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Repertório de identidades:
Música e representações do nacional em
Mário de Andrade (Brasil) e Alejo Carpentier (Cuba)
(décadas de 1920-1940)
Orientador:
Pro f. Dr. Arnal do Daraya Co ntier
Fevereiro de 2002
FAPESP / SEPHIS
Banca examinadora:
Data da defesa:
24 de maio de 2002
ii
RESUMO
iii
ABSTRACT
iv
RESUMEN
v
Agradecimentos
Esta tese articula-se num trânsito intelectual e afetivo entre várias coordenadas
espaciais e temporais. Muitas pessoas têm uma presença significativa neste percurso,
nestas idas e vindas entre Brasil, Cuba, Porto Rico, principalmente, entre a memória
dos anos 1920 e 1930 e a cotidianidade da nossa virada de milênio.
Arnaldo Daraya Contier tem sido uma influência marcante no meu olhar de
pesquisadora desde que, recém-chegando a São Paulo, assisti ao curso “Música e
modernidade” no primeiro semestre de 1993. Como membro da banca da minha
dissertação de mestrado e posteriormente como orientador, no doutorado, tenho me
beneficiado da sua crítica incisiva e do seu estímulo.
Entre as pessoas que leram e comentaram trechos deste trabalho quero destacar
principalmente Ángel G. Quintero Rivera, meu pai, que sempre demostrou o maior
interesse e entusiasmo pelas minhas pesquisas, escritos e opções acadêmicas. As
perspectivas de Rafael J. de Menezes Bastos também marcam significativamente as
minhas abordagens. Agradeço as suas observações sempre pontuais e a generosa
disposição para ler e comentar os meus manuscritos. André Bueno fez interessantes
observações sobre vários capítulos desta tese. O seu conhecimento e interesse por
estudar manifestações populares brasileiras, particularmente nos âmbitos da música,
dança e teatro popular, me fizeram compreender, de uma forma que não poderia achar
nos arquivos, certos ângulos da personalidade de Mário de Andrade. Agradeço
também o seu alento e apoio.
vi
Gérarde Magloire, Lívio Sansone, Juan Gelpí, Jorge Giovanneti, Luis Duno, Robin D.
Moore, e Mariana Martins Villaça.
Entre janeiro de 1999 e setembro de 2000 vivi literalmente em trânsito e criei afetivos
laços de família com as pessoas que me acolheram nas diversas localidades. De todos
recebi um apoio muito generoso e incondicional, assim como grandes doses de
estímulo. Vai o meu agradecimento com a saudade da convivência cotidiana: à
família Carranza (Julio, Nancy, Marla e Gabriela) em Havana; Alejo Bonachea, Macu
e sua amorosa filha em Remedios, Cuba; à família Taveras-Pineda em Santo
Domingo (Fafa, Magali, Fafico, Marcel e Sira); meus queridos amigos Sérgio Nunes e
Roberta no Rio de Janeiro; Adriana Pucci, cuja amizade me sustentou em momentos
difíceis, em São Paulo. Verónica Aravena, Ángela Pimenta e Mónica Arroyo
igualmente têm sido um apoio consistente e fundamental. Mesmo na distância, me
acompanha a lembrança e o carinho por Rocío Tovar, Mario Gutierrez e Roberto
Morales. A minha mãe, Marcia Rivera, com toda a sua inigualável dedicação, e Luis
Yarzábal souberam estimular o andamento de meu trabalho durante vários meses de
convivência em San Juan. Sou grata igualmente a Alexandra Tobler pela sua
camaradagem na cotidianidade dos últimos meses de redação. Por outro lado,
Alexandre Krug acompanhou de perto as etapas inicias deste trabalho. Agradeço o seu
apoio e a sua disposição de sempre para ler e corrigir meus manuscritos. Devo a ele
também a revisão final desta tese.
A maior parte da minha pesquisa sobre Mário de Andrade foi feita no Instituto de
Estudos Brasileiros (IEB). No arquivo desta instituição fui sempre muito bem
auxiliada por Maria Izilda C.N. Fonseca Leitão, Fernanda T. Magalhães, Maria
Helena Pinoti Schiesari e Maria Cecília F. Castro Cardoso. Igualmente agradeço às
funcionárias da biblioteca e sua diretora, Maria Itália Causin. Obtive autorização das
famílias de vários correspondentes de Mário de Andrade para consultar e citar trechos
das cartas pertencentes ao arquivo do escritor: agradeço a Maria Josephina Mignone,
Marina H. Lorenzo Fernândez, Maria de Loudes Almeida Miller, Maria Helena
Guimarães da Costa e Silva, Mário Agostino Cenni, Marisa Gandelma e João
Guilherme Ripper, diretor da Escola de Música da UFRJ pela gentileza de me
conceder tais autorizações. Telê Porto Ancona Lopez e Flávia Camârgo Toni me
auxiliaram no diálogo com o prof. Ripper. Vera Silvia Camargo Guarnieri além de me
conceder autorização para ler as cartas de Camargo Guarnieri no Arquivo do IEB,
teve a gentileza de me abrir as portas da sua casa para consultar as missivas de Mário
de Andrade destinadas ao compositor, conservadas por ela.
Sou grata também à Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural São Paulo pela
autorização para gravar material sonoro de grande importância para a minha pesquisa.
Cristóbal Díaz Ayala e a sua esposa Maritza gentilmente me gravaram material da sua
preciosa coleção. O Centro Odilio Urfé em Cuba me concedeu vários discos de
Alejandro García Caturla e Amadeo Roldán. Agradeço igualmente a Maurício
Monteiro, Yannis Rüel e Luis Manuel Álvarez pelo seu auxílio na gravação de
documentos musicais, assim como o apoio técnico de Joel Donato do LABCAD
(Universidade de Porto Rico), e da seção técnica de informática da FFLCH.
Não poderia ter afrontado a dedicação quase exclusiva à vida acadêmica durante os
nove passados anos de estudos de pós-graduação sem contar com o sentido de
comunidade que me proporciona a participação de outros âmbitos da prática cultural.
Em São Paulo, o Centro de Estudos e Aplicação da Capoeira (CEACA), orientado
pela sabedoria de Mestre Alcides de Lima, foi um espaço de contínuo crescimento e
uma referência importantíssima para compreender o Brasil e me sentir parte deste
vasto universo. Os colegas do mundo teatral da cidade com quem colaborei
esporadicamente em diversas instâncias também foram uma fonte de lucidez e
utopias. André Bueno generosamente me abriu as portas do Grupo Cachuera, cujo
multi-dimensionado projeto é uma grande fonte de inspiração e reflexão.
A minha amizade com Pedro Adorno me faz percorrer o terreno vital da confrontação
contínua entre o teórico e o prático. O seu entusiasmo e interesse pelos meus
caminhos intelectuais, a sua particular compreensão sobre os mesmos, e a vontade de
conceber novos projetos de colaboração são sempre um estímulo fecundo. O legado
dos anos de convivência com o Bread and Puppet Theater e o seu diretor Peter
Schumman paira sobre as visões que compartilhamos em torno da arte, o político e a
vida cotidiana, A Pedro, a Cathy Vigo e a toda a equipe de Agua, Sol y Sereno
agradeço a insistência nesse espaço alternativo de criação. Sou grata igualmente à
janelinha aberta para a Capoeira brasileira dentro de Andanza. A Pedro Reina
agradeço o rico diálogo que apenas começa. A William Cepeda devo instigantes
conversas sobre os processos criativos e a inspiração incalculável da sua música.
viii
Me considero muito afortunada por contar com a amizade de Ivelisse Rivera,
Alejandra Martorell, Isar Godreau, Lolita Villanúa, Alicia Díaz, Anita Hernández,
Beatriz Riefkohol e Tania Rosario. Principalmente elas são um espelho cotidiano e
fundamental tanto no plano da busca intelectual e artística como no dos afetos.
Agradeço a cumplicidade sempre renovada.
Igualmente afortunada me sinto por contar com uma família que é fonte inesgotável
de apoio, carinho e felicidade. Agradeço aos meus pais principalmente porque ambos
sabem conciliar o calor de uma relação muito próxima e camarada, com a liberdade e
o desprendimento de respeitar as minhas opções. Sou imensamente grata aos meus
avós (Yeye e Abuibo) e a minha madrinha Ileana Quintero pelo apoio sempre
incondicional e o carinho sem par. A Margarita, Tisha, Eddie e Marko, Joaco, Jelka e
Ambar; a Luis, Alejandro e toda a turma dos Yarzábal; aos meus tios Ana Helvia,
Erick, Rafi, Güisin e Maritere; aos meus primos Rafo e Alex, Anamari, Amed,
Helvia, Ana Elisa, Marigaby, Mara e Tito; às sobrinhas Amanda, Paola e Tania e
outros membros da numerosa família estendida, agradeço o afeto que sobrevive às
minhas prolongadas ausências.
ix
Sumário
INTRODUÇÃO
Memória cultural: trânsito e encruzilhadas ............................................................ 1
Capítulo 1
Geografia cultural de São Paulo e Havana nos anos 1920 e 1930 .........................19
Capítulo 2
Evento e movimento: Modernismo brasileiro e Minorismo cubano ................... 48
Capítulo 3
Mário de Andrade e Alejo Carpentier: A gestação de um olhar crítico sobre a
música ........................................................................................................................ 64
Capítulo 4
Travessias pelas regiões do outro interior: Viagens e etnografia ........................ 89
x
SEGUNDA PARTE — IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO
Capítulo 5
Diálogos sobre o processo criativo: música ‘erudita’ para uma nação emergente
................................................................................................................................... 129
Capítulo 6
A nação que canta e dança: da poética à representação……………………….. 190
• Sátira e tragêdia:
a crítica social em El milagro de Anaquillé e Café ................................................ 245
Bibliografia ...............................................................................................................271
Notas ……………………………………………………………………………………….…293
xi
INTRODUÇÃO
Memória cultural: trânsito e encruzilhadas
1
incipientes percepções sobre o nacional, e que se situavam numa contracorrente
perante os ideais estéticos e culturais da bélle epoque. Estas visões assentam-se uma
década mais tarde num novo discurso hegemônico sobre o binômio ‘raça’ /
nacionalidade. Ensaios de interpretação social como Casa grande e senzala (1933) de
Gilberto Freyre e o Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940) de Fernando
Ortiz, cristalizaram uma valorização da mestiçagem como resposta ao dilema da
heterogeneidade, ao mesmo tempo em que elogiaram a herança cultural lusa e
hispânica, respectivamente.
Iniciei uma aproximação ao estudo dos vínculos entre o ideologema da
mestiçagem e o pensamento em torno da cultura no Caribe e no Brasil na minha
dissertação de mestrado A cor e som da nação: a idéia de mestiçagem na crítica
musical do Caribe Hispânico e do Brasil (1928-1948) 2. Chamava-me a atenção
então o lugar que ocupava a música nas reflexões sobre o nacional de figuras
intelectuais de grande destaque na época. A música aparecia recorrentemente como
metáfora da nação, precisamente por oferecer uma resposta palpável ao dilema da
heterogeneidade, pois nos gêneros de música popular observava-se a convergência de
tradições diversas. Por outro lado, a construção de uma música nacional no plano do
erudito tornava-se um projeto que sustentava o augúrio de uma nova civilização a um
só tempo autóctone e moderna.
Neste novo empreendimento me propus trasladar o foco da análise do
discurso da crítica para o exame dos seus processos de gestação e dos seus ecos na
criação artística. Partindo do diálogo entre crítica e criação, interessava-me
acompanhar os sinuosos percursos de certas idéias e analisar as suas formas de
concreção, seja em artigos, ensaios, peças musicais, libretos de ópera, etc. Perscrutar
a trajetória de Mário de Andrade e de Alejo Carpentier permitiu-me aprofundar na
análise de alguns pontos de encontro entre relatos e contextos, entre projetos e
realizações, entre preocupações sociais e concepções estéticas. O paralelo entre o
perfil intelectual destes dois autores me estimulou a desenvolver um olhar
comparativo que transcende a obra e a atuação dos mesmos e busca uma
compreensão das confluências entre a história cultural de Cuba e do Brasil.
2
Perspecti vas so bre a hetero geneid ade social e o âmb ito da cultu ra
3
Por outro lado, em sua reflexão sobre o gênero do romance, Mikhail M.
Bakhtin chama a atenção para o aspecto polifônico enquanto “diversidade social de
linguagens organizadas artisticamente” (Bakhtin, 1993, p. 74). Inspirando-nos nas
observações deste autor, entendemos que o exame do universo musical de uma
sociedade num momento histórico determinado deve considerar a sua pluralidade de
linguagens sonoras, ainda mais quando se trata de sociedades de uma grande
heterogeneidade cultural. Uma análise da música ‘erudita’ do período que aqui
estudamos, por exemplo, revela a diversidade de linguagens que nela se entrecruzam:
desde o romantismo e as pesquisas sonoras das vanguardas européias, até elementos
do vasto folclore cubano e brasileiro e das músicas chamadas de ‘popularescas’ que
circulavam através do rádio. Como bem assinala Bakhtin, estas linguagens não
devem apenas ser estudadas na sua especificidade formal, mas em relação à
sociedade que as engendra:
6
crítica, a historiografia e a etnologia, entre outras). Entendemos que estas práticas
não devem ser vistas isoladamente.
Uma aproximação à literatura teórico-metodológica mais recente no campo
dos estudos musicais revela um desconforto com os paradigmas de análise
musicológica e o interesse em participar de um diálogo mais fluido com outros
campos das ciências humanas.7 Partindo de uma reflexão sobre a história da
etnomusicologia e suas disciplinas afins, Rafael J. de Menezes Bastos (1995) discute
a herança e as consequências do célebre dilema etnomusicológico, segundo
estabelecido por Alan Merriam nos anos 60: “Tal dilema, congênito nesta área de
estudos, estabelece a música como constituída por dois planos de abordagens: o dos
sons (ou música) e o dos comportamentos (cultura). O primeiro mereceria uma
análise musicológica, sendo que o segundo exigiria um exame antropológico”.
Segundo o autor, a definição de Merriam é problemática na medida em que implica
numa relação de determinação do plano dos sons pelo dos comportamentos e, por
outro lado, opera uma “redução da música […] ao sistema de notação da Música
Ocidental”, transformando-a num objeto inacessível ao pesquisador da cultura
(Menezes Bastos, 1995, pp. 10-11). Philip Tagg descreve esta problemática de
maneira similar:
Fontes
10
antologias (Andrade, 1963, 1976, 1977, 1993; Coli, 1998; Carpentier, 1980, 1985,
1985b, 1987c, 1994, entre outras). A pesquisa em revistas culturais da época e nos
arquivos de recortes dos próprios autores, revelou também vários textos que ainda
não foram reimpressos. Além destas críticas e artigos, abordam-se os ensaios sobre
música de maior envergadura publicados como livros na época ou posteriormente,
graças à edição de outros pesquisadores. A análise do conjunto de escritos sobre
música de Andrade e Carpentier atravessa este trabalho de princípio a fim. Estes
textos são examinados em contraponto com fontes diversas. Na primeira parte da
tese, a relação do pensamento musical destes autores com o contexto cultural dos
anos 1920s e 1930s é explorada a partir de uma aproximação às revistas culturais da
época. Por outro lado, o núcleo documental que sustenta a segunda parte da tese é a
correspondência entre críticos e compositores, enquanto a terceira parte focaliza a
análise de seis projetos de ópera e balé.
O exame das revistas culturais da época concorre nesta pesquisa não só como
fonte de escritos sobre música dos autores abordados, mas também como espaço para
o estudo das polêmicas artísticas e intelectuais do período. As revistas do Brasil
foram consultadas no Instituto de Estudos Brasileiros e na Divisão de Música da
Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. A maior parte das coleções do IEB pertencem
ao arquivo Mário de Andrade e portanto contêm anotações e marginália do autor que
enriquecem a pesquisa. A quantidade de revistas musicais no período estudado, assim
como o espaço dedicado à música em revistas culturais e literárias são testemunho de
um contexto florescente de debates sobre a música. Foram examinadas
sistematicamente, nos anos indicados, as seguintes revistas sobre música: Correio
Musical Brasileiro (1921); Ariel (1923-1929); Weco (1928-1931); Ilustração Musical
(1930-1931); Revista da Associação Brasileira de Música (1932-1934); Revista
Brasileira de Música (1934-1943); Mundo Musical (1936); Som (1936-1938); e
Resenha Musical (1938-1941). Foram examinadas, também, outras revistas culturais
com um forte componente musical, ou relacionadas à trajetória de Mário de Andrade.
Entre elas: Klaxon (1922-1923); Terra de Sol (1924); Estética (1924-1925); Revista
do Brasil (1926); Festa (1927-1929, 1934-1935); Movimento Brasileiro (1928-1930);
Arco & Flexa (1928-1929), Revista de Antropofagia (1928-1929) e a Revista Nova
(1931-1932). As revistas cubanas foram examinadas na Biblioteca Nacional José
Martí, no Museo de la Música em Havana, e na Sala de Revistas da Universidad de
Puerto Rico. Entre elas destacam-se as seguintes: Social (1916-1937); Archivos del
Folklore Cubano (1924-1930); Carteles (1927); Revista de Avance (1927); Musicalia
11
(1928-1932; 1940-1946); Revista Bimestre Cubana (1931-1945); Revista Ultra
(1939) e Estudios Afro-cubanos (1938-1946).
Uma via para o estudo das relações entre crítica e criação musical é o exame
da correspondência entre críticos e compositores. Por razões óbvias, esta estratégia
depende da existência de tal relação epistolar e da disponibilidade dos documentos.
Entretanto, quando isto é possível, a análise deste material pode ser extremamente
reveladora dos meandros dos processos de criação, e de certas visões que
permanecem ausentes dos escritos destinados à publicação. A correspondência
pessoal, mesmo quando trata de assuntos estéticos ou ideológicos, permite uma
espécie de aproximação antropológica aos autores e contextos culturais abordados.
Nesta pesquisa examinamos os arquivos de correspondência de Mário de Andrade no
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo; de Heitor Villa-
Lobos, no Museu Villa-Lobos no Rio de Janeiro; e de Fernando Ortiz na Biblioteca
Nacional José Martí, em Havana. Igualmente servimo-nos da correspondência já
publicada de Mário de Andrade e do compositor cubano Alejandro García Caturla.
A vasta correspondência passiva de Mário de Andrade, que permaneceu
guardada por disposição do escritor até 1995 (50 anos após a sua morte), agora
organizada e disponível para consulta no Instituto de Estudos Brasileiros, constitui
um rico acervo para a pesquisa de numerosos assuntos da história cultural e social do
Brasil. Um exame cuidadoso do catálogo9 nos permitiu identificar 170 missivistas
cujas cartas seriam de interesse para esta pesquisa. A referência destas cartas foi
organizada nas seguintes categorias: 1- cartas de compositores; 2- cartas de outros
críticos sobre música; 3- cartas sobre o estudo e compilação do folclore musical; 4-
cartas de intérpretes musicais; 5- cartas de remetentes estrangeiros sobre música; 6-
outras cartas miscelâneas de interesse para a pesquisa. Como o processo para obter
autorização para a consulta é dificultoso10 resolvemos concentrar na correspondência
dos principais compositores da época e de alguns críticos com os quais Mário de
Andrade manteve um diálogo sobre assuntos musicais. Examinou-se assim a
correspondência dos compositores Heitor Villa-Lobos (24 cartas), Luciano Gallet (56
cartas), Oscar Lorenzo Fernández (32 cartas), Francisco Mignone (110 cartas),
Camargo Guarnieri (15 cartas), do crítico Renato Almeida (121 cartas) e da cantora e
primeira esposa de Mignone, Liddy Chiafarelli (94 cartas). Graças a gentileza de
Vera Sylvia Camargo, pode ser examinada também a correspondência de Mário de
Andrade a Camargo Guarnieri (13 cartas). Arquivadas junto aos documentos
relacionados à ópera Café, Mário de Andrade guardou cópia de duas cartas enviadas
12
a Francisco Mignone, as quais também foram consultadas. No Arquivo Villa-Lobos,
examinou-se a correspondência destinada ao compositor pelos missivistas Mário de
Andrade (4 cartas), Camargo Guarnieri (7 cartas), Lorenzo Fernández (2 cartas),
Francisco Mignone (9 cartas), Darius Milhaud (1 carta) e Francisco Curt Lange (7
cartas). A consulta da correspondência cruzada entre Mário de Andrade e Manuel
Bandeira, recentemente publicada (Andrade, 2000), assim como a do autor com
Oneyda Alvarenga (Andrade, 1983b) foram também de suma importância para esta
pesquisa. Igualmente consultamos profusamente os vários livros de cartas de Mário
de Andrade a diversos destinatários, como Carlos Drummond de Andrade, Cândido
Portinari, Paulo Duarte, Anita Malfatti, Luis da Câmara Cascudo, Henriqueta Lisboa,
entre outros.
O cubano Fernando Ortiz foi outro prolífico correspondente. A sua gigantesca
coleção de cartas, ainda não foi catalogada, e encontra-se organizada em arquivos por
letras (a, b, c, etc.) segundo o sobrenome do missivista. Pela falta de catálogo e o
processo demorado para se obter autorização para a consulta deste arquivo, o mesmo
só pode ser examinado parcialmente. No entanto, identificaram-se algumas cartas de
grande interesse, como a correspondência cruzada entre Ortiz e Francisco Curt Lange
(13 cartas), e entre Ortiz e o brasileiro Renato Almeida (2 cartas). Finalmente a
correspondência publicada do compositor cubano Alejandro García Caturla — que
inclui cartas de Alejo Carpentier, Nicolás Guillén, Fernando Ortiz, Antonio Quevedo,
e do compositor Amadeo Roldán, entre outras — constitui outra fonte de grande
valor para este trabalho.
A terceira parte deste trabalho focaliza os projetos de ópera e balé que Mário
de Andrade e Alejo Carpentier desenvolveram em colaboração com compositores
contemporâneos. Os libretos, as partituras e as gravações destes, constituem o núcleo
documental desta análise. Pela relação destas peças com a escrita ficcional de
Andrade e Carpentier, a consulta de romances, contos e poemas destes autores
também foi de grande importância para a investigação. Os libretos das óperas Pedro
Malazarte (1928) e Café (1942), e do balé Maracatu de Chico-Rei (1933) de Mário
de Andrade, embora tenham sido publicados posteriormente em revistas ou
antologias, foram consultados nos manuscritos originais que contêm anotações e
marginália de interesse para a pesquisa. No caso de Alejo Carpentier, os libretos dos
balés La Rebambaramba (1928) e El Milagro de Anaquillé (1929) e da ópera Manita
en el Suelo (1931) só puderam ser consultados na versão publicada no primeiro
volume das Obras Completas (Carpentier, 1983). Examinou-se também o manuscrito
13
de Yamba-O. Tragedie Burlesque, ópera com libreto de Carpentier e música de
Marius François Gaillard, estreada em 1936. Quanto as fontes musicais destas obras,
foi possível consultar as partituras de Pedro Malazarte, (redução) do Maracatu do
Chico Rei,(orquestral), de La Rebambaramba, do Milagro de Anaquillé e de Manita
en el Suelo e os registros sonoros do Maracatu, de Pedro Malazarte, da
Rebambaramba e de Manita.
A pesquisa de fontes musicais está presente ao longo de todo o trabalho,
porém ela adquire propósitos diferentes em cada uma das partes desta tese. Na
elaboração de um quadro contextual das dinâmicas culturais da época, foi
fundamental a procura dos sons que conformam a polifônica trilha dos anos 1920s e
1930s em São Paulo e Havana, principalmente. Além dos registros de música popular
da época — cuja consulta em arquivos é geralmente dificultosa —, pude me
beneficiar do recente interesse de algumas gravadoras por remasterizar gravações
antigas que estão sendo comercializadas. Na segunda parte da tese que focaliza o
diálogo entre críticos e compositores, tentei construir um roteiro musical que
acompanhasse as discussões presentes na correspondência e na crítica publicada.
Finalmente, na terceira parte, a pesquisa de fontes sonoras foi acompanhada também
do exame das partituras, visando desenvolver uma análise que considerasse os
contrapontos entre os textos dos libretos e à sua dimensão musical. Como
complemento ao texto desta tese, foi preparado um CD que deve acompanhar a
leitura dos capítulos. Na segunda e terceira parte da tese, onde a música ilustra ou
forma parte da análise desenvolvida, esta indicação no texto {e} remete ao CD de
acompanhamento. Para a pesquisa de fontes musicais consultei principalmente os
seguintes acervos: o acervo Mário de Andrade do IEB-USP, a Discoteca Oneyda
Alvarenga do Centro Cultural São Paulo, a Fonoteca da Escola de Comunicações e
Artes da USP, os acervos dos compositores Amadeo Roldán e Alejandro García
Caturla no Museo de la Música em Havana e a coleção de Cristóbal Díaz Ayala em
San Juan.
Além destes registros de documentos que compõem o núcleo desta pesquisa,
foram consultadas outras fontes suplementárias como, por exemplo, os arquivos
temáticos de Mário de Andrade e Fernando Ortiz, onde estes agrupavam artigos de
diferentes revistas e jornais internacionais que ajudam a identificar influências e
interesses, assim como na contextualização das idéias de tais autores num marco
mais abrangente. Foram examinadas também coleções de programas de concertos
dos fundos de Mário de Andrade e dos compositores cubanos Amadeo Roldán e
14
Alejandro García Caturla, a coleção fotográfica de Mário de Andrade, a coleção de
instrumentos e objetos de cultos religiosos de Fernando Ortiz, e a biblioteca pessoal
de Alejandro García Caturla no Museu dedicado a este compositor instalado na casa
que foi a sua residência na cidade de Remedios, Cuba. Foram realizadas também
entrevistas às musicólogas cubanas María Teresa Linares e María Antonieta
Henríquez, à Teresa García, filha do compositor Alejandro García Caturla, à viúva do
mesmo (Catalina) e a neta (Zorimé, flautista na Orquestra Sinfónica Nacional), à
Lilia Carpentier (viúva do escritor) e a Rafael Farto (historiador da cidade de
Remedios), em Cuba.
Tive a coincidência feliz de chegar à pequena cidadezinha de Remedios no
dia em que se comemorava o natalício de Alejandro García Caturla, e a banda
municipal interpretava diante da casa onde viveu o compositor — hoje transformada
num museu — os danzones que este escrevera na adolescência. Nunca me ocorreu
que uma abordagem analítica, como a que me propus fazer nesta tese, a um momento
histórico cujos protagonistas apenas posso conhecer através de textos e testemunhos
fosse gerar uma ligação afetiva tão íntima com os sujeitos e ambiêntes pesquisados.
O vasto exame da correspondência pessoal sem dúvida colaborou principalmente
para este processo. A possibilidade de investigar ou ao menos percorrer os próprios
lugares onde se gestou esta trama — particularmente São Paulo e Havana, mas
também Rio de Janeiro, Minas, o Nordeste, Regla, Guanabacoa, San Juan de los
Remedios, Paris — certamente contribuiu também para a minha identificação com o
universo pesquisado. Me empenhei em caminhar pela cidade com o olhar de outros
tempos. E foi nesse ir e vir constante entre tempos e espaços que se construiu este
relato.
15
perspectiva geral para tentar avistar certas reflexões teóricas que emergem da trama
percorrida.
O gesto de redescoberta identitária marca de maneira significativa a
aproximação à criação artística no momento histórico focalizado nesta pesquisa. Os
quatro capítulos que compõem esta primeira parte da tese se propõem a traçar o
percurso crítico de Mário de Andrade e Alejo Carpentier em relação à música,
fazendo um esforço por recriar os ambientes culturais que acompanharam essa
trajetória: o mundo musical das burguesias paulista e havaneira dos anos 20; os
saraus dos modernistas brasileiros e minoristas cubanos; as expedições por territórios
musicais até então para eles desconhecidos como o carnaval carioca, os ‘toques de
santo’ nos bairros periféricos, ou as festas tradicionais no interior; os sons dos palcos
e cabarés de Paris... Este gesto de redescoberta que perseguimos nessa travessia pelas
geografias culturais referidas, desvenda a tomada de contato de intelectuais como
Mário de Andrade e Alejo Carpentier com uma multiplicidade de identidades que
convergem nas sociedades brasileira e cubana, as quais passam a informar a própria
atividade crítica e criativa destes autores. Uma abordagem deste processo nos
convida a refletir sobre o outro interior como categoria para pensar a conformação de
visões sobre o nacional na América Latina.
A segunda parte da tese se propõe examinar o projeto de construção de uma
música nacional no âmbito do erudito, focalizando o papel de Mário de Andrade e
Alejo Carpentier como críticos articuladores de parâmetros estéticos para tal
empreitada. Servimo-nos das críticas destes autores publicadas nos jornais e revistas
da época sobre a produção musical contemporânea, e da correspondência cruzada
entre críticos e compositores. O exame das polêmicas levantadas na correspondência
pessoal, e dos debates contidos nas páginas das publicações periódicas abrem duas
vias para a análise das visões estéticas e sociais em torno da arte e da cultura nacional.
