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14 © Tempo O reverso do milagre: ex-votos pintados e religiosidade em Angra dos Reis (RJ)° *™* Guilherme Pereira das Neves **” Por mais que o documento escrito coloque problemas de interpret: (0, como se discute, pelo menos, desde Jean Mabillon (1632-1707), a fonte iconografica oferece ao historiador uma outra ordem de desafios. Enquanto 0 primeiro se move no mesmo dominio da linguagem natural em que se expri- me o investigador, a segunda — como também uma obra musical, alids—exige uma espécie de sradugdo. Trata-se de verter as imagens — constitufdas pelos tracos, pelas cores ¢ pelas superficies do objeto sob andlise — em um texto ito com palavras. Nesse processo, a dificuldade reside no fato de que aquelas tomam outras imagens por modelo, derivadas de distintas tradigoes, configurando linguagens pictéricas diferentes — como a do retrato, ada cena micolégica ou religiosa ¢ muitas outras — enquanto estas, as palavras, nao ape- nas denotam 0 que se vé, mas conotam, ao mesmo tempo. idéias ¢ concep- ges associadas a uma série de universos distintos — como o do senso comum, das crengas, da ideologia — que constituem a armadura mental de uma época, A pesquisa para este artigo contou com 0 apoio do CNPq — Conselho Nacional de Desenvol- vimento Cientifico e Tecnoldgico. “© Artigo recebido em agosto de 2002 e accito para publicagio em setembro de 2002 Professor do Departamento de Histéria, Universidade Federal Fluminense. Tempo, Rio de fa iro, n° 14, pp. 27- Guilherme Pereira das Neves Dossié no passado como no presente. Estabelece-se, assim, para o historiador, uma larga zona de ambigilidade ¢ de imprecisao, entre o dominio pictérico © 0 textual, que favorece a intervencdo, sem controle, da subjetividade de quem fala, No entanto, por outro lado, qualquer imagem se encontra também, de alguma forma, relacionada ao mundo mental do artista ou do artifice que a produziu, como sugere a existéncia de estilos, de um individuo ou de uma época. A abordagem das fontes iconograficas pressupde, por conseguinte, a identificagao de correspondéncias, nao diretamente entre a imagem € 0 tex- to, mas, sim, pela mediag&o dos quadros mentais que puderam conceber a pri- iveis através de outros escritos, podem ser objeto do dis- meira e que, ace: curso, que d4 consisténcia ao segundo. E esse procedimento que permite a elaboragio de um diciondrio, capaz de estabelecer eritérios menos arbitrarios para a tradugio. Durante muito tempo, os historiadores, de maneira geral, i larga medida as fontes iconogrificas enquanto tais. Restritos aos documen- tos escritos, s6 recorriam a elas sob a forma de ilustragdes, tomadas af face value, como auco-evidentes e auto-explicativas, desprezando, por conseguinte, aqui- lo que tinham de mais significativo para eles; ou seja, a possibilidade, que propiciam, de indagar quanto as relagdes entre as manifestacdes artisticas € 0s momentos histéricos em que vieram A luz. Nesse sentido, a especializagio da histéria da arte como uma disciplina a parte, estimulada pela mercantilizagao dos objetos artisticos enquanto bens simbélicos, provavel- mente contribuiu para dificultar 0 didlogo com os historiadores politicos ¢ sociais, limitando-a, predominantemente, a uma abordagem simplista das obras € dos artistas, conduzida em modo cronolégico pela teleologia do pro- gresso, ou, excepcionalmente, a uma discussdo dos aspectos téenicos, que se condensavam em escolas ou estilos. Na primeira metade do século XX, porém, o amplo movimento de re- novagio historiografica, que se costuma associar ao grupo francés dos Annales, de um lado, mas também o surgimento de novas preocupagdes no campo da histéria da arte, com figuras como E. Panofsky, retomando a tradigio de J. Burckhardt e de H. Wéfilin, de outro, passaram a colocar a necessidade e a conveniéneia de considerar as fontes iconograficas como um dominio a ser explorado pelos historiadores. Apesar disso, 0 impulso custou a se fazer sen- tir, enquanto predominaram abordagens de cunho econdmico-social € preo- cupagées com vastos esquemas teéricos abstratos, que reduziam os indi O reverso do milagre: ex-votes pintados e religiasidade em Angra dos Reis duos a pegas, num campo de forgas impessoais. Na realidade, foram a cre: cente influéncia e visibilidade da chamada Aistéria cultural, a partir da déca~ da de 1970, que rornaram possivel um maior interesse pelas fontes iconograficas.' Isso porque, ao destacar a culeura como um prisma que tefra taa realidade ¢ confere sentido a0 mundo, a hist6ria cultural valorizou nova- mente aquelas ferramentas mentais de que falara L. Febvre, presentes tanto nos motivos € nas concep¢Ges do artista ou artifice, ao criar sua abra, quanta dos seus mais diversos contemporaneos, viabilizando a operagio propriamente iconolégica, proposta por Panotsky, ou as contribuigdes de um E. H. Gombrich, quanto a psicologia da percapgit Tais problemas esto presentes de forma muito evidence para o histo- riador que se debruga sobre os ex-votos pintados. Em geral, pequenos qua- dros toscamente executados, depositados pelos figis em santuatios de pere grinagao, a fim de agradecerem uma graca dos céus por ocasiao de uma doen- ga ou um acidente, imbricam-se em uma tradigao votiva imemorial, de force contetido magico, que se manifesta igualmente sob as mais diversas formas: como uma pega esculpida em madeira ou cera, com 0 formato de um érgio do corpo; como elaborados e drduos rituais de cumprimenro de promessas. envolvendo a volta a igreja, de joethos, ou enterros simbélicos, minuciosa- mente encenados; ¢ ainda como tabuas escritas, forografias, trangas de cabe- lo, dentaduras, muletas, chapas de raios-x, figuras em prata ou ouro € até pegas de vestudrio ¢ trabalhos académicos. Do teto da sacristia da [greja de N. S. da Penna, em Jacarepagud, Rio de Janeiro, ha poucos anos, encontrava-se pen- durado um saco de roupas com o agradecimento pela aprovagao do filho no vestibular de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janciro, em 1997; €, no museu da Igreja do Bonfim em Salvador, pode ser vista uma tese de doutorado em fisica, defendida em Paris. “Memérias da indeterminagao do mundo”, no dizer poético do portugués Lufs Quintais, os ex-votos pintados adquitiram, no entanto, um significado especial apés o Coneflia de Trenra (1545-1563), quando, no gigantesco esforgo de cristianizagio da Europa, no século XVII, a Igreja da Reforma Catélica procurou divulgé-los, para depurar "Gh. Peter Burke, Variedades da historia cultural, Rio de Janeiro, Civilizagto Brasileira, 2000, 2 Cf. Erwin Panofsky, Siguificado nas aries visuais, S40 Paulo, Perspectiva, 1979, ¢ E. H. Gombrich, Arte lusdo: um estudo da psicologia da representagao pictérica, So Paulo, Martins Fontes, 1986, Ver, ainda, Lucien Febvre, Le probleme de l'ineroyance an XE sitcle: la religion de Rabelais, Paris, Albin Michel, 1968. Guitherme Pereira das Neves Dossié c interiorizar a pratica votiva de origem pag.’ Por isso, surgem, provavelmente no final do século XVI, mas espraiam-se pela orla do Mediterraneo ao longo do XVII ¢ multiplicam-se no XVILL, inclusive em algumas regies da recon- quista catélica, como o sul da Alemanha, e na América. No século XIX, con- servam a vitalidade, mas no XX rendem a ser superados por outras formas votivas — em especial, pela fotografia.