinho, sério, acabrunhado, ingénuo, incivilizado, preso as raizes nacionais e arcaico. Lorde € o bandeirante cesbravador tenquanto Cigo € 0 sertanejo atavico. Ao longo da histéria Cico vai se tornando cada vez mais parecido com Lorde, até que na seqiiéncia final ele aparece maquiado tocando sanfona, lideran- do um conjunto de forrd, juntamente com a mulher ea filha. € a transmutacao do velho no novo, do arcaico no modemo, é a atitude antropofagica da cultura brasileira, pois em vez de assumir caracteristicas de uma nova identidade, atualiza suas proprias caracteristicas trens- formando-se numa nova imagem. Salomé é o reverso de Das, muito mais na aparéncia do que na esséncia, posto que é a maternidade que vai estabelecer a oposicao entre as duas. Mas é Salomé quem traz a filha de Dasdé a0 mundo, quem a recebe quando ela entra meio sem jeito no meretricio e quem devolve Ciga a pee eee, Dasdé na rodovidria para que os dois sigam para Brasilia. Aos poucos uma teia de cumplicidade se estabelece entre as duas, por meio de olhares gests, 30s poucos também Salomé torna-se mae de Dasdo. Na seqiiéncia final, em que os personagens se transformam, Dasd6 é ela mesma, so que mais arru- mada, nao se tornou uma Salomé, criou sua propria r alteridade. c A dinamica dos personagens deixa evidente 4" Sa: Uttar meee am mote da mudanca, apontado como o principal tema do filme pelo seu diretor. Mast Smt, A Wistécia vai ae 20 mesmo tempo permite que esta mudanca seja qualficada a luz da problematica da hibridiza- sto cultural na América Latina, resultante do processo de massificaco engendrado pela expan- so da midia.’ Nao € a toa que 2 televisdo, antes execrada pela caravana, é tempos depois assimilada e passa a compor tanto a mise-en-scéne da casa de espetculos de Cio — um palco odeado de aparethos de TV — quanto 0 novo caminhéo da caravana, que possui dois aparelhos encrustados, como diamantes, na carroceria. A dindmica dos lugares 0 filme mostra pequenas cidades do sertio, paisagem agreste, chao de terra batida, casas baixas, um povo pobre, de rosto marcado € temente a Deus. Um povo que faz procis- ses, que acredita em politicos e que esta sempre a espera da chuva chegar. E 0 cenario tam- bem das feiras de artesanato e comidas tipicas, e das caravanas itinerantes, comerciando ale- gria e outros produtos. Surgem na tela sempre embaladas por misicas regionais. Mostram tam- bem as cidades do litoral, agitadas, urbanizadas e cheias de gente e de carros. Marcadas por todos os tipos de poluicao, longe de serem o lugar ideal para se viver, so espaco do dinheiro facil e da oportunidade imperdivel. Alucinadas pela televisdo, sdo o espaco da degeneracao dos costumes nacionais. Aparecem sempre acompanhadas por uma trilha sonora de sucessos estrangeiros ou misicas pasteurizadas. Por fim, a estrada 6 0 elo de ligagao, espaco de destrui¢ao, desolacao e morte. Purgatério entre o inferno da seca e o paraiso tropical. £ 0 espaco da mudanca e da transitoriedade, surge na tela acompanhada da misica-tema do filme, tocada em ritmo alegre. A estrada é o caminho para a realizacao do desejo. Os espacos se opdem em termos de arcaico e moderno, traduzindo a modernidade tanto como a destruicao dos valores nacionais quanto o prendncio da mudanca. Estamos fada- dos a ser modernos, a todo custo. 0 litoral e o sertao sao oposicdes que se atualizam a cada Nova tentativa de se pensar o Brasil como uma unidade, como nacdo. No século XIX estao presentes na natrativa euclidiana, atualizam-se em Silvio Romero e, posteriormente, no pen- samento isebiano. 0 ponto novo, neste cuadro, é a estrada, que, de acordo com a légica da ditadura militar, seria 0 elemento de integraco nacional. A Transamaz6nica surge para levar civilizagao ao interior. No entanto, na leitura do filme, a estrada é como as pontes dos Prefeitos das cidades pequenas, leva 0 nada a lugar nenhum, com o agravante que no meio do seu caminho deixa um rastro de morte e destruicio das culturas marcantes de nossa . lB Bye Bye Brasil ¢ as fromeiras do nacional-popular nacionalidade, como a indigena. Nao é a estrada a responsavel por civilizar o sertao, e sim a televisdo, que transforma 0 povo em espectador da sua propria tragédia. A dinamica das sitvagoes ‘Algumas seqiiéncias do filme so chaves para se entender a dindmica de transformacao cultural pela qual o Brasil passa neste momento, de acordo com a interpretacao de Diegues. A primeira 6 a seqiiéncia trés, que se inicia com 0 panorama noturno da praca e as luzes e movimento, misica. Comega 0 espetéculo com Andorinha comendo e soprando fogo. Na platéia, o sanfoneiro e sua mulher, criancas, 0 prefeito comendo, com pose de paxa. 0 prefeito pede siléncio e Lorde Cigano entra, ao fundo 0 tema do filme tocado por um sax. Lorde anuncia seus poderes sobrenaturais e a capacidade de tudo conseguir. Indaga a platéia seus desejos: 0 prefeito pede fartura, prosperidade e progresso; seu assistente, agarrado a uns papéis, pede para ser eterno. Lorde responde que nem o melhor dos magicos pode conseguir isso, mas anuncia que, como senhor do tempo, podera fazer nevar no sertdo. "Esta nevando no sertao, esta nevando na minha administragao", grita 0 prefeito. Ao fundo toca uma misica romantica dos anos 60, em inglés, e Lorde continua valorizando seu feito: "Est4 nevando como na Franca, como na velha Inglaterra, ai que saudade, como na Europa em geral, como nos EUA, como em todo pais civi- lizado do mundo, o Brasil também tem neve." A platéia entra em delirio. Dasdé compara a neve a coco ralado. Lorde olha para cima e manda parar de nevar: "Agora chega, ta bom." Em seguida anuncia Salomé, que entra a0 som de uma rumba, sob luzes vermelhas: biquini cavado, estola de arminho e coroa brilhante. Lorde descreve seus dotes de mulher fogosa, Salomé danca e diz: "El amor, el amor como solamente se faz en el Caribe." Salomé, sedutoramente, se insinua para a platéia, A segunda é a seqiiéncia nove. Dia de fun¢ao noturna. Salomé dan¢a ao som da sanfona € do triangulo de Cico e Dasdé, sem eletrola. A platéia est vazia. Andorinha faz seu niimero de facas. Depois, do lado de fora da tenda iluminada, Lorde comenta que @ casa estava fraca, Salomé conjectura se nao foi dia de procisséo, final de futebol, ou outra coisa. Lorde levanta a hipétese de que o "prefeitinho de merda tenha inaugurado..." Neste momento hé um corte na imagem da igreja iluminada e ouve-se ao fundo a misica da novela "Dancing Days", da Rede Globo. Lorde e Salomé andam pela cidade atras da misica e se deparam com uma platéia de olhos vidrados na televisio pablica. Lorde reclama e aplica "o de sempre": explode a televisdo. Bs [Wists vai ao cinema Nesta segiiéncia, a TV é a modernidade, responsavel pela alienacdo do povo, pela perda da identidade nacional, e sua explosdo é a traducao do desejo apocaliptico de literal- mente destruf-la antes que ela nos destrua. 