Estes documentos permitem desenvolver uma análise dos contrapontos entre as
discussões sobre a criação no âmbito privado, as críticas publicadas e as obras
musicais em questão. A identidade é vista aqui como projeto a cimentar-se a partir da
criação artística.
A terceira parte aborda a articulação de versões do nacional num conjunto de
obras criativas de ópera e balé, onde as perspectivas de Mário de Andrade e Alejo
Carpentier entram em diálogo com o discurso musical dos compositores Francisco
Mignone, Camargo Guarnieri, Amadeo Roldán e Alejandro García Caturla. Estes
projetos literário-musicais exemplificam a percepção de que as identidades de ‘raça’,
16
gênero, e classe se revelam musicalmente, através do canto e do baile. A
aproximação de intelectuais como Mário de Andrade e Alejo Carpentier ao universo
do popular, e particularmente da música, parece ter provocado neles uma intensa
reflexão sobre as múltiplas caras do nacional, que se manifesta na sua obra crítica e
criativa. O bloco de rua levado ao palco do teatro nacional, como os tambores
exibidos no museu, nos convidam a refletir sobre os significados sociais das práticas
e discursos culturais. Esta investigação pretende encarar o estudo das identidades
como construções sociais complexas e em contínua transformação.
17
PRIMEIRA PARTE
Identidades redescobertas
CAPÍTULO 1
Geografia cultural de São Paulo e Havana nos anos 20 e 30
Em 1920 a cidade de Havana fazia 400 anos preservando o lugar que ocupara desde os primórdios
da colonização: o de principal porto do Caribe. Com uma história colonial bastante diferente, e apenas 34
anos mais nova, a cidade de São Paulo era a capital de um estado que emergia naquela segunda década do
século XX como um dos principais centros industriais e financeiros da América Latina, respondendo por
31% da produção industrial do Brasil. A população de ambas cidades aproximava-se então do meio
milhão de habitantes, dos quais cerca de um terço eram estrangeiros. Apresentavam um acelerado ritmo
de crescimento e profundos processos de transformação. Cidades cambiantes, cuja fisionomia urbana
adquiria novas formas que delatavam o auge econômico do açúcar cubano e do café paulista, em cujas
ruas convergiam línguas e sotaques de gentes provindas de lugares diversos, onde sentia-se o clima de
agitação política, a militância sindical e de novos setores, como os tenentistas em São Paulo e os
estudantes em Havana; são essas complexas cidades que os olhares jovens de Alejo Carpentier e Mário
de Andrade, respectivamente, vão se empenhar em decifrar.
A cidade histórica
San Cristóbal de La Habana foi a mais ocidental das sete vilas que os conquistadores espanhóis
fundaram no litoral sul da ilha de Cuba na segunda década do século XVI. Em poucos anos, os moradores
do pequeno assentamento trasladaram-se para um ponto no litoral norte que viria a ter uma importância
fundamental no mapa colonial americano: o local conhecido então como Porto de Carenas, onde se fixaria
a cidade de Havana. O historiador cubano Manuel Moreno Fraginals (1995) aponta que a descoberta da
corrente do Golfo, que provocou a mudança na rota de navegação de retorno à Europa, foi o motor
principal do traslado da vila. Um ato premonitório, já que dadas as condições geográficas privilegiadas do
porto e a sua localização, Havana viria se tornar a escala ideal dos navios que viajavam de volta à
metrópole. Na segunda metade do século XVI, já estava em marcha a exploração das riquezas minerais
do México e do Peru e havia sido organizado o sistema de frotas do império espanhol. Com seu estreito
canal de entrada, a baía de Havana era um porto fácil de defender de ataques inimigos, enquanto o seu
interior se abria de tal forma que era capaz de receber uns mil navios (Moreno Fraginals, 1995, p.36).
Nela passaram a reunir-se as naus que transportavam o ouro e a prata do México e do Peru enquanto se
preparavam para iniciar a travessia atlântica do retorno.
19
O ano é 1709. Um navio avariado vindo de Veracruz aporta em Havana. Precisa de conserto antes
de partir para o Velho Mundo. Lá chegando, um dos seus passageiros assistirá ao carnaval veneziano
onde, fantasiado de Montezuma, virá a inspirar uma ópera de Vivaldi. Antes, porém, depara-se com uma
cidade “bem edificada sobre as águas do porto” onde “reina o silêncio sinistro das mansões fechadas pela
epidemia. Fechadas as casas de baile, de guaracha, de remelexo, com as suas mulatas de carnes
oferecidas […] Como se o Senhor, de quando em quando, quisesse castigar os muitos pecados dessa
cidade falante, alardeadeira e despreocupada, caíam sobre ela, repentinamente, quando eram menos
esperados, os hálitos malditos das febres” (Carpentier, 1974)1. Alejo Carpentier narra os fatos no seu
Concerto Barroco, mais uma incursão do autor na fascinante história dos diálogos culturais entre os
chamados Velho e Novo Mundo. Mas voltemos ao bulício da Havana do início do século XVIII, um
porto que se erigia como bastião militar para a defesa dos preciosos metais que por ali passavam; uma
sociedade que crescia e se dinamizava para poder suprir as demandas das frotas, principalmente a
construção e reparação de navios e o abastecimento de alimentos para as tripulações. Se em 1582 não
contava com mais de 5.000 habitantes — dos quais cerca de 2000 eram índios e 2000 negros e mulatos,
livres ou escravos — no século XVIII era possivelmente uma das quatro cidades de maior população na
América2.
Enquanto Havana crescia olhando para o mar, a Vila de São Paulo de Piratininga, fundada por
jesuítas nas imediações de uma aldeia indígena, foi se transformando fundamentalmente numa base de
operações para a exploração do interior da parte oriental do continente americano. Ao longo do século
XVII foi ponto de partida de expedições lideradas por bandeirantes e integradas por grandes contingentes
de indígenas e mestiços em busca de metais preciosos e de grupos indígenas que eram combatidos e
apresados para serem vendidos como escravos para o cultivo da cana-de-açúcar em São Vicente e no Rio
de Janeiro ou do trigo em São Paulo. A capital do império português na América era então São Salvador
da Bahia e a produção açucareira do Nordeste a principal atividade econômica da colônia. Em fins do
século XVI, Salvador era uma cidade que tinha o triplo da população de Havana (14.000 habitantes em
1585) enquanto São Paulo não chegava aos 2.000 moradores.
Mário de Andrade não teve a sina que Carpentier gozou: ver a sua cidade fazer 400 anos. Mas
bem conhecia o projeto da obra que viria a tornar-se emblema de tal comemoração: o Monumento das
20
Bandeiras do escultor Victor Brecheret, cuja idealização foi contemporânea dos versos que o poeta
dedicou ao rio-testemunha da história da cidade. Os paulistas, navegantes do Tietê, tentaram reivindicar
exclusividade na exploração do ouro que bandeiras finalmente descobriram em fins do século XVII, mas
conseguiram apenas — depois de travar batalha com os concorrentes que chegavam de todas as partes —
a criação da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, em 1709, e o título de cidade para a Vila de São
Paulo em 1711. Despontava então, como porto de entrada de africanos escravizados — destinados ao
trabalho nas minas — e de saída de ouro, a cidade do Rio de Janeiro, para onde foi transferida a capital
do Vice-reinado em 1763.
Foi esse um ano significativo para a América colonial. Com o fim da Guerra dos Sete Anos e a
assinatura do tratado de Paris, Havana retorna a mãos espanholas, depois de onze meses de domínio
inglês, em troca das terras da Flórida. Por outro lado, as treze colônias, que até então tinham sido
proibidas de comerciar com outras colônias — particularmente as do Caribe — ou metrópoles inimigas,
iniciam um intercâmbio comercial com Cuba que se amplia a partir de 1776. Poucos anos depois, a
revolução levada adiante pelos escravos da colônia francesa de Saint Domingue, que culminou com a
independência do Haiti em 1804, teve importantes repercussões tanto na sua vizinha ilha de Cuba como
no mais distante Brasil. A pequena Saint Domingue constituía o principal provedor de açúcar e café para
o crescente mercado internacional, mas a produção diminuiu substancialmente com o acirrado bloqueio
imposto pela França à jovem república e a resistência dos ex-escravos a continuar a vida dentro do
canavial. Criou-se, desta maneira, um vácuo no mercado que viria a ser aproveitado principalmente pelos
fazendeiros cubanos e brasileiros. Nesses tempos o ouro já não transitavam como antes pelos portos de
Havana e Rio de Janeiro; a extração do metal em Minas Gerais tinha decrescido a partir de 1760 e o
império espanhol, enfraquecido pela guerra na Europa, enfrentava desde as últimas décadas do século
XVIII uma onda de revoltas anticoloniais que eclodiram pelo continente, concluindo na primeira metade
do XIX com a independência de todas as nações hispano-americanas exceto Cuba e Porto Rico.
O século XIX abre as portas para uma nova inserção de Cuba e Brasil no plano internacional,
para além das metrópoles — ou melhor, transformando significativamente a relação metrópole-colônia —
ao tempo em que grandes mudanças estruturais operavam-se no plano interno. Sob a dominação inglesa
de Havana (1762-1763) os produtores de açúcar experimentaram os benefícios que uma economia liberal
trazia para a decolagem da indústria, particularmente as facilidades na compra de mão-de-obra escrava e a
abertura de novos mercados. Uma Espanha vencida e empobrecida nem ousaria deter o impulso da
indústria cubana do açúcar que se modernizava rapidamente impondo uma economia de plantação que,
segundo destaca Moreno Fraginals (1995), dependia de fatores externos que a metrópole não estava em
condições de oferecer (uma marinha mercante, tecnologia e capacidade industrial para o processamento
do açúcar, o abastecimento contínuo de mão-de-obra, mercados). Em 1818 a metrópole acaba por
21
legalizar o livre comércio, que já era uma realidade na prática. Por outro lado, a vinda da Coroa
portuguesa ao Brasil em busca de refúgio político perante o avanço napoleônico agiliza o processo de
abertura comercial e de instalação de novas manufaturas. Inicialmente Cuba e Brasil concorreram pelos
mercados do açúcar e do café. Mas a partir de 1830, aproximadamente, Cuba vai afirmando a sua
hegemonia no primeiro produto e o Brasil no segundo. No decênio seguinte o café já representava 43,8%
do valor total das exportações do Brasil, enquanto o açúcar representava 24%. No seu ponto mais alto,
entre 1924 e 1929 o café chegaria a representar o 72,5%, quando o açúcar respondia por apenas 0,4% das
exportações do país. Um dos fatores que contribuíram para este quadro foi a política econômica dos
Estados Unidos, desde cedo o principal mercado para ambos produtos. Em 1844 o Brasil já fornecia 60%
do café consumido nesse país.
O crescimento vertiginoso na produção de açúcar e café em Cuba e no Brasil só foi possível
através da implantação de um sistema tipo Plantation que dependia de abundante mão-de-obra escrava.
Portugal e Espanha tinham dado os primeiros passos em direção à plantação extensiva do açúcar
principalmente no século XVI e começo do XVII, mas a partir de 1630 os holandeses, ingleses e
franceses tomam conta do mercado do açúcar, criando nas suas colônias do Caribe verdadeiras máquinas
produtivas baseadas na monocultura e na importação em massa de africanos escravizados, submetidos a
um árduo regime de trabalho. Calcula-se que um de cada três escravos morria nos primeiros três anos de
lavoura (Benítez Rojo, p.49). No momento em que Dinamarca, Inglaterra e França começam a colocar
travas ao tráfico de escravos e por fim o proíbem — em 1803, 1806 e 1817, respectivamente — Cuba e
Brasil iniciam o mais intenso fluxo de importação de africanos na sua história. Entre 1811 e 1830 calcula-
se que por volta de 725.000 africanos escravizados entraram no Brasil, enquanto que aproximadamente
467.000 chegaram a Cuba entre 1816 e 1860 (Fausto, 1999 e Moreno Fraginals, 1995). A maior parte
deles foi empregada nas grandes plantações de café que tinham se instalado no Vale do Paraíba, entre os
estados do Rio de Janeiro e São Paulo, e nos engenhos da planície de Havana-Matanzas na região
ocidental de Cuba.
As pressões da Inglaterra começaram a dificultar o tráfico de escravos e embora Cuba e Brasil
fossem os últimos dois países a abolir o cativeiro — em 1886 e 1888 respectivamente — a necessidade
contínua de introdução de mão-de-obra impulsionou a imigração de novos contingentes humanos.
Durante a segunda metade do século XIX chegaram a Cuba mais de 150.000 chineses, quase todos
homens, que se incorporaram às plantações da região de Havana-Matanzas. Por outro lado, a intensa onda
migratória de ibéricos para Cuba na segunda metade do século XIX e começo do século XX também se
caracterizou por ser predominantemente masculina, jovem e de baixa renda, porém concentrou-se
principalmente nas cidades. Entre 1868 e 1894 chegou a Cuba um total de 708.734 espanhóis, entre
soldados e imigrantes. Durante este período, porém, houve um setor migratório de canarinos que se
22
incorporaram à economia do açúcar em caráter estacional. A população canarina foi uma constante
durante a história colonial de Cuba. Em 1860 os canarinos representavam 47% da população de origem
hispânica na ilha (Macías Hernández, 1995). Outros grupos peninsulares de peso na vida cubana do XIX
foram os catalães, cuja migração se concentrou na primeira metade do século, e os galegos, que chegaram
em massa a partir de 1870. Europeus de origem diversa também se incorporaram à sociedade cubana do
século XIX e começo do século XX, mas em quantidades pouco significativas. O censo de 1899, por
exemplo, dá notícia de 1.279 alemães, 157 húngaros e 114 italianos, entre outros. Sírios, palestinos e
libaneses também fazem uma pequena aparição entre a população da ilha, adquirindo certa visibilidade
com a fundação de associações próprias na segunda década do século XX (Valdés Bernal, 1988).
A política de fomento à imigração no Brasil a partir do século XIX viu-se marcada pelas tensões
entre o interesse dos grandes fazendeiros por mão-de-obra abundante e barata e as tentativas do governo
de promover uma imigração civilizadora de colonos europeus que desenvolvessem a agricultura em
pequenas propriedades, embranquecendo a população do país (Alencastro & Renaux, 1998 e Alvim,
1998). Na primeira metade do século, quando os produtores de café ainda contavam com o abastecimento
de africanos escravizados, houve um surto considerável na imigração de europeus, os quais se tornaram
colonos em pequenas propriedades, especialmente de alemães, grupo que em 1872 registrava 46.000
pessoas, ocupando a terceira posição entre os estrangeiros no Brasil, vindo depois da somatória de
africanos de diversas nações e dos portugueses. Com o fim do tráfico negreiro, houve uma tentativa por
parte dos fazendeiros de introduzir chineses, processo que estava em marcha em Cuba. Cerca de 2.000
chineses chegaram ao Brasil entre 1854 e 1856, mas este movimento foi detido pelas duras críticas que
provocou entre os políticos e intelectuais preocupados com o branqueamento. De fato, em 1890 um
decreto proibiu a imigração de asiáticos e africanos para o Brasil; sob pressão dos fazendeiros, porém, o
governo acabou aceitando a imigração japonesa, que entre 1908 e 1940 totalizou cerca de 185.000
pessoas. Inicialmente os japoneses foram destinados às plantações de café, porém a partir de 1925 o
governo japonês começou a financiar viagens de imigrantes para o Brasil, os quais passaram a fixar-se
nessa época como pequenos proprietários (Alencastro & Renaux, 1998 e Fausto, 1999).
Os grupos que numericamente tiveram maior impacto no sudeste brasileiro, no entanto, foram os
italianos, os portugueses e os espanhóis. A somatória dos imigrantes destas três nacionalidades entre 1819
e 1940 excede os 3.500.000. Durante a primeira metade do século XIX predominaram os portugueses,
que se fixaram primordialmente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Italianos e espanhóis
começaram a chegar em massa no final da década de 1880. Em 1895, por exemplo, 85 mil italianos
entraram no estado de São Paulo (Alencastro & Renaux, 1998). Grande parte deles chegava com
passagens pagas pelo governo estadual dentro de um esquema montado pelos produtores de café para
suprir a mão-de-obra que havia escasseado com o término do tráfico negreiro. Sírio-libaneses, russos,
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poloneses, iugoslavos e austríacos, entre outros, ingressaram no Brasil em quantidades significativas,
sobretudo nos últimos anos do século XIX e inícios do século XX. Alguns grupos, como os sírio-
libaneses, vieram por migração espontânea, concentrando-se particularmente nos centros urbanos.
Ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, Brasil e Cuba foram dois
importantes receptores de grupos humanos provindos da África, da Europa e da Ásia. Calcula-se que
entre 1830 e 1930 11 milhões de europeus desembarcaram na América Latina, dos quais a Argentina
recebeu 46%, o Brasil 33%, e Cuba 11% (Alvim, 1998). O impacto social e cultural dos processos
migratórios pesou tanto na vida no campo como na cidade.
Carnaval de rua
Mário de Andrade tinha conhecido o carnaval do Rio de Janeiro em 1923. Naquela ocasião
estranhou, ficou enjoado, observou melhor, admirou, perdeu o trem, a vergonha, tudo, menos a faculdade
de gozar e delirar.4 Mário de Andrade entregou-se ao carnaval carioca. Nove anos mais tarde, na sua
Paulicéia, Mário de Andrade observa. Observa com curiosidade, escutando o rumor carnavalesco da
cidade onde tinha morado até então, durante 38 anos de existência. Descreve a cena. São Paulo
surpreendia os paulistas. Os mulatos faziam ouvir samba carioca “da gema”, o português impunha
quadrinhas de um “puro” Portugal, ressoavam as “instintivas” fermatas do italiano… cada um se
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reportando a uma identidade memorial — e musical — que trazia para a noite do largo o encontro de
outras geografias, de outras histórias. Porém havia mais um mulato; aquele tentara encarnar a mixórdia —
como dizia Mário. Cantava e dançava aquilo que estava na moda. Com seu figurino trocava de sexo e
mudava a cor da pele. Mas ficara “gravura”, ficara “falsete”; “ninguém acredita…”
O estilo da festa carnavalesca no bairro do Brás, descrita por Mário em 1932, tornava-se
predominante na cidade, segundo aponta Nicolau Sevcenko (1992, p.104-106). Seguindo as pegadas dos
cronistas urbanos da época, este historiador recorre às ruas de São Paulo nos carnavais de 1919 e 1921
quando o foco da festa, até então ainda fortemente marcada pela tradição burguesa, começa a deslocar-se
dos desfiles dos clubes carnavalescos no Triângulo central da cidade e das “batalhas de serpentina,
confete e lança-perfume, no corso de carros refinados que rolavam pelo asfalto” da Avenida Paulista, para
a animação dos bairros populares. As festividades do período anterior à quaresma no Brasil e em Cuba
passaram por várias transformações ao longo dos séculos XIX e XX.5 No Brasil colonial, foi popular a
tradição ibérica do entrudo — entruejo, em castelhano — “uma festa em que os escravos da Colônia e do
Império saíam em correria pelas ruas, sujando-se uns aos outros com farinha de trigo e polvilho, enquanto
as famílias brancas, refugiadas em suas casas, divertiam-se derramando pelas janelas tinas de água suja
sobre os passeantes, enquanto comiam e bebiam […]” (Tinhorão, s.d., p.111). Por outro lado, bailes de
máscaras no estilo veneziano de moda em Paris cativaram as elites de algumas cidades da América
Latina, particularmente a partir de meados do século XIX, introduzindo as figuras carnavalescas da
commedia dell’arte italiana. Enquanto o entrudo era alvo da repressão policial, proliferavam os desfiles
de carros alegóricos no modelo italiano e os bailes com entrada paga celebrados nos teatros, como o São
Januário no Rio de Janeiro e o Teatro Tacón de Havana — mais tarde Teatro Nacional — inaugurado em
1838 com seis bailes de carnaval.
Porém, as festas de rua mais populares das comunidades de afro-descendentes no Brasil e em
Cuba aconteciam em outras datas do calendário religioso, destacando-se aquelas vinculadas ao ciclo
natalino, particularmente a Epifania. Elementos destas festividades e cortejos, alguns dos quais sofreram
repressão do Estado — como a festa do Dia dos Reis em Havana, banida em 1884 — acabaram entrando
para o Carnaval nos fins do século XIX, com a aparição dos cordões no Brasil e a incorporação das
comparsas afro-cubanas ao carnaval de Cuba. Sobre o caso da ilha de Trinidad, que possui hoje em dia
um dos carnavais mais famosos da América, Richard Burton também observa que quase todos os
elementos que conformam o carnaval trinitário provêm dos antigos festejos dos escravos no período do
Natal (Burton, 1997, p.200). As primeiras comparsas que desfilaram no carnaval de Havana ainda no
século XIX eram possivelmente integradas por cubanos brancos com as caras pintadas de preto, numa
espécie de paródia das comparsas tradicionais dos Reis, segundo aponta Robin Moore (1997). No
entanto, depois da guerra e proclamação da República em 1902 as antigas comparsas afro-cubanas das
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confrarias reorganizaram-se para participar do carnaval. No contexto do acirramento dos conflitos raciais
em Cuba, que provocaram em 1912 o massacre de centenas de militantes do Partido Independiente de
Color, as comparsas afro-cubanas tornaram-se novamente alvo da repressão do Estado. Em 1913 saíram
sob custódia de um oficial da polícia, tendo-lhes sido proibido o uso de instrumentos de percussão e
qualquer movimento de dança. Foram totalmente proscritas poucos anos depois, num momento em que a
ilha vivia uma bonança econômica nunca antes vista e os bailes de carnaval da elite eram celebrados com
grande luxo, agora nas mansões do exclusivo bairro de El Vedado. Em 1916, a recém-fundada revista
Social publica fotos das mulheres da alta sociedade exoticamente vestidas no estilo dos balés de
Diaghlev, assim como caricaturas de empregados negros em figurino oriental, e pormenorizadas crônicas
de dois famosos bailes da temporada, o Baile Rojo e o Bal Watteau (figs. 5-7). A proibição das comparsas
afro-cubanas estendeu-se até o carnaval de 1937.
Entretanto, no Rio de Janeiro e em São Paulo ia prevalecendo o carnaval popular de rua, apesar
das restrições impostas ao entrudo e mais tarde aos cordões e ranchos. Revelava-se nesses dias a vida
cultural cotidiana e ‘subterrânea’ de bairros populares que cresciam abrigando imigrantes das zonas
rurais, principalmente ex-escravos ou italianos e outros imigrantes que se trasladaram do campo para as
cidades durante às crises do café na virada do século, assim como a população que tinha sido expulsa do
Centro nas obras de reforma de começos do século. A Praça Onze, coração do populoso bairro carioca da
Cidade Nova, tornava-se o centro da festança popular, enquanto em São Paulo a movimentação convergia
para o Largo da Concórdia no bairro do Brás, para o Bexiga e o Cambuci, entre outros. Eventualmente a
animação dos bairros foi tomando conta dos espaços refinados da cidade, como a Avenida Central no Rio
de Janeiro ou o vale do Anhangabaú em São Paulo. Por ali passeava nos anos 30 o cronista da Folha da
Manhã — que assina como Quincas Borba — numa madrugada de Carnaval…
Do alto da escadaria o transeunte detém-se para observar a multidão delirante com o pano de
fundo da cidade em transformação… “a iluminação maravilhosa do parque […] a pintura berrante, feita
às presas, em borrões de mau gosto, sobre as paredes recém-erguidas do viaduto novo”6. Guardando uma
certa distância, desfrutava ele o eco da alegria carnavalesca, quando uma voz rouca o surpreende com seu
lamento e indignação. A estátua de Carlos Gomes queixava-se dos sons do tumulto, do esquecimento das
suas óperas, e mais ainda do uso dos personagens e melodias suas nos sambas de moda:
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Ao som…
Ao som do… Guarany! […]
A marchinha de Lamartine Babo “História do Brasil”, de 1934 (Alencar, 1980, p.234), tinha se
popularizado enormemente e o triste bronze de Carlos Gomes imaginava que um monumento ao citado
sambista acabaria substituindo a estátua do seu colega Verdi na Avenida São João. “Imagine você a
tortura daquele italiano genial, tendo de ouvir todos os anos, como eu estou ouvindo agora, as canções do
Carnaval”. Aquele vasto cenário do Anhangabaú, sonhado pelo conselheiro Antônio Prado — prefeito de
São Paulo entre 1899 e 1910 — e materializado segundo o projeto de Bouvard, o renomeado arquiteto
francês, apresentava-se como espaço de conflito pela identidade musical da cidade. Aos pés do ostensivo
Teatro Municipal, palco da monarquia da ópera italiana inaugurado em 1911, nos baixos do novo viaduto,
rolavam os “sons confusos de pandeiros e de guizos, de bate-pé e de assobios” do samba (figs. 8-9).
Indagado por Quincas Borba, o autor do Guarany admite gostar muito de um bom samba… “É claro, eu
sou brasileiro e não tenho preconceitos”; admirar o ritmo do morro e a espontaneidade de certas canções
que “têm muito mais alma que o assanhamento metálico dos fox-trots norte-americanos, ou que a
languidez cheia de olheiras roxas, dos tangos argentinos”; e ainda confessa, em segredo, uma certa
aproximação do samba à ópera: “A letra do samba não diz nada. A música é que é tudo. […] É como na
ópera. O que fica é a música”. Como brasileiro, o maestro defende o samba perante às músicas
popularescas estrangeiras, porém como paulista, toma distância: “Eu nasci em Campinas e, assim, não
posso ‘sentir’ o samba como o malandro carioca”. Mas o que verdadeiramente irrita o Carlos Gomes
projetado pelo cronista Quincas Borba é o “sacrilégio”, a diluição das fronteiras culturais da cidade, a
ousadia de Lamartine Babo de querer dialogar com o Maestro, de divulgar a sua reinterpretação da
história, onde o carnaval é tão brasileiro que precede ao próprio Cabral; os foliões invadindo o novo
jardim sob o seu olhar espantado, que reclama não poder girar o rosto e melhor admirar o teatro às suas
costas: “O meu lugar não é aqui. Eu devia estar de frente para o Teatro Municipal, a fim de que todos
quantos vão assistir às minhas óperas pudessem, ao passar por mim, descobrir-se, respeitosos, como quem
defronta um santo.”7
A população, movida pelas suas necessidades e desejos, constantemente redefinia a geografia da
cidade. E a topografia festiva do Carnaval sempre foi reveladora das transformações urbanas em curso, do
remapeamento das fronteiras sociais. O complexo urbano que circunda o vale do Anhangabaú em São
Paulo e os arredores do Parque Central em Havana foram, nas primeiras décadas do século, importantes
eixos da vida social e cultural dessas cidades, tornando-se palco da batalha cotidiana de grupos diversos
pela conquista de espaço social. Os grandes teatros, como veremos a seguir, ergueram-se nestes lugares,
cenários estratégicos que abrigaram os novos emblemas do processo expansivo das cidades (figs. 1-4).
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Noites de ópera
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Pavilhão da Eletricidade. Eram os tempos da chamada Belle Époque, e as recém-inauguradas repúblicas
do Brasil (1889) e Cuba (1902), integradas à ordem econômica internacional, ambicionavam entrar no
trem do ‘progresso’. Bondes elétricos já começavam a transitar por algumas ruas do Rio de Janeiro,
Havana e São Paulo ao tempo em que as novas avenidas eram cenário dos corsos de automóvel.
Afastadas do centro da cidade erguem-se luxuosas mansões dos barões do açúcar e do café. Surgem assim
zonas residenciais da elite ao longo das avenidas Higienópolis e Paulista em São Paulo e na zona oeste de
Havana, nos bairros El Vedado, Miramar e Country.
As transformações urbanas re-fundavam a vida pública na cidade. Nas calçadas das avenidas
elegantes pipocavam os cafés, confeitarias, clubes, livrarias e butiques. Porém um espaço simbolicamente
privilegiado pelos gostos e hábitos das burguesias emergentes da Belle Époque foi a ópera. Ao longo do
século XIX as companhias italianas, francesas e espanholas de ópera e zarzuela que visitavam Havana
apresentavam-se nos Teatros Principal (1803), Tacón (1838) e Payret (1877). Em 1905 o Tacón, que com
o advento da República fora rebatizado como Teatro Nacional, foi comprado pela sociedade Centro
Gallego. Em torno do antigo teatro constrói-se um prédio monumental — desenho do arquiteto belga Paul
Belau, num estilo neo-barroco então em voga em Madri — que albergou a sede do Centro Gallego e o
novo Teatro Nacional, inaugurado em 1915 com a ópera Aida, de Verdi. O Centro Asturiano, por sua vez,
adquiriu o histórico Teatro Albisu em 1914, que foi reformado e reinaugurado com o nome de Teatro
Campoamor. Um ambicioso projeto arquitetônico de finais do século XIX, a Manzana de Gómez,
abrigava ainda dois teatros, o Politeama Grande e o Politeama Chico, construídos sobre uma moderna
estrutura metálica. A exceção do Principal, demolido em 1846, todos estes teatros situavam-se ao redor
do Parque Central, um espaço da Havana extramuros que foi ganhando importância a partir da construção
do Paseo del Prado em fins do século XVIII e logo com o Plano de Ensanche (1849-1850) e a derrubada
das muralhas em 1863. Nos inícios do século XX erguiam-se ali, além dos teatros, os hotéis Inglaterra e
Plaza, assim como vários restaurantes e cafés. As ruínas de obras paralisadas, como o Capitólio Nacional
e o Instituto de Segunda Enseñanza, completavam o cenário do lugar. Poderia ter sido no Tacón ou no
Payret, mas certamente foi num dos teatros do Parque Central que, em 1899, o futuro primeiro diretor da
Orquestra Sinfônica de Havana conhecera a ópera. O menino Gonzalo Roig, de nove anos de idade, ficou
impressionado com a apresentação de Il trovatore (Cañizares, 1978, p.27).