* De modo geral, os ex-votos pintados compdem-se de uma cena princi- pal, ocupada pelo beneficiado; de um espago celeste, em que € representado 0 intercessor sagrado; ¢, com bastante freqiéncia, de uma /egenda escrita, em que se narra 0 acontecido, para honra e gléria da personagem taumactirgi habitualmente relacionada ao sancudrio em que a oferta foi depositada. Cada um desses trés aspectos pode ser analisado isoladamente num sentido pré- iconografico.5 \ identificagao do intercessor, com 0 auxilio da legenda oua partir dos atributos que traz, permite mapear o surgimento e a difusdo de uma de- terminada devogio. A cena principal apresenta amitide detalhes da habit: ¢a0, méveis, objetos ou individuos — como 0 médico, o padre e os familiares = que langam luz sobre as condigées de vida da época, sobre as sociabilida- des, sobre a pratica médica e sobre os trajes, e, quando o pintor detém maio- Tes recursos € procura retratar uma certa situagio através da indicagio de di- ferentes posturas ¢ expressées, até mesmo sobre as sensibilidades. Por fim, a legenda escrita, se presente, nao s6 esclarece 0 epis6dio, mas, ao tazer, em geral, uma data, estabelece uma cronologia razoavelmente precisa, o que, para » “Memérias da indeterminagao do mundo: a colegao de ex-votos do Museu Antropol6gico de Coimbra”, Museu Antropolgico da Universidade de Coimbra, Milagre q’ fes, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1997, pp. 15-31. “Cf, Bemard Cousin, Le miracle et le quatidien: les ex-voto provengau, images d'une société, Mi en-Provence, Sociétés, Mentalités, Cultures, 1983; Miguel F. Gomez Vozmediano Enrique Martinez Ruiz ¢f al, Diccionario de Historia Moderna de Espana: I. La Iglesia, Madris, Istmo, 1998, p. 133; C, Alvarez Santald, Maria Jestis Bux6 & S. Rodriguez Becerra (Coords.), La religiosidad popalar: TIT, Hermandades, ramertas y santuarios, Barcelona, Anthropos, 1989 (por cuja indicagio sou grato a William de Souza Martins); Retablos y exvotes, México, Museo Franz Mayer, Artes de México, 2000 (exemplar que agradeco A generosidade ¢ ao interesse de sem- prede Sandra Lauderdale Graham); Nuno Porto, “Os ex-votos fotograficos: comentério sobre @ exaustdo da representagao pictbrica dos milagres”, em Agostinho Ribeiro e al., Da gesto @ meméria: ex-votos, Museu da Guarda, Museu de Grito Vasco, Musen de Lamego, 1998-1999, C: go de Exposigio {Lisboa}, Instituto Portugués de Museus, 1998, pp. 81-5; e Lygia Segala, “Pordgrafos e retratos de romeiros no Santusirio Nacional de Aparecida”, Anais do Museu His- ‘t6rieo Nacional, v, 32, Rio de Janeito, 2000, pp. 172-99 (para o qual Paulo Knauss, a quem manifesto minha gratidao, chamou minha atengio). > CE. Panofsky, Significad.... pp. 50-65. 30 O reverso do milagre: ex-votos pintados e religiosidade em Angra dos Reis © historiador, significa uma vantagem incomensuravel do ex-voto pintado sobre as demais formas votivas. Entretanto, mesmo sob esses aspectos de uma leitura superficial da imagem, 0 ex-voto pintado, como qualquer fonte, nao pode ser tomado acriticamente pelo que mostra. A incompeténcia do pintor, a vaidade do fiel e sobretudo a auséncia de uma preocupagio realista com 0 imanente, tanto de um quanto de outro, voltados que estio para o ato votivo transcendente, podem introduzir distorgdes, algumas vezes gritantes © facilmente discerniveis, mas, mais freqiientemente, sutis ¢ quase imperceptiveis para o olhar contemporineo, como 0 realce dado ao leito com o acrescentamento de um dossel ou aos requintes do ambiente € da roupa, destinados a emprestar importancia social ao comanditario da oferenda. Num plano mais profundo, porém, propriamente iconolégico, como interpretar os ex-votos pintados? Como relaciond-los ao seu meio ¢ época? Como extrair deles algo além do que se propunham a contar? Mais do que testemunhos de um certo momento, como encaré-los enquanto expressiio de uma certa cultura?® Identificados como integrantes do patrim@nio nacional pelos folcloristas europeus, em busca da peguena tradigao da cultura popular, que fora eclipsa~ da pelo “triunfo da Quaresma”, e, em seguida, valorizados pela apreciagao favordvel dos modernistas em relagio a arte dita primitiva ou naive, os ex-vo- tos pintados comegaram a ser repertoriados € colecionados a partir de inicios do século XX.’ Mantiveram-se, porém, sob 0 dominio dos musedlogos ¢ dos criticos de arte até muito recentemente, como se pode constatar em Portugal € no Brasil. No primeiro, so diversos trabalhos esparsos, por curadores de exposigées ¢ antropélogos, desde um artigo pioneiro do folclorista A. A. Ro- cha Peixoto, de 1906. No segundo, destacam-se os trabalhos de Maria Augusta Machado da Silva, de Clarival do Prado Valladares ¢ de Marcia de Moura Castro, a partir da década de 1960, em paralelo com algumas iniciativas desse Grgio por exceléncia de preservagao dos bens da nagio, que foi o Servigo de Protegao ao Patriménio Hist6rico ¢ Artistico Nacional, depois Instituto do lavra . G. Collingwood, conforme Aaron Ridl R.G. Collingwood: uma filesofia da arte, Si0 Paulo, UNESP, 2001 Para o folelore ¢ 0 “triunfo da Quaresma”, cf. Peter Burke, Popular Culture in Early Modern Europe, New York, Harper, 1978. Cf, ainda, Klaus Anderege, “La redécouvertee des ex-voto”, Dreux, Les ex-voto racowtent, Paudex (Suisse), Fontainemore-Flammation, 1979, pp. 213+ 31 Guilherme Pereira das Neves Dossié PatrimOnio Hist6rico ¢ Artistico Nacional. Entretanto, até mesmo uma obra historiogrifica inovadora, como Cofidiano e vida privada na America portugue- sa, publicada em 1997 ¢ fartamente documentada em termos iconograficos, continuou tratando 0s ex-votos pintados como ilustragdes para consideragdes de outra natureza, aventurando-se, quando muito, a considera-los o reflexo da “relagao intima e respeitosa dos figis com seus oragos, verdadeiras tabuas de salvage nos momentos dramiticos dessa sociedade tao desassistida das artes médicas”.® Na realidade, uma nova possibilidade de abordagem dos ex-voros pin- tados configurou-se apenas em 1970, com o trabalho original de Gaby e Michel Vovelle sobre os altares provengais."” A partir de um levantamento amplo ¢ minucioso desses objetos, tatados em seguida de uma forma serial, A methor maneira dos Annales, os dois pesquisadores nao realizaram propriamente nem uma investigagao de historia da arte, nem de hist6ria religiosa, mas buscaram caracterizar as atitudes de uma certa mentalidade diante da introdugao de uma nova devogao, a das almas do Purgatério, através das representagdes fixadas nos altares da Provenga, entre os séculos XV € XX. Ao procurar relacionar, dessa mancira, as mudangas na sensibilidade religiosa dos fiéis as caracteris- ticas formais das obras artisticas, eles propiciaram aos historiadores um salto metodolégico de grande aleance, que, por assim dizer, retirou o foco da pes- quisa da superficie da obra, para situd-lo nas articulagdes com os quadros mentais de seus produtores € consumidores, que suas caracteristicas iconograficas permitem detectar. Embora anunciado por um Panofsky, um Francastel ou um Gombrich, esse procedimento, logo retomade por autores como M. Baxandall e C. Ginzburg, abriv as portas para uma nova abordagem das fontes iconograficas, "CEA. A. Rocha Peixoto, “Tabulae votivae”, Portugatia, Lisboa, v, 2, 1906, pp. 187-212: M. A. Machado da Silva, Ex-voros e orantes no Brasit, Rio de Janeiro, Museu Histérico Nacional, 1981; Clarival do Prado Valladares, Riscadores de milagres, Rio de Janeiro, Vida Doméstica, 1967; Mircia de Moura Castro, Ex-vores minciros, Rio de Janeiro, Expressio ¢ Cultura, 1994. Em 1947, Liicio Costa jf apontava ao Patrim@nio Hist6rico e Artistico a importincia dos ex-votos pintados, conservados no Convento de Sao Bernardino de Sena, em Angra dos Reis, confor- me Maria Emilia Mattos, “Promessa, milagre ¢ ex-voto”, em José Pessda, Milagres: os ex-voras de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001, pp. 23-37, p. 30. * Luiz Moti, “Cotidiano e vivencia religiosa: entre a capela e 0 calundu”, Laura de Mello Souza (Org.), Histéria da vida privada (wv. 1:Cotidiano e vida privada na América portuguesa), S80 Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 155-220, p. 173. °° Vision de la mort et de l'au-deld en Provence d apres les autels des dimes du purgatoire, XV-XX' siécles, Paris, Armand Colin, 1970 (Cahiers des Annales, 29). 