0 interessante é que os protagonistas da cena — Salomé (Bety Faria) e Lorde Cigano (José Wilker) — sao dois reconhecidos artistas de TV, criando uma outta oposicao entre 0 dito e 0 nao dito. Ao mesmo tempo coloca-se uma outra questao: no filme, seja como espectador da TV ou da caravana, 0 povo aparece como mero receptor que assiste a tudo que the é imposto. Onde esta a diferenca? Somente na seqiiéncia treze 0 povo sai de seu estado de letargia para interagir com os personagens princi- ais. Na cidadezinha castigada pela seca, a caravana apre- senta seu espetaculo em troca de comida e objetos. Um dos nGmeros é o de adivinhacao, encenado por Lorde. Luzes apa- gadas, Lorde ilumina sua cara com duas lanternas e diz ser discipulo de Nostradamus e S30 Malaquias e pergunta se alguém quer saber alguma coisa. Como ninguém se manifesta, resolve ler pensamentos por telepatia. A camera em travelling passeia pelos rostos tristes da platéia, Lorde ilumina cada um e comeca a falar como se estivesse falando ao telefone com alguém. Camera na sua cara, como se estivesse recebendo um pedido de informacao sobre alquém que ja havia morrido, Lorde fala e entreabre os olhos para ver se alguém se comove. Passa a lanterna pela platéia e vé uma senhora coberta de lagrimas que, ao ser descoberta, chora copiosamente. Satisfeito com o resultado, Lorde se empolga, a platéia pergunta quando vai chover. "Seré que Deus t4 distraido?”, pergunta um. Logo em seguida, uma senhora, com um véu na cabega, comeca a cantar, £ noite de So Joao. Uma outra aproxima-se e pergunta sobre a familia que partiu. Lorde, atdnito com o resulta- do inusitado de seu ndmero, responde com um "eu sei la", depois retoma a postura de Lorde @ chuta alguma coisa. A senhora o chama de "meu santo”. Ao responder sobre o lugar onde a familia da senhora esta, Lorde vai aos poucos mudando o tom da voz, de encenacio. Passa 2 um discurso interior em que ele vai descrevendo, para si mesmo, sua imagem de Altamira, paraiso na Terra. Fartura, juventude e forga sao as idéias que associa a Altamira. Termina a cena com um grande sorriso de esperanca, repetindo "Altamira". 2 a ‘Bye Bye Brasil e 2s fronteiras de naconal- popu 0 delirio de Lorde cria uma identidade entre o povo e 0 personagem. Os dois lados bus- cam na elaboragio de sua identidade algo que ficou perdido 10 passado. 0 Brasil de antanho, de natureza idilica, fartura e abundancia. O delirio passadista atualiza imagens da religiosi- dade popular, que, se em Lorde transmuta-se en movimerto e busca por mudanca, nos espec- tadores @ mais um alento, uma confirmacao de que Deus nao os abandonou. Mais uma vez reiteram-se as oposicoes entre 0 arcaico e o miodemo e entre o personagem agente de trans- formagées e 0 povo, que reza pela chuva enquanto assiste pacientemente a mais um espetaculo de pura ilusao. Sobre finais felzes Quando foi lancado, Bye Bye Brasil causou controvérsia. Para uns, configurava-se como uma verdadeira declaracao de amor zo Brasil e todas as suas contradicées.” Brindave-se, nesta tendéncia, a realizacdo de um filme esteticamente bom, com tematica interessante, intetigente que, acima de tudo, havia conseguido trazer o pablico para ver um filme nacional que nao fosse pomochanchada. A vertente oposta condenava o diretor por ter cedido ao cinema comercial e Assuumido a estética hollywoodiana. Em suma, o debate mais uma vez voltava-se para a polémi- ca entre cinema entretenimento e cinema conscientizador. A resposta do diretor foi categérica: Nao adianta se querer separar as coisas [...] Estou tentando me dirigir 4 totalidade: & consciéncia, ao prazer, & vontade e ao desejo. Se isso for uma forma de entretenimento, entéo viva o entretenimento. * Toda essa polémica foi gerade, entre outros motivos, pelo final feliz do filme. Todos acabam satisfeitos e de bem com a vida, abrindo um novo amanha. Depois de digerirem as espinhas de peixe” (antenas de TV) cue se espalhavam pelo Brasil (hoje em dia seriam as parabéticas), redefinindo as fronteiras do nacional, os membros da trupe se transformam, assumindo um perfil de internacional-popular.’ Apesar de todos estarem satisfeitos, muito mais do que um final feliz, 0 encerramento do filme nos faz pensar até que ponto 0 ideal da antropofagia modernista conseguiu alimentar nossa cultura. Vendo a Salomé loire com cabe- los entremeados de néon e o Sinatra cantando Aquarela do Brasil, € como se o hoje prefi- gurasse naquela cena do passado. Lar Os indicios da modernidade brasileira indicam, como reflete Renato Ortiz, o que real- mente somos, natureza contra a qual ndo hé por que se voltar, Para que um outro futuro? Vivemos sob o dominio da maxima "se estd ruim com ele, pior sem ele’. A modernidade brasileira, ao contrario daquela proposta por Octavio Paz’, é, neste sentido, acritica. Ou ainda, como quer Jesiis Martin-Barbero, surrealista, pois nao s6 converte a riqueza da terra em pobreza do homem como transforma as caréncias e as aspiracdes mais basicas do homem em desejo de consumo. Me. oo Susssuna, Ariaro. "0 cinema, o Brasil eu. SP, Bravo, ano 2, n° 18, pp. 18-16, 3", marco 1999, ‘xiste uma bibliografiarelevante para ce tratar este agsunto dente as qual desta cco Nestor Garcia Candlni e Renato O:tz Bstado de Minas, BE, 26/1/1980 Tribuna da Imprense, 9, 27/1/1980 ato Crtis cra imo x pitalo do line ‘SP, Brasiense 10 modemo, de acordo e que se torna uma espécie de senso comum, ali- mentando a intoleréncia € o etnocentrismo. 