Na segunda década do século XX os preços do açúcar mantiveram-se elevados, como resultado,
em parte, da especulação gerada pela guerra na Europa. Esta época é conhecida na história cubana como a
“Dança dos Milhões” em referência às riquezas que acumularam-se com a exportação de açúcar. Vale
lembrar, porém, que desde a ocupação norte-americana de 1898, grande parte da produção de açúcar no
país estava nas mãos de corporações norte-americanas. Em 1919, as plantações da burguesia cubana
geravam apenas 27% da produção total (Ibarra, 1995). A bonança econômica estendeu-se até 1921,
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quando uma súbita queda nos preços do cristal provocou um período de carestia conhecido como a época
das “Vacas Magras”, adiantando-se à grande crise mundial do capitalismo. Durante os anos da “Dança
dos Milhões”, o Teatro Nacional foi sede de temporadas líricas com os melhores cantores da época:
Caruso, Tita Ruffo, Tito Schipa, Beniamino Gigli, Lauro Volpi, Lucrecia Bori, María Barrientos e outros.
Porém, sons diversos concorriam com a ópera no movimentado Parque Central…
Transcorria o mês de junho de 1920. O jovem Alejandro García Caturla, então com 14 anos de
idade, não escondia o alvoroço de estar na capital. Tinha vindo da pequena cidade de San Juan de los
Remedios para assistir ao afamado tenor Enrico Caruso no Teatro Nacional. O músico adolescente —
cantava, tocava piano e violino — não perdia oportunidade de assistir à ópera. Alguns meses antes tinha
estado em Havana para desfrutar de Rigoletto, Thais, Otelo, Manon, La Favorite e Tosca. Antes de entrar
ao teatro, gostava de andar pelos arredores. No meio das obras do futuro Capitólio, um indivíduo tinha
montado uma enorme lona onde exibia manequins de doentes de sífilis. Da calçada de frente ouvia-se
forte a voz do negro que gritava pelo megafone: “Aqui quem entra dançando a rumba, sai todo
desconjuntado”. Atravessando a rua Alejandro foi dar uma olhada no circo Santos y Artigas, que contava
com doze leões no depósito. Ele bem sabia que as feras passavam a noite rugindo pois já tinha percebido
que eram ouvidas dentro da ópera. Todos os ruídos penetravam no teatro, que não tinha ar-condicionado,
e o espetáculo era feito com as portas e janelas abertas. Ouvia-se também ecos dos danzones, guarachas e
outras músicas gravadas que tocavam no mais alto volume, de dia e de noite, na venda de discos que
ficava bem ao lado do teatro. Descendo um pouco pelo Prado, até o número 119, havia uma loja de
partituras e instrumentos musicais onde o compositor e pianista Ernesto Lecuona tinha instalado uma
pequena oficina de perfuração de rolos para pianolas. Aquele local sempre congregava numerosos
músicos e artistas. Uma atraente moça de 19 anos saía do lugar em direção ao teatro. Alejandro ainda não
conhecia a soprano Rita Montaner, que assistiu às nove apresentações da temporada da célebre “voz do
século” em Havana, contracenando com a insigne María Barrientos. Era domingo de tarde. Caruso
cantava Celeste Aida, inolvidável melodia da ópera de Verdi estreada na cidade do Cairo em 1871,
quando um surdo estampido interrompeu a representação. O tenor foi visto, ainda vestido de Radamés,
fugindo pela rua San Rafael. O pitoresco episódio tem inspirado explicações diversas. Para Carpentier, a
explosão foi apenas um petardo jogado em protesto pelo alto preço dos ingressos, pela manifestação de
luxo ostensivo num momento em que já se avizinhava a grande crise no país. O bilhete custava 35 dólares
e Caruso ganhava um cachê de 10.000 dólares por noite, possivelmente o mais alto da sua carreira (fig.
13).9
São Paulo não teve no século XIX uma atividade teatral tão intensa quanto Havana ou o Rio de
Janeiro, capital do Império. Bruno Kiefer afirma que os primeiros espetáculos líricos em São Paulo datam
de 1874 e tiveram lugar no Teatro Provisório Paulistano (Kiefer, 1981, p.86). Mas a vida social e cultural
30
da cidade transformava-se rapidamente com os frutos do café e da produção industrial emergente, que
tinha se expandido durante a I Guerra Mundial. O projeto do Teatro Municipal foi encomendado pelo
prefeito Antônio Prado ao arquiteto da sua família, o piemontês Claudio Rossi, que levou a cabo a
construção em associação com Domiziano Rossi e Ramos de Azevedo (Sevcenko, 1992, p.232). O
Municipal situava-se numa região que já contava com os teatros São José e Politeama, “um barraco de
madeira e zinco localizado onde hoje fica a passagem subterrânea do Anhangabaú”, relembra o
compositor paulista Francisco Mignone. Foi no Politeama ou no antigo Minerva que, em 1903, o flautista
italiano Alfério Mignone levou o seu filho para conhecer a ópera. O menino Francisco, de seis anos de
idade, ficou deslumbrado com os encantos da Bohème de Puccini, que tinha estreado poucos anos antes
em Turim, em 1896, mesmo ano em que a família Mignone se fixara na Paulicéia (Mariz, 1997, p.11; 45).
Em 1921, o São José tinha deixado de ser teatro, o Politeama sofrera um incêndio e o Sant’Anna, antigo
Apolo da rua Boa Vista, havia sido demolido. Junto ao jovem Teatro Municipal, restavam na cidade o
Cassino, o novo Sant’Anna e o Colombo do Largo da Concórdia (Contier, 1988, p.88-91 e Sevcenko,
1992, p.233).
A primeira temporada lírica do Teatro Municipal de São Paulo incluiu a apresentação de óperas de
Verdi, Rossini, Puccini, Leoncavallo, Mascagni, Donizetti e Wagner, patrocinadas pela companhia
italiana Titta-Ruffo (Contier, ibid.). Tratava-se de algumas das óperas mais populares da época, a maior
parte das quais tinha estreado na Itália na segunda metade do XIX. Durante os anos da Belle Époque, foi-
se criando um circuito internacional do espetáculo no qual as estrelas da época eram aclamadas nas
principais cidades européias, dos Estados Unidos e algumas latino-americanas, como Buenos Aires, São
Paulo, Rio de Janeiro e Havana, particularmente após a guerra na Europa e a subseqüente crise econômica
no Velho Continente. Grandes celebridades foram aplaudidas no Municipal de São Paulo, destacando-se
as apresentações de Aida em 1918, com Gabriella Besanzoni e Aurelio Pertile, e de La Gioconda em
1920, com Beniamino Gigli, sem contar a passagem de Caruso, de Tita Ruffo e outros (Sevcenko, ibid.).
Além da ópera, apresentavam-se nos teatros mais elegantes recitais de solistas nacionais ou
estrangeiros, principalmente pianistas, como o polonês Artur Rubinstein que foi uma presença marcante
nos meios musicais brasileiro e cubano, ou a paulista Guiomar Novaes, com uma estrepitosa carreira
internacional e grande popularidade entre o público de São Paulo e Rio de Janeiro, tendo sido aplaudida
também em Havana num concerto patrocinado pela Sociedad Pro Arte Musical (Contier, ibid. e Díaz
Ayala, 1981, p.127). Paralelamente, são fundadas sociedades sinfônicas em São Paulo e Havana. Na
Paulicéia surge em 1921 a Sociedade de Concertos Sinfônicos, presidida por Armando Belardi, e pouco
tempo mais tarde a Sociedade Sinfônica de São Paulo, presidida pela mecenas Dona Olívia Guedes
Penteado.
31
Em outubro de 1922, estreou na capital cubana a Orquesta Sinfónica de La Habana, dirigida por
Gonzalo Roig com Ernesto Lecuona como solista no Concerto para piano e orquestra de Saint-Säens. No
ano seguinte surge a Orquesta Filarmónica de La Habana, sob a regência do espanhol Pedro Sanjuán.
Estas orquestras, que não contavam com apoio do Estado, enfrentaram grandes dificuldades para subsistir
num ambiente onde a música sinfônica não tinha o auspício da burguesia, que preferia a pompa do canto
lírico. Os conjuntos liderados por Belardi e Roig — ambos ligados ao mundo da ópera italiana, das
operetas e zarzuelas — apresentavam um repertório ligeiro e clássico-romântico. No caso da Sinfônica de
Havana, destacou-se também a interpretação de autores nacionais que se encaixavam nesse eixo. Por
outro lado, a Sociedade Sinfônica de São Paulo e a Filarmónica de Havana tentaram introduzir obras
modernas de europeus e autores nacionais, como o brasileiro Heitor Villa-Lobos e os cubanos Amadeo
Roldán e Alejandro García Caturla, respectivamente, ganhando a preferência de críticos como Mário de
Andrade e Alejo Carpentier. Essas diferenças, e a natural concorrência pelo limitado público e para reter
os integrantes da orquestra, criaram tensões entre estes grupos. Como aponta Arnaldo Contier em relação
a uma polêmica entre Belardi e Mário de Andrade em 1930-31, tais conflitos “refletem as próprias
contradições culturais de um momento em que a força da tradição ainda imperava entre os professores,
intérpretes e público, muito ligados às operetas, às óperas, à música pianística. O afloramento do
nacionalismo na música deu-se no interior desse contexto sócio-cultural preso às tradições românticas
francesas e italianas, em especial, do século XIX” (Contier, 1988, p.104). O canto e o piano de colorações
clássico-românticas e sotaque estrangeiro dominavam o gosto das burguesias da Belle Époque e as
instituições de ensino musical formal (figs.10-12). Mas o mapa musical da cidade revela outros espaços
onde a voz e o teclado percorriam diferentes regiões sonoras: o teatro musical e o cinema mudo.
Revistas e cinema
Desde a segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX o teatro musicado
humorístico foi possivelmente a principal atração das incipientes indústrias do entretenimento em cidades
como Havana e Rio de Janeiro. O chamado teatro vernáculo ou bufo cubano desenvolveu-se a partir de
formas teatrais espanholas, como a tonadilla, dos Bouffes Parisiens — fundado por Offenbach em 1855
— e dos Minstrels norte-americanos, que na década dos 1860 fizeram apresentações na ilha. A ação
dramática girava em torno de personagens arquetípicos, entre os quais destacavam-se o negrito, a mulata,
e o galego, abordando-se principalmente a temática política ou assuntos relacionados à cotidianidade das
classes baixas, notadamente da população afro-descendente — embora os atores fossem
predominantemente brancos, já que aos negros era bloqueada a presença no palco (Moore, 1997). No
Brasil imperial, os franceses da corte fundaram em 1859 o Alcazar Lírico, cujas apresentações se
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popularizaram rapidamente. No final do século, foi predominando a forma do teatro de revista,
comentário humorístico dos acontecimentos do ano (Diniz, 1984, p.115-116). A dança constituía uma
parte fundamental destes espetáculos, de forma que gêneros como a guaracha e a rumba, em Cuba, e o
tango e o maxixe, no Brasil, eram incorporados às peças, principalmente na cena final, estabelecendo-se
assim uma ligação entre os bailes populares e o palco. As partituras dos números de maior popularidade
eram publicadas e vendidas, e mais tarde, com o advento da fonografia, passaram a representar algumas
das primeiras gravações vernáculas de sucesso.
No Brasil, uma mulher destacou-se enormemente no âmbito do teatro musicado: a compositora,
pianista e maestrina Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Mais de trinta e cinco peças estrearam no Rio de
Janeiro com músicas suas, nos teatros Apolo, Príncipe Imperial, Recreio Dramático, Santana, Lucinda,
Variedades, e São José, entre outros. A praça Tiradentes tornara-se centro da vida noturna carioca. Ali, no
Teatro São José, cria-se em 1911 a Companhia de Operetas, Mágicas e Revistas, que no ano seguinte
apresenta Forrobodó, com música de Gonzaga, uma peça de sucesso que se manteve em cartaz por mais
de 1.500 apresentações. “Tendo como tema central um baile popular no bairro da Cidade Nova, usava
personagens típicos com seu linguajar característico” (Diniz, 1984, p.180). Na década seguinte, destaca-se
a Companhia Negra de Revistas, cuja estréia no Teatro Rialto, Rio de Janeiro, com o espetáculo Tudo
Preto, foi saudada em 1926 pela Revista do Brasil. A crônica assinada por Prudente de Moraes, neto,
elogiava principalmente a orquestra, sob a batuta do “veterano Pixinguinha”, a qual interpretara “alguns
maxixes estupendos e música estrangeira bem escolhida” (15/9/1926, p.28). O grupo, que era integrado
exclusivamente por atores negros, incluindo o seu diretor, João Cândido Ferreira, ‘De Chocolat’, teve
uma temporada em São Paulo nesse mesmo ano nos teatros Apolo, Mafalda e Santa Helena, ocasião em
que Mário de Andrade conheceu Pixinguinha e recolheu depoimento deste sobre as cerimônias de
macumba no Rio de Janeiro.
Nas imediações do Parque Central havanês surge em 1900 o Teatro Alhambra, exclusivamente
para um público masculino. Estrearam ali peças que marcaram história, como La danza de los millones
em 1916, com música de Jorge Anckermann, diretor da orquestra do teatro desde 1911. A companhia do
Alhambra apresentava-se também em outros teatros, como o Politeama, o Nacional e o Payret,
suavizando a linguagem utilizada para um público misto. O ator e dramaturgo Arquímedes Pous tinha
uma companhia itinerante cuja orquestra passou ser dirigida pelo jovem Ernesto Lecuona, recém-
graduado do Conservatório em 1913. Em 1923 a companhia de Pous se instala no Teatro Cubano — mais
tarde Molino Rojo e logo Regina — sob a direção musical de Jaime Prats, enquanto Lecuona, após uma
temporada nos Estados Unidos na qual estuda e se apresenta como pianista no Aeolian Hall de Nova
Iorque, organiza a sua própria companhia lírica apresentando operetas, revistas e zarzuelas no teatro
Martí. Em 1927 cria-se a Gran Compañía de Revistas Cubanas no Teatro Regina, com um espetáculo de
33
estréia que incluía a zarzuela Niña Rita o La Habana en 1830, com música de Lecuona e Eliseo Grenet e
a revista lírica La tierra de Venus com música de Lecuona, ambas protagonizadas pela cantora Rita
Montaner. No ano seguinte eram vendidos com grande sucesso os discos de dois números daquela estréia:
o tango-congo ¡Ay Mamá Inés! de Grenet e Canto siboney de Lecuona, lançados pela Columbia
Phonograph Company.
No teatro de revista a música era interpretada em pequenas orquestras. Robim Moore observa que
em Cuba, apesar do uso de gêneros populares de origem afro-cubana, os instrumentos de percussão
associados aos mesmos ainda eram vistos como símbolo de atraso cultural e, portanto, inaceitáveis dentro
do teatro. Utilizava-se instrumentos como o violino, o baixo acústico, o clarinete, o piano e a caixa clara
(Moore, 1997, p.53). Um processo de transformação estilística de singular relevância para a história da
música caribenha e brasileira operava-se nestas re-interpretações de músicas das camadas populares por
instrumentistas de estante.10 Arnaldo Contier (1988) destaca a importância deste processo para a
conformação de uma linguagem musical nacionalista no Brasil, abordando o papel do cinema como um
espaço de aproximação entre os sons que vinham da rua e as elites dominantes freqüentadoras das salas
de projeção. Mediadores desse diálogo, os músicos que animavam o teatro e o cinema foram
protagonistas de importantes transformações nos paradigmas estéticos e culturais das primeiras décadas
do século. “Esses músicos começaram a transmitir os primeiros traços da brasilidade, já disseminados
entre as camadas subalternas, e, por outro lado, procuravam atender aos interesses da elite dominante,
profundamente envolvida com os ritmos internacionais. […] Indiretamente, tais músicos acabaram
construindo uma ponte entre o popular e o erudito, penetrando lentamente nos salões burgueses dos anos
20 e 30” (Contier, 1988, p.15-16).
O teatro de revista ganhou forte concorrente com a chegada do cinema nas primeiras décadas do
século, que agitou a cena musical das cidades. Pequenos conjuntos ou pianistas eram contratados para
acompanhar os filmes mudos ou para sonorizar a casa nos intervalos das projeções. Algumas fitas traziam
partituras originais, mas muitas vezes tornava-se difícil para os conjuntos manter a sincronia com o filme
e, segundo lembra Francisco Mignone, “lá estávamos a tocar um trecho alegre numa cena trágica e vice-
versa”, provocando as vaias do público. “Para evitar esse inconveniente colocava-se um pianista
improvisando durante a exibição” (Mariz, 1997, p.147). Alguns dos principais compositores brasileiros e
cubanos da primeira metade do século XX iniciaram-se profissionalmente na música tocando piano nos
cinemas da cidade: em 1906 o cubano Eliseo Grenet (1893-1950) era pianista no cinema La Caricatura;
em 1907 Ernesto Lecuona (1895-1963) tocava nos cinemas Parisién, Turín e Testar, enquanto Gonzalo
Roig (1890-1970) era o pianista do trio que tocava no Monte Carlo, um dos primeiros cinemas da avenida
Paseo del Prado, que cobrava na época 10 centavos por sessão. Em 1910 o paulista Francisco Mignone
(1897-1986) atuava em cinemas de São Paulo e do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que o carioca
34
Luciano Gallet (1893-1931), então ajudante de arquitetura, foi convidado para tocar o piano num trio
(piano, violino e flauta) que atuava na sala de espera de um cinema do Largo do Rocio — depois Praça
Tiradentes. Alejandro García Caturla (1906-1940) começou em 1921 tocando nas salas de projeção da sua
pequena cidade de Remedios, trasladando-se a Havana no ano seguinte, onde atuaria nos cinemas
Méndez, Universal, Oriente, Norma, Stand, Tosca, Dora, Santa Catalina e Campoamor.
Estes músicos adolescentes que se iniciaram nas salas de espera ou de projeção entre os 12 e os 17
anos de idade constituíram uma geração que estreou com o cinema mudo. Provindos na sua maioria de
famílias de classe média, tinham recebido alguma instrução musical. O emprego nos cinemas lhes
permitiu ganhar o sustento para prosseguir estudos musicais ou dedicar-se exclusivamente à música, sem
ter que se desviar para outros ofícios, na maior parte dos casos. Além disso, estes jovens mediadores entre
as imagens quase sempre estrangeiras e o público nacional tiveram que recorrer a toda a sua bagagem
musical e criatividade para construir trilhas que satisfizessem os ouvidos do público. Nesse meio
conviveram com músicos das classes subalternas que eram autodidatas e tocavam principalmente de
ouvido — os chamados pianeiros no Brasil, muitos dos quais ficaram no anonimato.
Músicos veteranos, que já haviam passado por vários palcos, também atuaram no cinema. Foi esse
o caso de Ernesto Nazareth (1863-1934) que em 1917 tocava o piano na sala de espera do antigo cinema
Odeon, onde foi escutado pelo compositor francês Darius Milhaud. Heitor Villa-Lobos (1887-1959),
durante uma estada em Paranaguá em 1907, tinha atuado como violoncelista na orquestra do cinema
Santa Cecília e em 1912 integrava a orquestra da Companhia de Operetas de Luís Moreira e Abigail Maia
em turnê por várias cidades do Nordeste. De volta ao Rio de Janeiro, a partir do ano seguinte passou a se
apresentar em alguns dos lugares de encontro preferidos pela elite da Belle Époque, como a Confeitaria
Colombo e o restaurante do Teatro Municipal, o Assírio, mais tarde dirigindo um sexteto no Bar Rio
Branco na Avenida Central (Machado da Silva, 1999 e Contier, 1996). Luciano Gallet, que era o pianista
de tal conjunto, narra em carta a Mário de Andrade o seu percurso como músico pela noite carioca desde
o cinema do Largo do Rocio até a exclusiva Avenida:
[…] o dito cinema, no Largo do Rossio, era frequentado por gente do lugar, n’aquela
época 1910, mulheres da rua e do Mundo, marinheiros, a mais linda esfera da cidade.
Daí passei por todo o métier música, dentro de todas as modalidades: o cinema de outra
espécie, a revista vagabunda, o café concerto, os banquetes, casamentos, bailes, o bar, as
estações de águas; tudo o que é possível. Depois, as salas de espera dos cinemas. Aí já
em ápice na carreira, lugar só para músicos bons […] aí a música era melhor, e
abrangia da marcha vulgar, americana, passando pelo repertório intermediário, até a
ópera, chegando ao repertório sinfónico. (14/09/1926)
Em 1919 uma novidade confrontava-se com o estilo europeizante da Avenida. Os Oito Batutas
estreavam na sala de espera do Cinema Palais. O timbre de instrumentos identificados com o mundo rural
35
— o conjunto era formado por uma flauta, três violões, um cavaquinho, uma bandola/reco-reco, um
bandolim/ganzá, e um pandeiro — ressoava em pleno coração da cidade reformada, ‘civilizada’. Mas um
outro elemento provocava o assombro e a crítica de alguns: ex-integrantes do Grupo do Caxangá, que
animava o carnaval carioca desde 1914 sob a direção do violonista João Pernambuco, os músicos
organizados pelo flautista Alfredo da Rocha Vianna, Pixinguinha, (1897- 1973) eram afro-descendentes.
Após a temporada no Palais o conjunto percorreu numerosos palcos do país, como o Conservatório
Dramático Musical de São Paulo — onde já era professor o crítico e escritor Mário de Andrade — com
espetáculo intitulado “Uma noite no sertão”. Embora Hermano Vianna (1995) argumente que a circulação
de sonoridades populares e de músicos das classes subalternas nos salões da elite na verdade já não era
incomum, os Batutas certamente contribuíram para promover uma transformação das percepções
dominantes sobre a cultura popular marcadamente afro-brasileira.
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discurso do presidente Alfredo Zayas e um programa musical de variedades que incluía canções cubanas
de José Maurí e Eduardo Sánchez de Fuentes interpretadas pela soprano Rita Montaner. Porém é somente
no final da década que gêneros nacionais de música popular tomam conta do crescente mercado local,
projetando-se também em nível internacional, tanto no caso cubano como no brasileiro.
Era setembro de 1926, e o compositor carioca Luciano Gallet escrevia uma longa carta ao amigo e
conselheiro Mário de Andrade, quando foi interrompido por um “episódio inesperado”: “Acabo de ouvir
neste instante, pelo rádio, Maria Emma cantando Morena, acompanhada não sei por quem. É pasmoso
como tocam mal a música brasileira. Parecia-me ouvir uma tétrica marcha fúnebre […] Considerações de
passagem — por causa do Rádio” (14/09/1926). Morena era uma das canções do folclore urbano que
Gallet tinha harmonizado em 1921, versão que consegue gravar em 1927 para a casa Edison, com
interpretação de Adato Filho. Nos anos 20, Gallet foi um dos compositores brasileiros mais envolvidos
com as casas editoras de discos e partituras. Em 1926, a Victor lhe encomendara a organização de uma
pequena orquestra que viajaria a Buenos Aires para gravar 24 discos de músicas brasileiras para canto e
pequeno conjunto. Até 1929, quando foi inaugurada no Rio de Janeiro a R.C.A. Victor Talking Machine
Company of Brazil, algumas das gravações de música brasileira da companhia eram feitas na capital
Argentina, como por exemplo os discos dos Oito Batutas registrados durante a sua viagem àquela cidade
em dezembro de 1922. O repertório preparado por Gallet para a encomenda da Victor incluía as Cirandas
e Serestas do Villa-Lobos, o Gavião e outras “cantigas e danças de negros” de Francisco Braga, o
Batuque de Alberto Nepomuceno e outras peças de Ernesto Nazareth, Alexandre Levy e do próprio Gallet
(Carta a MA, 14/04/1927). Mas este projeto, que consistia de releituras do folclore por músicos de
formação erudita, aparentemente acabou não se concretizando.
A revista WECO, que aparece em novembro de 1928 no Rio de Janeiro sob a direção de Luciano
Gallet, é um interessante documento sobre esse momento de transição do ambiente musical da cidade,
resultado da difusão de meios como o disco e o rádio. Um dos primeiros números, o de janeiro de 1929, é
dedicado quase em sua totalidade à música de carnaval, trazendo na capa a foto de José Francisco de
Freitas, compositor e pianista cujas músicas tinham alcançado grande popularidade — entre outras, o fox-
trot Venus, que teve tiragem de 50 mil exemplares em 1923, e a marchinha Dondoca, que empolgara o
carnaval de 1927. Músico provindo da classe média, Freitas escreve para WECO um curioso artigo
intitulado “O que faço para as minhas músicas ganharem popularidade”, onde relata os métodos por ele
aplicados para ter sucesso na “luta pela palma do domínio das massas”. Recomenda, por exemplo, a
impressão de 100 mil exemplares de folhetos com os versos da música, assim como a reprodução de 500
orquestrações e 50 partituras para banda, a serem distribuídas gratuitamente para a divulgação do samba
ou marchinha em questão. Assinala também a importância de fazer tocar a música nos corsos e batalhas
de confete, levando o seu pequeno bloco — geralmente composto de tuba, banjo, pandeiro, saxofone,
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pistom e reco-reco — de bairro em bairro na cidade. Nesse ano, Freitas experimentava ainda com um
novo método de divulgação: um gramofone portátil recém-adquirido. A revista destacava também a figura
de Sinhô, reproduzindo um depoimento deste popular sambista oriundo dos setores subalternos que,
contando só as 17 músicas publicadas pela casa Carlos Wehrs entre 1926 e 1928, vendera 23.348
partituras para piano.
Tudo pareceria indicar que a WECO celebrava a introdução de técnicas como o disco e o rádio
para a divulgação da música popular. Porém, um ano depois a própria revista era porta-voz de uma
campanha de alerta e reação contra o estado musical da cidade, dominado pelos interesses comerciais das
editoras e rádio-sociedades. Esta diferença de orientação poderia estar relacionada com a ausência de
Luciano Gallet, principal promotor da campanha, na preparação do número de janeiro de 1929 dedicado
ao carnaval — há uma nota indicando que o diretor estava de férias. Mas também é possível se pensar que
havia sido um ano de rápidas mudanças na indústria, contando-se o estabelecimento da Victor no Rio de
Janeiro. O artigo “Reagir”, de Gallet, aparece no número de março de 1930, logo depois do carnaval onde
estourara a marchinha Taí interpretada por Carmem Miranda e com arranjo de Pixinguinha, contratado
como orquestrador da estreante R.C.A Victor. As rádio-sociedades eram para Gallet as “primeiras
responsáveis pela actual degringolada musical”:
Entram pelas portas do Brasil inteiro, e espalham música ruim, sem o menor
critério de seleção. […]
As Rádios lançaram ainda os ‘artistas populares’: compositores-de-assobio,
executantes-de-ouvido, cantores-ignorantes.
Atraídos pela propaganda fácil, enorme e rendosa, a maioria dos editores
abandonou a música e atirou-se à impressão e divulgação pelas Rádios e pelo papel-
impresso, de quanta banalidade musical lhes veio às mãos.12
Outras vozes somavam-se ao diretor da WECO em apoio à campanha. De São Paulo, Félix de
Otero envia carta denunciando a situação musical da cidade. Renato Almeida, então diretor da revista
Movimento Brasileiro, o compositor Oscar Lorenzo Fernândez e o poeta Manuel Bandeira, entre outros,
publicam igualmente observações sobre o panorama musical do Rio de Janeiro. Veja-se, a seguir, alguns
destes comentários:
Félix de Otero:
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Basta observar, durante o dia, como ficam os passantes apinhados às portas dos
estabelecimentos de música, horas a fio, deleitando-se com esse repertório do gênero
‘muito brasileiro’ como pretendem os ‘muito entendidos’, cuja propaganda visa
exclusivamente os interesses comerciais dos ‘tais’, tendo, isso sim, influência altamente
nociva sobre a cultura estética do nosso público.13
Renato de Almeida:
Manuel Bandeira:
O Rio anda mesmo numa burrice que seria apenas ridícula se não fosse
complicada com a mais ignóbil das ganâncias, que é essa de tirar dinheiro das coisas
cuja maior delicia é fazer esquecer o dinheiro. […]
Um dia fiquei desesperado e quebrei tudo, porque nas três sociedades que se
disputam a primazia na educação do gosto musical do nosso povo, discavam
simultaneamente a ‘Ramona’… Assim fazem com toda Ramona que aparece.