32 O reverso do milagre: ex-votos pintados e religiosidade em Angra dos Reis que nfo tardaram a incluir os ex-votos pintados.'! E, como seria de se espe- rar, foi um orientando de Michel Vovelle, em Aix-en-Provence, que deu 0 passo decisivo.? Em Le Miracle et le Quotidien, de 1983, Bernard Cousin nto 36 coligiu cerca de cinco mil ex-votos pintados provengais do século XVII a0 XX, que, tratados serialmente, permitiram diversas conclusdes importantes ndo 86 sobre as relagdes com 0 sagrado, como sobre os gestos e as condigées da vida material, como ainda, sobretudo, estabeleceu uma metodologia vid- vel para a andlise dessas manifestagdes de devogio."* Sob 0 aspecto da religiosidade, aqui privilegiado, a contribuigio mais significativa de Cousin consistiu, por um lado, no estabelecimento de uma tipologia dos ex-votos pintados e, por outro, no reconhecimento do lugar ca- pital ocupado pelo chamado esparo celeste. Utilizados para agradecer uma dé- diva divina que interrompe o fluxo natural da vida - sendo, por isto, conside- tados milagres — os quadros votivos respondem a algumas situagdes padroni- zadas, que podem, assim, ser classificadas em tipos e subtipos. Em primeiro lugar, porque os mais numerosos, os motivados por uma doenga, que repre- sentam, em geral, 0 fiel acamado ¢ que se podem distinguir, conforme a na- tureza do mal (problemas no parto, inflamages, rimores, ere). Em segun- do, os decorrentes de acidentes ~ de trabalho, na rua ow na estrada, inc dios, pequenos desastres domésticos, Em terceiro, os provocados por atos de violéncia, relacionados a assaltos ¢ & guerra, Em seguida, a categoria, impor- tantissima nas regides costeiras, dos ex-votos maritimes, ligados as atividades da pesca ¢ da navegacao. Finalmente, os que Cousin denomina ¢e agdo de gracas, que s¢ limitam ao fiel em atitude de prece, diante do intercessor sa grado invocado, e que melhor sugerem a depuragiio devocional que a Refor- ma Catélica precendia incutir. Quanto ao espago celeste, trata-se, de acordo com Cousin, do lugar privilegiado para verificar 0 comportamento devocional dos fiéis, om mitilti- "CE Pierre Francastel, A realidade fiqurativa, Sio Paulo, Perspectiva, 1993; Michael Baxandall, 0 olhar renasceute, Rio de Janciro, Paz e Terra, 1991, e Carlo Ginzburg, Indagazées sobre Piero, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, * Embora também na Itélia houvesse interesse pelo assunto. Cf. a resenha de B. Cousin aos livros de Gabrielle Belli (Dir.), Ex-voro, Tavolete votive nel Trentino. Religione, cultura e soviet, ‘Trento, Museo provinciale d’arte, Temi, 1981, ¢ de Angelo Tutchini (Dit.), Lo straordinariae itquotidiano, Ex-vote, santuaria, religione popotare nel Bresciana, Brescia, Grafo, 1980, Aanales E ‘S.C, Paris, v, 39, n° 1, jan-fev 1984, pp. 197-202. 8 Le miracteet lequotidien: tes ex-vote provencaus, images dune société, Ni Mentalités, Cultures, 1983. en-Provence, Sociétés, 33 Guitherme Pereira das Neves Dossi¢ plos aspectos. Primeiro, evidentemente, pela escolha do intercessor. Segun- do, pelo espaco que 0 sagrado ocupa no total da superficie, cuja redugao, a partir de fins do século XVLIL, até seu quase desaparecimento, no inicio do XX, possibilitou ao pesquisador francés elaborar um grafico, cuja curva des- cendente traga rigorosamente a imagem invertida do movimento ascenden- te de secularizacio das mentalidades na Franca do século XIX." Terceiro, pela posigao ocupada no quadro. De fato, ao analisé-la na longa duragio, Cousin constata uma curiosa translagdo do espago celeste do canto superior esquerdo, predominante até meados do século XIX, para o direito, daf em diante —que ele explica como uma decorréncia também da mudanga de pers- pectiva dos fiéis, ocasionada pela secularizagao. Inicialmente, olhandoa Ter- raa partir dos Céus, a realidade do mundo sublunar nao poderia situar-se se- niio A mo esquerda da personagem sagrada, 0 que se inverte, quando, poste- riormente, 0 olhar do fiel se dirige do lugar profano, em que se encontra, para © sagrado, ao qual recorre.'* Quarto, pela presenga, ou no, de um raio de luz, ou de uma troca de olhares, entre o intercessor ¢ 0 beneficiado, que estabele- ce uma ligagao especial entre o sagrado € 0 profano. Por fim, pela presenga de imagens sagradas, como crucifixos ou estampas, integradas an ambiente terreno, com a funcio de Exsarz, para os exemplares desprovidos de espago celeste. No Brasil, os mais antigos ex-votos pintados ainda existentes datam de infcios do século XVII, como o pequeno quadro de 1722 do escravo de Ma- ria Leme, denominado Joao, de joelhos diante da imagem do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo; um painel de azulejos de 1726, na Igreja de N. S. da Boa Viagem, Bahia; € os urés grandes quadros de 1729, na Igreja de Igaragu, em Pernambuco. Esses tiltimos, aliés, alguns nao os cons deram ex-votos, porque se reportam a acontecimentos muito anteriores, como a fundagao da Igreja dos Santos Cosme e Damiao, em 1530, ea peste e 0 sa- que da cidade pelos holandeses, em 1632. Pelo contrério, no entanto, esse procedimento pouco usual, mas de forma alguma tinico, parece sugerir que foi nessa década que se introduziu no Brasil a prdtica tridentina dessas “ Cousin, Le miracle... p. 151 8 Sob esse aspecto, € irresisti scrigao de uma recente noticia, com a chamada “Fata- lismo brasileiro”, em jornal de grande circulagdo, a partir de uma sondagem de opinito reali- zada pelo Data UFF: “Acredite. De cada 100 fluminenses, 37 consideram que Deus € quem traga 0 destino das pessoas. Apenas 14 cntendem que o destino estd nas mios dos préprios homens”, G Globo, Rio de Janeiro, 23 jan 2002, p. 15, 34 O reverso do milagre: ex-votos pintados ¢ religiosidade em Angra dos Reis oferendas, procurando-se, por isso, fatos notaveis no passado que mereces- sem registro, de modo a divulgé-la.'* Um pouco posterior € 0 notével ex-voto de 1745, conservado no Mosteiro de Séo Bento, de Salvador, em que Agosti- nho Pereira da Silva narra sua vida em episédios, desde a partida de sua terra natal, em Lamego, Portugal, pasando pelas vicissitudes que sofreu em Mi- nas Gerais, até sua ordenagao na Bahia. Do século XIX, merecem destaque o imponente quadro pintado por F.-. Taunay, por ocasido de uma queda de cavalo de Pedro I (1823), que se encontra no Museu da [greja do Outeiro da Gloria, Rio de Janeiro, ¢ o do baiano Manuel Lopes Rodrigues (1871), retra- tando a india Catarina Paraguagu-Caramuru em prece diante de N.S. da Graga, ambos de fino acabamento erudito. No inicio do XX, em Salvador, havia uma oficina de ex-votos, conhecida como Toilette de Flora, responsavel por alguns notdveis exemplares de arte natve."” Apesar desses e de muitos outros exemplares, so pouco numerosas as colegées significativas reunidas em um mesmo local. Juntamente com a ca- réncia de levantamentos sistemiticos € 0 estado precirio de conservagao, essas caracterfsticas constituem as maiores dificuldades para a aplicagao da metodologia desenvolvida por B. Cousin ao Brasil. Em Aparecida, represen- tativo do que ocorreu com muitos acervos, 0 bispo D. Antonio de Mello proi- biu, em 1854, os desenhos votivos, considerados “arte tosca ¢ grotesca, ‘fruto certamente da ingenuidade e rudeza de alguns devotos™, tendo sido quei- madbos os exemplares entiio existentes."* Na realidade, além de pequenos acer- vos, como o da jé mencionada Igreja de N. S. da Penna e outras semelhantes, a0 que tudo indica apenas a Igreja do Bonfim, em Salvador, BA; 0 Santudrio de Bom Jesus da Lapa, no sertio baiano do rio Sa0 Francisco; 0 Santudrio do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, MG; ¢ 0 Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis, RJ, foram capazes de manter conjuntos expressi- vos. No entanto, do primeiro, sob a guarda da irmandade, conforme informa- gS0 no local, apenas uma pequena parte encontra-se 3 mostra no musen da ermida e nenhum levantamento a seu respeito existe, excepto pelo jé citado estudo de Clarival do Prado Valladares, de muitos anos atrés."