0 estereitipo torna-se uma caracteristica da "regionalidade" e, desta forma, ganha uma forca de redidade. Faz parte, agora, de uma “natureza" que marca todos aqueles que nascem naquele territério, pasteurizando as diferencas sociais e tornando homogéneas as particularidades culturais. € como se fosse uma segunda pele, uma lente cultural permanente e indelével, um estigma que acompanha todos os "nordestinos" onde quer que estejam. Os rostos de Severino, o operario assassino, e Deraldo, o poeta, sao iguais, "tém a mesma cara, cabeca chata, fala arrastada, olhos acuados", como assinala o jornatista Orlando Fassoni. Q filme os identifica pelas caracteristicas mais superficiais, assim como senso comum, banalizando as diferencas: "paraiba", "baiano". Uma identidade cultural é estabele- cida definitivamente com base nos mesmos estereétipos, demarcando o que "é muito comum no norcestino, sempre fatalista e quieto, que passa a renegar desde a peixeira até o cangaco ea cachaca" —e 0 proprio diretor, aqui, cai na armadilha da identidade regional... Um Noréeste assim construido nao possui origem nem historia. Perde-se no tempo, como se sempre touvesse existido, associado a natureza agreste e hostil do sertéo e ao atra- so econdmico e politico. Uma referéncia mitolégica que, todavia, nao perde sua forca sim- bolica; pelo contiério, é através dessa operagio imagindria que o preconceito ganha ares de verdade, de repreducao fiel da reatidade. Neste aspecto, o filme aponta para um tema de grande complexidade, levando o espectedor a indigar sobre a multiplicidade étnica e cultural brasileira. Na narrativa, a nocao de "Nordeste" s6tem sentido como preconceito, e ndo como uma defesa da verdadeira iden- tidade regional. Deraldo, em momento algum, manifesta-se contra o preconceito afirmando uma realidade contraria a ele, fugindo, assim, de suas armadilhas simbélicas. Desta forma, 0 5 A Wists ai a0 cinema preconceito aparece como preconceito e nao como caricature da realidade. A desconstrugao de ‘sua operacdo discriminatéria, que tem origem nas proprias contradicées do social, revela a ambigiiidade das relacées sociais beseadas na exploncéo e na negacao dos miltiplos valores culturais. 0 proprio diretor afirma que sua historia é ée um "paraibano cuja poesia e rebeldia revelam 0 que é a vida do trabalhador brasileiro, a que massacres esta sujeito em todos os setores em que trabalha, forcado pela situacao inesperada em que se vé em Sao Paulo".’ Sua preocupa¢ao, portanto, nao é reafirmar identidades regionais, mas denunciar a situacao da classe trabalhadora no Brasil, cuja caracteristica mais visivel € a heterogeneidade cultural. Essa perspectiva evita a possibilidade de banalizar 2 questo através de um maniqueismo sim- plificador: 0 "nordestino preguicoso" versus 0 "noréestino trabalhador". Se assim fosse, 0 filme nao sairia das malhas do tegionalismo conservador, que define a regido pelos seus aspectos mais superficiais com o objetivo de gerar solidariedades que apagam as divisoes sociais, os interesses antagonicos e a diversidade cultural. A idéia de "Nordeste” tem uma histéria, que remonta aos embates culturais da década de 1920 — através, principalmente, da obra genial de Gilberto Freyre — e, se o filme nao desenvolve essa trama, pelo menos nao reproduz desavisadamente a versao corrente de um 'Nordeste sofrido e pobre, onde a seca ‘0 atraso econémico predominam" etc. etc.’ No entanto, quando se rebela contra as arbitrariedades do mestre-de-obras, Deraldo canta Mulher rendeira enquanto opera o elevador de madeira, fazendo seu desafeto subir e descer rapida e descontroladamente. £ um retomo 2 uma cancao de guerra, de luta, que a tradigéo popular podia the oferecer. Uma amadilha contra a violéncia do preconceito. 0 enredo, aqui, entre num impasse. Como resolver as angistias de Deraldo? Qual a saida para desenrolar 2 trama da cultura ameacada sem cair na mera defesa tradicional da regio? Como evitar 2 completa degradacao cultural do poeta? A resposta esta... na Historia, Ao refazer © tragico percurso de Severino, 0 operario que assassinou 0 patrao, Deraldo retoma sua propria condi¢ao de homem da culture, comprometido com as camadas populares, com os oprimidos e desafortunados. 0 poeta percebe que 2 sombra de seu sosia permanecera pairando sobre sua vida, ameagando-o com a confusio de identidades e impedindo-o de seguir seu caminho de poeta popular 0 conhecimento do passado o levara a Amadihas nordestinas -O homem que virou suco conhecer-se melhor e possibilitara uma aio mais efetiva na defesa de sua cultura. Além disso, a historia renderé um novo folheto ce poesie popular com um lugar certo na prateleira do comerciante de revistas populares. 0 conkecimento histérico, aqui, se reveste de uma utilidade pratica poucas vezes assinalada pela propria historiografia, embora nao exatamente no modelo instrumental de uma Histéria que serve a interesses politicos imediatos. A formacio de uma visao "cidada® do mundo e da sociedade garante a discipina uma fungo social e um inegavel compromis- so politico. A reconstrucdo da historia de Severino é feita aos poucos, pacientemente, reunindo depoimentos e juntando informacdes desconexas. Apés achar o fio narrativo que levou o operdrio 20 assassinato e a loucura, Deraldn surpreende-se com 0 que acha. Severino chegou 0 prémio de “operario-simbolo” apés denunciar os lideres grevistas de sua Fabrica. Contudo, sua atitude o levou a um isclamento contnuo que acabou por levé-lo ao estresse, @ queda de rendimento , finalmente, ao desemprego. Na ceriménia de entrega do prémio, o operério ja estave desesperado, sem emprego e sem amigos. De fato, o poeta percebe que Severino é o verdadeiro "Antonio Virgulino", e nao ele préprio. Derrotado pela maquina capitalists, espremido até virar suco, 0 operario — bom pai, marido amoroso — foge para dentro de simesmo, recluso em suas ilusdes de valentia, ate- cando, com a peixeira, as estacas de madera do cercado em que passa a viver, recluso, fugi- tivo e solitario. 0 filme, 20 final, redime a todos. Deraldo recupera a compaixao pelos outros que, como ele, softem num mundo injusto e deigual; retoma sua vida de poeta popular e, ainda mais, conquista Maria, a vizinha, que havi se prostituido ap6s ser abandonada pelo marido trabalhador — este também um derrotado que voltou para Natal. Severino tem sua historia narrada sem pretensdes moralistas: nem herdi nem vilao, nem justiceiro — 0 patrdo, ainda por cima, € norte-americano — nem dedoduro, apenas mais um operario brasileiro destrui- do pela engrenagem do capital. Todavia, a redenco maior é da prosria classe trabalhadora, que descobre, nas historias de Deraldo, a forca da uniao e a consciénci da exploracao. As panorémicas tomadas finais da cidade de S30 Paulo ao som de versos que feam da forca da classe trabalhadora sugerem, talvez, uma ampliago dos espacos operdrios, tomando de assalto as cidadelas do capital. ~~ 0 futuro € promissor... pelo menos nos versos de Vital Farias. Quem trata o povo com desdén Se atrasou neste mundo e ndo entende Que é no grito, na forza e na mente E na unido que é uma semente