Tudo aqui é assim. Há um interesse enorme e justíssimo pelo folklore. O Nordeste
está cheio de cantadores: Passarinho, Aderaldo... Qual foi a casa gravadora de discos
que empreendeu fixar a musica deliciosamente virgem desses nossos sertanejos? Quem
conhece no Sul o que os matutos podem tirar de uma viola? A gente ouve essas coisas
deturpadas pelos falsos matutos da Avenida, cantadores acafagestados, que reduzem o
sertão a sketches de revista do Rócio. É por isso que de genuíno só se escutam no Rio os
sambas dos malandros do Estácio e as toadas soturnas das macumbas.15
39
turnês de conjuntos musicais populares. Entre 1919 e 1921, por exemplo, os Oito Batutas percorreram
capitais e cidades do interior de São Paulo, Paraná, Minas Gerais e vários estados do Nordeste. Além das
apresentações, os integrantes tinham a encomenda de recolher material do folclore musical das diferentes
regiões que visitaram. O pedido tinha sido feito por Floresta de Miranda, Coelho Neto e Arnaldo Guinle,
patrocinador da viagem, os quais projetavam publicar uma antologia da música popular brasileira (Silva,
1979, p.45). Conjuntos de outras regiões circulavam também pela Capital, como o Turunas da Mauricéia,
que chegou ao Rio em 1927 difundindo ritmos nordestinos como o coco e a embolada. Aluísio de Alencar
Pinto argumenta que, em São Paulo, gêneros do interior como os cateretês, as catiras e as modas de viola
eram aproveitados por alguns compositores da cidade como antídoto contra as influências estrangeiras,
principalmente da música italiana. “Havia uma verdadeira batalha entre as cançonetas italianas e a música
caipira que se processava no interior de São Paulo e que tomava conta da capital” (In: Mariz, 1997,
p.140). Um talentoso aluno de composição do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, que
despontava como intérprete e compositor erudito, o filho de italianos Francisco Mignone, também fazia
uma incursão na linguagem popular, dentro dos padrões em voga na cidade. Sob o pseudônimo de Chico
Bororó, publicava tangos, valsas, maxixes, cateretês, canções sertanejas, foxtrotes e one-steps, compostos
entre 1914 e 1921. Curiosamente, o mais importante compositor popular da época em São Paulo,
Fernando Lobo (1892-1953), optou, assim como Chico Bororó, por reportar-se a uma identidade cabocla
ao utilizar o pseudônimo de Marcelo Tupinambá.
Nos anos prévios ao disco uma das principais formas de difusão musical nas cidades era a venda
de partituras, principalmente para piano. As técnicas de gravação, possibilitaram a entrada em circulação
de músicos iletrados. Mestres da tradição popular, antes conhecidos restritamente nas suas comunidades,
penetravam através do disco em espaços que fisicamente lhes seriam vedados por causa das barreiras
existentes nas sociedades cubana e brasileira. Segundo afirma Octaviano D’monte na revista WECO,
“Chegamos ao século XX. Edison deu-nos o seu maravilhoso fonógrafo e com ele a música popular
brasileira, sem o executante nativo, ficava mais discreta e podia chegar até o interior de todos os lares”.16
Mas a predominância e popularidade destes “executantes nativos” representava uma ameaça para alguns,
como revelam vários dos depoimentos antes citados. Outros, como o poeta Manuel Bandeira, com maior
sensibilidade para as riquezas da música tradicional, percebiam que o problema maior radicava na falta de
critérios na escolha de intérpretes verdadeiramente “autênticos”. No Rio de Janeiro, cidade para onde
convergiam tradições tão diversas e sede da emergente indústria do comércio musical no Brasil, Bandeira
traçava as fronteiras de restritos territórios de autenticidade: o samba do morro (“dos malandros do
Estácio”) e a música dos terreiros.
Os rituais de caráter religioso praticados principalmente por comunidades de afro-descendentes
sofreram intensa perseguição nos centros urbanos do Brasil, particularmente nos anos posteriores ao
40
advento da República. Ainda na década de 30, há notícias da intervenção policial nas casas de culto.
Porém, nessa época a música vinculada aos candomblés já traspassava as fronteiras do terreiro, circulando
pela cidade em gravações das casas Brunswick, Odeon, Victor e outras. Em setembro de 1930 a revista
Ilustração Musical traz resenha de dois discos da Odeon intitulados Macumba I e II, que registravam
pontos de Ogum, Iansã e Exu. O comentarista da revista exaltava justamente a autenticidade das chapas:
“O que a Odeon fez nestes dois discos constitui obra de invulgar mérito, pois transportou para a cera, em
toda a pureza, trechos musicais da misteriosa macumba. E os intérpretes são os próprios sacerdotes e
outros adeptos da estranha religião.”17 Por outro lado, Mário de Andrade elogiava a combinação de
autenticidade e inovação em Babaô Miloquê, de Josué de Barros e a orquestra Victor brasileira,
catalogado pela gravadora como “batuque africano”, que trazia referências musicais e verbais ao panteão
de ascendência ioruba. Na capa do disco, que pertencia à sua coleção pessoal, o crítico registrava: “Uma
das grande vitórias da discografia nacional. Admirável como caráter, tradição, invenção, riqueza de
combinação instrumental. No Babaô o ambiente de percussão lembra o dos maracatus pernambucanos.”18
A sonoridade que prevalecia, porém, como marca musical do Rio de Janeiro era o chamado ‘estilo
maxixeiro’. Equivalente brasileiro do jazz norte-americano e do tango argentino, o maxixe, segundo
Mário de Andrade, era um gênero tipicamente urbano, que nutria-se de diversas tradições nacionais e
estrangeiras:
Analisando obras de compositores como Ernesto Nazareth, Sinhô, Souto e Donga, o crítico afirma que a
originalidade do maxixe não era nem rítmica, nem melódica, mas que radicava talvez unicamente no
jeitinho. Já se falava na época da semelhança da linha melódica do maxixe com outros gêneros de dança
europeus e com os processos do jazz. Mas a fonografia da Victor vem revelar a Mário uma outra
constatação. Possuía ele na sua discoteca vários discos de músicas do Caribe, particularmente cubanos e
porto-riquenhos. Os comentários registrados nas capas dos mesmos revelam as observações que vêm
apoiar o argumento que elabora no citado artigo. Sobre a versão do popularíssimo son El manisero,
gravada pelo cubano Trío Matamoros, Mário escreve: “Acompanhamento bem brasileiro”, enquanto que
as plenas, aguinaldos e boleros do porto-riquenho Manuel Jiménez ‘Canario’ contêm os seguintes
comentários: “O acompanhamento instrumental se torna aqui particularmente brasileiro” e “orquestração
maxixeira”.20
41
Com estes documentos discados por Victor, de ‘plenas’, boleros e boleros-plenas,
a coincidência já não é apenas melódica, é rítmica e instrumental. Mesmo jeito de tratar
a orquestrinha, mesmos processos de baixo-melodicos ao violão, mesma disposição das
síncopes no compasso. Só a melodia cantada é que diverge totalmente.
O que parece mais acertado afirmar é que o Maxixe é uma resultante de
processos afro-americanos de musicar. Mas esses processos não são exclusividade
nossa…21
Tal julgamento sobre o maxixe, iluminado pela escuta de músicas caribenhas e afro-norte-
americanas que a emergente indústria do disco tornava possível, é uma observação atenta sobre estas
novas e contundentes sonoridades que se forjavam no contexto do que Ángel G. Quintero denominou
como “margens mulatas da modernidade”. Para este autor, as músicas afro-norte-americana, brasileira e
caribenha, são as “três tradições de expressão sonora (bastante relacionadas entre si) que quebraram a
hegemonia absoluta que a extraordinária música da modernidade ‘ocidental’ parecia ter alcançado por
volta do começo do século” (Quintero, 1998, p.60-62). Heterogêneas cidades do ‘Novo Mundo’ como Rio
de Janeiro e Havana — cuja urbanidade era matizada por um intenso diálogo com o mundo rural, ao
mesmo tempo em que recebiam desde bem cedo as sonoridades do circuito internacional — foram palco
da consolidação de gêneros como o samba e o son, de grande impacto não só no âmbito nacional, como
também no mapa musical internacional. Tratando-se de músicas elaboradas principalmente pelos setores
populares subalternos, onde a presença de elementos de tradição africana era marcante, a visibilidade
obtida por estes gêneros foi criticada por setores das elites e da classe média, como examinamos em
trabalho anterior.22
Robin Moore afirma que as gravações de música cubana anteriores a 1920, apresentavam
principalmente artistas com formação musical erudita, sobretudo cantores de ópera ou do teatro de revista,
bandas militares e orquestras de dança de setores urbanos da classe média. O selo Brunswick foi um dos
primeiros a mostrar interesse em conjuntos de músicos populares, tendo registrado em 1916 e 1918 os
primeiros discos de son cubano (Moore, 1997). Ao longo dos anos 20, este gênero vai ganhando espaço
no mercado fonográfico com o sucesso de grupos de músicos das classes subalternas como o Septeto
Habanero e o Trío Matamoros. As primeiras gravações destes conjuntos foram feitas pela R.C.A Victor
de Nova Iorque, o que promovia também a entrada deles no circuito daquela cidade, principal pólo da
industria musical na época.
Nesse contexto, uma discoteca de qualidade passou a ser um bem muito prezado pelos intelectuais
como Bandeira, Mário de Andrade e Alejo Carpentier, interessados tanto nas músicas tradicionais como
na produção moderna no âmbito do repertório erudito que na época era pouco interpretado no Rio de
Janeiro, São Paulo ou Havana. O disco abria as portas para universos sonoros que não estavam ao alcance
nos cenários da cidade, mas a maior parte do conteúdo das gravações era considerado por estes críticos
42
como medíocre ou banal. “Da discação internacional, escapa do ruim talvez uns trinta-por-cento”,
afirmava Mário de Andrade em artigo que sugeria, para aqueles “que colecionamos Dante, Shakespeare,
Scelly, Goethe, Heine e talvez Baudelaire em nossas bibliotecas”, o único remédio de se tornar
consumidores seletivos.23 Segundo Bandeira, “não é nem nos concertos, nem nas sociedades de rádio que
se pode ter aqui a delícia de ouvir música um pouco menos quotidiana, mas sim em casa de alguns
amadores da boa victrola. Sei de um que manda vir diretamente da Europa tudo que aparece de bom.
Stravinsky, Falla, Honegger”.24 No mesmo ano em que os brasileiros faziam tais considerações, o cubano
Alejo Carpentier publicava um artigo intitulado “El arte de poseer un gramófono”, onde revela os seus
critérios para uma boa discoteca; de fato, bastante similares aos de Andrade e Bandeira:
[…] Nunca podré olvidar que en una época en que mi cultura musical no salvaba los
límites de lo clásico y romántico, un solo disco —el Prélude a l’Apres Midi d’un faune de
Debussy— me abrió las puertas de la música moderna.[…]
El buen coleccionista sabe que los records de música seria deben constituir la base de
su discoteca, según sus gustos se inclinará hacia la música clásica, la romántica o la
moderna […] Una vez que el núcleo generador de la discoteca haya sido constituido con
obras sólidas de la producción musical universal, el coleccionista podrá permitirse
fantasías. Teniendo en cuenta que un buen disco de jazz suele ser una realización
instrumental o rítmica tan perfecta en su plano, como puede serlo en el suyo una obertura
[…] el poseedor del gramófono podrá formar una suerte de antología de aires de danzas
modernas, cuidando de seleccionar los más característicos y mejor grabados. Ciertos blues
o fox realizados por Paul Whiteman, Ted Lewis, Jack Hylton y sus falanges son verdaderas
obras maestras en el género […]
Al lado de esto, si el coleccionista se siente atraído por ello, sería conveniente situar
un sector de música etnográfica: cantos típicos de diversos países, aires regionales, saetas
sevillanas, guitarras hawaianas, aires mexicanos, sones criollos, romanzas javanescas,
encantaciones negras. […] Huelga decir que la posesión de discos de bandas, de acordeón,
ocarina, filarmónica, silbido, vasos golpeados y otras excentricidades musicales, denuncian
el más horroroso mal gusto […] Casi al mismo nivel intelectual puede situarse el individuo
cuya discoteca solo está integrada por discos de arias […] ¡Dime qué discos prefieres y te
diré quién eres!…25
Uma outra novidade da época que repercutiu no ambiente musical urbano foi a introdução do
cinema falado. O cinema mudo havia se tornado um espaço fundamental de atuação para os músicos nas
cidades. A música atraía o público para os cinemas tanto ou mais que as próprias projeções. Cientes da
sua importância, os músicos havaneses chegaram até a fazer greve em meio à crise dos preços do açúcar
(1921) em protesto pelos baixos salários que recebiam dos empresários de cinemas. Sob a batuta de
Gonzalo Roig, então diretor da orquestra do Campoamor, os músicos que trabalhavam nos cinemas
resolveram reunir-se no Parque Central para oferecer concertos de graça ao ar livre que concentravam
público numeroso, deixando vazias as salas de projeção.
43
No final da década, o cinema falado veio alterar esta situação. Assim como a valsa “Ramona”
interpretada por Dolores del Rio — da qual se queixava Manuel Bandeira — tema musical de um filme
com o mesmo nome, os sucessos das trilhas sonoras da época entraram para o circuito das rádio-
sociedades, deixando uma marca definitiva no ambiente musical. Em contraposição, muitos
instrumentistas locais ficavam sem emprego, segundo denunciava Ugo Prestes em artigo publicado em
outubro de 1929 na revista WECO:
De que serve estudar música durante nove anos no Instituto Nacional de Música ou
qualquer outro estabelecimento de ensino da tão bela arte, se de um momento para
outro, devido ao aparecimento de um realejo-eléctrico, o músico-artista é posto no olho
da rua, sem mais nem menos, preterido nos cinemas do centro pelo tal do talkie e nos dos
arrabaldes por gramophones…, lá colocados para tapear o nosso ingénuo povo.
Ha poucos dias estivemos com artistas que labutavam em cinemas localizados em
estações da Leopoldina, dos vinte músicos que trabalhavam nas mencionadas casas de
diversões, não ficou um só, foram todos sumariamente despedidos e substituídos por
gramofones. […]
Em breve não restará um só cinema com orquestra, porque as agências de films
estão no firme propósito de qualquer forma impor o cinema falado, sem o que não
fornecerão programação.26
A penetração de meios de massa como o disco, a rádio e o cinema falado aproximaram os ouvidos
cubanos e brasileiros de sons que circulavam na emergente indústria cultural, dominada principalmente
pelos Estados Unidos. Os músicos brasileiros e cubanos logo começaram a criar nos gêneros em voga,
embora a grande presença que conquistaram nos circuitos internacionais tenha sido fruto essencialmente
do aproveitamento dos seus respectivos acervos de músicas tradicionais. Nos anos 30, não só ouvia-se em
Havana e no Brasil as trilhas estrangeiras dos filmes de moda, como também o público norte-americano
escutava sambas e rumbas difundidos através da grande tela. Em 1931 o cubano Ernesto Lecuona era
contratado pela Metro Golden Mayer para compor a trilha musical do filme El Manisero e mais tarde a de
Carnaval en Costa Rica. Por outro lado, a cantora Carmen Miranda, que tinha estreado em 1932 com o
documentário de produção nacional Carnaval, é uma das figuras que se distinguem na Hollywood dos
anos 40, tendo protagonizado, entre outras, Down Argentine Way, That Night in Rio e Weekend in
Havana. A respeito da produção nacional de cinema no Brasil — da qual participaram compositores
como Francisco Mignone, que em 1930 assina a trilha do filme O babão e em 1938 a de Alma e corpo de
uma raça, entre outras — a revista WECO publica em 1930 opiniões da musicista Antonietta de Souza
sobre o tipo de música a ser empregada no cinema sonoro. Preocupada com a “triste propaganda do nosso
estado de cultura e civilização” que seria feita pela utilização de música “regional”, “escrita sem técnica”,
Souza afirma:
44
Por meio do cinema falado poderemos realizar, no Brasil, uma grandiosa obra de
educação nacional, acostumando o nosso povo a ouvir a boa música e a boa linguagem.
Devemos, certo, aproveitar em nossa música, os motivos regionais, elevando-os, porém,
à altura a que já atingimos na parte musical. Assim todas as canções cuja técnica
musical seja equivalente aos seus detestáveis versos — escritos no estilo de “nós querê”
e “nós fô” — para que o ‘talkie’ seja uma verdadeira escola, não devem ser
aproveitadas, sob nenhum pretexto.27
Cenários em transformação
Na hora do pôr-do-sol o vapor Rotterdam aproximava-se de Havana. Para Alejo Carpentier o mar
espargia um aroma diferente do que os acompanhara na longa travessia. Lembrava claramente do cheiro
do Malecón naquelas madrugadas em que se sentava junto aos amigos no antigo — agora desaparecido —
coreto e suspiravam fantasiando com o sempre esperado momento de poder acenar em despedida, dizer
adeus ao Morro, à fortaleza que monumentalmente flanqueia a entrada marítima da cidade. Alejo
Carpentier voltava a Havana na primavera de 1939 depois de morar durante onze anos na Europa.
Impressionava-lhe agora o cosmopolitismo de uma cidade que lembrava provinciana. Provinciana era
45
para Carpentier a Havana dos anos 20 que rejeitava preconceituosamente tudo aquilo que cheirava a
criollo. Cosmopolita era a cidade onde, entre outras coisas, percebia-se uma revalorização do próprio, do
autóctone.28
Quando, em março de 1928, Carpentier foge para Paris com a ajuda do poeta francês Robert
Desnoes, deixava uma cidade em reformas. Dois meses antes, por ocasião da Sexta Conferência
Internacional Americana celebrada em Havana com a presença de vinte e dois chefes-de-estado das
Américas, incluindo o presidente norte-americano Calvin Coolidge, inaugurava-se na cidade um conjunto
de obras concebidas pelo arquiteto francês J.C.N. Forestier. Mas o grandioso Capitólio, que devia servir
como sede da Conferência, ainda não estava pronto. Eram os tempos da ditadura de Gerardo Machado,
que se estendeu de 1925 a 1933. Como argumenta Roberto Segre, o programa de governo de Machado
outorgava importância às obras públicas, tendo cunhado o lema publicitário “água, caminhos, escolas”.
Porém as obras realizadas durante o seu mandato, lideradas pelo Ministro de Obras Públicas Carlos
Miguel de Céspedes, não se caracterizaram pela sua função social, mas pela sua monumentalidade
“representativa dos valores da oligarquia local”, vinculada aos capitais norte-americanos que cada vez
mais dominavam a economia da ilha (Segre, 1990, p.94). O Capitólio Nacional, “hipócrita representação
do sistema democrático burguês” (Segre ibid.), foi inaugurado em maio de 1929, quatro meses depois do
assassinato no México de Julio Antonio Mella, um dos principais opositores da ditadura de Machado.
J.C.N. Forestier tinha sido um dos fundadores da Sociedade Francesa de Urbanistas (1911), grupo
que promulgava a renovação das cidades através de uma arte cívica baseada nos princípios da
racionalidade Haussmaniana e nas experiências paisagísticas do City Beautiful Movement norte-
americano. Quando chega a Havana em dezembro de 1925, Forestier era conhecido pelo desenho de
jardins em Sevilha e Barcelona, assim como por reformas urbanas que realizara no Marrocos, em Lisboa,
Buenos Aires e nos subúrbios de Paris. Outros integrantes deste grupo de arquitetos franceses dirigiram
remodelações em cidades latino-americanas, como Maillart em Montevidéu, Rotival em Caracas e Donat-
Alfred Agache no Rio de Janeiro (Leujeune, 1996). Este último, convidado pelo prefeito Prado Júnior, foi
tema de uma marchinha que empolgava os cariocas durante o carnaval de 1927:
46
Os versos da canção abordavam com humor um dos aspectos nevrálgicos dos princípios urbanos destas
reformas, que não somente visavam embelezar os prédios, ruas e avenidas, mas atingiam sensivelmente a
cotidianidade da população, privilegiando o conforto das elites enquanto ficavam desatendidas
necessidades básicas dos setores subalternos.
Mas a Havana que Carpentier admirava em seu retorno tinha uma grande dívida com o paisagismo
de Forestier que, segundo observa Segre (1990), se empenhou em aproveitar as riquezas naturais da
cidade, a vegetação nativa exuberante, o “cenário lumínico e cromático oferecido pelo litoral”. O
reencontro com Havana, para Carpentier, transforma-se em uma experiência que percorre todos os
sentidos. A cidade é observada em cenários majestosos e diminutos detalhes decorativos; a cidade se
escuta buliçosa; tem cheiro de mar e cebola; a cidade surpreende-o com novos sabores. O reencontro com
Havana é igualmente a constatação da sua própria transformação, como intelectual, como artista, como
havanês, como cubano.
As representações da identidade na obra crítica e criativa de Mário de Andrade e Alejo Carpentier
são indecifráveis sem uma aproximação aos cenários urbanos de São Paulo e Havana. Cenários
cambiantes, cenários em transformação, cenários permanentemente redescobertos. Como o Enrique do
romance La consagración de la primavera, Andrade e Carpentier abriram olhos, ouvidos e intelecto para
o circundante, num processo de redescoberta identitária sobre o qual a primeira parte deste trabalho,
começando por estas páginas, pretende refletir.
Y fue mi deslumbramiento ante una ciudad re-descubierta, vista con ojos nuevos,
con mirada capaz, ahora, de establecer nuevas escalas de valores […] Hijo pródigo,
paseaba pues por mis calles (¡jamás una calle de París me habría dado la impresión de
ser mía!…), hallándome a mí mismo tras de largo extravío — nuevo yo que ahora
renaciera/naciera en lo circundante y percibido. Me detenía atónito, ante un viejo palacio
colonial que me hablaba por todas sus piedras, […] ante la salerosa inventiva de una reja
un tanto andaluza en cuyos enrevesamientos descubría yo algo como los caracteres de un
alfabeto desconocido, portador de arcanos mensajes. Una repentina emoción me
suspendía el resuello al sentir la llamada de una fruta, la musgosa humedad de un patio,
la salobre identidad de una brisa, la ambigua fragancia del azúcar prieta. […] Carpentier,
1986, p.203.
47
CAPÍTULO 2
Evento e movimento:
Modernismo brasileiro e Minorismo cubano
Era janeiro de 1924. Quem almoçava aquela tarde no restaurante Giovanni, perto da rua Neptuno em
Havana, poderia reconhecer de longe, no meio de uma longa e irrequieta mesa, o grande barítono italiano
Titta-Ruffo. Este era o convidado de honra de um grupo de intelectuais e artistas amigos, muitos dos quais se
aborreciam com a ópera, mas admiravam o afamado cantor. Assinada por Jorge Mañach, um dos escritores
que se encontrava presente, a revista Social publica uma crônica sobre o animado encontro onde
publicamente se fala pela vez primeira no grupo dos “minoristas sabáticos”.30 ‘Minoristas’ porque
consideravam que em Cuba somente um grupo bem reduzido de pessoas dedicava-se às artes e a literatura, e
‘sabáticos’ porque, por sugestão de Emilio Roig de Leuchsenring, depois do citado almoço, resolveram
repetir aquele encontro regularmente aos sábados (figs. 19-20).
48
Muitos dos “sabáticos”, como tornaram-se primeiramente conhecidos, eram colaboradores da revista
Social, fundada em 1916 pelo caricaturista e desenhista gráfico Conrado Walter Massaguer e onde Emilio
Roig atuava como chefe de redação desde 1918 e diretor literário desde 1923. Inicialmente dedicada a
assuntos mundanos e crônicas sociais para consumo das classes mais abastadas, de grande cuidado no seu
aspecto gráfico e de fabricação luxuosa, Social foi aos poucos abrindo as suas páginas para as preocupações
estéticas de um pequeno grupo de jovens escritores e artistas de Havana com antenas bem sintonizadas para
as inovações das vanguardas européias. Segundo rememora Alejo Carpentier, Massaguer tinha como modelo
a Vanity Fair, uma revista norte-americana dedicada à vida social da alta burguesia de Nova Iorque e que
possuía uma seção com informações de última hora sobre os movimentos artísticos da época. “A dicotomia
Massaguer-Emilio Roig de Leuchsenring”, observa Carpentier, “é um dos fenômenos mais insólitos da
cultura cubana do começo do século. Massaguer, de origem humilde, aspirava a ser burguês, e Emilito, que
procedia de uma classe burguesa, que era burguês, se aborrecia com a burguesia e aspirava a combatê-la. […]
Massaguer ficava com as namoradas, o Yacht Club e os bailes, enquanto Emilito tinha carta branca para, num
número determinado de páginas, publicar o que quisesse” (Carpentier, 1987, p.115). Por ocasião da
comemoração do décimo aniversário de Social, Roig de Leuchsenring afirma no editorial do número de
janeiro de 1926 que a revista constituía o órgão de todo um movimento intelectual. Fotos individuais de cada
um dos minoristas eram publicadas para homenagear os motores desse movimento. Sem incluir os diretores
de Social, aparecem como membros do grupo e colaboradores da revista vinte e um homens e duas mulheres.
Entre outros, Alejo Carpentier, Rubén Martínez Villena, José Z. Tallet, Félix Lizaso, José A. Fernández de
Castro, Jorge Mañach, Juan Marinello, Agustín Acosta, Max Henríquez Ureña, María Villar Buceta e
Mariblanca Sabas Aloma.
Os minoristas, segundo afirma Carpentier (1987, p.119), guardavam uma enorme fé na renovação da
humanidade por via da arte. Os seus integrantes tinham especialidades e preocupações diversas e a atividade
principal deles como grupo foi precisamente a de promover o intercâmbio de idéias e informações novas que
cada um encontrava, possibilitando uma espécie de formação comum em matérias de arte, literatura, e
filosofia, principalmente. O pintor José Manuel Acosta introduzia-os a Picasso, Braque, Gris, Léger e
Kandinsky através de L’Espirit Nouveau — editada por Le Corbusier — e de outras revistas que
periodicamente recebia. Carpentier e os compositores Roldán e Caturla encomendavam da Europa partituras
de Debussy, Stravinsky, Satie, Schoenberg, Falla e outros; o poeta José Antonio Fernández de Castro
iniciava-os no culto a Maiakovski, enquanto Jorge Mañach e Félix Lizaso faziam circular os escritos de
Ortega y Gasset e a Revista de Occidente.
Através da revista peruana Amauta, editada por José Carlos Mariátegui, da mexicana El Manchete,
publicada por Diego Rivera, e da argentina Martín Fierro, os minoristas travam contato com a nova criação e
o pensamento social latino-americano de vanguarda. Este intercâmbio com os círculos literários e artísticos
49
latino-americanos foi intensificando-se a partir de viagens dos minoristas a países vizinhos e das visitas de
intelectuais do continente a Havana. Os mexicanos Alfonso Reyes, Antonio Caso e José Vasconcelos são
recebidos pelo grupo entre 1924 e 1925, enquanto Carpentier, Massaguer, José Antonio Fernández de Castro
e o Dr. Artiga viajam ao México em 1926 a convite do escritor Juan de Dios Bojorquez, onde conhecem
Diego Rivera. O peruano Edwin Elmore, mais tarde assassinado por Santos Chocano, também é convidado
dos minoristas, assim como o nacionalista porto-riquenho Pedro Albizu Campos. Por motivo do 7º Congresso
de Prensa Latina, realizado em Havana em março de 1928, os minoristas dialogam principalmente com o
guatemalteco Miguel Ángel Asturias, o boliviano Tristán Maroff e o francês Robert Desnoes.
Em 1927 publica-se o mais conhecido manifesto do Grupo Minorista, redigido por Rubén Martínez
Villena31. Trata-se de um importante documento da história cultural cubana, que oferece uma versão muito
bem articulada dos propósitos artísticos e políticos do minorismo. A declaração estabelece, em primeiro
lugar, um ato fundador do grupo: o chamado Protesto dos Treze, manifestação liderada pelo próprio Martínez
Villena em março de 1923 na Academia de Ciências em repúdio à corrupção do governo — particularmente
em relação à compra do Convento de Santa Clara. Aquele grupo de manifestantes, afirma o documento,
costumava reunir-se periodicamente com o intuito de compilar material para a edição de uma antologia de
poetas modernos de Cuba, publicada finalmente em 1926 sob coordenação de Félix Lizaso e José Antonio
Fernández de Castro. O vínculo entre colaboração artística e compromisso político, enfatizado na declaração,
caracteriza a trajetória do grupo e foi, por outro lado, a raiz dos atritos entre posições divergentes e da sua
eventual desintegração.