° Embora obje~ * Ver, mais adiante, nota n? 29, um procedimento semelhante utilizado em Angra dos Reis. ” Reprodugdes desses ex-votos podem ser vistas em Clarival do Prado Valladares, Nordeste historico e moniamental, Rio de Janeiro, Odebrecht, 1990, v. 4, € em Promessa e milagre no santux dria de Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas do Campo, Minas Gerais, apres. de Alofsio Magalhaes, ints. de Lélia Coelho Frota, Brasilia, Fundacao Nacional Pré-Meméria, 1981. ™ Segala, “Fotografos e retratos...", p. 174- ™ Clarival, Riscadores... Guilherme Pereira das Neves Dossié to de uma dissertagdio de mestrado, o segundo, em que predominam os €x- votos esculpidos, também nao dispde de uma obra de referéncia.*” Em Mi- nas, a colegao de 89 ex-votos de Congonhas encontra-se tombada e dispoe de um catalogo inestimavel, embora mediocre quanto a maioria das reprodu- Ses." Apesar disso, nao consiste dos exemplares originais, que se tinham dis- persado com 0 tempo, ¢ resultou de uma tentativa de reconstituigao, realiza- da em 1979, por parte do IPHAN, no apresentando, em conseqiténcia, a consisténcia desejavel, como indica a inclusio do mencionado ex-voto do escravo Joao, de 1722, quando o santudrio s6 comegou a ser erigido em 1757.” Essa situagdo ressalta o significado do recente livro do arquiteto José Pesséa, funcionério do IPHAN, com a primorosa reprodugao de 117 ex-votos pintados, atualmente conservados no Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis, situado na Igreja de N. S. da Lapa da Boa Morte.* E desse conjunto que as paginas seguintes pretendem proceder 4 andlise, nos moldes propostos por B. Cousin, com 0 objetivo de discutir as préticas religiosas dessa localidade fluminense, mas tomando sempre em consideragio, para efeito de compara- (40, outras manifestagdes votivas semelhantes, em especial, aquelas locali- zadas em Congonhas do Campo, estudadas em outra ocasiao.* A colegio de Angra dos Reis, embora proveniente de uma mesma € limitada regido geogrifica, compée-se, na realidade, de trés acervos: 0 da Capela da Ribeira, com 46 exemplares; 0 do Convento de Sato Bernardino de Sena, com 42; ¢ 0 da Capela de Santa Luzia, com 29-0 que, considerando-se as fidelidades e as rivalidades que oragos ¢ templos podiam motivar no pas- ® José Cldudio Alves de Oliveira, Ex-voles da sala de milagres do santudrio de Bom Jesus da Lapa: sociedade, religigo e arte, Dissertagao de Mestrado apreseatada & Escola de Belas Artes da Uni- versidade Federal da Bahia, sob a orientagio de Maria Helena O. Flexor, Salvador, 1995, 2 Promessa ¢ Milagre 2 Cf. Edgard de Cerqueira Faleao,A Lasitica do Senhor Bom Jesus de Gongonhas do Campo, (Sto Paulo}, s/e, 1962, pp. 45-82. ® Milagres: os ex-votos de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001, No entanto, conforme algumas indicagées dessa obra (cf, sobretudo, pp. 39, 79 € 115), aparentemente nem. todos 0s ex-votos ainda existentes foram nela reproduzidos CE Guilherme Pereira das Neves, “Uma pritica votiva popular no coragio do Brasil? A pro- pésito da colegio de ex-votos pintados de Congonhas do Campo, MG”, Anais da XVI Rewnido da Sociedade Brasileira de Pesquisa Historica, Curitiba, SBPH, 1996, pp. 169-72, ¢ “Os ex-votos pintados ea religiosidade em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Baia", em Maria Beatriz. Nizza da Iva (Coord.), Sexualidade, familia e religiao na colonizacao da Brasil, Lisboa, Livros Horizonte, 2001, pp. 341-53. 36 O reverso do milagre: ex-votos pintados e religiosidade em Angra dos Reis sado, nao é insignificante.** Os quadros, quando comparados com os de Congonhas do Campo, apresentam uma dimensio reduzida, Em Minas, adrea média do conjunto de 89 pecas € de 791,1 cm’, situada entre 0 minimo de 194,8 cm? e o maximo de 5.292,0 cm, com uma evidente propensio ao au- mento do século XVIII para o XX, de 543,2 em? para 1.625,8 em’. Em Angra, aaltura média é de 12,6 cm; a largura, de 19,1 cm; € a 4rea, de apenas 243,8 em? —equivalente, portanto, a menos de 1/3 daquela dos exemplares minei- ros. De fato, é a érea maxima aqui (742,5 cm‘) que se aproxima do valor m dio de Congonhas, sem alcan¢4-lo, no entanto. Nao se observa, por outro lado, uma variacio significativa entre os trés acervos, somente um pouco menor em Santa Luzia (214,6 cm?) Uma outra caracteristica, que lhes é bastante peculiar, revela-se um dbice para o historiador. Apesar de apenas quatro dos 117 ex-votos nao traze- rem originalmente uma legenda, ao contririo da pratica usual de também pintar 0 texto escrito sobre a madeira, que constitui o suporte mais comum desses ex-votos, os exemplares de Angra adotam quase sempre o procedimen- to de reservar a faixa inferior do quadro para colar a legenda, mas escrita so- bre papel. Com 0s anos, a deterioragao deste deixou 62 exemplares comple- tamente desprovidos de legendas e, dos demais 51, pouces so aqueles cujo texto se conservou na integralidade. Em alguns casos, como evidenciado da Figura 1, tem-se a impressfio de que uma mio posterior reforgou a legenda, redesenhando as letras originais com uma camada mais recente de tinta e, pelo menos em dois ex-votos, percebe-se a sobreposigao de uma nova dedi- cat6ria, sobre um texto muito apagado c ilegivel, sugerindo o reaproveitamento de que podem ter sido objeto periodicamente (Figura 2). Oferecem, por conseguinte, uma enorme dificuldade para serem da- tados, enquanto um trabalho técnico de anélise e restauro nao for capaz. de recuperar os vestigios deixados ou realizar um exame do papel utilizado. Como resultado, do conjunto, apenas 17 exemplares trazem alguma indicagdo cro- noldgica. O mais antigo, da Capela de Santa Luzia, parece ser, apesar da lei- tura precdria, de 1820; € o mais recente, da Ribeira, de 1945, embora este $6 ® Gf. a introdugio de David Higgs, intitulada “O Santo Oficio da Inquisigfo de Lisboa © a “Luciferina Assembléia’ do Rio de Janeiro na década de 1790”, que ele elaborou para a publi- cago do documento na Revista da Instituto Histérico e Geografico Brasileiro, cujo niimero se tencontra no prelo. © Cf, Pessoa, Milagres... pp. 107 ¢ 113 (embaixo). Veja-se também p. 141, Para o reforgo da legenda original, ef. pp. 102 (ao alto), 125, 131, 133 e 138, 7 Guitherme Pereira das Neves Dossié Ficurs 1. Legenda reforgada posteriormente (deralhe). Fonte: José Pesséa, Milagres: os ex-votos de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Casa da Palawra, 2001, p. 125. Fioura 2. Legenda sabreposta a anterior (detalhe). Fonte: José Pessba, Milagres: 0s ex- votos de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001, p. 107. apresente, excepcionalmente pintados. os algarismos “7345”.27 As duas pri- meiras décadas do século XX pertencem sem diivida quatro, sendo um de Santa Luzia ¢ trés do Convento de Sao Bernardino.* Em um deles, observa- se um procedimento curioso. Em abril de 1915, Anna Maria da Concei¢ao agra- dece ao “glorioso Sado Benedito” a cura de uma dor de dente ocorrida “hé 35 annos”.2’ Os demais onze distribuem-se ao longo do século XIX, podendo sete ser datados com precisio: 1844, 1861, 1864, 1872, 1884 ¢ dois de 1899. Para um, da Ribeira, nao foi possivel verificar a década; para outros dois, de dificil leitura, foram atribuidos os anos de 1829 e de 1879; €, para um quarto, a década de 1830." Desse conjunto, os trés mais antigos, como trés dos mais recentes, provém da capela da Ribeira; um de 1899, de Santa Luzia, ¢ os de- mais, de $0 Bernardino. Portanto, embora outros detalhes possam conduzir a mais algumas consideragdes adiante, parece plausivel admitir, com José ® Gf. Pessoa, Milagres... pp. 123 € 60, respectivamente. Com alguma freqiéncia, a minha lei- tura das legendas no concordou com a transcrigao apresentada nas pp. 143-5 da obra. 2 Cf. PessOa, Milagres.... pp. 120 (1908), 81 (1909) ¢ 83 (1915 e 1910), respectivamente. Cf. Pesséa, Milagres... p. 83 (a0 alto). Ver, acima, a nota n” 16. 