A forca que 0 povo tem. ‘0 flme recebeu a medalha de ouro no Festival Internacional de Moscou em 1981 € o prémio da critica no Festival de Nevers, na Franca. Citado por Fassoni, Orlando L."A Folha de S. Paulo. SP, 15.12.80, 1oda histéria de umn hamem que viroe suco. (0s jovens, dancanéo na beira da piscina, bebendo e fumando maconha, parecem nie perceber 2: rexdes da revelta da dona da casa quando 0 poeta se incorpora a darga (censualnente, a moda sertancja), nem muito meros entendem a violenta [i reazdo do proprio Deraldo, que joga o presen:e do coronel na agua e rouba o bife do cachono: *cachoro viado" Holand2, Firmino, “O homem que virou suco." Nogdo Cari. Fortaleza: Ano I, n' 8, maio/junho de 1983, p. 6. Martins, Paulo H. "0 regional e o nacional no imazinésio desenvolvimentista brasileiro: da nostalgia oligirquice ao fim do nordeste."In Ximenes, Tereza (or3.) Tove Peradigmas e Realidade Breilzia. Belém: UFPA/YAEA. 1993. p. 13, Fassoni, Orlando L. “A incémoéa histéria de um homem que vou suco.” olka de S. Pio, SP, 15.12. 80. 0 ator, ese Dumont, ¢ muito requsitaco para este tipo papéis, em que seu tipo fisico se estocia as imagens comans do “nordestine’, mar ando-o como “o aor do drama Ga migiacio". Cf. Reportagemr de Ligia Sanches Paulo, SP, 15 de dezembro de 1930. Esta ientificaréo fez com que a interpre tazdo de Dumont — que ganhou o prémio de melhor ater no Festival este papel — fosse marcada especialmente pela improvisigac. Ct. Veja, (cata de Jodo Batista de Andrade & redacio do jornal 6 Liberl, 6.3.83, ‘Ct, por exempla: Silveira, Resa M* Godoy. 0 Regionaliorc Mordestino. Bxstincia @ conscéncic de cesigualdade regional. SP, Mocerxa, 1982: Albuquerque JR, Duval M. 0 Engenho Antinoderro. A Invengio do Wordeste e Outias Artes. Tese de Doutorado em HistSria apresentada 4 Unicamp. Campinas: 1994; Neves, Frederico de Castro. Fnagens do Novdeste, A constragao da meméria regional. Fortaleza: Secult-CE, 1996, OM haan lena eal Maria Ligia Coelho Prado afin. 0s amintos da berdade: tempo e Historie Gaijin conta a historia de uma familia que fazia parte do pimeiro grupo de imigrantes japoneses que desembarcou no Brasil, em 1908.’ 0 pibblico prestigiou o filme e a critica, quase unanimemente, o aplaudiu, sempre ressaltando 0 fato de sua diretora, Tizuka Yamasaki, ser estreante em filmes de longa metragem.’ As criticas insistiam que o filme, narrado de forma simples e direta, acertava ao contar a histéria com emiocao e conseguia atingir 0 obje- tivo de fazer bom cinema.’ Tenho lembrancas muito nitidas da minha reacdo ao assstir a Gaijin pela primeira vez, em 1980. Recordo-me da surpresa positiva de ver, naqueles anos da ditadura, um filme que corria o risco de dar ao roteiro uma conotacio politica ao abordar criticamente 2 explo- racao dos trabalhadores rurais. Rever Gaijin, praticamente 20 anos depois de sua realizado, me fez pensar sobre tempo e historia ou a inexorabilidade da mudanga do olhar diante da passagem do tempo. Espero, por me "colocar a escuta de nosso tempo de incertezas, ape- gando-me a tudo 0 que ultrapassa o tempo da narracao ordenada’, néo ser acusada de anacro- nismo, "o pesadelo do historiador, pecado capital contra 9 método histérico’." Como bem se sabe, para o historiador, ao refletir sobre uma obra cinematografica, tempo e espaco sao os alicerces para o inicio de qualquer andlse. Nao se pode esquecer, ainda, que diretor ou roteirista, ao escolher um argumento, «sta realizando um ato de selecdo, com motivacdes mais ou menos corscientes, mas que esto indelével e intrinseca- mente marcadas pelas circunstancias geogréficas e cronolégicas? Além disso, como afirma Marc Ferro, o filme deve ser entendido como um produto, uma imagem-objeto, cujos signifi- cados nao sao apenas cinematograficos. Cumpre tecer as relacdes entre o filme e 0 piblico, A Hstria vai ao cinema a critica, o regime politico. A andlise nao se limita ao filme, integrando-se a sociedade que 0 envolve e com a qual se comunica necessariamente.’ Assim, o historiador, ao analisar um filme, nao precisa obrigatoriamente fazer uma abordagem semiolégica ou estética ou, ainda, enquadra-lo dentro da historia do cinema Como ja afirmei, quando o filme estreou em 1980, estévamos em plena ditadura, ape- nas entrando no periodo da abertura. 0 ditador era o general Joao Figueiredo, aquele que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo. Tomara posse em marco de 1979. A lei de anistia fora aprovada em agosto de 1979, depois de uma longa luta de entidades democraticas, luta esta que remontava a 1975, quando surgiu o Movimento Feminino pela Anistia. Como a anis- tia era para todos, garantia que os militares nao teriam que responder por seus crimes con- tra os direitos humanos. 0 movimento operario vivia tempos herdicos. Luis Inacio Lula da Silva, a frente do Sindicato dos Metalirgicos de Séo Bernardo e Diadema, despontava como lider dos traba- thadores. A crise econdmica aliada ao arrocho salarial contribuia para que @ oposi¢ao ao regime aumentasse. "“Exportar € 0 que importa", proclamava Delfim Neto, ministro da Fazenda. As comemoracées do 1° de maio de 1979 foram particularmente importantes. Foi rezada uma missa em Sao Bernardo, com a presenca de trinta mil pessoas que depois se deslo- caram para o Estadio ce Vila Euclides, onde cem mil participantes se reuniram num ato de desafio ao gaverno. Foi um grande protesto da oposi¢o contra o governo. No final de outu- bro, outra greve de metelirgicos em Sao Paulo termi nou com a morte de um operario, Santo Dias, ligado Igreja Catolica, assassinado durante um piquete na porta de uma fabrica.” Em novembro de 1979 terminava o regime de bipartidarismo politico, era o fim da Arena (da situa¢ao) e do MDB (de oposi¢io). A Arena passava a se denominar PDS e o MDB se transformava em PMDB. Surgiam outros partidos de oposicao, o PDT de Leonel Brizola e 0 PT, que se organizara no ano anterior, a partir de sindicalistas, militantes da Igreja, intelectuais ¢ setores das classes mécias. ‘aifn. Os caminhos ¢a liberdade: tempo e Historie. Por volta de 1980, apesar da consolidagdo da politica de abertura, as tensdes entre o estado autoritario e a sociedade civil chegavam a um nivel critico. Nesse sentido a greve dos metaliirgicos deflagrada no final de marco de 1980 representou um dos momentos de maior conflito entre ambos, uma vez que a sociedade civil apoiava macigamente as reivindicagées dos operdrios. 