No ano de 1927 esses conflitos emergem com particular intensidade. No mês de maio, o filósofo
Alberto Lamar, cuja fotografia aparecera junto aos outros minoristas no número de janeiro de 1926 de Social,
faz declarações públicas afirmando a extinção do grupo. Lamar tinha se aproximado do general Gerardo
Machado – eleito fraudulentamente em novembro de 1924 – sustentando ideologicamente o governo do
ditador com a publicação de Biologia de la democracia (Ensayos de sociología americana). Por outro lado,
nas fileiras dos minoristas encontravam-se ativistas anti-machadistas do porte de Rubén Martínez Villena,
Juan Marinello e Emilio Roig. Até Julio Antonio Mella, fundador da Confederación de Estudiantes de Cuba,
em 1924, e do Partido Comunista Cubano em 1925, freqüentava ocasionalmente os encontros do grupo. Uma
boa parte dos minoristas havia se manifestado contra a corrupção do governo de Alfredo Zayas (1921-1924),
fundado a Falange de Acción Cubana em 1923, colaborado com a Asociación de Veteranos y Patriotas,
assinado manifestos contra a invasão norte-americana na Nicarágua e contra a presença policial na
universidade, entre outros. Mesmo existindo divergência de opiniões quanto à luta ideológica ou política, a
declaração redigida por Martínez Villena em resposta às manifestações de Alberto Lamar foi publicada nas
revistas Social e 1927, contando com 34 assinaturas. Os postulados do grupo ficam constatados no segmento
que citamos a seguir:
50
Colectiva o individualmente sus verdaderos componentes han laborado y laboran:
Por la revisión de los valores falsos y gastados.
Por el arte vernáculo y, en general, por el arte nuevo en sus diversas
manifestaciones.
Por la introducción y vulgarización en Cuba de las últimas doctrinas, teóricas y
prácticas, artísticas y científicas.
Por la reforma de la enseñanza pública y contra los corrompidos sistemas de
oposición a las cátedras. Por la autonomía universitaria.
Por la independencia económica de Cuba y contra el imperialismo yanqui.
Contra las dictaduras políticas unipersonales, en el mundo, en la América, en Cuba.
Contra los desafueros de la pseudo-democracia, contra la farsa del sufragio y por la
participación efectiva del pueblo en el gobierno.
En pro del mejoramiento del agricultor, del colono y el obrero de Cuba.
Por la cordialidad y la unión latinoamericana.
Segundo observa Ana Cairo (1985), o vertiginoso aumento da repressão da ditadura nos anos de
1927-1928 agudizou as divergências entre integrantes do grupo e acelerou a sua extinção. Três novas
iniciativas editoriais vinculadas aos minoristas surgem em 1927, representando prioridades diferentes quanto
às batalhas nos planos político e cultural. José Antonio Fernández de Castro assume a direção do Suplemento
Literario do Diario de la Marina; aparece a revista 1927, ou Revista de Avance, editada inicialmente por
Juan Marinello, Jorge Mañach, Francisco Ichaso, Martín Casanovas e Alejo Carpentier, sendo este último
logo substituído por José Z. Tallet, e Casanovas por Félix Lizaso; surge a revista Atuei, órgão do Sindicato de
trabajadores, intelectuales y artistas de Cuba. Uma polêmica em torno da criação artística ‘desinteressada’ e
‘pura’ versus a arte ‘interessada’ ou de combate foi suscitada pela iniciativa de Fernández de Castro de
homenagear Martínez Villena custeando a publicação da sua poesia, idéia sutilmente questionada por
Mañach que, na Revista de Avance, defendia a pesquisa estética de vanguarda sem a necessária incorporação
de assuntos políticos. “A nossa preocupação política não invade os setores estéticos, porque entendemos […]
que a arte é função e não instrumento”, afirmava um editorial da revista em 1929.
Talvez por tratar-se de linguagens não-verbais, a produção plástica e musical dos vanguardistas
cubanos escapou às polêmicas ideológicas que marcaram o ambiente literário num contexto politicamente
agudo. Nessa época Havana foi cenário da exposição de novos valores estéticos que, embora repudiados pelo
público burguês, eram bem recebidos pela intelectualidade de vanguarda. Alejo Carpentier e Amadeo Roldán
organizaram dois Concertos de Música Nova em dezembro de 1926 e fevereiro de 1927, e em maio do
mesmo ano a Revista de Avance patrocinou a primeira Exposição de Arte Nova, contando com a participação
de Eduardo Abela, Carlos Enríquez, Víctor Manuel García, Antonio Gattorno, José Hurtado de Mendoza,
Alberto Sabas e outros. A incorporação de elementos das inovações plásticas e sonoras das vanguardas
européias e um renovado interesse pela temática nacional e pelas tradições populares caracterizaram a busca
dos artistas cubanos ligados ao Grupo Minorista. As tradições da população afro-descendente,
51
particularmente a música, a dança e as manifestações religiosas ganharam um fascínio especial por parte dos
artistas e intelectuais de vanguarda, aspecto que será analisado posteriormente neste trabalho (figs. 22-27).
Nos dias em que se assinava a declaração do Grupo Minorista, em maio de 1927, uma campanha
anticomunista iniciada em Londres teve importantes repercussões na América Latina e particularmente em
Cuba. José Carlos Mariátegui foi preso no Peru e o governo de Machado ordenou a prisão de vários peruanos
exilados em Cuba e de mais de cinqüenta cubanos acusados de estarem ligados ao Partido Comunista, à
Universidade Popular José Martí ou de terem assinado o Primeiro Manifesto do Sindicato de Trabalhadores,
Intelectuais e Artistas de Cuba (Cairo, 1985). Alejo Carpentier, Rubén Martínez Villena e José Antonio
Fernández Castro encontravam-se nesse grupo. Desta forma foram presos o então chefe-de-redação da revista
Carteles, o diretor da revista América Libre — publicação da Universidade José Martí — e o diretor do
suplemento dominical do Diario de la Marina.
Durante aproximadamente cinco anos (1923-1927) o Grupo Minorista foi um núcleo aglutinante de
intelectuais e artistas e marcou presença como coletivo na vida cultural e política nacional. Embora as suas
atividades se circunscrevessem à cidade de Havana, o grupo manteve um intercâmbio contínuo com alguns
escritores e artistas de outras regiões, como Nicolás Guillén, de Cienfuegos, Alejandro García Caturla, de
Remedios, e Max Henríquez Ureña, que morava em Santiago. Logo após a publicação do Manifesto de 1927,
cria-se um Grupo Minorista em Matanzas por Fernando Lles, Medardo Vitier e outros, e em Remedios
aparece a publicação Los minoristas, dirigida pelo compositor García Caturla. Mas o grupo havanês já tinha
os seus dias contados. Da mesma maneira que foi constituído, de forma espontânea e orgânica, sem nunca
contar com regulamentos nem uma organização estabelecida, as atividades coletivas dos minoristas foram
cessando naturalmente. Coube a Emilio Roig de Leuchsenring confirmar a desaparição do grupo nas páginas
de Social, em artigos publicados em junho, setembro e outubro de 1929. A situação política do país piorava e
em Cuba “já não bastava ser minorista” concluía Emilio Roig no último artigo32.
Após uma manifestação estudantil contra Machado em setembro de 1930 a Universidade foi sitiada
pela polícia, Juan Marinello foi preso e os editores da Revista de Avance resolveram fechar a publicação. Um
ano mais tarde, em carta para Jorge Mañach, Carpentier inquiria de Paris sobre o futuro da revista.
52
Alejo Carpentier nunca concluiu o seu romance sobre o Grupo Minorista, El clan disperso, cujo manuscrito
data de 1943. Mas em La consagración de la primavera, publicado em 1978, dois anos antes da sua morte, o
escritor evoca, através do protagonista Enrique, aquele sentimento incômodo de estar imbuído nas polêmicas
do ambiente artístico parisiense de vanguarda enquanto Cuba agonizava nos últimos anos da ditadura de
Machado.
Deb o deci r que toda esa faramalla de conceptos, obj eciones, teo rías,
abj uraciones, controversias, guerras de cafés […] se me estaba volviendo de
una increíble f rivoli dad frente a los d ramas reales y cruentos que se vivía n en
América L atina. Aquí se asi stía, […] a una pugna, de labi os para afuera,
ent re qui enes aceptab an las consi gnas de un partido revol ucionario, l os que
aspiraban a un posibl e mari daje de revolución y poesía, y los que, queriend o
mostrarse revol uciona rios a toda costa se iba n por ya socorrido s
disparaderos del trot squismo y del anarquismo […] A quí, se habl aba de una
sangre po sible; allá, la sa ngre enrojecía las acera s. Aqu í se hablaba de
act uar; allá se actua ba, y, harto a men udo, p or act uar se moría. Aquí , se
firmaban manifi estos de corrillo; allá, allá, dispa raban los máusers sobre
qui enes f irmaba n mani fiesto s, dej ando cadáveres en las escalinatas
uni versit arias. (Carpentier 1978, p. 78)
A ditadura de Machado caiu em 1933, mas a situação política do país continuou turbulenta. Despontava a
figura de Fulgencio Batista, autoproclamado chefe das forças armadas e líder do golpe de 1934 que derrocou
o Dr. Ramón Grau San Martín, então presidente do Governo Provisional Revolucionário. Em 1940 Batista é
eleito presidente, cargo que detém até o triunfo da Revolução de 1959. Em 1977, nos cinqüenta anos da
fundação da Revista de Avance e da Declaração do Grupo Minorista, Alejo Carpentier — então Conselheiro
da Embaixada de Cuba em Paris — é convidado a rememorar aqueles anos em palestra no Museu de Belas
Artes, na qual elabora uma reflexão sobre as transformações do significado da palavra vanguarda. Para os
minoristas da primeira hora, afirma Carpentier, vanguarda era apenas o novo, o estridente, o irreverente.
“Acreditávamos que através da arte conseguiríamos muitas coisas mais do que as que podem ser alcançadas
pela arte, quando a arte não vem acompanhada de uma ação primordial, fundamental que é política” (In:
Carpentier, 1987, p.119). Em pleno entusiasmo revolucionário, o Grupo Minorista era revalorizado pelo
ativismo e sacrifício de um Rubén Martínez Villena, pelo antiimperialismo de um Emilio Roig, pelo labor de
resgate e divulgação do pensamento martiano de um Juan Marinello. Esta é, para Carpentier, a vanguarda que
recuperou o seu autêntico sentido militante e político.
Observe-se, porém, que não se trata da defesa de uma estética “comprometida”, a qual proliferou em
todo o mundo socialista, mas sim da participação dos intelectuais na ação política para a mudança social.
Carpentier admirou o sacrifício de Martínez Villena, que abandonou a poesia pela luta revolucionária e, por
outro lado, reconhecia o valor do trabalho artístico em si mesmo, representado por publicações como a
Revista de Avance e posteriormente Orígenes. Ao retornar de Paris, em 1939, Carpentier se defronta com
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alguns dos seus ex-colegas minoristas inseridos num governo de direita, logo transformado em ditadura —
por exemplo, Mañach, designado Secretário de Educação em 1934. Nesse contexto político, Carpentier
escolhe em 1945 o exílio voluntário em Caracas e a dedicação plena ao trabalho artístico e literário. Da
capital venezuelana, Carpentier envia uma carta a José Rodríguez Feo, diretor de Orígenes, que revela a sua
postura intelectual em 1949:
Te confieso que el espectáculo de mi generación (la del 27) me irrita bastante. Cuando veo a
mis compañeros de entonces dados al politiqueo, entregados a la verborrea semanal de las
revistas, vencidos por el placer de tener un automovilito, o dados al alcoholismo; cuando veo
despreciar las ideas de los jóvenes a individuos que nada supieron dar, cuando veo hombres
inteligentes contentándose con éxitos deleznables, pequeños honores de acto público, ello
resulta para mí una especie de estímulo. Me digo… “yo trataré de no sucumbir como ellos. Yo
trataré de dar mi propia medida, si es que mi medida ofrece algún interés. Yo no haré
política. Yo no perderé más el tiempo, y recuperaré el tiempo perdido por razones ajenas a mi
voluntad”… Y me quito el cuello y la corbata y me siento junto a mi mesa de trabajo. (In:
Campuzano, 1997, p. 23)
O benjamín do Grupo Minorista, assim chamado quando ainda adolescente incorporava-se à roda dos
minoristas sabáticos, foi também um sobrevivente de longas décadas turbulentas. Felizmente sobreviveu não
só para legar-nos a memória dos dias do minorismo, mas também para construir uma obra sólida que é, de
alguma forma, uma majestosa elaboração das preocupações que emergiram naqueles agitados anos de
formação.
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Vicente do Rêgo Monteiro, Zina Aita, Yan de Almeida Prado (em colaboração com Antonio Paim Vieira) e o
suíço John Graz, entre outros, dos escultores Victor Brecheret, Hildegardo Leão Velloso e o alemão Wilhelm
Haarberg, e dos arquitetos Antônio Garcia Moya e o polonês Georg Przyrembel. No palco ou nas escadarias
do saguão, conferências literárias por Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Menotti del Picchia, Mário de
Andrade e Renato Almeida, ditadas no intervalo dos acordes de Debussy, Satie, Poulenc e Villa-Lobos,
interpretados por Guiomar Novaes, Ernâni Braga, Paulina d’Ambrosio, Fructuoso Vianna e Lucília Villa-
Lobos, entre outros. A Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, é o evento que tornou-se emblema
do Modernismo brasileiro. Enquanto acontecimento pluriartístico ela concentrou de forma singular as novas
idéias que se forjavam nos âmbitos literários, artísticos e musicais. Por outro lado, sendo realizada no Teatro
Municipal de São Paulo (por intermédio de Paulo Prado) e contando com a participação de uma artista de
fama internacional e admirada pelo público burguês, Guiomar Novaes, o movimento revelava as suas
pretensões de sacudir o ambiente cultural da elite.
A camaradagem dos modernistas de São Paulo começou por volta de 1917, a partir da exposição de
Anita Malfatti, uma jovem pintora que estudara na Alemanha e em Nova Iorque. A pesquisadora Marta
Rossetti Batista afirma que “As obras que Anita Malfatti apresentava constituíam uma charada de difícil
solução para o público paulistano, familiarizado unicamente com pinturas acadêmicas, ligadas à ‘cópia da
natureza’. E as da pintora mostravam paisagens construídas por planos sucessivos, retratos e figuras
deformados, sucintos, a cor interpretativa, chapada. Desde o início a novidade atraiu um público numeroso
[…]” (In: Andrade, 1989, p. 15). Intitulada de Exposição de pintura moderna Anita Malfatti, a mostra
provocou reações diversas e exacerbadas. Segundo relembra Mário de Andrade em carta a Augusto Meyer
(20/05/28) “toda a gente arrenegou e eu fiquei apaixonado sem saber direito porque” (In: Andrade, 1968). A
crítica virulenta de Monteiro Lobato e a imediata resposta em defesa da artista por Oswald de Andrade
sentaram as bases de uma polêmica estética e cultural que apenas se iniciava.
As inovações que já se deixavam entrever nas artes plásticas da cidade foram um elemento
fundamental no despertar de novas inquietações estéticas e na consolidação do grupo modernista. Em 1919
Mário, Oswald e Menotti del Picchia — então escritores estreantes — ficam admirados com as obras do
escultor Victor Brecheret, que acabava de voltar da Itália. Aracy A. Amaral (1998) aponta que o próprio
entusiasmo desse grupo de jovens paulistas por tudo que houvesse de novo impulsionaria o escultor a uma
modernização na sua obra, que se verifica ao se contrastar a Eva, trazida da Itália, com as esculturas
realizadas em São Paulo entre 1919 e 1921. Peças como a Cabeça de Cristo, adquirida por Mário de Andrade
e que segundo o próprio autor foi o estopim dos poemas de Paulicéia Desvairada. Em 1920, os modernistas
acompanham quatro novas exposições individuais de futuros integrantes da Semana. Tratava-se das mostras
de Vicente do Rêgo Monteiro, pintor pernambucano que voltara da França em 1914, Emiliano Di Cavalcanti,
carioca e estudante de direito em São Paulo, conhecido então como ilustrador e caricaturista, John Graz,
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pintor suíço que tinha chegado a São Paulo em 1920 e casado com a artista Regina Gomide, e uma segunda
individual de Anita Malfatti (Amaral, 1998 e Rossetti Batista — In: Andrade, 1989).
Por outro lado, o intercâmbio de idéias novas no âmbito literário foi enriquecido pelo retorno da
Suíça, em 1919, dos escritores Sérgio Milliet e Rubens Borba de Morais. Nesse mesmo ano, publicava-se no
Rio o livro de poemas Carnaval, de Manuel Bandeira, que Mário de Andrade descobriu através de Guilherme
de Almeida. Em 1921 Mário, junto com Oswald e Armando Pamplona, viaja ao Rio de Janeiro, onde entra
em contanto com Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Renato de Almeida, Villa-Lobos, Álvaro Moreyra e
Ronald de Carvalho, tendo sido organizada uma leitura dos seus poemas na casa deste último. Um ano
depois, Bandeira recebe Paulicéia Desvairada, finalmente editada em 1922, e comenta em carta a Mário de
Andrade sobre a impressão que lhe causaram os poemas do amigo: “Quando os ouvi, lidos por você, senti-me
arrastado pelo aluvião lírico do Desvairismo. O “Oratório”, o “Noturno” […] deixaram em mim ressonância
de inumeráveis harmônicos. Tinha, realmente, ânsia de lê-los. À leitura, faltou-me a sua voz, que me fazia
aceitar encantatoriamente coisas que me exasperam neles. Todavia preciso acrescentar que descobri belezas
que me tinham escapado antes” (In: Andrade, 2000, p.69).
Além de reunir criadores de diversos ramos, a Semana de Arte Moderna de 1922 conseguiu
promover o diálogo ainda incipiente no seio do panorama artístico de sensibilidade antiacadêmica das
cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Dois importantes articuladores desse encontro foram o já conhecido
escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Graça Aranha, recém-chegado da Europa em 1921 e Di
Cavalcanti, em cuja exposição Aranha conhecera o grupo dos modernistas da Paulicéia. O auspício de Paulo
Prado — filho do ex-prefeito Antônio Prado e grande empresário do café, tendo travado contato com os
modernistas através de Graça Aranha — foi indispensável para a realização da Semana e, particularmente,
para que tivesse lugar no mais aristocrático espaço cultural de São Paulo: o grandioso Teatro Municipal. A
cidade que já representava a vanguarda industrial e financeira do país ensaiava firmar-se igualmente como
pólo artístico em sintonia com a modernidade cultural européia da época, desejando pôr em xeque a
tradicional hegemonia cultural da capital.
O mecenato de figuras da oligarquia paulista deixou traços na trajetória e no caráter do grupo
modernista. Desde a segunda década do século, precedendo a Semana, o senador Freitas Valle, de origem
gaúcha, por exemplo, abria a casa para poetas, pintores, políticos e outros amigos. Naquelas reuniões da
chamada Villa Kyrial organizavam-se conferências sobre literatura, história e arte. Mário de Andrade
proferiu ali várias palestras, como “Debussy e o impressionismo” em 1921, “A poesia modernista” em 1922 e
“Paralelo entre Dante e Beethoven” em 1923. Freitas Valle foi responsável também por bolsas de estudos na
Europa, das quais foram beneficiários Brecheret em 1921 e Anita Malfatti em 1923, entre outros (Amaral,
1998). Além de Paulo Prado, que após a Semana cultivou a sua ligação com os modernistas convidando-os
para almoços dominicais na sua casa da avenida Higienópolis, destacou-se também Dona Olívia Guedes
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Penteado, que promoveu igualmente o seu salão nas terças-feiras à tarde, segundo relembra Mário de
Andrade em 1942 na conferência sobre o Movimento Modernista. Por outro lado, a pintora Tarsila do
Amaral, de família abastada, volta de Paris em 1922 e trava contato com os modernistas através da sua amiga
Anita Malfatti. Inicia-se, após a Semana, uma estreita amizade entre Tarsila, Anita, Mário, Oswald e Menotti,
que autodenominavam-se o Grupo dos Cinco, reunindo-se regularmente no ateliê de Tarsila. Eventualmente a
pintora passou a organizar festas semanais na sua casa, constituindo assim, segundo Mário de Andrade, “o
mais gostoso dos nossos salões aristocráticos” (Andrade, 1968, p.45). Outra das residências freqüentadas
pelos modernistas era a de Rubens Borba de Moraes: “Aos sábados à noite o grupo aparecia em minha casa,
no Jardim América, construída segundo um ‘croquis’ feito por mim. […] Era uma casa moderna, uma das
primeiras de São Paulo, decorada com afrescos de Gomide, móveis ultra modernos e um quadro de Di
Cavalcanti” (Moraes, 1979, p. 3-4).
Mário de Andrade recebia os amigos no estúdio da sua casa na rua Lopes Chaves. Ali a discussão
intelectual sobre a arte moderna era assunto obrigatório, acompanhado de doces tradicionais brasileiros e
algum alcoolzinho econômico, recorda o próprio anfitrião (Andrade, 1968, p.43). Os chamados salões, onde
participavam membros da oligarquia paulista, políticos, intelectuais e artistas, foram para Mário de Andrade
motivo de reflexão, como exemplifica a magistral série de crônicas intituladas O banquete, escritas já no final
da vida. Mas durante a década de 1920, época áurea dos salões, Mário já compartilhava com Anita Malfatti e
Manuel Bandeira, colegas artistas de uma posição econômica similar à sua, provindos de famílias de
profissionais ou da pequena burguesia, o incômodo que muitas vezes sentia na roda dos modernistas
aristocráticos. Em carta a Bandeira, de 1924, confessa: “Creio também que o que está me fazendo mal são as
companhias. Meu grupo, amigos, camaradas, todos ricaços, sem preocupações. Há um eterno conflito entre
mim e eles. Isso deprime. Creio que me conheces: sou incapaz de invejas dessa natureza. Deus lhes conserve
a riqueza. Mas há conflito. Dona Olívia me convida para um chá… Vai ser delicioso, eu sei. Que companhia!
Tão harmônica, tão bela! Divertir-me-ei muito. Tarsila, Oswaldo, Cendrars, Gofredo, Dona Carolina, Paulo
Prado, Carlos de Campos. […] Mas às 19 horas tenho minha lição no Conservatório. […] Se me recuso, toda
a lição é perturbada por desejos. […] Esta companhia não me serve, Manuel. […] Um café que me paguem
me ofende. Preciso largar dessa gente. Mas como? se são os que eu amo, os que me amam? E não é possível
inculpá-los de qualquer coisa. Não são indiferentes. Já o demostraram. Mas eu não aceito, sou incapaz de
aceitar. Daí conflito” (Andrade, 2000, p. 122).
Pouco depois da Semana, surge a revista Klaxon: Mensário de arte moderna, primeiro órgão dos
modernistas. Além de Tácito de Almeida e de Couto de Barros, em cujo escritório se preparava a publicação,
a redação estava integrada por Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Oswald de
Andrade, Rubens Borba de Moraes e Luís Aranha, contando com Sérgio Buarque de Hollanda como
representante no Rio, Joaquim Inojosa, no Recife, L. Charles-Boudouin, na França, e Roger Avermaete, na
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Bélgica. No editorial assinado coletivamente pela redação, aparecido no primeiro número de maio de 1922, a
publicação é apresentada como sucessora da luta iniciada na imprensa paulistana em 1921, que teve como
primeiro resultado a Semana de Arte Moderna. Partindo desses precedentes afirma-se: “É preciso reflectir. É
preciso esclarecer. É preciso construir. D’ahi, KLAXON.”
Esse primeiro manifesto, assim como o conteúdo da revista, confirmam que o foco dos modernistas
no momento era principalmente a arte e as polêmicas estéticas e literárias, deixando de lado os debates sobre
o social e o político. Embora defendendo a liberdade de opinião de cada um dos seus colaboradores, o
editorial esboça alguns consensos a respeito da estética almejada. Busca-se, em primeiro lugar, a sintonia
com o momento histórico: “ser actual, essa é a grande lei da novidade”. O cinematógrafo, Pérola White, os
Oito Batutas e a Jazz-Band, entre outros, apresentam-se como emblemas dessa contemporaneidade. Por outro
lado, o manifesto defende a congruência do internacionalismo com o amor pátrio e promove a arte como
lente transformadora da natureza. A revista, cuja diagramação era realmente inovadora para a época, contou
principalmente com colaborações literárias (sobretudo poesia), crítica literária e musical, e extratextos —
desenhos em preto e branco de artistas brasileiros. Teve duração de maio de 1922 a janeiro de 1923, sendo o
último número dedicado a Graça Aranha, aparentemente por sugestão do próprio escritor. A revista, custeada
pelos editores, ia se tornando um peso no orçamento destes jovens intelectuais. Em novembro de 1922,
quando já se entrevia o fim, Mário de Andrade comenta em carta a Manuel Bandeira a possibilidade de uma
nova sucessora: “Klaxon tira agora mais um número. Concordas em publicar a tua ‘Na rua do sabão’? Espero
que sim. O número está bom e talvez seja o último da minha adorada Klaxon. Depois cessa definitivamente,
porque será substituída por uma nova: Knock-out, de mais larga liberdade e com editores ricos: Paulo Prado e
Tarsila Amaral. Chegam da Europa em janeiro e trazem colaboração de grandes nomes europeus” (Andrade,
2000, p. 105).
Knock-out nunca apareceu, e Paulo Prado aparentemente só veio a apoiar iniciativas editoriais dos
modernistas em 1926 com Terra Roxa …e outras terras e em 1931 com a Revista Nova. Antes disso, em
artigo de abril de 1924 sobre o recém-aparecido Manifesto da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade,
Manuel Bandeira arremetera publicamente contra o que avaliava como inconsistência nas atitudes de Prado.
Em carta a Mário de Andrade, discorre sobre o assunto: “Um homem rico que deixa morrer a única revista
que propagava o movimento moderno entre nós, não tem o direito de se dizer amigo da arte moderna. […]
Imagina o prestígio que teria o nosso movimento se o público visse que um homem inteligente e rico vinha
pôr uma parte da sua fortuna em auxílio dele! […] O Lobato é um homem desonesto. […] Há na empresa do
Lobato capitais do Paulo Prado. Eles devem sair! Ou então Paulo Prado saia do meio de nós! Ou então sairei
eu do meio de vocês e volto ao meu perau de cururu. Guardarei da melancólica excursão a tua amizade […]”
(Andrade, 2000, p. 118).
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A seqüência de revistas culturais que se sucedem à Klaxon revela a variedade de caminhos e
desdobramentos do movimento modernista no Brasil. Uma radiografia editorial das publicações periódicas
ligadas aos intelectuais modernistas do ano de 1924 já evidencia tendências diversas e muitas vezes
conflitantes. Em São Paulo publicava-se desde outubro de 1923 uma revista de “cultura musical”: Ariel, de
apresentação gráfica muito atrativa e moderna. Contribuíram ativamente nela os escritores Mário de
Andrade, Manuel Bandeira e Sérgio Milliet, entre outros. As polêmicas musicais nesta e em outras
publicações da época serão assunto focalizado posteriormente. O ilustrador responsável pela singular
personalidade de Ariel, Antonio Paim Vieira, foi igualmente o autor da capa do primeiro número de
Novíssima, outra revista paulista, lançada em dezembro de 1923 com Menotti del Picchia como editor e que
alguns anos mais tarde se tornaria a porta-bandeira do verde-amarelismo. No Rio de Janeiro surge em janeiro
de 1924 Terra do Sol, uma publicação de corte nacionalista editada por Tasso da Silveira e Alvaro Pinto, na
qual colaboraram regularmente alguns dos modernistas como Ronald de Carvalho, Renato Almeida, e Tristão
de Athayde.
Por outro lado, dois jovens estudantes de direito, então com 20 e 22 anos de idade, Prudente de
Morais, neto e Sérgio Buarque de Hollanda, já conhecidos na roda dos modernistas, fundam no Rio a
Estética, considerada como a sucessora de Klaxon. Inspirada na revista inglesa The Criterion, editada por
T.S. Eliott, e batizada por Graça Aranha — que havia publicado Estética da Vida em 1921 — esta foi uma
tentativa de consolidação de uma crítica literária séria e independente, gesto que se revela no atrito com o
próprio grupo de Aranha após a publicação de uma crítica do livro de Ronald de Carvalho Estudos
Brasileiros. Os seus diretores buscavam fundar uma nova tradição crítica e literária comprometida com a
realidade nacional e defendiam a seriedade da sua empreitada: “Não é o simples capricho de acompanhar a
última moda literária, vinda de fora que nos leva a participar de um movimento de renovação artística. Penso
ao contrario que se a tendência ‘modernista’ pode oferecer um aspecto de rompimento com a continuidade de
nossa tradição é exatamente porque julga que essa tradição quase nunca refletiu o sentido da nacionalidade”,
expressa em 1925 Sérgio Buarque de Hollanda em entrevista ao Correio da Manhã.33
O ideal de uma cultura nacional de projeção universal observa-se nos modernistas brasileiros, porém
assumindo diversos matizes. Em trabalho anterior (Quintero-Rivera, 2000) examinei o discurso que os
modernistas professaram a partir do campo artístico pela construção de uma civilização própria. O Manifesto
da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade, publicado pelo Correio da Manhã em 18 de março de 1924, é
um dos documentos que perduram no imaginário nacional como emblema desse gesto. A sua repercussão
entre os contemporâneos foi, no entanto, bastante polêmica. A correspondência de Mário de Andrade na
época revela as ambivalências deste escritor perante o manifesto, deixando entrever as estratégias que o autor
ensaia para acomodar tal documento dentro de seu projeto de abrasileiramento da arte. Curiosamente, uma
das primeiras reações públicas ao Manifesto, a aguda e irônica crítica de Manuel Bandeira, partiu de um dos
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receptores mais entusiasmados do texto oswaldiano. Bandeira, ao contrário do Mário, tinha achado o
manifesto “delicioso, uma obra de arte”, mas arremetera publicamente contra o que avaliava como
nacionalismo estreito: “O seu primitivismo consiste em plantar bananeiras e pôr de cócoras embaixo dois ou
três negros tirados da Antologia do Sr. Blaise Cendrars.”34 Mário, que aparentemente desgostara da
leviandade do manifesto, como se entrevê na correspondência de Bandeira e Renato Almeida, faz um
esforço, no entanto, por adotar a denominação de “pau-brasil” como forma de designar o ideal de
abrasileiramento da arte. Em dezembro de 1924, em carta destinada à pintora Tarsila do Amaral — já nesse
momento ligada afetivamente a Oswald — Mário escreve: “Estou inteiramente pau-brasil e faço uma
propaganda danada do paubrasileirismo. Em Minas, no Norte, Pernambuco, Paraíba, tenho amigos que estou
paubrasileirando. Conquista importantíssima é o Drummond, lembras-te dele, um daqueles rapazes de Belo
Horizonte. Está decidido a paubrasileirarse e escreve atualmente um livro de versos com o maravilhoso nome
de Minha Terra Tem Palmeiras.” (Amaral, 1975, p.369).