2 Cf, Pessia, Milagres.., pp. 62 (20 alto), 113 (embaixo), 103, 90 (ao alto), 71, 67, 127, 68, 44 {embaixo), 52 ¢ 43, respectivamente. 38 O reverso do milagre: ex-votos pintados ¢ religiosidade em Angra dos Reis Pess6a, que a maior parte dos trés acervos da colegao de Angra date do sécu- lo XIX." Duas outras caracteristicas distinguem-na, no entanto, Primeira, 0 for- mato dos ex-votos e, segunda, a freqiiente representagao exclusiva de partes do corpo afetadas pela doenca, como o olho € a cabeca. Ambas merecem um comentario. Em Congonhas, sao raros ~ menos de 10% — os exemplares que nao obedecem rigorosamente ao formato retangular, demarcado por uma moldura simples € reta, e mesmo as excegdes mantém uma certa discrigiio. Em Angra, porém — mas como ocorreu com pelo menos um ex-voto, que se encontrava na Matriz de N. S. do Amparo, em Maric4, RJ, no inicio da déca- da de 1970 ~ 0 que se observa & a predominancia, sobrecudo na parte supe- rior, de um exuberante recorte da madeira (que serve de suporte em todos os casos), segundo as mais variadas formas, de nitida inspirag&o barroca, segun- do José Pesséa, de modo a formar ondulagoes, recortes abruptos € volutas ou flordes, aproveitados, algumas vezes, pelo pintor, de maneira original.’ Em. diversos casos (16,2%), ocorre uma tendéncia & forma triangular, mais nitida em alguns (6,8%), disfargada por curvas em outros (9,4%). Na tealidade, ape- nas cinco exemplares podem ser considerados seguindo o padrao usual re- tangular. Em compensagio, 70,9% dos quadros revelam uma ornamentagio elaborada, mais pronunciada em Sto Bernardino (76,2%) do que na Ribeira (69,6%) ou em Santa Luzia (65,5%) Da mesma maneira, embora essa pritica nfo seja desconhecida em outras localidades, como comprovam alguns ex-votos suigos (ver Figura 3), parecem ser um trago absolutamente original do acervo de ex-votos de An- gra, no panorama brasileiro, os 46 exemplares — ou seja, mais de 39% — que se limitam a reproduzir a parce doente do corpo~e que talvez possam ser deno- minados, em acrescentamento aos tipos estabelecidos por B. Cousin, cuja Provenga os desconheceu, de anarémicos. Predominam os olhos, em geral aos pares, todos (26) proveniences, como seria de se esperar, em fungao da cspe- Cf. Pessoa, Milagreson. p- 17. 2 CE. Promessa e milagre.. SCF Pesséa, Milagres.... p. 17. Observe-se, por exemplo, como o dossel, em vermetho, do lei- to, no exemplar ao alto da p. 47, acompanha a forma cOncava da borda superior. Para 0 ex-voro de Marie, que no mais encontrei no local hé cerea de trés anos, ver Maria Augusta Machado da Silva, “Ex-votos brasileiros”, Cultura, Rio de Janeiro, v. 1, n° 2, abr-jun 1971, pp. 22-30, p. 25, 2'CF. René Creux, Les ex-voro raconzent, Paudex (Suisse), Fontainemore-Flammarion, 1979, pp. 85-100, 39 Guitherme Pereira das Neves Dossié Fieves 3. Ex-voro sutgo do tipo anatomico. Fonte: René Creax, Les ex-vowo racontent, Paudex (Suisse), Fontainemore-Flammarion, 1979, p. 87. 4 Fravea 4. Detalhe de rosto feminino em ex-voto de Angra. Fonte: José Pesséa, Milagres: 0s ex-votos de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001, p. 50 (embaixo). O reverso do milagre: ex-votos pintados e religiosidade em Angra dos Reis cializagiio taumatiirgica da personagem, da Capela de Santa Luzia (89,7% do total dessa igreja).° Seguem-se a cabega (9 exemplares), 0 pé (8, sendo 2. em pares), 0 scio, a mao e a perna (1 cada), onze dos quais se originam de Sao Bernardino (26,2%) e nove, da Ribeira (196%). Nessa tiltima capela, a maioria das invocagdes que podem ser lidas re- ferem-se a Nossa Senhora da Gonceigao, o seu orago, como também o da matrizda vila, No Convento franciscano de Sao Bernardino, predomina o santo negro Benedito como intercessor, assim como Santa Luzia, na capela a ela dedicada. No entanto, no primeiro local, ocorre uma vez 0 apelo a N.S. dos Remédios e, outra, a Santa Luzia; no segundo, uma legenda atribui ao “glo- rioso St” Antonio” o milagre de curara ferida numa perna, 08 dois tltimos do tipo anatomico.” Num plano menos evidente, mais dois aspectos chamam também a ateng&o nos quadros votivos de Angra dos Reis. De um lado, a auséncia de ago celeste na quase totalidade dos exemplares. De outro, uma certa sin- geleza da representacdo, embora isso nao signifique que Ihes faltem certos requintes. Em todo. conjunto de 117 exemplares, apenas trés (2,6%) inclu- em espaco celeste, a que, em comparagio com a colegdo de Congonhas, cons- titui um trago particularmente significativo, pois, dos 89 ex-votos desta, 75 (84,3%) possuem a representagao do intercessor numa drea claramente demarcada. Em relagao aos 45 do século XIX, essa proporgio eleva-se ainda mais, para 86,7%. Em Angra, dois provém da Capela da Ribeira e um, do Convento de $a0 Bernardino, nenhum deles podendo ser datado com preci- so, O primeiro, pintado com bastante detalhe ¢ maestria, retangular na base, mas com uma saliéncia arredondada bem pronunciada ao centro da parte superior, situa nessa superficie uma imagem de N. S. da Conceigio, cercada de nuvens, flutuando acima de um jovem deitado em leito simples, com uma ferida & mostra na coxa direita.*” O segundo, um tanto apagado, mas de fatura ainda elaborada, originalmente sem legenda, traza mesma intercessora, en ‘volta ntima espécie de halo, ocupando toda a extremidade esquerda do exem- plar, tendendo ao horizontal (10,5x30,5cm), com a parte superior muito orna- da de voltas ¢ recortes, e constitui um dos dois casos de ex-voto marinho da colegao. Na cena principal, um veleiro com dois mastros ¢ as velas ferradas — 5&5 Em apenas dois casos aparece um Gnico olho. “ Ci, Pessoa, Milagres.., pp. 67, 68 € 113 (embaixo), respectivamente 9 CE. Pessoa, Milagres... p. 51 4 Guilherme Pereira das Neves Dossié talvez um brigue, um caique, um iafe ou até uma rasca —apresenta dois homens no convés e um terceiro subindo © mastro de vante.* No tiltimo, retangular, mas com alguma ornamentagio na parte superior, um Sfio Benedito, susten- tado por uma camada de nuvens, paira sobre uma perna negra, do pé até 0 joelho, ambos localizados no centro da composigao pouco sofisticada.” ‘Tampouco se encontram, nesses trés exemplares, raios lum olhares de cumplicidade entre o sagrado € 0 profano; nem, nos demais, ima- gens inseridas na composigao da cena principal, que sirvam para suprir a au- séncia do espago celeste © atender a uma sensibilidade mais realista. Essa Ultima caracteristica est relacionada ao que, mais acima, foi designado como singeleza dos ex-votos angrenses. Como alguns comentérios anteriores deve ter deixado claro, nao falta a alguns uma técnica bastante apurada, que sabe tirar partido da peculiar conformagao decorada do suporte ou que é capaz de registrar 0 drapeado da veste de Nossa Senhora, 0 tombadilho de um navio ou até a delicadeza dos tragos de um rosto feminino (ver Figura 4). Nem um uso expressivo das cores primérias, especialmente do azul, que faz pensar em Matisse — como justamente enfatizado por José Pesséa."' No entanto, para além da representagao dos olhos, dos pés, das cabegas ¢ das demais partes do corpo, a predominancia do individuo deitado em seu leito de facura simples, 0 ntimero de personagens em cada quadro quase sempre reduzido a um s6, a auséncia quase completa de objetos acessérios, a inexisténcia da justaposi- do da cena anterior e posterior ao acidente ou A doenga, como ocorre em