41 dias de greve, 130.000 trabalhadores parados, 7% de ganhos por produtividade e estabilidade por 12 meses no emprego eram as reivindicagées basicas, ambas recusadas pelos patrées. Em 19 de abril, Lula e mais 19 pessoas (incluindo 15 lideres sindicais) foram presos sem mandado judicial. * A linha dura dos militares nao aceitava a abertura. Bombas explodiam em jornais de oposi¢ao e na Camara Municipal do Rio de Janeiro. Esses atos terroristas culminaram com a tentativa frustrada de explodir o Riacentro, em 30 de abril de 1981, onde se apresentavam varios intérpretes de masica popular, entre eles Chico Buarque, um dos baluartes da resistén- cia a ditadura militar.* Nesse contexto, Gaijin era um filme didatico, um filme de combate. A narrativa direta e segura pretendia provar uma tese, a necessidade da liberdade diante da opressao. Contava a saga de Titoe, personagem central do filme, inspirada na av6 da diretora, e de sua familia, desde a partida do Japio até a chegada a uma fazenda de café no interior de Séo Paulo em 1908. De forma delicada, 0 espectador ia entrando no mundo dos imigrantes japoneses, o trabalho inten- so, 05 costumes, as dificuldades com a lingua, a comida, a nova terra. A terra do café. Mas 0 que era café? Em dtima cena, José Dumont, que representa um trabalhador nordestino da fazen- da, explicava aos recém-chegados como se devia fazer para apanhar o café. Ele puxava o café do galho e dizia que nao se podia bater na planta porque sendo ela moreeria. Sua demonstracao falada na lingua natal era incompreensivel aos japoneses, que o olhavam estupefatos, sem ter a minima idéia do que aquele homem estava dizendo. Ele entao pegava uma espécie de vas- soura e batia com ela no pé de café, repetindo que nao se podia bater na arvore ou ela morre- ria, e estatelava-se no chao para ilustrar a morte. Em outra cena, Antnio Fagundes, que faz 0 contador da fazenda, levava umas costelas defumadas para a alimentacao dos imigrantes, info mando que aquilo era muito bom. Os japoneses zbominaram aquela "coisa" gordurosa e ins tiam que queria arroz. 0 roteiro conseguia, assim, de maneira feliz, indicar como foi dificil a adaptacao. Tudo era novo, o clima, a fazende de café, 2 comica. Interessante lembrar que no se discutiram questdes ligadas a religido, sem diivida outro ponto de confiito. A Hiria vai 20 cinema Gaijin poderia ter sido um filme circunscrito a narrativa do choque de culturas difer- entes ou 2 dramatizacao de uma historia de amor frustrada. Entretanto, o roteiro pretendeu dar outra complexidade a trama. Os ares do tempo presente penetraram a composicao da nar- tativa. E significativo que o filme abra e feche com cenas atuais da cidade de Sao Paulo, enquanto se ouve a voz da narradora, Titoe. Ao final do filme, novamente com cenas da cidade de Sao Paulo de 1980, ela diz: "0 passado faz parte das minhas recordacées." Esta forma de apresentar a narrativa parece ser um convite para pensar temporalidades distintas, estabelecendo uma ponte entre passado e presente, que permite possiveis associagies por parte do espectado:. 0 tema da longinqua imigracao se transforma em canal para refiexao, no presente, dos conflitos, do abuso do poder politico e da exploracao do trabalhador. As greves sindicais a repressée por parte do regime militar dos anos 70 instigaram os autores a trans- Por, para cutro tempo e espaco, lutas sociais que guardavam o mesmo significado.” Ahiist6ria acompanha a libertacao da jovem protagonista, que descobria, num deter- minado momento, a possibilidade de quebrar o dominio do patrao, escapando das garras do sistema opressor. Tendo suportaco toda sorte de infortinios, decidiu ultrapassar a submissai fugindo da fezenda. 0 refiigio era a cidade, apresentada no filme como o lugar onde se fazia Possivel alcancar uma vida mais digna. A fabrica, ainda que nao fosse o paraiso, era melhor que a servidio no campo. A idéia de que uma dificil escolha politica tinha que ser feita é 0 fio condutor da historia. Era preciso estar do lado da justica e da liberdade, contra a opressio e a tirania. 0 personagem do contador da fazenda exemplifica didaticamente o caminho que devia ser sequido. Nascido e criaco na fazenda, tendo os estudos pagos pelo patrao, ele estava encar- regado de fazer as contas dos trabalhadores. Tinha que se submeter aos ditames do fazendeiro, roubando os trabalhadores na hora de fazer suas contas. Estava dividido entre sua conscién- cia, que pendia para o lado dos explorados, e 0 mado de se arriscar a enfrentar os poderosos. Quando os japoneses decidiram fugir da fazenda, ele fez sua opcao e os ajudou, pondo fogo no cafezal. No final, anos mais tarde, o filme o focalizava na cidade, discursando em praca Piblica, denunciando os horrores pelos quais passavam os trabalhadores urbanos e os imi- grantes que chegaram para trabalhar nas fazendas. O ciclo se completava. Daquele que presen- ciara a injustica, que ficara dividido, que ndo conseguira conciliar inteiramente com os Poderosos, nascera 0 rebelde que assumia o papel de lider contestador. Gaijin, Ds caminhos da libertad: tempo e Historia ‘Sao ainda os olhos cravados no presente da ditadure que compéen a cena da violencia policial a mando dos poderosos, cuja vitima era o trabalhador italiano "subversivo" que prega, na fazenda, um anarquismo moderado, dando aulas 2os seus companheiros sobre a questao da propriedade. Dizia ele que o fruto da riqueza da terra devia pertencer a quem nela trabalhava." Portanto, assistir a Gaijin em 1980 tinha, pare os que combatiam 2 ditadura, um sen- tido bastante particular. Nosso desejo politico de liberdade estava representado pelos per- sonagens do filme, estabelecendo-se uma imediata identificacdo entre "n6s", espectadores, “eles”. A critica a0 poder era percebida como parte da "nossa luta", incorporando o filme ao debate da oposicao 20 regime. Ali estava a classe trabalhadora, como sujeito da historia, desempenhando o papel que dela se esperava, a de vanguarda rebelde que deveria transfor- mar a sociedade, rompendo com o sistema estabelecido. Entretanto, alm dessa estreita liga¢ao entre o filme e a conjuntura politica daquele periodo, é preciso lembrar a incorporacao ao roteiro de certas interpretagbes da historiografia sobre os temas em pauta. Conforme as proprias deciaracées de Jorge Duran, foi realizada "muita pesquisa histrica"."