Palmeiras já tinha a obra de Tarsila, no Morro da favela (1924) (fig. 21) e até na representação da
cidade industrial emergente em São Paulo (Gazo) (1924). Mas quem sabe o entusiasmo de Mário pelo título
preliminar do livro de Drummond — que, aliás, o poeta acabou abandonando — não serviria de inspiração
também à pintora que, estando em Paris, realiza o óleo Palmeiras (1925). A produção de Tarsila nesses anos
de 1924-1925 é denominada pela crítica como a chamada fase “Pau-Brasil”, apontando para a sua sintonia
estética com as pesquisas lingüísticas e poéticas de Oswald e Mário. Os “tugurios de açafrão e de ocre nos
verdes da favela, sob o azul cabralino” com que abre o Manifesto, descrevem muito bem o Morro da favela
(1924); ou então o óleo exprime certamente as palavras de Oswald de Andrade. De qualquer maneira,
Oswald, Mário e Tarsila compartilhavam uma certa sensibilidade nova para os elementos plásticos,
lingüísticos, musicais que lhes proporcionava a paisagem nacional. Por motivo da visita do poeta francês
Blaise Cendrars, com quem Oswald e Tarsila travaram amizade em Paris, os modernistas de São Paulo
articulam viagem para o carnaval do Rio, em fevereiro de 1924, e para as cidades históricas de Minas Gerais
na Semana Santa do mesmo ano. “O Carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil.
Wagner sucumbe perante as Escolas de Samba de Botafogo. Bárbaro e nosso”, sentenciava Oswald no
Manifesto publicado pouco depois da sua visita ao carnaval carioca. A experiência do carnaval também
provocava em Mário uma compreensão do sentido religioso da vida, segundo explica em carta a Drummond:
Eu conto no meu ‘Carnaval carioca’ um fato a que assisti em plena Avenida Rio Branco. Uns
negros dançando samba. Mas havia uma negra moça que dançava melhor que os outros. Os
jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade mas ela era melhor. Só
porque os outros faziam aquilo um pouco decorado, maquinizado, olhando pro povo em volta
deles, um automóvel que passava. Ela, não. Dançava com religião. Não olhava pra lado
nenhum. Vivia a dança. E era sublime. (Andrade, 1982, p.5)
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Era esta a lição que Mário procurava na cultura popular. E nesse ponto sentia-se irmanado a Oswald e
Tarsila, dentro das várias tendências modernistas de procura do nacional na criação artística: “É preciso que
vocês se ajuntem a nós ou com este delírio religioso que é meu, do Osvaldo, de Tarsila ou com a clara
serenidade e deliciosa flexibilidade do pessoal do Rio, Graça, Ronald. De qualquer jeito porque não se trata
de formar escola com um maestrão na frente. Trata-se de ser” (ibid.). Desta forma, Mário incitava os rapazes
mineiros que conhecera na viagem a “devotarem-se” ao Brasil, como afirmara na citada carta a Tarsila —
embora na correspondência com Drummond nunca falasse propriamente de “paubrasileirismo”.
De fato, a etiqueta de “pau-brasil” não agradava completamente a Mário, principalmente porque tal
nome estava atrelado por demais à escrita de Oswald, com a qual tinha diferenças. Em 1925, o escritor
enviava um artigo sobre Oswald à revista Estética, e em carta ao editor Prudente de Moraes, neto, reflete
sobre o assunto:
No artigo sobre Osvaldo já bem pro fim escrevi: Aceito o nome de pau-brasil… etc. Corrija a
frase para ‘Posso aceitar o nome de pau-brasil que me dão. Me sinto bem nele. […] Esta
correição parece vaidade da minha parte. Não é. […] Por uma dessas bravatas de desabuso
tinha resolvido aceitar o nome de pau-brasil como já fui futurista desvairista e o diabo. E
depois o aceitar o batismo de outro dava uma lição boa pra essa gentinha cheia de
vaidadinhas que só quer si-mesmo. Ora o posso aceitar indica bem essa minha falta de
vaidade de ficar dentro do que os outros criam e ao mesmo tempo destrói a bravata falsa.
Fica mais honesto principalmente porque por mais que eu faça naquela distinção um pouco
forçada e comodista entre pau-brasil ideal e Pau Brasil maneira de poetar do Osvaldo, está
se vendo que a minha feição é muito diferente da dele, e que pau-brasil ideal mesmo, está
muito inseparavelmente ligado à feição Pau Brasil individualista por demais […] Muito tenho
matutado nestes últimos tempos sobre tudo isso e sobre o Osvaldo principalmente. […] Ele já
está sistematizando por demais a blague dentro da vida. E eu confesso que preferia que ele
reservasse a blague só pra arte dele aonde ela está tão bem e plausível. […] essa risada fácil,
alheia, risada de quem está tomando cocteil, risada de sociedade de chá-das-cinco está
desvirtuando a arte do Osvaldo que é mais profunda e mais seriamente lírica do que está
ficando.
O paubrasileirismo entra pro nome de uma revista em 1926: Terra Roxa…e outras terras, um
periódico Pau Brasil. Tratava-se da quarta empreitada na linhagem das publicações literárias dos
modernistas, depois de Klaxon, Estética e A Revista, esta última publicada em Belo Horizonte entre 1925 e
1926 pelo grupo mineiro. Dirigida por Antônio de Alcântara Machado e A.C. Couto de Barros, figurando
Sérgio Milliet como secretário e administrador, a revista contou com extensa colaboração de Mário de
Andrade. A participação de Oswald, por outro lado, foi esporádica, limitando-se a notas e bilhetes que
enviava da Europa e a um fragmento de sua obra Serafim Ponte Grande. Terra Roxa teve uma duração de
sete números, publicados entre janeiro e setembro de 1926 (Lara, p.VIII). No mesmo ano, inicia-se uma nova
fase da Revista do Brasil, dirigida por Rodrigo Melo de Franco Andrade, com uma presença marcante dos
61
rapazes da extinta Estética, Prudente de Moraes, neto e Sérgio Buarque de Hollanda, assim como de Manuel
Bandeira.
Em 1928, Mário de Andrade já não gostava do nome Minha Terra Tem Palmeiras: “é fraco mesmo.
Além de comprido por demais […] é mais uma glosa de coisa muito glosada”, escrevia pro amigo e poeta
Drummond (Andrade, 1982, p.130). “Esse tal de brasileirismo está me fatigando um bocado, de tão repetido,
de tão aparente. […] Confesso que quando me pus trabalhando pró-brasilidade complexa e integral […]
confesso que nunca supus a vitória tão fácil e o ritmo tão pegável. Pegou. Eu estava disposto a dedicar minha
vida pro trabalho. Bastaram uns poucos anos. Tanto melhor: vamos prá frente!” (ibid.). O programa de
“abrasileirar o Brasil” reaparecia em Verde, revista publicada em 1927 em Cataguazes, Minas Gerais, e
adquire um novo viés na Revista de Antropofagia que surge em São Paulo sob direção novamente de Antônio
de Alcântara Machado, antigo diretor de Terra Roxa, e gerência do poeta Raul Bopp, na sua primeira fase. A
revista estréia em maio de 1928 com um “Abre-Alas” de Alcântara Machado, um poema de Mário de
Andrade e o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, acompanhado pelo desenho de Tarsila do quadro
Abaporu, “o homem que come”, que foi a fonte de inspiração do Manifesto. “Aqui se processará a
mortandade (esse carnaval). Todas as oposições se enfrentarão”, escrevia Alcântara, talvez não imaginando
que sobretudo a partir da segunda fase da revista (de março a agosto de 1929) os ataques entre antigos
colegas de movimento provocariam feridas incuráveis, pondo fim à colaboração e amizade entre camaradas
como Oswald e Mário de Andrade, e muitos outros. Entretanto, no Rio de Janeiro, outras vertentes do
modernismo revelam-se através de duas revistas fundadas entre 1927 e 1928: Festa, dirigida por Tasso da
Silveira e Andrade Muricy, e Movimento brasileiro dirigida por Renato de Almeida. Ligada filosoficamente à
Festa, surge na Bahia Arco e Flexa, cujo editorial de abertura — novembro de 1928 — de autoria de Carlos
Chiacchio critica duramente o “primitivismo antropofágico”.
Quando convidado a dar balanço da trajetória do movimento em 1942, vinte anos depois da Semana
de Arte Moderna, Mário de Andrade apresenta uma visão sombria. Vivia-se em pleno Estado Novo. Até
1930 a atuação política dos modernistas tinha sido mínima. Apesar disto, Mário avaliava que o “espírito
revolucionário modernista” teria preparado o “estado revolucionário de 30”. No plano da pesquisa estética,
da atualização da inteligência artística, da defesa da liberdade criadora, Mário considerava que o movimento
abrira um espaço social para a experimentação estética e para o desenvolvimento de uma arte nacional.
Porém, lamentava o desapego dele mesmo e de seus colegas das contingências políticas e sociais da hora:
Se tudo mudávamos em nós, uma coisa nós esquecemos de mudar: a atitude interessada
diante da vida contemporânea. E isto era o principal. […]
Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia
do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas,
discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na
cultura. E, se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida
62
trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela
merece. Quanto muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz. […]
E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma
coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amelhoramento
político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade.
Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto,
espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar. Marchem com
as multidões. (Andrade, 1968, p. 58-61)
63
CAPÍTULO 3
Mário de Andrade e Alejo Carpentier:
A gestação de um olhar crítico sobre a música
É uma tarde de outubro de 1924. A senhorita Ariel recebe em São Paulo a distinta visita dos
compositores Bach, Beethoven, Schumann e Wagner. A empregada que acaba de chegar de Goiás —
“Ariel só gosta de ser servida por brasileiros bem brasileiros” — abre a porta mas não reconhece os
integrantes de tão ilustre comitiva. Eles vêm parabenizar Ariel, Revista de Cultura Musical no seu
primeiro aniversário. Depois de saborear o chá-mate nacional que lhes oferece a gentil dona de casa e de
conversar sobre o ambiente musical da cidade, os convidados se interessam em conhecer a música da
terra. Ao piano, Ariel executa alguns maxixes de Nazareth e danças de Tupinambá. A platéia vai se
empolgando e pede mais. O criado Chico Rapadura interpreta cantigas de Catulo Cearense,
acompanhando-se com a viola.
Aparecida no número que paradoxalmente viria ser o último da primeira fase da revista, esta
crônica que Mário de Andrade publica sob o pseudônimo de Florestan pode ser interpretada como um
manifesto sobre o lugar da crítica musical dentro do projeto nacional modernista. Ariel, gênio do ar, “o
império da razão e do sentimento sobre os baixos estímulos da irracionalidade”36, é douto também em
descender à terra e alimentar-se da música popular para realizar o seu elevado fim: promover a escola
nacional na música. Sob o esconderijo do pseudônimo, Mário de Andrade parece traçar um desenho do
seu próprio perfil, o erudito pesquisador de estética e história musical, que gostava de animar os saraus
modernistas e familiares com as suas habilidades pianísticas. Ariel é “muito moça ainda” — como a
crítica musical no Brasil que ainda principiava — mas já recebe a digna bênção de Beethoven, que lhe
beija a testa e afirma: “eu sei que crescerá e se engrandecerá”. Ela reivindica a autoridade de uma crítica
visionária. Uma crítica que reclama a verdade sobre o caminho a seguir; caminho este, por sua vez,
‘autorizado’ pelos grandes mestres da música universal com os quais Ariel gosta de dialogar:
64
—[…] Nossos músicos, a não ser uns poucos beneméritos, em vez de se aplicarem à
música de seu país, vivem a imitar a música francesa, italiana, turca, japonesa, que sei lá!
E ninguém se lembra de escrever música brasileira.
—Que horror! [exclama Wagner] Mas então esses músicos não sabem que não há escola
nenhuma que não se apoie na música popular!
—Sabem sim. Alguns até são muito inteligentes e dotados de grande talento. Mas já
encontram tudo feito na Europa e em vez de estilizarem as nossas danças e cantigas,
vivem a escrever noturnos, melodias internacionais.
—Pois a senhorina Ariel deve trabalhar nesse sentido. [disse o Schumann] Olhe nós, por
exemplo. Eu que quis construir uma obra verdadeiramente nacional, foi no lieder do meu
pais que procurei a inspiração. (ibid.)
Mário de Andrade e Alejo Carpentier encarnaram na sua trajetória crítica uma versão
interessantíssima do Ariel latino-americano. O intelectual modernista brasileiro e o minorista cubano,
navegando entre o que eles mesmos consideravam como os ares da civilização e a terra rica em essências
primitivas. Nesse percurso foram admirados e criticados. Enfrentaram as suas próprias ambivalências e
contradições e nos legaram uma obra imponente mas difícil de apreender. Em 1928, na Revista de
Antropofagia, Oswald de Andrade publicava umas provocativas palavras que ironizam a tensão entre
crítica e criação que atravessa a trajetória intelectual de Mário, bem como o seu lugar dentro do
Movimento Modernista: “Certifico a pedido verbal de pessoa interessada que o meu parente Mário de
Andrade é o pior crítico do mundo mas o melhor poeta dos Estados Desunidos do Brasil. De que dou
esperança.”37 Hoje, mais de cinqüenta anos depois da sua morte, alguns resgatam o gesto “desvairado” de
um jovem inspirado por um Cristo de Brecheret, ou o enigma de brasilidade que se esconde na colcha de
fragmentos mitológicos que compõe o Macunaíma. Outros admiram a erudição do crítico, ou o seu labor
etnográfico. Se Alejo Carpentier não tivesse desfrutado de uma vida longa, possivelmente a sua obra,
como a de Mário, provocaria um mar de contradições entre legiões de críticos e partidários de segmentos
dela. É somente a partir de 1949 que Alejo Carpentier começa a ser considerado principalmente como
romancista. Até então era um intelectual que atuava em frentes diversas. Escrevera poesia e ficção, crítica
musical, literária, teatral, das artes plásticas e do cinema, crônicas de viagem, fizera pesquisa
musicológica e atuava como técnico de sonoplastia no rádio. No presente trabalho, estou partindo da
premissa de que a dialética entre crítica e criação é um elemento fundamental para a compreensão do
conjunto da obra destes autores. Por outro lado, é meu desejo destacar a conjunção entre a vocação
musical e a vocação literária como fio condutor na produção de Andrade e Carpentier, elemento que
considero de singular importância para explicar a repercussão da obra deles na teia discursiva sobre a
cultura nacional.
65
Formação musical
Mário de Andrade e Alejo Carpentier tiveram a sua iniciação musical no âmbito familiar.
Cresceram ouvindo as notas do piano interpretado pelas mulheres da família. Dona Nhãnhã (Ana
Francisca Leite de Moraes) e dona Maria Luisa de Morais Andrade, tia e mãe de Mário, deram-lhe as
primeiras lições aos dezesseis anos, quando o seu irmão mais novo, Renato, já era um aluno destacado do
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Pouco tempo depois, em 1911, Mário ingressa nessa
instituição, onde seu pai trabalhava como contador. A promissora carreira de intérprete de ambos irmãos,
que demonstravam bons dotes para o teclado, findou com a morte acidental de Renato em 1913, que
aparentemente deixou em Mário o saldo permanente de um tremor nas mãos após uma depressão nervosa.
Mário, porém, concluiu os estudos no Conservatório, formando-se em piano em 1917. Tendo sido aluno
praticante e professor substituto nas matérias de teoria, solfejo, piano e história da música, em 1920 é
contratado como professor de história da música e em 1922 nomeado catedrático. Desempenhou também
o a função de professor de piano no Conservatório e trabalhou como professor particular, sendo a
educação musical sua principal fonte de subsistência até 1935 (figs. 31-32).
Os pais de Alejo chegaram a Cuba em 1902. Jorge Julián Carpentier, arquiteto francês, tinha sido
estudante de violoncelo de Pablo Casals e era filho de uma pianista aluna de Cesar Frank, enquanto Lina
Valmont, de nacionalidade russa, era professora de línguas e tocava o piano, segundo depoimentos do
próprio escritor. Alejo sonhava em tornar-se compositor. Aprendera o piano com grande facilidade e
ainda adolescente estudara por conta própria harmonia e contraponto. Servia-se do piano para “devorar”
partituras e conhecer composições ainda não registradas em discos. Duas partituras lhe causaram grande
impressão: o Prelude a l’Aprés-Midi d´ùn Faune de Debussy e Parsifal de Wagner. Compôs algumas
peças para piano sob a influência de Debussy, mas avaliou-se desprovido de inventiva musical. Resolveu
então seguir os passos do pai, ingressando em 1921 na carreira de arquitetura na Universidade de Havana,
a qual abandonou em pouco tempo. Obrigado a procurar sustento, no contexto da crise econômica que
afetava a ilha, atuou como chefe de redação de uma pequena revista da União de Fabricantes de Calçado.
Daí passou por várias publicações periódicas como crítico, jornalista e editor, atividade profissional que
desenvolveu continuamente em Havana, Paris e Caracas até o triunfo da revolução cubana em 1959. Nos
anos 1930 trabalha na rádio parisiense e em 1939, ao regressar a Havana, emprega-se também como
libretista e diretor de programas radiofônicos.38
Tendo descartado ainda cedo as carreiras de intérprete e compositor, a música, no entanto, vai
permanecer um eixo fundamental que atravessa toda a trajetória crítica e criativa tanto de Mário de
Andrade como de Alejo Carpentier. Através de leituras e estudos autodidatas (estimulados no caso de
Alejo pelo seu pai) ambos vão adquirir um interesse pela arte nas suas diversas manifestações.
66
Lembrando dos seus anos de formação em carta a Oneyda Alvarenga, Mário conta que “assim como
estudava piano, não perdia concerto e lia a vida dos músicos, também não perdia exposições plásticas,
devorava histórias da arte, me atrapalhava em estéticas mal compreendidas, estudava os escritores e a
língua […]” (Andrade, 1983). Se a crítica musical foi uma atividade profissional de toda a vida, a música,
por outro lado, também deixou marcas profundas na escrita destes autores, cuja vocação literária também
já tinha se manifestado. Durante a adolescência, consta que o cubano escrevia romances e contos
inspirados por Flaubert, Eça de Queiroz, Salgari e France, enquanto o brasileiro ensaiava os seus
primeiros poemas. O interesse por diversas manifestações da arte e uma intimidade particular com a
música e a literatura são elementos marcantes na inserção destes autores na vida intelectual.
No ano de 1921, ao tempo em que Oswald de Andrade lançava o artigo “O meu poeta futurista”
(Jornal do Comércio, 27/05/1921), onde apresentava o autor dos poemas ainda inéditos de Paulicéia
Desvairada, Mário de Andrade dava início a uma longa trajetória como crítico musical.39 Em junho a
Revista do Brasil reproduzia a palestra “Debussy e o impressionismo”, proferida na Villa Kyrial, e no
mês seguinte ele estreava na revista Correio Musical Brasileiro com a publicação de artigo intitulado
“Música Brasileira”. Nessa altura, Mário de Andrade já era leitor de revistas européias de música, e
formava-se uma visão sobre os vínculos entre a crítica musical substantiva e o desenvolvimento de uma
escola de composição nacional. Os seus arquivos já contavam com escritos sobre estética musical
publicados em 1908 por Le Guide Musical, com exemplares da revista de crítica musical italiana Il
Primato (de 1920), com a seção “Revue Musicale” da Revue des Deux Mondes (de 1914) e com uma
série de artigos sobre música de autoria de G. Marcel, aparecidos entre 1919 e 1920 em La Civilization
Française, sendo um deles intitulado “Le lyrisme debussyste”, entre outras publicações estrangeiras sobre
música.
O Correio Musical Brasileiro, em seu primeiro número de maio de 1921, apresenta-se como a
única publicação musical do país. “Órgão das Associações Musicaes e Artísticas do Brasil”, a revista
editada em São Paulo por R. Rodolpho Attanasio tinha o propósito de tornar-se “ponto de convergência
da nossa intelectualidade artística”, apontando para a importância da crítica desde o número de abertura.
Nesse contexto, o artigo de Mário de Andrade, “Música Brasileira”, sendo o primeiro publicado na revista
sobre o tema, reveste-se de um caráter e uma autoridade inaugurais, fundadores. Nele, o autor aborda uma
temática que será o leitmotiv da sua trajetória crítica: a relação entre a música popular e a composição
erudita. O autor defendia a opinião de que a música brasileira existia na canção popular mas ainda sem ter
adquirido “direitos de cidadania”: “Considero-a legitimamente uma arte já, porque é arte no sentido
67
verdadeiro e primitivo da palavra. Mas, força é confessar, ainda usa tacape e atravessa penas de tucano no
nariz, como aliás todo brasileiro imaginado pela ignorância ignóbil do europeu da Europa” (p. 5-6). Em
trabalho anterior, examinei de que forma a música foi aproveitada no Brasil e no Caribe, através dos
escritos de críticos da época, como metáfora para pensar a formação nacional e particularmente para
representar a mestiçagem, entendida como processo fundador da nação (Quintero-Rivera, 2000). Nesta
nova pesquisa, busco aprofundar ainda mais a trajetória crítica de Mário de Andrade e Alejo Carpentier,
focalizando as representações de diversos sujeitos sociais que emergem do diálogo entre crítica e criação.
Um assunto que é apresentado neste artigo inaugural de Mário de Andrade, e que será retomado e
re-avaliado ao longo dos seus escritos, é a questão das dinâmicas entre a civilização e o primitivo, vistas
através das relações entre a música erudita e a popular. A música popular, sugere o escrito, desenvolve-se
no reino da natureza, da inconsciência, da mestiçagem, dos desejos. É “jequitibá selvagem”, “pura
expressão silvestre”, impregnada dos perfumes das “terras nuas e das florestas traiçoeiras”, mora no
coração “desta sub-raça de nibelungos morenos e pequeninos, nascida do beijo de “três raças tristes”,
“existe nos nossos bailes voluptuosos […] nos sambas, nos cateretês, nos maxixes, nos tangos mesmo,
que sei lá! com que todos os filhos da raça se desarticulam e animalizam, mandados por sua majestade, o
Desejo”, e é nesse rio de música popular que “toda a gente brasileira se desaltera”. Mas nem todo
brasileiro atravessa penas de tucano no nariz, como imagina o “europeu da Europa”. Existe o intelectual,
o compositor, e eles também guardam uma relação com a música popular. Pela primeira vez, nesse ponto,
o autor fala em primeira pessoa: “ela [a música popular] nos assiste em nossas dores, nos anima em
nossos desesperos, e nos coroa em nossas glórias”. A civilização brasileira não é possível a partir da
imitação das outras civilizações, conclui o autor. A civilização brasileira aguarda por um gênio capaz de
“civilizar” a expressão popular, um Homero, um Dante, proclama Mário de Andrade, depositando as suas
esperanças nas jovens promessas da música brasileira: Villa-Lobos, Mignone, Pagliuchi, Guiomar Novaes
e Lúcia Branco.
A conferência sobre Debussy igualmente abre a discussão sobre temáticas que continuamente
reaparecem nos escritos de Mário de Andrade, segundo observa Jorge Coli (1994). O compositor francês
Claude Debussy (1862-1918) já era medianamente conhecido do público carioca e paulistano. No ano
anterior ao artigo apresentara-se no Rio a ópera Pelléas et Mélisandre e em 1913 o balé Prélude à
l´Après-midi d´un faune (Kiefer, 1981, p. 17 e 88). Durante os festivais da Semana de Arte Moderna de
1922 ele aparece como um dos compositores interpretados pela pianista Guiomar Novaes. Por outro lado,
as inovações harmônicas de Debussy tiveram ampla repercussão nos compositores que lhe sucederam. As
obras de dois jovens compositores que se destacavam na época, Heitor Villa-Lobos e Luciano Gallet,
ainda apresentavam nos inícios da década de 1920 fortes traços debussistas na linguagem musical. Uma
aproximação à natureza através da inteligência analítica é um dos aspectos que Mário destaca na música
68
de Debussy, em contraste com os efeitos sentimentais do Romantismo. Salienta também a renovação
constante da estrutura musical a partir de formas abertas. Na busca de uma expressão musical com uma
sensibilidade moderna, a lição de Debussy tornava-se fundamental para os compositores jovens. Porém,
um terceiro elemento que Mário destaca é precisamente o fato de que Debussy chegara ao final da vida
questionando ele mesmo o “debussismo”. Em outras palavras, conclui o autor, os procedimentos de
Debussy constituem uma experiência de grande valor que, no entanto, deve ser ultrapassada. José Miguel
Wisnik sugere que a técnica debussista, que Mário estudara como crítico, teria influenciado igualmente a
sua poética, aspecto talvez percebido por Manuel Bandeira a partir do primeiro contato com os poemas do
escritor paulista. Em carta de 1922, Bandeira comenta ao amigo: “Uma qualidade que me fascina em você
é a sua musicalidade. É aliás o que mais me seduz na poesia. Eu faço versos para me consolar de não ter
idéias musicais” (Andrade, 2000, p.65).
Outro compositor francês, Darius Milhaud (1892-1974), integrante do Grupo dos Seis desde 1920,
exerceu uma influência significativa nos meios musicais brasileiro e cubano da época, particularmente no
desenvolvimento de uma crítica musical preocupada com a busca de uma expressão nacional. Tendo
morado no Rio de Janeiro entre 1917 e 1918 como adido cultural do embaixador Paul Claudel, Milhaud
cultivou uma relação bastante próxima com vários intérpretes e compositores brasileiros da época, como
Villa-Lobos e Luciano Gallet. Este último começava naqueles anos a compor, inspirado principalmente
pela obra de Glauco Velázquez. É a partir do interesse pelo compositor que Milhaud e Gallet se
conhecem e colaboram na Sociedade Glauco Velázquez, fundada no Rio de Janeiro após a morte do
mesmo. A respeito da influência e o contato com Milhaud, Gallet expõe a Mário de Andrade em carta de
1926: “Por meio de Milhaud penetrei na música moderna. Com ele comecei o estudo da harmonia. […]
Por ele conheci as teorias adiantadas, Stravinsky, Schoenberg, a polifonia (fundamentada em Bach),
Satie, a concepção dos vários modernos e os processos usados.”
No primeiro número de La Revue Musicale, aparecido em novembro de 1920, Milhaud publica
um artigo sobre a música brasileira que coincide com algumas das preocupações reveladas por Mário de
Andrade nos dois escritos antes comentados. Por um lado, Milhaud aponta a influência francesa,
particularmente de Debussy, nos compositores brasileiros e, por outro, lamenta que “o elemento nacional
não seja expresso de uma maneira mais viva e mais original”.40 Destaca a riqueza rítmica e a invenção
melódica de Marcelo Tupinambá e de Ernesto Nazareth, autores sobre os quais Mário de Andrade escreve
em 1924 e 1926 respectivamente. Inspirado pela arte destes pianeiros, Milhaud compõe a sua suíte para
piano Saudades do Brasil, integrada por uma série de danças que levam nomes de bairros do Rio de
Janeiro. Em 1923, Ariel traz a notícia da publicação de um artigo de Milhaud na revista francesa
Intentions intitulado “A evolução do jazz-band e a música dos negros americanos”. Este escrito de
Milhaud, que nesse ano viajara pelos Estados Unidos, foi também proferido como palestra na Sorbone e
69
aparece traduzido para o inglês no periódico The Living Age (18 de outubro de 1924), versão que foi
guardada pelo cubano Fernando Ortiz nos seus arquivos pessoais.41 A partir do contato com as idéias de
Milhaud sobre a riqueza rítmica do jazz e o seu aproveitamento pelos compositores modernos, Alejo
Carpentier, que se iniciava na crítica musical, escreve o artigo “La música cubana”, publicado em El País
(Havana, 1° de julho de 1925).