Congonhas, a variedade cromatica obedecendo a padrées mais ou menos uniformes, tudo isso se combina para produzir uma impressdo de simplicida~ de e despojamento, que é tentador atribuira uma sensibilidade de gente hu- milde — ou seja, popular. Do conjunto coral, 60 ex. sos ou voos (51,3%) retratam a cama em que se en- contra o beneficiado, cabendo 29 & Capela da Ribeira (63,1%) e igual ntime- ro.a0 Convento de Sao Bernardino (69,0%), sendo inexpressiva, tanto no con- 0 entre os junto, quanto em cada um dos acervos das trés igrejas, a varia © Cf. Pesséa, Milagres.... p. 76. O outro ex-voto marinho, p. 77, representa talvez um patacho ou pathabore, também de dois mastros, num mar revolto. A legenda apagou-se € tampouco pode ser datado. Para um estudo minucioso desses tipos, ef. Octavio Lixa Filguciras, “As embarca~ ‘ges nos ex-votos”, Carlos Lopes Cardoso et a, Ex-voto: paintis votives do rio, do mare do além- mar, Lisboa, Muscu da Marinha, 1983, pp. 29-69. » Gf Pessoa, Milagres... p- 112. # OF, Pessia, Milagres.... p. 50 (embaixo). "1 Gf, Pessba, Milagres... p.19. O reverso do milagre: ex-votos pintados e religiosidade em Angra dos Reis doentes dispostos com a cabega & esquerda ou a direita do observador.” Além de ambos os exemplares marinhos, apenas outros dois podem situar-se ao ar livre, um dos quais — em que um homem negro empertigado e segurando uma vela na mio, vestido com calga € camisa, tem 0 pé direito calgado mor- dido por uma cobra—constitui o tinico caso de cena registrando um acidente, to comum em Congonhas do Campo e na iconografia dos ex-votos pintados em geral, embora, em pelo menos um, 0 acidente acabe representado com 0 doente no leito, a cabega enfaixada.* Em sete casos, quase todos da Ribeira, aparecem cadeiras ou bancos e, em um s6, possivelmente recente, uma es- teira estendida no chiio, No conjunto, descontados os anatémicos, a maioria esmagadora (62 ou 88,6%) apresenta um tinico personagem. Apenas 7 qua- drinhos incluem mais de uma figura humana, em cinco casos dos quais se trata de uma mulher com uma crianga no colo, vendo-se nos dois restances trés personagens: aqueles ja descritos no convés de um veleiro ¢ um casal senta- do diante da filha no leito. Esse iltimo inclui, ao lado dos pais, uma mesa sobre a qual repousa uma colher, um copo e um frasco de remédio, pratica- mente, se descontados alguns rabiscos toscos ¢ desordenados em um outro, 0 nico que contém objetos de decoragio nesse sentido. Diante dessa singeleza, destacam-se 0s cinco ex-votos, todos prove- nientes da Capela da Ribeira, cujos leitos sto encimads por um dossel. Num deles, trata-se unicamente de uma cobertura elevada, com 0 material utiliza- do, tecido ou couro, esticado sob a forma de um telhado.“ Nos demais — embora, na representagdo, preso as hastes verticais - 0 dossel assemelha-se. mais a um panejamento, que cai em diregao ao cho, funcionando como uma cortina, para garantir uma certa privacidade, quando conveniente.** Exceto num caso, em que n&o € possivel constatar esse aspecto, as colunas verticais que sustentam 0 dossel, assim como 0 ponto mais alto deste, sfio encimados por bilros.* Dois deles datam do inicio do século XIX, um provavelmente de 1829 e 0 outro, da década de 1830. Parecem indicar, assim, 0 registro de ® Apenas para dar uma idéia, 51,7% de todos os doentes tém a cabega a esquerda e 48,3%, 4 direita. 48 Trata-se daquele a p. 92 de Pessoa, Milagres... « Cf Pessba, Milagres. p.50, Esse é 0 ex-voro indieado acima (nota n* 40) por cauisa da deli- cada pintura de um rosto feminino. “Cf, Pessda, Milagres..., pp. 43, 44 (embaixo), 47 (ao alto) 53. 4 A excegio, salientada acima (nota n” 33), decorre de o panejamento vermelho do dossel acom- panhar a curvatura superior da madeira e nio permit, por isso, ver se ha ou nao bilros, ef. Pess0a, Milagre... p-A7 (a0 alto). B Guitherme Pereira das Neves Dossié uma pritica social que cairia em desuso em seguida e permitem aventar a hipétese de que, talvez, um ou mais dos trés nao datados pertengam ao final do século XVIII, Essa possibilidade impde-se com alguma forca sobretudo em um caso, que se distingue pela minuciosidade e pela técnica da repre- sentagao nao s6 da figura de mulher e do leito, como também das trés pare des do quarto, dotadas de uma porta 4 esquerda e de uma elaborada pintura ornamental.” Nada semelhante ocorre nos demais exemplares, ainda que, em alguns, possam constatar-se toscas tentativas de representar 0 assoalho.** Um tiltimo aspecto a examinar diz respeito a participagao de homens e mulheres ¢ de brancos € negros na colegio de Angra dos Reis. Maria Emilia Mattos nota, com agudeza, que os ex-votos constituem as primeiras pinturas de mulheres na hist6ria do Brasil.° De fato, descontadas as Nossas Senhoras © as santas pintadas nos tetos e nos painéis das igrejas, inclusive aqueles em azulejos, os retratos coloniais limitaram-se aos homens, em geral ligados & administragdo.* No entanto, os quadrinhos do sul fluminense nao privilegi- am significativamente as figuras femininas sobre as masculinas. Apesar dos riscos desse tipo de identificagao (3 casos duvidosos) e embora nem sempre © comanditério do ex-voto fosse 0 beneficiado pela mercé celeste recebida, foi possivel contar 38 mulheres € 36 homens, na maioria adultos, entre as per- sonagens representadas no conjunto, mostrando-se mesmo um maior ntime- ro dos segundos (17) sobre as primeiras (15), no caso do Convento de Sao Bernardino. De qualquer forma, essa proporgao no parece indicar que a pré- tica votiva dessa populagio jé se tivesse tornado a expresso de uma religio- sidade ligada predominantemente ao sexo femi Em termos das etnias representadas, predomina largamente a branca em 63 exemplares (53,8%), contra 21 (17,9%) com personagens sem diivida negras, mais outros dois duvidosos. Num caso, talvez chorando, uma mulher branca segura no colo uma crianga negra. Naqueles provenientes da Capela da Ribeira, porém, limitam-se a apenas 6 (13,0%) dos 46 quadros, enquanto nos do Convento de Sao Bernardino 15 (36,7%) dos 42 trazem figuras negras, ino. © CE. Pessda, Milagres.... p. 53. "CE, por exemplo, Pessba, Milagres... pp. 54, 55, 60, 61, 64 ¢ 84. ©” Gf. “Promessa, milagre e ex-voto”, Pess6a, Milagres... pp. 31-2. ® Cf. Hannah Levy, “A pintura colonial do Rio de Janeiro: notas sobre suas fontes ¢ alguns de seus aspectos”, Revista do Servica do Patrimonio Histérico e Artistico Nacional, Rio de Janeiro, ¥. 6, 1942, pp. 7-78. GE, PessOa, Milagres... p. 55 (embaixo) O reverso do milagre: ex-votos pintados e religiosidade em Angra dos Reis inclusive a cabega do “escravo Pardo de Manoel Jorge de Mattos de nome Benedito”.** Além desses, a imagem do “Inocente Manoel Escravo de Salva- dor de Souza”, deitado cm um lcito simples, surge como a de um menino, com a cabega enfaixada, mas dranco, evidenciando aquelas discorgées tfpicas desse tipo de representagiio, mencionadas acima.* Perante os desafios colocados pela fonte iconografica dos 117 ex-votos pintados de Angra dos Reis, reproduzidos em Milagres, a andlise acima per- mitiu estabelecer as caracterfsticas que os distinguem. No entanto, é preciso nao esquecer que se inserem numa tradigfo, constituem um tipo de repre- sentagao que nao nasceu espontaneamente naquele local, mas foi levado para ali ¢ sofreu reelaboragées ¢ adaptagdes, na medida de sua utilizagio. Pouco se sabe dos seus autores, embora, em um, conste o nome de Anténio Martins d’Amorim por baixo do leito em que o enfermo esta deitado — masa referén- cia seria ao pintor ou ao beneficiado?™ José Pessda e Maria Emilia de Mattos lembram a presenga de artifices competentes, responsaveis pelas imagens ¢ por outros objetos das igrejas na regido desde o século XVII, e também 0 nome de alguns pintores especializados nas cenas votivas, as vezes pertencentes a uma mesma familia, que a tradi¢ao oral da cidade conservou.