* € possfvel notar como certas discusses préprias da bibliocrafia forneceram elementos importantes para compor a narrativa, conferindo um sentido historico 8 saga da imigracao. Nessa perspectiva pode-se compreender, por exemplo, a maneira pela qual © capital inglés e o poder dos ingleses no Brasil do comeco do século so apresentades no filme. Apareciam os britanicos como mentores, como agentes determinantes de certas polifti- cas, como a inevitabilidade da modernizacao da producéo cafeeira ou a necessidade da repressao aos trabalhadores "subversivos". Nessa mesma linha, acompanhando a bibliografia, mostra 0 italiano como o lider contestador da ordem, pregando idéias anarquistas. A dicoto- mia campo/cidade, ainda t4o presente nas construcdes historiograficas, também é nitida. No campo, a opressao era tal que nao restava altemativa além de escapar, enquanto que a cidade era um espaco mais democratico, onde havia condicées de alcancar uma nethor vida material, assim como de se organizar para contestar a ordem vigente. Quando o filme foi lancado, as imagens sobre os japoneses em Sao Paulo estavam cristalizadas, de forma homogeneizante, quase que chapada. Eran bons trabalhadores, pas- sivos e pacificos, sem muita cultura. As associagdes livres sobre suas profissdes levavam a certos estereétipos, quase que tipificados: o sitiante, o feirante, o tintureiro. 0 Japao surgia como pais "feudal", exético, atrasado. Os simbolos desse Japao tradicional se resumiam ao guerreiro samurai, as queixas, ao harakiri, aos camicases da Segunda Guerra Mundial. A Historia vai ao cinema Neste fim de século, as imagens sobre o Japao no Brasil foram bastante alteradas. 0 pais agora é mostrado como rico, poderoso, polo avancaco di tecnologia mundial, Lugar de muito tra- balho, onde o moderno e 0 tradicional convivem e se conpletam. Com relacdo aos imigrantes no Brasil, também ocorreram mudancas significativas. Isto se deu particularmente depois das cele- bragdes, em 1988, dos 80 anos da imigracéo japonese zo Brasil, que ganhou muito espaco na midia em geral e trabalhou com outros simbolos e imagers.” A nova visdo oficial mostra os Japoneses como vitoriosos — médicos, engenheitos, advogados, comerciantes —, reforcando a idéia do éxito da imigracao. Segundo Célia Sakurai, incrementou-se, nesse periodo, a publicacao — em geral apenas em japonés — de memérias e ronances escritos por imigrantes ou seus descendentes. Contavam das dificuldades e dos protlemas da chegada ao Brasil e de sua aceitagao pela socedade brasileira. "A leitura dos romances nos induz a analisar a presenca Japonesa no Brasil de modo linear, sem conflitos, a nao ser pelos conflitos pessoais, que so o cerne dos enredos. No mais nao se percebe nenhim ctoque, especialmente na interacdo entre ‘brasileiros’e ‘japoneses’ (com excecio do periodo da guerra, que foi uma situacao excepcional). Nos outros momentos, os ‘brasileiros’ parecem aceitar sem restricdes 0 japonés’ como colega de escola, como concorrente no mercado de trabalho, e até como cénjuge."* No entanto, para complicar essa disputa de inagens, contrapondo-se a visdo do imi- grante vitorioso, assistimos, nos iltimos 15 anos, 20 movinento intenso dos nisei e sansei — os descendentes de japoneses — voltando a terra de seus antepassados, em busca de trabalho temporario que [hes garanta melhores condicdes de vida e a realizacao de sonhos, como haviam feito seus familiares no passado. Isto significa constatir que parte dos descendentes — esses dekassegui — fracassou, e como brasileiros/japoneses pobres precisaram fazer 0 movimento inverso 20 de seus antepassados." Portanto, Gaijin coxflita inteiramente com essa: programades, nao se enquadrando dentro da versio oftial da imigracao que mostra sempre o sucesso dos japoneses, sua "vocacao" para o trabalho e seu devotamento a ordem constituida, nem contempla — é dbvio — essa nova e particular situarao de volta ao Japao. As observecées de Sakurai nos remetem a outa questao central no filme de Tizuka, o tema da identidade nacional, que tem assumido importancia, ultimamente, tanto em termos politico/culturais, quanto historiograficos. Gaijin constriia uma imagem de identidade nacional muito clara, tendo a fazenda como microcosmo que representa o Brasil. Ali se encontravam caipi- ras paulistas, nordestinos, negros, imigrantes italianos, portugueses e japoneses, todos irmana- —r Gaijin. Os caninhos da Uiberdaie: temyo e Histor, dos como trabalhadores brasileiros.* Para Tizuka, o Brasil é este compéndio de nacioralidades diversas que se dissolvem na brasileira. Nume cena quase 2o final, expressa-se uma sintese dessa visdo. A filha da personagem principal — que brinca com criangas brancas e negras — diz para a mae que s6 vai voltar ao Japdo se puder levar os amiguinhos. Negada a permissdo, entende que é melhor a me ir sozinha e que ela espereria por aqui sua volta. Anteriormerte, outra cena bastante simples mostrava o trabaltador nordestino ensinando portugués as crian;as japonesas, A Giltira palavra ensinada e bastante enfatizada é Brasil. A identidade nacional se traduz na idéia de um pais no qual todas as racase nacionalidades podem viver em harmonia, mistuando-se tumas as outras. As cenas finais que mostram as pessoas ceminhando no centro de Séo Paulo, entre elas muitos rostos japoneses e negros, apontam para essa diversidade. Todos juntos caminhando no presente, olhando para o futuro, carregando as memérias do passado. Rever Gaijin em 1999, sitiada em outra conjuntura politica, envolvide por debates historiograficos diferentes, tocada por tantos filmes que se seguiram a ele, me traz 3 mente registros também diversos.” Nao ta mais ditadura, nem militares no poder. Lula se transfor- mou numa figura fundamental no quadro da oposi¢ao politica ao governo. Depois de un longo periodo de inflagio, a moeda, o real, parecia oferecer as solugdes para os problemas brasileiros. Entretanto, a crise voltou e a sensa¢o dominante passoua ser de incertezi e inse- guranca. Os indices de desempreco nunca foram tao altos quanto neste momento. Na cidade de Sao Paulo estao baterdo na casa dos 20%. Com 0 desemprego, as possibilidades de greves vitoriosas ficam muito distantes e os trabalhadores temem fazer greves e perder o emprego. 0 desencanto e a desesperanca atingem os coracées. As certrais sindicais, muito éivididas, nao parecem guaréar aquelas caracterisicas herdicas. S6 se fala em sindicalismo de resultados. Os lideres sindicais ap6iam o governo, apenas a CUT permanace na oposicao. Vivemos o perfodo da globalizaczo. 0 FMI conduz nossos negécios econémicos, ditando as regras de seu fun- cionamento. A violéncia urbana toma conta dos noticidrios. 