Este interés marcado de los artistas modernos por esa nueva escuela de ritmo, que lleva
forzosamente a un discurso sonoro rudo, franco, de contornos angulosos, me ha obligado
a pensar más de una vez en el inmenso tesoro que malgastamos al no utilizar los más ricos
recursos de nuestra música nacional. (In Carpentier, 1994, p.228)
O debate em torno das tradições musicais que deveriam servir de base para a composição erudita,
já revelado neste escrito de Carpentier, foi uma constante em Cuba durante os anos 20 e 30. Aqui, o autor
põe atenção nos gêneros afro-cubanos, o son e a rumba, os quais destaca pela sua riqueza polirrítmica.
Por outro lado, afirma que gêneros como a guajira e o bolero produzem uma “sensação invencível de
monotonia”. Apesar de Carpentier não observar na danza a intensidade e interesse que oferecem os
gêneros afro-cubanos, o único exemplo de aproveitamento erudito das tradições musicais autóctones visto
como bem-sucedido pelo autor são as danzas para piano de Ernesto Lecuona: “Piezas como la Lucumí,
por ejemplo, se ven animadas por un delicioso y autoritario dinamismo rítmico, y sus melodías adquieren,
al ser tratadas así, una elegancia cautivadora” (ibid. p.230).
A idéia do aproveitamento dos gêneros tradicionais na composição erudita é mencionada
repetidamente nos primeiros artigos de Carpentier, que referem como modelo as escolas russa e
espanhola, principalmente. “La música cubana tiene una extraordinaria riqueza de ritmos, de frases, y de
tonalidades. […] Todo esto podría ser inacabable fuente de inspiración para el talento de un compositor
que se aplicara en estudiar y trabajar los cantos populares siguiendo todos los recursos de la armonía
moderna. ¡Qué campo virgen hallarían en Cuba un Mac Dowell, un Falla, o un Prokófiev!”42 No entanto,
as composições dos autores cubanos contemporâneos desanimavam o crítico. Sobre o Capricho cubano
de Hubert de Blanck, interpretado pela Orquestra Sinfônica de Havana em outubro de 1924, Carpentier
escreve:
70
Para comenzar, es apenas cubano. Solamente un breve pasaje en el cual aparece
un punto estilizado y uno que otro fragmento en el cual oímos un ligero ritmo de zapateo,
nos recuerdan el fin perseguido por el compositor.
Técnicamente es muy poco interesante. […] La orquestación de esta obra no
presenta un detalle que pueda llamar la atención. Y el instrumento solista está tratado
según reglas antiguas y procedimientos gastados.43
Carpentier e os modernos
Entre 1923 e 1925 Alejo Carpentier escreve regularmente sobre o acontecer musical de Havana,
particularmente sobre os concertos das recém-fundadas orquestras Sinfônica e Filarmônica, nas páginas
de La Discusión, El Heraldo, Chic, La Nación e El país. Ao iniciar sua colaboração em La Nación (maio
de 1925), Carpentier publica um artigo introdutório onde revela seu projeto de preparar um livro de
estudos sobre música e literatura contemporânea e ao mesmo tempo defende uma crítica independente
dos vários “Ku-Klux-Klanes” musicais do país. De fato, além das referências às atividades musicais da
cidade na época, estes artigos revelam a seriedade com que Carpentier enfrentava o ofício de crítico. O
jovem escritor faz referência a leituras sobre estética musical, como um artigo de Alfred Jeanneret
publicado em L’Espirit Nouveau, o livro de André Cocuroy sobre a música francesa moderna, a já citada
conferência de Milhaud e um escrito de Gastón Talamon publicado na revista argentina Nosotros. Além
disso, traduz para La Discusión (14/06/1923) um artigo de Georges Auric sobre as idéias do público sobre
os músicos modernos.
Carpentier ainda não entrara na casa dos vinte anos quando, em 1924, o escritor minorista
Francisco Ichaso, saudava publicamente o labor do jovem crítico:
Carpentier es muy joven y aparenta serlo aún más. […] Únicamente sus ojos — en
que parece brillar el reflejo de la última lectura o del reciente lienzo contemplado —
ponen una nota de madurez en su faz. Sin embargo, este adolescente Carpentier, este
“muchacho” — como decimos en confianza los criollos — ha entrado ya en la mayoría de
edad intelectual.
Oídle hablar; vedlo escribir y os percataréis de su claro talento […] Carpentier os
dirá cosas de la última escuela pictórica, del más reciente alarde “ultrafuturista” hecho
en ese París demoníaco y multiavizor, y en sus comentarios sorprenderéis la condición
vigilante de su intelecto, que, sin cesar, atalaya el horizonte, ávido de nuevas luces, de
nuevos sonidos, de nuevas imágenes. Porque Carpentier es un espíritu modernísimo con
todas las curiosidades, todas las vacilaciones y todas las inquietudes del siglo. 44
71
também no crítico cubano, que inaugura com ele a série de artigos sobre compositores modernos na
revista Chic em 1923, oferecendo três anos mais tarde em Havana uma palestra sobre o impressionista
francês, ilustrada ao piano por Alejandro García Caturla. Stravisnky é outro compositor que chama
especialmente a atenção de Carpentier, que lhe dedica entre 1923 e 1930 pelo menos sete escritos e
compara os procedimentos rítmicos do compositor russo com as fórmulas dos gêneros populares cubanos,
particularmente o son. Nas críticas desses primeiros anos de formação, além de Debussy e Stravinsky,
Carpentier aborda, entre outros, a música dos franceses Ravel, Satie e Milhaud, dos espanhóis Albeniz,
Falla e Turina, dos italianos Malipiero, Tomarini, Respighi, Casella e Pizzelti, além do austríaco Arnold
Schoenberg, cuja “aridez sistematizada” é considerada por ele nefasta e antipática. Igualmente se
interessa pelo movimento de renovação do balé, das criações de Diaghilef até os balés suecos.
Com o propósito de promover a música moderna em Havana, Carpentier organiza em colaboração
com o compositor Amadeo Roldán duas audições de “música nova”. Obras de Skryabin, Debussy, Satie,
Falla, Ravel, Stravisnky, Poulenc, Ibert, Prokofiev, Goossens, Turina, Griffes, entre outros, foram
apresentadas ao público da cidade nos concertos de 1926 e 1927, com breves comentários do próprio
Carpentier.
Mário de Andrade contribui em Klaxon, a primeira revista modernista, com poesia e prosa de
temática diversa, e a crítica musical ocupa um lugar de destaque. Ela se concentra na análise de algumas
figuras de relevo entre os jovens intérpretes e compositores da Paulicéia: Guiomar Novaes, Antonieta
Rudge Miller, Souza Lima e Francisco Mignone. O artigo de abertura (maio de 1922) critica a excessiva
“pianolatria” de São Paulo, observando a necessidade do cultivo da música de câmara e sinfônica. Esta
reflexão tem a sua raiz na Semana de Arte Moderna, onde Mário teve a oportunidade de escutar várias
composições de câmara de Heitor Villa-Lobos interpretadas por instrumentistas do Rio de Janeiro, com a
participação da violinista Paulina d’Ambrósio, entre outros. Além das obras do compositor carioca,
apresentou-se na Semana recitais de piano por Guiomar Novaes e Ernâni Braga. José Miguel Wisnik
observa uma distinção entre os músicos de câmara e os virtuoses solistas participantes da Semana, não só
no caráter musical, mas na “maneira pela qual o músico se relaciona com o público e se integra no
movimento” (Wisnik, 1977, p. 74). Embora mais interessado na delegação musical carioca da Semana,
integrada por Villa-Lobos e os seus intérpretes, Mário de Andrade dedica os seus primeiros esforços
críticos em Klaxon à reflexão sobre a internacionalmente aclamada Guiomar Novaes, escrevendo a seu
respeito nos dois números subseqüentes. Nesse período o autor dedica páginas ainda aos pianistas Souza
Lima46 e Magdalena Tagliaferro47.
72
A análise crítica sobre a interpretação musical foi um aspecto que Mário de Andrade nunca
abandonou, apesar de interessar-se prioritariamente pela composição. Na série de crônicas que compõem
O Banquete, estes dois elementos são tratados magistralmente no contexto da vida musical brasileira
através dos personagens Janjão e Siomara Ponga. Nas suas críticas no Diário de São Paulo durante o
período, entre 1933 e 1935, os estudos sobre intérpretes — pianistas, cantores, quartetos, etc. — são bem
freqüentes. Nem sempre o autor põe neles o mesmo entusiasmo e rigor, mas verifica-se um esforço
consistente em relacionar os seus conhecimentos de história da música com as reflexões filosóficas sobre
a comoção estética, e em convocar estes elementos mesmo ao escrever breves comentários sobre os
acontecimentos musicais da cidade. Por outro lado, ainda em Klaxon, aparece o primeiro escrito sobre um
compositor contemporâneo: o seu ex-colega no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo,
Francisco Mignone.
Em 1922, o filho do flautista e professor Alfêrio Mignone era o único diplomado em composição
da cidade e contava com reconhecidos dotes de pianista. Tinha realizado já dois concertos no Teatro
Municipal de São Paulo (em 1918 e 1919), apresentando-se como intérprete, compositor e regente, e
achava-se então em Milão prosseguindo seus estudos com bolsa concedida pela Comissão do Pensionato
Artístico de São Paulo. Em visita à cidade natal, Mignone trazia consigo uma ópera, “O Contratador de
Diamantes”, da qual fizera ouvir alguns trechos em transposição para piano na Sociedade de Concertos
Sinfônicos. O jovem estudante do Real Conservatório Giuseppe Verdi pendia para arte lírica, porém
Mário de Andrade, na sua crônica, ressaltava as suas qualidades como sinfonista, destacando os trechos
sinfônicos da ópera enquanto criticava da parte vocal “o lirismo fácil e bastante vulgar dalguns
compositores veristas”. No quadro sinfônico das danças, que atraíram Mário de Andrade nesta primeira
audição, estava a famosa Congada — incluída por Richard Strauss no seu programa junto à Wiener
Philarmoniker apresentado em agosto de 1923 no Rio de Janeiro com grande sucesso do público. Vários
elementos que Mário de Andrade atribuía à música popular brasileira naquele primeiro artigo publicado
no Correio Musical, como por exemplo a sensualidade, a brutalidade e a relação com a natureza tropical,
são retomados na descrição da composição de Mignone, a qual, no entanto, é admirada por possuir
igualmente o equilíbrio da arte erudita:
Essas danças tão caracteristicamente brasileiras, pelo ritmo enervante, pela melodia
melosa e sensual são uma tela forte, viva ao mesmo tempo que equilibrada. É
extraordinário como Mignone está firme ao traçar essa página trépida, envolvente,
entusiástica e brutal. Desaparece inteiramente a eloquência enfática dos trechos
dramáticos: é eloquência vida, é sumo de fruta nacional e sensualidade de negros
escravos. É admirável. 48
73
Um conjunto de compositores paulistas ou residentes em São Paulo, alguns deles professores do
Conservatório, são objeto da série de “Chronicas em dó bemol” assinadas por Mário de Andrade na
revista Ariel em 1924. A “Dansa da Cuca” de A. Cantú, o “Jazz Band” de Francisco Casabona — baseado
em poema de Guilherme de Almeida, as “Páginas de Album” de João Gomes J. e as “Danças Brasileiras”
de C. Pagliuchi são destacadas como peças que enriquecem o repertório nacional de música pianística,
seja pela sua feição moderna (“Dansa da Cuca) ou “impressionista” (o “Jazz Band”), ou por servirem-se
de elementos musicais do folclore brasileiro. De interesse particular para Mário é a peça “Serenata”, da
coleção de “Danças Brasileiras”, que através da “fusão de lirismo italiano e nacional” se apresenta como
um exemplo distintivo da identidade paulista:
[…] Entra o coro num refrão fortemente ritmado à brasileira e que relembra com
insistência esse processo do estribilho inteiramente diverso como ritmo e pathos da
melodia solista, processo tão comum nas toadas dos nossos violeiros. Ora o solo, embora
não se possa dizer tipicamente italiano, apresenta incontestavelmente uma frase de origem
italiana já afeiçoada ao caráter musical brasileiro mais ou menos. O refrão é inteiramente
nacional. Com essa fusão, que a muitos puristas parecerá condenável, o compositor
habilíssimo conseguiu fazer um trabalho de grande interesse crítico, real beleza, e que
como fusão e sintoma étnico é sobremaneira digna de se observar e se estudar. (Ariel, ano
II, n.13, outubro de 1924, p. 495)
Ariel, revista de cultura musical, cujo número de abertura aparece em outubro de 1923 sob a
direção de Antonio de Sá Pereira, pode ser lida como um primeiro laboratório de Mário de Andrade na
elaboração de um discurso sobre a música brasileira. Com isto não pretendo diminuir a significância das
outras vozes veiculadas na revista. Porém, observa-se que Mário de Andrade aproveitou de forma
singular o espaço de diálogo e difusão criado por Ariel para trabalhar e ensaiar aproximações diversas ao
assunto da música brasileira, e a sua figura intelectual tornou-se o centro de gravidade num universo
dialógico integrado por Sá Pereira, Sérgio Milliet, Renato Almeida, Manuel Bandeira e outros. Além da
contribuição de autores brasileiros, a revista procurou reproduzir artigos de publicações européias,
especialmente sobre música moderna. Aparecem traduções de escritos de Busoni sobre o momento atual
da música (Zeitschrift für Musik), de Alfredo Casella sobre o advento de um quarto elemento sonoro
(Revue Musicale), de Jean Aubry sobre Manuel de Falla (The Chesterian), de Adolfo Salazar sobre os
jovens músicos da Espanha (Il Pianoforte), de Darius Milhaud sobre a música brasileira (Revue Musicale)
e notícias da enquete do Courrier Musical sobre a evolução e estado atual da composição moderna. Por
outro lado, publicava-se regularmente as “Cartas de Paris” enviadas pelo escritor Sérgio Milliet a respeito
74
das atividades musicais contemporâneas naquela cidade e da presença dos modernistas brasileiros na
capital francesa.
Dentro desse espírito impulsionado pela revista de conversa com o mundo intelectual e artístico
europeu sobre a música e a modernidade situam-se dois artigos de peso assinados por Mário de Andrade:
“A vingança de Scarlatti” e “Reação contra Wagner”. No primeiro, o autor não somente examina certas
tendência musicais modernas, mas se arrisca a vaticinar a evolução futura da arte dos sons:
Quem tiver seguido de perto as pesquisas dos modernistas de França e Rússia, Espanha e
Itália (a Alemanha ainda se debate angustiada sob o grandioso mas terrível peso do
fantasma wagneriano); quem tiver seguido principalmente a zigzagueante trajetória desse
pasmoso Stravinsky […], concordará comigo que tal período de expressão formal
(decorativa, se pudermos opor o qualificativo ao barroco desordenado romântico) define-
se nítido para um talvez próximo amanhã. Teremos um novo período de hegemonia de
Arte Pura, tal e como a praticaram Scarlatti, Haydn, Mozart, em que os fenómenos
sonoros serão tomados pelo seu aspecto puramente musical, sem programa, mais pela
sensação artística, desinteressada que produzem, que pela sua relação com a vida
individual. 49
A “Reação contra Wagner”, apresentado como estudo para uma História da Música, aborda as soluções
estéticas de três contemporâneos do criador de Tristão e Isolda diante do “wagnerismo”: Brahms, Cesar
Frank e Verdi. Propõe uma distinção entre evolução técnica e evolução estética, concluindo que “se as
formas vivem e crescem por constante soma e ajuntamento, o espírito se desenvolve na perpétua
revolta”.50 Na época, Mário de Andrade confiava a Manuel Bandeira uma idéia que acalentava: escrever
uma história da música. Queixava-se da falta de tempo e da necessidade econômica de assumir
obrigações, como as lições e os artigos de jornal, que lhe impediam maior dedicação a este e outros
projetos de fôlego. Bandeira cobrava enfaticamente do amigo a realização destes, segundo se observa em
trecho de carta de 23 de maio de 1924: “Você precisa afirmar-se com precisão definitiva […]
ESCREVER A HISTÓRIA DA MÚSICA, pelo menos da brasileira. O Renato [Almeida] está acabando
uma história da música brasileira. Ele não conhece a técnica e a teoria musical: fará obra de literato e
amigo da filosofia. Você é o único homem capaz de falar bem e com autoridade, de música no Brasil. Os
técnicos são burros ou não têm cultura precisa: os inteligentes e cultos não conhecem a técnica”
(Andrade, 2000, p. 125).
A partir do número 9 de Ariel, de junho de 1923, e até o número 13 de outubro do mesmo ano,
Mário de Andrade assume a direção da revista, embora no expediente constem como editores
responsáveis Campassi & Camin. Inaugura uma seção de crítica musical — “Crônicas em dó Bemol”,
assinada por ele mesmo — onde comenta composições recentes de autores paulistas contemporâneos,
convida Manuel Bandeira a escrever regularmente uma Crônica do Rio, publica em cada número um
artigo sob o pseudônimo de Florestan, assina sob o nome de Raul de Moraes uma entrevista com
75
Francisco Mignone e publica ainda como Mário de Andrade vários outros artigos, entre os quais uma
conferência proferida na Vila Kyrial sobre “O amor em Dante e Beethoven”. Entre todas estas
identidades, é Florestan quem ocupa o papel de protagonista, sendo os seus textos sempre publicados nas
primeiras páginas do jornal. “A situação musical no Brasil” é o seu artigo de estréia, onde exalta a
musicalidade brasileira e, baseando-se no exemplo da criação de escolas nacionais na Europa, anuncia a
grandeza de uma escola brasileira que virá a se forjar:
Essa intensa musicalidade, que agora cada vez mais se manifesta aqui, não é produto de
nenhuma corrente de moda, que pouco perdure. É um caráter nativo que começou a se
desenvolver e salientar, desde que encontrou as circunstâncias necessárias para o seu
desenvolvimento. Nós temos de ser um dos povos musicais do universo. Tudo nos destina a
isso. Somos um povo sonhador, de grande vivacidade sentimental, de larga pujança, e
principalmente possuímos um maravilhoso cancioneiro de rara originalidade, de riqueza
rítmica excepcional.51
O pseudônimo de Florestan não só oculta o nome do autor da crônica como também revela uma
das principais fontes de inspiração de Mário de Andrade enquanto diretor de Ariel: Robert Schumann,
editor anônimo no começo da revista Neue Zeitschrift für Musik entre 1834 e 1844. Contra a
mediocridade dos compositores de música trivial, dos virtuoses e do público inconsciente que bate palma
por eles, Schumann criou uma liga secreta de personagens imaginários que combatia a falsidade do
mundo musical alemão da época. Através das vozes de Eusebius, Florestan e Raro, entre outros,
Schumann inventava diálogos que, relembrando a Platão, discutiam fatos contemporâneos em tom
poético, apresentando os novos valores — como Chopin e Brahms — e sublinhando a necessidade de
distinguir o falso melodismo de autores de moda do verdadeiro e profundo sentido melódico do
cancioneiro tradicional e dos grandes mestres (Dickinson, 1935, p.189-191 e Weiss, 1984, p.357-363).
Mário de Andrade, como Schumann, pretendia inaugurar uma nova perspectiva crítica. Talvez por
isso as suas “crônicas em dó bemol”, apontando para uma crítica em tonalidade inexistente, sobre os
novos compositores da cidade. Os escritos de Florestan, em tom otimista, consagram-se à formação de
uma escola nacional. Em carta a Sérgio Milliet, correspondente em Paris, Mário de Andrade explica ter
tomado conta da revista no intuito de torná-la acessível ao “público Bunda do Brasil”: “Fiz revista
informativa, mais variada, sem artigos pesados, cheia de notícias idiotas e elogio todo o mundo” (In:
Duarte, p.298). Porém no último número, em que Florestam publica a curiosa crônica “Festa de
aniversário”, aparece um artigo assinado por A.G. do Amaral intitulado “Música Nacional”, que embora
coincida com Florestan no ideal da escola musical brasileira, polemiza com este autor quanto à avaliação
da situação musical do país:
76
Do que tenho lido de Florestan, isto é, todos os seus artigos de Ariel, quer-me parecer que
esse crítico acha facílima a criação da música nacional brasileira. Os meios que apontou
até agora são a utilização dos ritmos nossos e das nossas melodias. Está mais ou menos
certo […] que vários compositores das várias escolas já existentes, principalmente na
Itália, Alemanha e França, são de maneira indiscutível, compositores nacionais dos seus
países de origem apesar de não se terem utilizado nas suas obras de temas e ritmos
indígenas. […] Para que uma obra de arte seja nacional é preciso antes de mais nada que
o artista seja nacional não só na sua origem mas que os caracteres da raça a que pertence
sejam tão influentes a ponto de conformarem segundo os caracteres gerais da raça os
sentimentos e afetos subjetivos e pessoais do criador. Em suma, é preciso que o sentimento
seja nacional. Esse elemento preponderante que leva a criar as escolas artísticas
nacionais, elemento que Florestan bem como os demais colaboradores de Ariel, têm
descuidado de apontar. Ora o sentimento nacional num país em formação como o nosso é
muito vago ainda e, além de vago, fugitivo. Com os vários sangues heterogêneos que se
fundem em nossas veias é muito fácil a esse fraco ainda sentimento nacional ou
desaparecer ou então reforçar-se nos caracteres duma única entre as raças que se
debatem em colisão contínua dentro dum mesmo indivíduo.52
Embora não nos seja possível ainda confirmar a autoria de Mário de Andrade para estas linhas,
observa-se que as temáticas aqui apresentadas relativas ao sentimento nacional e aos processos de mistura
racial em curso, assim como certas referências aos compositores Francisco Mignone e Heitor Villa-
Lobos, são retomadas em escritos posteriores de Andrade como o Ensaio sobre a Música Brasileira.
Poderia pensar-se que, prevendo o fim da revista53, Mário abrisse as páginas de Ariel para mais uma voz
criada pela sua imaginação com o propósito de aprofundar sobre certos aspectos da criação de uma escola
nacional e contrapor-se ao acentuado otimismo de Florestan. Sobre o número que viria ser o último dessa
fase da revista, Mário escreve em carta a Manuel Bandeira: “Ando ocupadíssimo com o número de
aniversário de Ariel […] saiu bonzinho, vais ver. Seis bons poemas, entre os quais o “Pianola” do Gui e o
maravilhoso “Mercado de prata etc.”, nome pau! do Ronald. Teu artigo [“Literatura de violão”],
Florestan, um Amaral rabugento, o meu estudinho sobre o amor em Beethoven e Dante, coisa sem
importância, apenas legível” (Andrade, 2000, p.140). Em 1925 — apenas de agosto a outubro — seria a
vez de Manuel Bandeira dirigir uma revista musical, valendo-se também de várias identidades e da
colaboração do amigo e crítico paulista. Tratava-se de Brasil Musical, editada no Rio de Janeiro por
Felício Mastrangelo.
O modelo dialógico de discussão de um assunto musical através de vozes divergentes, cuja
elaboração suprema em Mário de Andrade encontra-se já no final de sua vida nas crônicas de O
Banquete, aparece também no projeto que o autor expõe em carta a Manuel Bandeira (7/09/26) de uma
Bucólica sobre a música brasileira. Através de um diálogo entre Sebastião e Lusitano, o livro em
preparação discutia assuntos musicais — rítmica brasileira, orquestração brasileira, harmonização
brasileira, melódica brasileira, Carlos Gomes, etc. — e ainda abordava o tema da língua, sendo que
77
Sebastião falaria “em brasileiro” enquanto Lusitano em “português da gema escrito em ortografia da
reforma portuga” (Andrade, 2000, p. 306-307).
Nessa época, Mário de Andrade pesquisava a obra de Ernesto Nazareth e preparava uma
conferência sobre tal compositor, proferida em homenagem que a Sociedade de Cultura Artística rendeu
ao autor de Brejeiro. É a partir do estudo da obra de Nazareth que Mário de Andrade identifica
claramente a necessidade de pesquisar sistematicamente a música popular, particularmente os elementos
melódicos que caracterizam a expressão nacional. As composições de Nazareth e Marcelo Tupinambá
eram recorrentemente citadas pelos críticos, como Mário de Andrade, Renato Almeida e Darius Milhaud,
que vinham chamando a atenção sobre a necessidade de se prestar atenção à música popular como base
para a criação artística. Porém, uma observação mais atenta levantava interrogantes, na visão de Mário,
sobre a autenticidade nacional dos elementos musicais da obra de um compositor urbano como Nazareth,
influenciado pelo meio cultural carioca — onde as ondas da música popular estrangeira contemporânea,
que entravam pelo rádio e pelo cinema, se batiam com os sons rurais de músicos migrantes, entre outros.
Numa carta de 27 de agosto de 1926, Mário confessa a Manuel Bandeira estar um pouco desapontado e
assustado com a falta de caráter melódico brasileiro na obra de Nazareth:
Uma feita já pensei, creio mesmo que escrevi que a melodia de Nazaré era carioca e de
influência portuguesa. Pois nem isso! É um pouco de alemã, valsas de Schumann, Brahms
e um pouco de toda a gente. Raramente se topa com uma frase, um torneio melódico
brasileiro. E mesmo a rítmica bem mais característica, inda tem um bodum forte de
habanera, básica talvez do maxixe como foi do tango argentino. É uma surpresa dolorosa
que se tem mudando pra ritmo de valsa ou de polca os ‘tangos’ do Nazaré. Desaparece
completamente a brasilidade deles. […] Ando também iniciando por isso um estudo que
durará a minha vida e me parece importante: quais são os torneios melódicos
caracteristicamente (não exclusivamente se entende) brasileiros. Tenho já anotado alguns.
Porém um estudo desses deveria ser comparativo e isso exigiria um trabalho imenso pois
que em nenhuma música nacional se tentou uma especificação dessas e eu teria que fazer
tudo. Enfim: se vive e isso é bom. (Andrade, 2000, p.305)
Uma semana mais tarde, Mário de Andrade tinha redigido a primeira versão da Bucólica da
Música Brasileira, nunca publicada, dando notícia sobre ela na correspondência a Prudente de Moraes
Neto e a Bandeira. Com este último discutia as suas estratégias de pesquisa para identificar as tendências
da melódica brasileira e explorar a possibilidade de criar música de caráter brasileiro sem utilizar tais
dados característicos ou, pelo contrário, criar música sem caráter nacional embora servindo-se deles. É de
fato nessa época que, brincando de compositor, compõe a Viola quebrada, também conhecida como a
Maroca, criada a partir do ritmo melódico de Cabocla do Caxangá de Catulo da Paixão Cearense, com
modificação da linha melódica (Andrade, 2000, p. 308-309). O projeto de estudo da melódica nacional
continuava em curso em fevereiro de 1927 quando, em carta a Carlos Drummond de Andrade, Mário se
78
refere a um trabalho em processo intitulado Elementos Melódicos Nacionais: “É um livro de folclore
musical em que registrarei o maior número possível de melodias populares ou popularizadas nacionais,
sempre com comentário” e solicita ao amigo mineiro o envio de melodias populares modernas e
tradicionais interpretadas por músicos da região para integrá-las no seu estudo (Andrade, 1982, p.106).
Em novembro do mesmo ano, depois de ter voltado do Amazonas, a idéia da Bucólica ainda estava no
tinteiro, segundo se confirma na correspondência com o compositor carioca Lorenzo Fernández, a quem
aparentemente Mário planejara dedicar o escrito. No dia 16 de novembro de 1927 Fernández responde ao
crítico paulista afirmando-se honrado com a dedicatória prometida: “A Bucólica sobre a Música
Brasileira só no título já é bela; e o Piano no Brasil? Coisa séria, não é? Enfim qualquer dos trabalhos
que você dedique a mim será muito; tanto que eu nunca imaginei merecer”.
Entre 1926 e 1928 Mário de Andrade empreende um primeiro esforço de coleta de músicas
tradicionais brasileiras que vai culminar com a publicação do Ensaio sobre a música brasileira. Já na
conferência sobre Ernesto Nazareth, em 1926, o crítico esboça o seu projeto de investigação musical dos
próximos anos:
Nossas modas, lundús, nossas toadas, nossas danças, catiras, recortados, cocos,
faxineiras, bendenguês, sambas, cururus, maxixes, e os inventores delas, enfim tudo o que
possui força normativa pra organizar a musicalidade brasileira já de caráter erudito e
artístico, toda essa riqueza agente e exemplar está sovertida no abandono, enquanto a
nossa musicologia desenfreadamente faz discursos, chora defuntos e cisca datas. Há uma
precisão iminente de transformar esse estado de coisas, e principiarmos matutando com
mais frequência na importância étnica da música popular ou de feição popular. […] Se
deve de registrar tudo o que canta o povo, o bom e o ruim, mesmo porque desse ruim
ninguém sabe tudo o que pode tirar um bom. (In: Andrade, 1963, p. 129-130)
O compositor carioca Luciano Gallet era outro correspondente com quem Mário trocava reflexões
e documentos musicais. Grande entusiasta da obra de Nazareth, Gallet foi pioneiro em introduzir a arte
deste compositor no meio musical erudito da época, incluindo obras dele numa audição no Instituto
Nacional de Música de Rio de Janeiro no ano de 1922, fato que provocou controvérsia. Partindo da
admiração por Nazareth, Luciano Gallet, assim como Mário de Andrade, alimenta o seu interesse pela
música popular anotando documentos musicais tradicionais principalmente através de amigos de outras
regiões que se tornavam informantes. Um deles era Antônio Bento de Araújo Lima, que em 1928 chega
ao Rio de Janeiro trazendo “muita coisa do Norte”, que compartilha com Gallet. Em carta a Mário de
Andrade de 10 de março de 1928, o compositor revela ter anotado 16 cantigas de Boi, 13 cantigas dos
‘Reis do Congo’, 8 toadas, 30 cocos e 5 temas de coro de coco, proporcionados por Antonio Bento.