** Esses dados nao autorizam maiores elaboragdes, mas nao inviabilizam a hipétese de que a pratica dos ex-votos angrenses, como as devogées que ela encarna, tenham sido trazidos de Portugal, como nas demais regiées do Brasil. Nessa perspectiva, um exame dos exemplares portugueses revela-se indispensavel. Ainda no estagio inicial, ele destaca pontos de contato ¢ de diferenga. L4, como cd, em Angra como em Congonhas e alhures, predomina arepresentagao do docnte om sua cama € nao se nota a progressiva translagiio do espago celeste da esquerda para a dircita, observada por Cousin no sul da Franga. No entanto, como em Congonhas, so numerosos os de acidentes € no deixam de aparecer molduras ornadas, mas sem a exuberancia encontra- da em Angra. Também diferentemente daquele desta localidade, o espace celeste esté quase sempre presente € ocupa por vezes toda a lateral do qua- dro, dando uma idéia de intimidade com o sagrado, como salientado em ou- tra ocasiiio.** Em compensagao, em Portugal, sao numerosissimos os ex-vo- ® Cf. Pessoa, Milagres..., p. 109 (embaixo), ® Cf. Pessba, Milagres.... p. 92. Grifo meu na transcrig&o da legenda, “CE Pessoa, Milagres.... p. 66. Cf Pessoa, Milagres.... pp. 19 € 30. SCE. Neves, “Os ex-voros.. Guilherme Pereira das Neves Dossié tos marinhos; ocorrem casos de justaposicfio da cena anterior € posterior a0 acidente, como em Congonhas; e, diverso do que se acha no Brasil, alguns referem-se aos animais domésticos. Além disso, também como em Minas, sao mais freqilentes os ex-voros de agdo de gragas. Contudo, nem um s6 apresenca as caracteristicas do ex-voto anatOmico, igualmente ausente da Provenga ¢ tlio marcante em Angra.” Essa analise, ainda que superficial, permite confirmar a presenga dos ex-votos pintados anatémicos, a raridade da representagio do espago celeste ¢, num plano secundério, a ornamentagdo das bordas como os tragos iconograficos mais salientes da colegio de Angra dos Reis. No entanto, em termos propriamente iconolégicos, 0 que significa? Parece evidente que esse significado prende-se & religiosidade vivida ¢ praticada pela populagao de Angra dos Reis no século XIX ~e também no XX e, por hipétese, até no XVIII — que decorria das ferramentas mentais de que dispunham os fiéis ¢ os artistas anénimos que encomendaram e pinta- ram 08 ex-votos. Foi com essa religiosidade que procuraram dar sentido ao mundo, porque, como aponta Solange Alberro, até o século XVIIL, nos paises enropens e de influéncia ocidenral, (...)0 religioso estava intimamente confundido com 0 que hoje consideramos “o politico”, “o social”, “o cultural”, “o ético”. Em outras palavras, essas ¢s- feras ainda nao haviam sido identificadas como distintas e, portanto, nfo se tinham dissociado e se tornado autOnomas. O amslgama dessas nogées ¢ os comportamentos e priticas, que delas derivam, constitufam o fundamento das construgdes mondrquicas € imperiais, ¢ os sentimentos patriéticos eram en- lo indissociaveis dos religiosos. Essa vivéncia, compartilhada por todos os habitantes de Angra, ainda que lida ¢ interpretada diferentemente por descendentes dos curopeus ¢ dos africanos ali estabelecidos, em fungao das bagagens culturais distintas que canegava influenciada, ou reorientada, pela introdug3o ou pela propagacao de novas , estava, por assim dizer, em seu sangue, mas nao deixou de ser 5 Para essa comparagio sumiria, recorri a alguns catdlogos ¢ estudos portugueses recentes, como os ja indicados Milagre ’ fez, Ribeiro et af., Do gesto a mem dria... © Catdos0 ef an, Bs paintis ootivos..., assim como a Agostinho Araiijo ef al., Estérias de dor, esperanca e festa: 0 Brasil em ex-volos portugueses (séculas XVII-XIX), Lisboa, Comissio Nacional para as Comemoragdes dos Descobrimentos Portugueses, 1998 (todos com reprodugées). ® “Retablos y religiosidad popular en el México del siglo XIX”, Rerablos y exvot0s.. pp- 8-31, pul 46 O reverso do milagre: ex-votos pintadas e religiosidade em Angra dos Reis praticas devocionais, como a do ex-voto pintado, em geral wazida por religi- osos regulares, como 05 franciscanos, chegados A vila em 1652 ¢ estabeleci- dos no atual Convento de Sao Bernardino, em 1763.” Essas novas praticas, como assinalado acima, decorriam do esforgo de cristianizagao posto em marcha pela Reforma Catélica, a partir de uma inédi- ta sensibilidade religiosa, a devogdio moderna, surgida no final da Idade Média ¢ suficientemente influente no inicio do século XVI para impulsionar figuras como Erasmo, Lutero, Thomas Morus ¢ Inacio de Loiola. No entanto, na América portuguesa, as possibilidades de sua implantagao encontravam-se comprometidas pela estreita dependéncia que o regime do padroado estabe- lecia para a Igreja diante da Coroa. Por intermédio da Mesa da Consciéncia e Ordens, 0 soberano colocava-se como 0 administrador dos beneficios eclesi- Asticos no ultramar, dele dependendo a designagio de paroces, a criagao de freguesias, o estabelecimento de bispados ¢ a manutengao do culto, de uma forma geral. Como resultado, no inicio do século XIX, apenas sete dioceses cerca de 600 paréquias cuidavam de aproximadamente 3,5 milhGes de almas, 0 que inviabilizava, em grande medida, a intensidade do esforgo que a cristianizacdo tridentina pressupunha, enfraquecida, ainda por cima, com a expulsao, em 1759, dos jesuitas, que até entio tinham assumido a maior par- te das iniciativas nesse sentido."” Nessas condigées, impediu-se o movimento de “saida da religiao”, de que fala M. Gaucher, capaz no de afastar os fi¢is de suas crengas, mas de assegurar (...) asafda de um mundo em que a religifio é estruturante, em que cla coman- da a forma politica das sociedades ¢ em que ela define 2 economia dos lagos sociais. [...] £ precisamente nas sociedades que sairam da religido que o reli- gioso pode ser tomado como uma superestrutura em relagdo a uma infraestrutura que funciona muito bem sem ele [...]. Nas sociedades anterio- res a esse acontecimento, em compensacio, 0 religioso faz parte integrante du funcionamento social. A saida da religido é a passagem a um mundo em * Cf. Pessoa, Milagres.... pp. 15 ¢ 28. Em Portugal, uma série de seis ex-votos dispostos em predelas, na sacristia do santuirio de N.S. da Lapa, concelho de Sernancelhe, foi encomen- dada pelos jesuitas, na primeira década do século XVIII, para divulgar 0 culko mariano. Cf. Ribeiro e/ af., Da gesto a memoria... p. 40. © Para esses aspectos, cf. Guilherme Pereira das Neves, E Receberd Mercé:a Mesa da Conseitucia ¢ Ordens eo clero no Brasit, 1808-1828, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1997, ou o seu resu- mo, no artigo intitulado “Entre o trono e o altar: a Mesa da Consciéneia ¢ Ordens ¢ o papel da religido no Brasil (1808-1828)”, Maria Beatriz, Niaza da Silva (Coord.), Culewra portuguesa na Terra de Santa Graz, Lisboa, Estampa, 1995, pp. 171-189. a Guilherme Pereira das Neves Dossié que as religides continuam a existir, mas no interior de uma forma politica e de uma ordem coletiva que elas nao mais determinam." Isso porque foi a cristianizacao profunda ¢ espiritualizada das Refor- mas, tanto catélica quanto protestante, ao exorcizar as concepges magicas, que fez a divindade retirar-se do mundo material para refugiar-se na conscién- cia incorpérea dos fiéis, garantindo, a0 mesmo tempo, tanto a naturalixacdo da realidade ffsica— que propiciou o desenvolvimento das ciéncias empiricas — quanto as concepgdes contemporineas de uma sociedade baseada na lei im- pessoal € igual para todos. Ao contrario, na América portuguesa, a cristianizagao superficial dei- xou como legado a sobrevivéncia de imemoriais tradigées mAgicas, ndo s6 perpetuando praticas e sensibilidades que deram ao pais tragos especificos, como imprimindo & prépria religiosidade