0 mercado e suas regias tudo determinam. As utopias se desvanecem. A possibilidade da revolucao socialista é vista como algo do tempo dos "dinossauros", produto da 'retaguarda’ politica, constantemente desquali- ficada nos discursos oficiais. Tudo deve ser moderno, técnico, sem ifeologismos. Para mim, em 1980, Gaijin era um épico que denunciava a exploragdo do tratalhador brasileiro, que o apontava como o verdadeiro gaijin do sistema socia, nacional. A resposta era do se conformar, lutar para abrir os caminhos da liberdace que estavam diante de nés. 0 filme nT _ A Histie vai ae cinema parece hoje simples demais, diteto demais, sem sutilezas politicas, com uma "mensagem" linear jingénua. Passa uma visdo um tanto adocicada das relacies raciais, a auséncia de preconceitos, a falacia da harmonia entre todos os trabalhadores. Os conflitos ficam restritos ao embate dos oprimidos contra os ricos e poderosos e seus asseclas como 0 malvado capataz. 0 mundo era ‘njusto, os trabalhadores eram os produtores da riqueza, lutavam e algum dia sairiam vencedores. Todos deviam buscar seus caminhos da liberdade, que de alguma forma iriam encontrar. Titoe transformou sua vida, com coragem e sentido do coletivo, e conquistou a dignidade. Nessa perspectiva, talvez se compreenda por que Gaijin é um filme esquecido, quase fora de seu tempo historico." Numa cidade como Sao Paulo, fui encontrar uma copia em pés- simo estado numa Gnica loja da melhor locadora de filmes de arte da cidade. De um lado, 0 filme fica deslocado ao celebrar a luta dos imigrantes nos tempos dos dekassegui, que nao acreditam nem mais no Brasil como lugar de trabalho. De outro, o contexto politico, as questées culturais propdem problemas diversos daqueles que o filme apresenta. A idéia do pais das oportunidades, o lugar que a todos acolhe, a grande naco cordial, a importancia da luta dentro do pais para melhorar de vida, o resultado positive da rebeldia, perderam sua forca. Transforma o filme num ‘documento historico" datado. Estariam os descendentes de Japoneses pretendendo apagar a memoria das lutas e das esperangas no pais escolhido por seus antepassados? Como ja indicou Pierre Nora, a memoria est4 em transformacao perma- nente, inconsciente de suas mudancas sucessivas, vulnerével a todas as utilizagdes e manipu- lagdes, suscetivel a repentinas revitalizacdes.”” 0 filme, em 1980, estendia diante de nés 0 caminho da liberdade e da esperanca. Hoje representa uma memoria dos sonhos destruidos, das esperancas frustradas, da ingenuidade das propostas, da fragilidade das utopias. 0 historiador tem, no entanto, condigdes de imaginar outros tempos hist6ricos no futuro, j@ que a dindmica da histéria nao nos cansa de surpreender. £ possivel que a este Periodo tao embagado, tao cinico, outro se seguird (diferente, por certo), no qual, mais uma vez, mulheres e homens se unirio para pensar o futuro, construir utopias e delinear sonhos que sero capazes de encantar e mobilizar a humaridade. Entdo outros olhares poderao desco- brir em Gaijin, uma simplicidade e um apelo que hoje no estamos sendo capazes de perceber. oo... Em 1508, entraram no Brasil 830 japoneses. Até 1950 chegaram 189.764 imigrantes desta nacicnalidide. Arlinda Rocha Nogueira. A imigragto japonesa e c lavourc 1a (1908-1922). SP, Instituto de Estudes Braileires, 1978 eo do flme eram de Tizuka e de Jorge Duran, ctilenc exiladc ede 1974, Gaijin significa estzangeiro, deslccado socialmente. ‘iginm-se a diregio, a0 rotsiro e ao trabalho dos atores. 0 papel da rincipal potagensta, Titoe, fi desempenhado por K'yoro Tsukamots e seu mai e+ japoneses contratados especialmente para o filme io ainda 0 ast aL que viria a ser —, Gianfrance acronismo’. In Te: ‘a a Historia ne, Barcelona, \o material para la erst aqui Romaguera e Est Historia y rial Fontamaa, re-analyse de la société’. In Jacques Le Gott e Pier s, Fais, Gallimard, 1974, p. 241, de UHisteire. Nouveau Ob ema incorpor dio. 0 filme de 2981, cor de Leon Hirszm também um sice ico e de cr lero: 1964-1985. SP. Atval, 1958. xército, matando-o e ferindo um ado. Na época, 0 caso foi abafado pele governo, que cite de todas as evidencia ‘Jage Duren, o wteiista chileno, também carregava corsigo as fortes referéncias, olicial, vale lembraro filme de Hec neo, geircd 1977, que traz uma critica bastance dara ac sist ree. Bea atara-2e de um bandido cemum. 0 roteio era assinado uzeizo, Bagenco e Jonge Duran. 0 argumento baseava-se no livra de Louzesn (Cuta a0 Jornal do Brasil. RI, 3/6/80, Caderno B, p. 2 m 1958, howe comemoragbes des 50 anos da imicrazio japonesa no Brasil, mas 0 detaque na micia. Em 1°88, segurdos di a de Es ios, iavie no pais 1.228.000 descendentes de :aponeses; pela estimati ada pelo Centro, em 1998 seriam 1.400.0 nigrogéo japonesa. SP, Weep, 1993, pp. 29-100 Yamasaki tem um projeto de fazer um filme sobre 0¢ dekassegui mbrai que nos iltimes dois anos, a crise da economia japonesa fez dssimiro fluxo brasileiro 20 2apda. Seguado o Centze de Estudos Nipo-Brasileros, sio 250.000, kassegui trabalhando no Japio. fem conas do comeco do filme, na Hospedaria des Imigantes, também sio mostra dos imigrantes espantois interegindo com imigrantes ¢e outras racionalidades. (Dutros filmes nessa mesma linha foram Fle no usar: black-tie, de Loon Hliseman 681) e Cabra marcado pare more, de Eduardo Coutinko (1984), cocumentério caliente extraordinaio. Mais recentemente, 0 quatrita, de Fabio Barreto, trouxe a da ing ‘Surpreendeu-ne bastante rdo vé-o incluio na filmogafia de Ricardo Mendes no zo organizado por Fernao Ramos, Histéna do cinema brasileiro, SP, Art BAitorz, 987. 4 Unica we‘eréncia & ditetora @ brevssima e diz respeito ao filme Petriemade, de 1985. alias Ismail Xavier também 36 fez referéncia a esse mesmo filme num comentario negatvo, no attigo "Do golpe militar A aberura: e resposta do cine de auter" in Ismail Xavier, Jean-Claude Bemadet e Miguel Feceira (orgs). O desafio do cinema. RY, Zaha, 1 ior, Pere, Les liewx de mémoir. La Régublque. Faris, Gallimard, 198 PRD MT Pk a, PT A a DP A a AD ay a A ’ André Luiz Vieira de Campos s | 23 & = & 2 = = < a 3 £ 2 2 Piaote: a infin brutalzad A versao em video do filme Pixote: a lei do mais fraco abre com um curto documen- tario no qual um locutor, tendo ao fundo cenas do cotidiano de um bairro miseravel da perife- ria de Sao Paulo, descreve as condicdes de vida dos moradores daquela regido. 