um carater peculiar, processado no cadinho de culturas resultante do processo de colonizagao. E é sob esse olhar que se podem considerar as manifestagdes devotas que se corporificaram nos ex-votos pintados do Brasil, inclusive nos de Angra dos Reis. O primeiro indicio disso se encontra no pequeno ntimero de ex-votos de agio de gragas, a representagao por exceléncia da f depurada, resniranre da devogao moderna na tradigao votiva catélica. Da mesma forma, a posigio indiferente do espago celeste esquerda ou & direita do observador ~ ¢ até mesmo uma certa predominancia da tiltima — sugere a dificuldade de estabe- lecer 0 sagrado como um dominio distinto do profano, revelando a perma- néncia de uma mentalidade que considera o divino como imanente, como presente no cotidiano. Essa interpretagao reforga-se com a freqiiéncia com que 0 espaco celeste nfo se contenta em situar-se ao alto, mas ocupa toda a lateral do quadro, numa extraordindria cordialidade estabelecida com 0 intercessor. No caso de Angra, comparado ao de Congonhas, por exemplo, essas tendéncias encontram-se como potencializadas pelo desaparevimento yuase completo do espago celeste, que nao significa uma precoce secularizacio, mas, sim, a falta de necessidade de distinguir o sagrado do profano, uma vez que ambos esto colocados no mesmo plano. Nao € de se admirar, assim, a ausén- cia de qualquer exemplar de agao de gragas. Por outro lado, a presenga dos La religion dans ta démocratie: parcours de la taivite, Paris, Gallimard, 1998, p. 11. © Esse processo, M. Gauchet explivou-o em Le désenchantement du monde: une histoire politique dela religion, Paris, Gallimard, 1985. Ver também P, Furet & J. Ozouf, “Trois sigcles de métissage culturel”, Lire et rire, Paris, Minuit, 1977, v. 1, pp. 349-69. O reverso do milagre: ex-votos pintados e religiosidade em Angra dos Reis ex-votos anatémicos — ao que tudo indica, exterior tradigo portuguesa — nao parece plausivel explicd-la pela introdugao de alguma influéneia estr nha, mas, sim, pelo mesmo movimento de persisténcia de uma mentalidade magica, que reduz o ex-voto pintado a dimensao de um ex-voto esculpido, muito préximo do amuleto e dos objetos magicos. Desaparece, dessa forma, a tensio entre a fungao de s/mbolo e a de narragao, que Gombrich identifica na pintura dos Tempos Modernos como o pictograifico ¢ 0 forogrdfico, pata So mente persistir a primeira, elevada a uma manifestagao da crenga na “inde- terminagao do mundo”, que prescinde da encomenda especifica, para con- tentar-se com o reaproveitamento periédico das mesmas imagens por parte de outros devotes. Na realidade, como a maioria dos habitantes do universo luso-brasileiro, desprovidos das ferramentas mentais de que uma cristianizagao profunda os teria dotado, os fiéis de Angra, localizados numa posigzo margi- nal em relac&o aos principais cixos do império, continuaram lendo a mensa- gem depurada da Reforma Catélica com os cédigos diversos da cultura popu- Jarque traziam. Procederam a uma aproximagio da devogao moderna, enear- nada na tradigao do ex-voto pintado, as vicissitudes do corpo € do baixo corpo- ral, como ditia M. Bakhtine, caracteristicas da cultura popular imemorial, por meio da predominancia da cena do devoto em seu Icito de agonia, do gosto pela represents gra, pelos olhos, pelas cabecas e pelos pés afetados, ainda que enfeitados gra- gas as bordas ornamentadas, numa tradigdo barroca.* Mesmo em Angra, no entanto, nao é crivel que a difusio dessa pricica votiva, estabelecida e propagada pela cipula da Igreja, tenha atingido ime- diatamente a massa da populagao. Como indicam alguns exemplares mais claborados © requintados, como, em Angra, aqueles com 0 Ieito dorado de dossel ou, em Congonhas, o do “escravo Jo&o de Maria Leme” ¢, om Pernam- buco, os grandes quadros da Igreja de Igaragu, é provavel que ela tenha sido introduzida pelas clites c, em scguida, filerasse na diregio dos estratos mais humildes, num proceso de circularidade cultural. Entretanto, isso no impe- diu que até os nobres mantivessem a pritica, como indica o mencionado exem- plar, encomendado pela imperatriz Leopoldina, em 1823, conservado na Igreja do Outeiro da Gléria, porque, destituidos das ferramentas mentais adequa- -do das partes doentes e pelos acidentes macabros ¢, em An- E. H. Gombrich, “Paintings for Altars: Theis Evolution, Ancestry and Progeny”, The Uses of Images: Studies in the Social Function of Art and Visual Communication, London, Phaidon, 2000, pp. 48-79, pp. 493s. | Loenvre de Francois Rabelais et la culture populaire au Moyen Age ot sous la Renaissance, Patis, Gallimard, 1970. 9 Guitherme Pereira das Neves Dossié das para exercité-la nos moldes propostos pela Reforma Catélica, continua- vam partilhando a pequena tradigao de uma certa cultura popular, como tam- bém ocorria, até meados do século XIX, pelo menos, nas grotescas festas de rua. Sob esse aspecto, a presenga macica da legenda escrita — que chega a0 ponto de assumir a forma de tabuinhas de madeira, contendo apenas 0 texto, como se pode ver na Igreja de N. S. da Penna de Jacarepagud, semelhantes as placas de mérmore que Cousin encontrou na Provenga, apés a Primeira Guerra — parece trazer uma indicagao suplementar.® Confirmado pela prati- ca angrense de colar a legenda em papel sobre a madeira de suporte dos ex- votos, provavelmente em fungio da incapacidade dos pintores para copid-la, uata-se de um estranho /riunfo do escrito numa tegiio de alfabetizagao extre- mamente resirita, mas que, talvez, se torne menos enigmitico, caso se consi- dere o estabelecimento do padrao inicial por uma clite mais familiarizada com as letras.” Para concluir, por conseguinte, a andlise da religiosidade que transpa- rece dos exemplares de Angra dos Reis, parece apontar para algo distinto daquilo que tem sido exaustivamente sublinhado por aqueles que trataram dos ex-votes pintados no Brasil, movides pela preocupagao de recuperar valorizar um patrimdnio nacional e popular, De fato, muito mais do que considera-los, & maneira de musedlogos € criticos de arte, como manifesta- ges artisticas de um powo, por mais criativas ¢ originais que sejam, convém, talvez, enxergi-los, como sugere a hist6ria, enquanto uma evidéncia a mais de tudo o que foi negado a esses individuos do povo, sob a forma dos instru- mentos mentais com os quais pudessem assumir a posigdo de cidadaos na nagdo esgargada, que se constituiu a partir de 1822. © Cf. Bakhtine, Loewe... C. Ginzburg, The Cheese and the Worms, London, Routledge & Kegan Paul, 1981; ¢ Georges Duby, “A vulgarizagao dos modelos culturais na sociedade feudal”, L. Bergeron (Org.), Niveis de cultura e grapos sociais, Lisboa, Santos, Cosmos, Martins Fontes, 1974, pp. 43-63. Ver, ainda, Burke, Popular Culture; Martha Abreu, O império do divine: festas reli= ginsas ecultura popular no Rio deJaneiro, 1830-1900, Rio de Janciro, Nova Fronteira, Sio Paulo, FAPESP, 1999; e William de Souza Martins, Arraiais e procissaes na Corte: civilizagdo ¢festas na cidade do Rio de Janeira (1828-1860), Diss. de Mestrado apresentada ao Programa de Pés- duagio em Historia da Universidade Federal Fluminense, Nitersi, 1996, “ Cf. Guilherme Pereira das Neves, “Os ex-votos pintados e a religiosidade... Cf. Neves, “Os ex-votos..." € Guilherme Pereira das Neves, “Um mundo ainda encantado: religido e religiosidade ao fim do periodo colonial”, Oceanos, Lisboa, n° 42, abr-jun 2000, pp. 114-130. Gf, ainda, fack Goody & fan Watt, “The Consequences of Literacy”, J. Goody (Ed.), Literacy in Traditional Societies, Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1981, pp. 27-68. José Pesséa parece pensar 0 mesmo sobre a alfabetizagio dos pintores, cf. Milagres... pp. 18-19. A expres sio “triunfo do escrito” é de B. Cousin.

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