0 narrador chama especialmente a atencao para as criancas do lugar, enfatizando varias vezes a cate- goria “crianca® como que propositadamente, querendo distanciar-se da categoria "menor", usada no jargao oficial para designar criancas pobres e/ou infratoras. Finalizando a breve introdugdo, o locutor revela que o filme foi protagonizado por um menino daquela periferia. A camera focaliza um barraco e na porta uma famitia composta pela mae e seus nove filhos. Dentre eles se destaca Fernando Ramos da Silva, o Pixote. Um ténue limite — talvez pelo tom jornalistico dos cinco minutos iniciais do filme — separa a "realidade’ mostrads no breve documentario introdut6rio da "ficcaio" que se seque. 0 fato mais emplematico desta fronteira ouco definida entre reatidade e Ficcao esta no fim trégico do menino Fernando. Como milhares de outros "pixotes',’ seguindo a trajetoria provavel de seu personagem, o jovem Fernando morre dez anos depois de estrelar o filme, num tiroteiro com a policia de Sdo Paulo. 0 filme divide-se nitidamente em dois momentos: no primeiro, de um nivel de ten- sao que chega a hipnotizar o espectador, aborda a vida de criancas e adolescentes internos de uma instituigao corretiva. A segunda parte do filme gira em torno da vida de um grupo deles ap6s fugirem desta instituicao. Em ambas as partes dos filme imperam a violéncia, criminali- dade, drogas, prostituico e homossexualismo. 0 tom de dentincia jornalistica caracteristico de Pixote reflete néo apenas a intencao do diretor, mas também o Livro que serviu de base para o roteiro: A infancia dos mortos, de José Louzeiro. 0 tivro baseia-se num fato real, 0 caso A Mistria vai a cinema Camanducaia, quando 102 menores foram espancados e atirados num despenhadeiro pela policia de Sao Paulo, 0 filme comega com a chegada de um grupo de criancas numa unidade de triagem de menores infratores, que sao encaminhados para uma institui¢ao corretiva nos molces da Fundacao Nacional do Bem-Estar do Menor — Funabem. La, sio saudados pelo inspetor "Sapato" (Jardel Filho, sempre calcando um sapato branco), que os adverte: "Aqui ninguém apanha de bobeira.” Logo na primeira noite passada na institui¢ao, Pixote vé, assustado, um vizinho de cana ser violentado. Na primeira parte do filme, a trama desencadeia-se a partir de um conjunto de acon- tecimentos tigados ao habito de um grupo ce policiais conuptos, associados a funcionarios da instituicgo igualmente corruptos: valer-se dos menores internos — irresponsaveis perante a justica — para praticar assaltos nas ruas. 0 camburao chega no internato e leva, come sem- pre, um grupo de internos. Nesta noite, um imprevisto vem atrapalhar os planos dos policiais. Os meninos deixados nas ruas para praticar os habituais assaltos provocam, involuntaria- mente, a morte de um desembargador. Sob a pressdo da familia e da imprensa, a policia e 0 diretor do reformatério tém que encontrar "um" culpado. A vitiva do desembargador (Beatriz Segal) nao corsegue reconhecer nenhum dos meninos que lhe séo apresentados: "afinal todos eles sao iguais', diz ela, "Se nao ha um suspeito, trata de conseguir", grita o diretor do refor- matério pare um policial. Na “fabricacao” do culpado, policiais e funcionérios do reformatorio acabam provocando a morte de dois meninos. A tensao cresce e a violéncia explode em rebe- Lido no reformatério, seguida da fuga de um grupo. Na segunda parte do filme, Pixote, Dito, Lilica e Chico, os fugitives do reformatério, saem pela cidade de Sao Paulo, praticando pequenos furtos. Lilica, a "bicha" do grupo, ini- cia um relacionamento com Dito. Através de Cristal (Toni Tornado), amigo de Lilica, o grupo vai ao Rio de Janeiro traficar cocaina. A primeira tentativa de vender a droga no Rio fracas- sa: 05 meninos so enganados por Débora (Elke Maravilha), que nao thes paga pelo produto. Dias depois, Picote e Chico vao vender a droga para um desconhecido num cabaré e, por coin- cidéncia, encontram Débora. Ao cobrar a divida, os dois meninos envolvem-se numa luta cor- poral que termina com a morte de Chico Débora. Pixote sobrevive e tem seu primeiro canho efetivo: um revolver, roubado da bolsa de Débora. Pixote: a infdecia bralizada Ja desfalcado de Chico, o grupo é apresentado a prostituta Sueli (Marilia Péra). "Essa mulher € uma maquina’, diz seu cafetdo ao crupo, ja agora nitidamente sob a lideranca de Dito. 0 “negécio” de Sueli, além da prostituigao, 6 a pratica ce “suadouro”, expediente no qual a prostituta atrai seus clientes para serem assaltados pelo seu cafetdo. Os meninos acer- tam com o cafetéo um prego, e ficam com Sueli. A “sociedade” entre os meninos e Sueli pro- gride e eles fazem dinheiro. Dito assume a lideranga do grupo e o lugar de cafetao de Sueli. Lilica, enciumada, vai embora e o grupo fica novamente desfalcado: a sociedade reduz-se a trés: Pixote, Dito e Sueli. Tudo parece ir bem para o grupo até que nova reviravolta acontece. Ao atrair um gringo para um suadouro, 0 grupo se atrapalha com a reacio violenta do cliente. Mais uma vez Pixote briga, atira e mata o gringo. Acidertalmente, mata Dito também. De volta ao quar- to, agora sozinhos, Sueli e Pixote protagonizam a famosa cena em que a prostituta coloca Pixote no colo e o amamenta dizendo "mama, meu filhinho; mamae esta aqui com vocé". No mesmo instante Sueli se arrepende do gesto ¢ rejeita sua postura maternal. Talver repelisse a idéia de que o menino Pixote viesse a ser seu novo "macho", seu cafetao. E grita: "Me larga, Pixote, tira essa boca suja de cima de mim. fu nao quero filho; odeio crianca. Vai viver sua vida. Cada um se vira como pode. Some!" Pixote pde sua arma na cintura, olha para Sueli e sai. Na Gltima cena — numa evidente metafora de sua vida —, Pixote esta sozinho e cami- nha, até desaparecer no horizonte, equilibrando-se sobre os trilhos de uma estrada de ferro. Ao ser lancado em outubro de 1980, Pixote provocou muita polémica. Apesar de con- tuncente e violento, 0 filme foi sucesso de pablico e critica. Os jornais da época registravam que, em cinemas lotados, as platéias, emocionadas, aplau- diam ao final da projegdo.’ A grande repercussao do filme nos Estados Unidos, onde chegou a ser aponta- do pela critica especializada como 0 terceiro melhor filme estrangeiro da década de 1980, possidilitou a carreira internacional de seu diretor, o argentino- brasileiro Hector Babenco.” Entretanto, se por um 20 A a AP ce fD lado o filme foi sucesso de piblico e cftica, por outro provocou reacdes indignadas por parte dos

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