Nesses tempos, a partir de convite feito por Renato Almeida, Mário e Gallet tinham sido convocados a
escrever trabalhos sobre folclore musical para o Congresso de Arte Popular organizado em Praga pela
79
Liga das Nações. Mário sugerira aproveitar o seu trabalho sobre “Elementos melódicos brasileiros”,
enquanto Gallet propunha dividir a participação entre “Índios” por Roquette Pinto, “Portugueses” por
Andrade e “Negros” por Gallet. Tendo sido aceita tal estrutura, Gallet no entanto questionava as
conseqüências de se divulgar entre um público estrangeiro os documentos folclóricos originais. Na citada
carta a Mário de Andrade, Gallet expressa:
[…] Roquette Pinto pode mesmo fornecer os temas índios, já publicados (Não
documentam exatamente, já disse a você que estão escritos ‘errados’?)
Agora, você e eu, pegamos um punhado de temas nossos, inéditos, e damos de
presente para o mundo inteiro […] Vai chega um Respighi (que andou aqui querendo
comprar folclore brasileiro para uso próprio), um Milhaud, ou qualquer outro, pega
naquilo tudo, e bumba, faz música brasileira. Até aí vá lá. Um tema não é propriedade —
apesar de não estar certo aproveitarem, e inutilmente, o nosso trabalho. Mas o grave é
que aqueles senhores farão música brasileira que ficará sendo para o mundo ‘a música
brasileira’ — como ‘Saudades do Brasil’, por exemplo. É pois um ponto sério a resolver:
—Convém ou não — por enquanto — fornecer gratuitamente, temas brasileiros ao mundo
inteiro, antes de integralizados no seu caráter próprio — expressivo, harmônico e rítmico?
Embora Mário de Andrade tivesse uma opinião diferente nessa questão54, acaba aceitando fazer
um trabalho crítico sobre a influência portuguesa na música brasileira, focalizando a roda infantil
brasileira. Nesse processo, vão surgindo novos assuntos de interesse etnográfico, como a idéia de
examinar no folclore musical brasileiro o tema da mulher lembrada que vem oniricamente de barca por
mar ou rio, estudo que Mário pretendia chamar “O seqüestro de Dona Ausente” (Andrade, 2000, p.388).
Os documentos melódicos aprontados acabam entrando para o Ensaio da Música Brasileira, publicado
poucos meses depois. “Este Ensaio [escreve Mário a Manuel Bandeira] afinal é a idéia daquela Bucólica
sobre a música brasileira de que você sabe a existência. Achei que carecia refundir inteiramente e
refundi. […] me deixei levar por uma precisão mais didática, fiz um livreco ordinário mas enfim, seu
Serafim, que não vai ser inútil pros músicos, creio” (Andrade, 2000, p.400). Entre 1926 e 1928 Mário de
Andrade estreitava a sua relação com os compositores que despontavam no panorama nacional,
particularmente Luciano Gallet e Lorenzo Fernández — com quem havia iniciado correspondência em
1926 e 1927, respectivamente — além de Villa-Lobos, amigo e colega dos tempos da Semana e
começava uma profunda amizade com o jovem compositor paulista Camargo Guarnieri. Abandonando o
prazer literário que se esboçava no plano da Bucólica, Mário resolve publicar um livro útil, dirigido
prioritariamente aos compositores. E a repercussão que teve o Ensaio, de fato, extrapolou as expectativas
do autor. Segundo observa Arnaldo D. Contier, “Esse texto transfigurou-se num verdadeiro manifesto,
que foi lido e discutido durante décadas pelos compositores, críticos e historiadores preocupados com a
proposta de incorporação do popular no nacional, com o fito de se criar um polo cultural independente
80
dos centros europeus. Essa obra pode ser considerada como a bíblia ou o livro de cabeceira de muitos
artistas brasileiros de 1930 a 60, aproximadamente” (Contier, 1988, p. 141-142).
O Ensaio discutia os parâmetros para a criação musical nacional no âmbito do erudito expondo as
características rítmicas, melódicas, harmônicas, de instrumentação e forma que o autor observava no
populário musical, oferecendo exemplos da sua utilização em certas obras eruditas. Numa segunda parte,
fornecia a transcrição de melodias populares de diferentes regiões colhidas pelo próprio autor ou por
vários colaboradores.55 Na negociação com a casa Chirato para a publicação do Ensaio, obra custosa
pelos documentos musicais incluídos, Mário compromete-se com a entrega de mais um texto: o
Compêndio de História da Música. Por esta razão, na esteira de Macunaíma, vemos aparecer
sucessivamente o Ensaio e o Compêndio. “Vou fazer mais um livreco. Pra aluno conservatorial. Tudo
sínteses, História da ‘manifestação’ musical através dos tempos até agora. Desde os primitivos (pretexto
pra falar dos índios do Brasil) até Villa-Lobos e Stravinsky. Capitulinhos claros quanto possível e de
leitura corrente. Grande número de ideografias, árvores genealógicas etc. pra fixar no aluno os períodos e
as personagens representativas deles. Brasil o quanto possível” (Andrade, 2000, p. 401).
Após as viagens “etnográficas” de 1927 e 1928-29, Mário de Andrade concebe um ambicioso
projeto de sistematização e análise do folclore musical, nunca concluído: Na pancada do ganzá. Porém,
ao longo dos anos, vão aparecendo artigos e ensaios dedicados ao folclore musical que, junto aos
manuscritos do citado projeto, foram editados postumamente por Oneyda Alvarenga. Entre os trabalhos
publicados como artigos destacam-se aqueles sobre tradições do interior de São Paulo, como o “Romance
do Veludo” e o “Lundu do escravo”, publicados em 1928 na Revista de Antropofagia, ou o “Samba Rural
Paulista”, aparecido em 1941 na Revista do Arquivo Municipal; a crônica “A Ciranda” e outras da série
“O turista aprendiz” publicadas entre 1927 e 1929 no Diário Nacional; a série sobre “Os Congos”,
inserida numa coluna regular dedicada principalmente ao acontecer musical (artístico) da cidade, que o
autor manteve entre 1933 e 1935 no Diário de S. Paulo; dois artigos sobre o Maracatu, publicados nos
Estudos Afro-brasileiros (Anais do Congresso Afro-Brasileiro de Recife, 1934) e na revista carioca
Espelho; o excerto “Origens das danças-dramáticas brasileiras”, publicado em 1935 pela Revista
Brasileira de Música; outros dois artigos sobre as “Danças dramáticas” e a série do “Cantador”
aparecidos entre 1943 e 1944 no rodapé semanal da Folha da Manhã.
Por outro lado, o acompanhamento da composição musical brasileira perpassa a contribuição de
Mário de Andrade em todas as revistas e jornais da época, culminado com a reflexão contida na série de
O Banquete, diálogo ‘de mentira’ sobre o estado da composição musical no país. Entre os autores que
recebem maior atenção do crítico ao longo dos anos podemos citar Heitor Villa-Lobos, Luciano Gallet,
Lorenzo Fernández, Francisco Mignone e Camargo Guarnieri, compositores cuja obra dialoga
constantemente com a crítica mariodeandradeana , segundo examinaremos no capítulo quinto.
81
Desde Paris: A música cubana
Alejo Carpentier chega a Paris no momento em que ia configurando uma visão ao mesmo tempo
moderna e cubana sobre a criação musical e literária. A estréia da Obertura sobre temas cubanos de
Amadeo Roldán em 1926, seguida pelos Tres pequeños poemas do mesmo autor, revelados pela
Filarmônica em 1927, abria, em palavras de Carpentier “a senda mais fecunda e interessante que os
nossos compositores jovens podem trilhar, a única que os conduzirá a uma alta finalidade de sólida
criação”.56 Através do seu diálogo com Roldán, com o maestro Pedro Sanjuán e com o jovem Alejandro
García Caturla, que chegara de Remedios “trazendo uma mala de partituras esquisitas”57, ia se forjando
uma estética musical que Carpentier articulava nas páginas de Social e Carteles, nos primeiros escritos
sobre a obra de Roldán. Em 1928, pouco antes de embarcar para Paris, num artigo que dava notícia da
acolhida dos Tres poemas num festival em Cleveland, Carpentier resume de forma esquemática esta nova
perspectiva da composição musical erudita cubana:
La gran labor de Roldán ha sido trocar una lira italianizante por el bongó bien
templado.
Hasta ahora se abusó, entre nosotros, de la lira. La lira es un instrumento que sólo
sirve ya para muestras de rastro. Sus cuerdas desconocen el vigor; sus acentos hieden a
Tosti; su forma se repite en todos los monumentos cursis… ¡Basta de boleros ejecutados
en solo de lira!…
Amadeo Roldán adopta el bongó. El bongó es exacto, agresivo; sus recursos se
conservan vírgenes: el primitivismo lo exime de todo mal gusto. El bongó palpita; la lira
es fósil. También Stravinsky hubiera elegido el bongó.58
82
criação artística moderna que Roldán e Caturla começavam a concretizar no campo musical, enquanto ele
próprio ensaiava a realização literária desta estética no romance ¡Ecué-Yamba-Ó!, cujo primeiro
manuscrito tinha sido redigido na prisão de Havana em agosto de 1927 e viajara com ele a Paris na mala
dos projetos em gestação:
Llevo varias sorpresas. Cosas que le interesarán y le recordarán algo de nuestra América.
Dibujos, fotografías, músicas, cosas de México y de Cuba. Y un libro perfectamente
concluído — ¡lo único verdaderamente moderno y decente que he hecho en vida!60
Mesmo antes de exilar-se em Paris, Carpentier já estava familiarizado com a avidez do mundo
intelectual europeu pelas culturas “primitivas” e os elementos “pitorescos”. Pouco antes da sua partida de
Havana, tinha convivido de perto com Paul Morand, o escritor e diplomata francês cuja literatura de
viagem foi fonte inspiradora da chamada “moda negra” em Paris.62 Uma carta destinada a um amigo
cubano na França — possivelmente Mariano Brull, funcionário da embaixada cubana em Paris —
documenta o encontro de Carpentier com Morand e a proximidade intelectual que já se firmava entre o
escritor cubano e os intelectuais da vanguarda francesa:
Paul Morand pasó, como usted lo sabe, por La Habana. Estuvo todo un día con
Fernández de Castro y conmigo. Ahora los periódicos acaban de comentar con
indignación una crónica suya en que habla de La Habana con una gracia enorme. […]
Hay un criterio ingenuo por el cual la gente quiere que se les pinte vestidos de frac y se
prescinda del elemento pintoresco que es justamente lo que un hombre como Morand
puede venir a buscar aquí. […] (In: Baquero, 1993, p.8)
83
Carpentier não estranhava o tom de escritos como os de Morand ou o de Desnoes sobre a música cubana e
além disso reconhecia que este último servira como estopim do auge do son e a rumba em Paris. Logo o
próprio Carpentier se tornaria o principal “advogado defensor” e entusiasta promotor da música popular
criolla na grande urbe, incorporando ele mesmo, nas suas crônicas, algumas metáforas e o linguajar do
vanguardista europeu perante os exóticos sons do Caribe. Dizia Desnoes:
Carrefour d’ambitions, Cuba est aussi un carrefour de races, mais, de ce mélange même,
elle tire une originalité profonde. […] Nous sommes à la plage de L’Havane, pas très loin
de la ville, et cependant dans un lieu désert. […] Et la musique commence, sauvage et
tendre, parfois tragique, souvent triste, souvent exaltée, toujours aphrodisiaque. Sous le
ciel étoilé, les nègres sont possédés par la musique. Tout à l’heure ils en seront ivres et
moi-même je sentirai un furieux besoin de me méler à eux, de danser avec eaux, tant cette
musique possède de surprenant sorcellerie.63
Et Maintenant, mon cher Georges Bataille, deux mots pour vous dire la joie que
j’ai eu à vous revoir!… Vous me disiez, chez Liscano, que j’étais pour vous un peu de
84
votre jeunesse !… Avez-vous songé à la place que vous occupiez dans mes souvenirs ? Je
me souviens encore de nos conversations de 1929 ou 1930, au sujet des confreries
magiques de Cuba ; de nos rencontres avec Robert aux Deux Margots […] Vers 1943, à
Haïti, nous parlions souvent, Pierre Mabillie et moi, de Documents, revue à laquelle vous
aviez donné un caractère absolument unique.
Vous voyez donc combien étiez près de moi — de nous — pendant les
longues années où l’absence de communications, de correspondance, d’échange d’idées,
nous faisait voir l’Europe, d’ici, comme de plus lointain, inaccessible, “exotique” des
mondes. (In Vásquez, 1986, p.88-89)
Além do círculo surrealista, Alejo Carpentier trava contato em Paris com o mundo musical
moderno da cidade, que desde a segunda década do século era talvez o mais importante pólo de atração de
jovens compositores e intérpretes vindos de diferentes pontos da Europa e da América. Um dos
compositores que maior influência exercia nesse meio musical parisiense era o russo Igor Stravinsky, que
estreara na cidade em 1910 com o balé L’Oiseau de Feu, encenado pela companhia de Diaghilev, com
quem ainda colabora em Petrushka (1911) e Le Sacre du Printemps (1913). A música de Stravisnky,
particularmente nesta última composição, baseada principalmente na experimentação rítmica e escrita
para uma orquestra de grandes proporções, contrastava significativamente com a sutileza tímbrica e o
refinamento harmônico de Debussy, o compositor francês de maior influência na época. A repercussão de
Le Sacre, unida a outras experimentações contemporâneas, como o Allegro barbaro do húngaro Béla
Bartók, conformaram uma estética que alguns chamaram de “primitivista” pela evocação de culturas
agrestes “não civilizadas”.
A abordagem criativa destes dois compositores em termos da sua relação com as tradições
musicais evocadas é, no entanto, diametralmente diferente. Bartók baseava-se na pesquisa etnográfica de
músicas tradicionais húngaras, procedimento que Stravisnky rejeitava, ao passo que buscava ‘intuir’ a
Rússia pagã. Referindo-se à concepção de Le Sacre, o compositor expressa: “Um dia inesperadamente vi
na minha frente a cena de uma grandiosa cerimonia pagã sacrificial: os velhos sacerdotes, sentados numa
roda, observavam a dança-da-morte de uma jovem que eles ofereciam ao Deus da Primavera […]”. E
sobre a instrumentação de Les Noces (estreada em 1923), afirma: “Tal combinação de sonoridades surgiu
[…] exclusivamente da minha música para Les Noces e não do desejo de imitar os sons de uma
festividade popular deste tipo. Em qualquer caso, eu nunca assisti nem ouvi um festival deste tipo em toda
a minha vida” (In: Searle, 1973, p.103-104 e 114). Comentando os procedimentos do seu colega Bártok,
Stravinsky ainda reafirma o seu distanciamento da pesquisa de tradições musicais, que sustentava a arte
do húngaro:
85
era certamente autêntica e comovedora, mas não me era possível deixar de deplorá-la
num grande músico.64
Outra figura de grande influência na vida musical da cidade foi Erik Satie, que estreara em 1917 o
balé Parade, com a colaboração de Cocteau, Picasso e Diaghilev, e cuja música inspirara a criação em
1920 do “Grupo dos Seis”, integrado por Darius Milhaud, Louis Durey, Georges Auric, Arthur Honegger,
Francis Poulenc e Germainen Tailleferre, além do próprio Satie. O poeta Jean Cocteu tinha publicado em
1919 um escrito onde defendia a música de Satie como manifestação caracteristicamente francesa. Em Le
Coq et l’a’Arlequin, Cocteu sentava as bases para uma arte nacional francesa, condenando a influência do
wagnerismo alemão, do futurismo italiano ou mesmo de Moussorgsky, considerado propulsor da escola
russa. Estes debates tiveram repercussão na América Latina, sobretudo no Brasil, em virtude da
permanência na França de importantes figuras intelectuais, como Graça Aranha, que baseia nos princípios
de Cocteau a sua reflexão musical dentro da conferência de abertura da Semana de 1922 (Contier, 1988,
p. 45-50).
A relação dos modernistas brasileiros com a França foi muito intensa nesses primeiros anos da
década de 1920, com a presença naquele país de intelectuais e artistas como Sérgio Milliet, Oswald de
Andrade, Tarsila do Amaral, Vicente do Rêgo Monteiro, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Víctor Brecheret,
Souza Lima e Heitor Villa-Lobos, entre outros, além da passagem de mecenas como Paulo Prado e Dona
Olívia Guedes Penteado. Na sua primeira Carta de Paris, publicada em Ariel em outubro de 1923, Sérgio
Milliet, por exemplo, relata um banquete oferecido pelo embaixador Sousa Dantas à intelectualidade
brasileira na França, que contou com a presença de Darius Milhaud, entre outras figuras de proa do
mundo artístico parisiense. Nesse mesmo outubro de 1923, estreava na cidade o “balé negro” La Création
du monde, com argumento de Cendrars, música de Milhaud e cenário de Léger — três artistas europeus
vinculados na época aos modernistas brasileiros. Cendrars tornara-se amigo de Oswald de Andrade e de
Tarsila, que por sua vez frequentava o ateliê de Léger e estudava com Lhote e Gleizes. Por intermédio de
Cendrars, Oswald e Tarsila entram em contato com Érik Satie, com o príncipe Tovalu, do Daomé, com
Jean Cocteau e outros. Em Carta de Paris de novembro de 1923 Sérgio Milliet, além de comentar
favoravelmente a citada obra de Milhaud, traça uma interessante comparação entre Satie e Stravisnky a
partir da audição de Les Noces, que estreara nesses dias:
86
O artigo de Milliet saudava também a chegada de Villa-Lobos ao meio musical da cidade, com o
seu “temperamento robusto” e “originalidade pouco influenciada”. Já no ano seguinte organizava-se um
concerto exclusivamente de obras do compositor brasileiro, com a participação de Souza Lima, Vera
Janacopolus e Rubinstein, entre outros. Em carta de 20 de junho de 1924 endereçada a Mário de Andrade,
mas dirigida a “Mário, Luiz, Oswald, Paulo Prado, Rubens, Tacy, Cendrars, Aranhas, Vicentes, etc.”,
Sérgio Milliet registra as suas impressões sobre tal audição, sobre outras atividades culturais da cidade e
sobre os desenvolvimentos de artistas patrícios:
A ‘embaixada’ artística cubana em Paris começa chegar um pouco mais tarde, já no final da
década de 1920, com Alejo Carpentier, o pintor Eduardo Abela, Moisés Simons, Don Aspiazú e as curtas
temporadas de Alejandro García Caturla, Ernesto Lecuona, Rita Montaner e outros. Quando Carpentier se
instala em Paris em março de 1928, ele já participava das polêmicas musicais da cidade através de leituras
e escritos. Meses antes de partir tinha publicado artigos sobre Satie e sobre Stravinsky, e semanas depois
da sua chegada já estava publicando em La Gaceta Musical um artigo de Paris sobre Debussy. Tendo
entrado em contato com o compositor mexicano Manuel Ponce, que promovia dita publicação, Carpentier
passa a colaborar assiduamente nela com artigos sobre o Festival de Música Polaca (maio de 1928), o
Festival Stravinsky (junho de 1928) e Heitor Villa-Lobos (julho-agosto de 1928), entre outros. Em
sucessivos escritos Carpentier revela a sua admiração pelo autor dos Choros, o qual ele vem a conhecer
pessoalmente em Paris, passando a frequentar os saraus dominicais em casa do compositor, onde se
avistavam Florent Schmitt, Tomás Terán, Vicente Huidobro, Edgar Varèse, Acario Cotapos (compositor
chileno), Berta Singerman e Elsie Houston, entre outros.
Carpentier levaria seis meses em Paris antes de irromper o seu programa de difusão e defesa da
música cubana. Durante esse tempo ele escreveu sobre o meio musical erudito e popular da cidade.
Stravinsky, Villa-Lobos, Maurice Jobert e Josephine Baker foram algumas das figuras abordadas. E é
precisamente em torno desses dois espaços — o espaço popular dos bailes e a moda do jazz, e o da
87
composição erudita moderna — que Carpentier vai focalizar o seu labor de cronista e promotor da
“invasão” cubana, como já se prevê no artigo “La música cubana en París”, publicado em Carteles em
setembro de 1928. Ali, faz referência à penetração de músicos cubanos nas boîtes noturnas da cidade, à
ávida recepção da música cubana gravada em discos pela intelectualidade surrealista e à incipiente
presença de obras de Amadeo Roldán e García Caturla no meio musical erudito. Entre os anos de 1928 e
1936, principalmente, Carpentier acompanha a estréia na cidade de músicos cubanos como Ernesto
Lecuona, Rita Montaner, Moisés Simons, Lydia de Rivera e a Orquesta Castellanos, entre outros,
oferecendo em diversas ocasiões palavras introdutórias sobre a música cubana a título de abertura dos
espetáculos. Foi uma época fecunda para a difusão da cultura cubana, não somente através dos músicos,
mas também através de artistas plásticos como Eduardo Abela e outros. Durante os anos de exílio
parisiense, Carpentier colabora em projetos cênico-musicais com compositores como Marius François
Gaillard, Edgard Varèse e Darius Milhaud, tema que examinaremos posteriormente.
No seu retorno a Cuba, em 1939, Alejo Carpentier inicia um projeto de investigação musicológica
por encomenda da editora Fondo de Cultura Económica, do México, que culmina com a publicação em
1946 de La música em Cuba. Por outro lado, a crítica musical volta a ser uma atividade cotidiana do autor
nos anos em que reside em Caracas (1945-1959) através das páginas de El Nacional, daquela cidade. O
diálogo com o mundo intelectual e cultural francês, porém, foi com toda certeza significativo no
pensamento musical e estético do escritor cubano.
88
CAPÍTULO 4
Travessia pelas regiões do outro interior:
Viagens e etnografia
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meio amontoadas e carentes de maiores informações sobre a sua procedência e as suas histórias. O
terceiro andar alberga parte da coleção de Fernando Ortiz. Não de objetos vindos da África, mas feitos em
Cuba por mãos de afro-descendentes. O tambor arará que abre as portas da coleção lembra-me daquele
que aparece numa foto divulgada nos livros de Ortiz: Don Fernando inclinado sobre o tambor, uma mão
no couro e outra no tronco esculpido, ao lado do diretor do Museu Nacional de Cuba. “Esta é a jóia do
museu”, afirmava Ortiz, que conhecia alguns dos seus segredos. Fora construído para o cabildo Arará
Sabalú por um artesão muito bem conceituado, que morreu logo depois, dizia-se que por obra de
malefício do cabildo rival. Em Havana, explica Ortiz, houve três cabildos ararás (formados por africanos
procedentes do reino Aladá ou Ardrá, no antigo Daomé). Estes foram desarticulados durante a campanha
de repressão às religiões afro-cubanas do governo de Menocal (1913-1921), na esteira dos conflitos
raciais que provocaram a chamada Guerrita del 1912. Nos anos 50, quando Ortiz publica o seu estudo
sobre os instrumentos da música afro-cubana, comenta que os seus velhos informantes ainda choravam
aquela destruição dos seus templos (Ortiz, 1995 — Ararás, p.15).
Entro na exibição e vou reconhecendo um por um os objetos que compõem o universo dos
primeiros escritos de ficção carpenterianos. As roupas e máscaras dos diablitos da festa do Dia dos Reis
que aparecem no balé La Rebambaramba; vários exemplares em pano e madeira dos Jimaguas66,
deidades homenageadas no balé El Milagro de Anaquillé; o próprio Anaquillé, boneco que se dançava nos
cortejos das confrarias no Dia dos Reis; objetos das sociedades secretas abakuás ou ñáñigas que o autor
aborda em Écue-Yamba-Ó. As investigações etnográficas de Fernando Ortiz foram uma importante fonte
de inspiração e documentação para escritores, músicos e artistas cubanos dos anos 20, atraídos pela
riqueza das manifestações religiosas e musicais da população afro-descendente. Os objetos que compõem
esta magnífica coleção67 têm incríveis histórias que ainda estão por ser narradas. Histórias que podem nos
revelar algo da complexa e instigante trajetória dos trabalhos de Ortiz sobre a cultura popular; das
ambivalências dos intelectuais da época frente a presença desse outro interior que lhes provocava fascínio
e estranhamento; das estratégias das classes subalternas para preservar e re-significar as suas práticas e a
sua memória; dos conflitos, negociações e contradições nas definições do nacional.
Embora Fernando Ortiz (1881-1969) seja uma figura notável entre os intelectuais cubanos do
século XX, sua obra tem sido pouco abordada criticamente. É, isso sim, muito citada e o seu autor
venerado como precursor dos estudos afro-cubanos e opositor do racismo. Porém uma leitura dos seus
primeiros escritos revela noções altamente preconceituosas. Robin Moore (1994), em um trabalho
pioneiro, examinou a natureza ideológica das mudanças de perspectiva nos escritos de Ortiz ao longo dos
anos e a forma muitas vezes contraditória com que visões antagônicas se reconciliam nos seus textos.
Neste capítulo, tento examinar a trajetória da relação de Ortiz com o mundo popular, com o intuito de
verificar as repercussões que um conhecimento mais íntimo deste universo teriam na sua obra e na sua
90
postura intelectual. Por outro lado, aborda-se o diálogo de Ortiz com os intelectuais do Grupo Minorista,
principalmente Alejo Carpentier e os compositores Amadeo Roldán e Alejandro García Caturla. Robin
Moore argumenta que a produção artística dos minoristas foi um dos fatores que contribuíram para que
Ortiz abandona-se a noção de “atavismos” na sua análise das manifestações afro-cubanas. Mas é
importante examinar também as ambivalências em torno do popular no pensamento dos próprios
minoristas, assim como a influência das investigações de Ortiz na obra criativa de escritores, músicos e
artistas plásticos da época.
O primeiro grande projeto intelectual do jovem criminalista Fernando Ortiz foi possivelmente
concebido nos corredores do Museu de Ultramar de Madrid, onde em 1901 ele observara misteriosos
objetos dos ñáñigos cubanos. Ortiz se iniciava nas práticas da antropologia criminal sob tutela de
Francisco Giner de los Ríos, realizando pesquisas em instituições penais de Madrid e Alcalá de Henares.
Como aluno destacado, foi convocado a comentar o recém-publicado livro de Bernaldo de Quirós La
mala vida en Madrid, em palestra no Instituto Sociológico da capital espanhola. Simultaneamente,
revelava-se interessado na pesquisa de costumes populares, elaborando um trabalho nesse mesmo ano
sobre as festividades dedicadas a São João na ilha de Menorca, lugar onde Ortiz passara quase toda a sua
infância e adolescência.
Fernando Ortiz morou em Havana durante os convulsos anos de 1895-1898 enquanto formava-se
em direito penal. Mas foi ao retornar de Madrid em 1902 que, guiado pelo interesse em escrever um
trabalho equivalente ao de Bernaldo de Quirós, deu início às primeiras pesquisas sobre os negros cubanos,
uma série de trabalhos que se reuniriam sob o título de Hampa afrocubana. Em 1906 publica-se o
primeiro fruto desse esforço: Los negros brujos. Além da sua experiência nos círculos espanhóis, Ortiz
recebeu forte influência da teoria dos atavismos étnicos do italiano César Lombroso, com quem estudou
em Gênova entre 1903 e 1906. Los negros brujos, como em geral todos os trabalhos posteriores de Ortiz,
oferece muitos dados e descrições sobre as práticas religiosas e culturais afro-cubanas sem citar as fontes
— certamente orais — ao passo que as referências ao processo de coleta são mínimas. Seria preciso
mergulhar nos vastos arquivos pessoais do autor — ainda não catalogados — para poder indagar com
firmeza na trajetória etnográfica de Ortiz e a sua relação com o universo dos seus informantes. No
entanto, a partir do exame de alguns documentos deste arquivo pessoal e de uma leitura atenta dos
próprios textos, gostaria de arriscar-me a fazer uma reflexão inicial sobre assunto tão instigante, ainda não
abordado pela crítica.
91
Da perseguição ao museu: Oblíquo legado
Em 1906, além de ter publicado o polêmico livro Los negros brujos, Fernando Ortiz podia
orgulhar-se de ter ganho uma pequena mas significativa batalha: ele tornara-se o feliz proprietário dos
Jimaguas de Juan Cabangas. Dois bonecos de madeira pintados de preto, vestidos com tecido vermelho e
unidos por uma corda. Foram encontrados na residência de Cabangas, na cidade de Los Palos, e
confiscados junto a vários escapulários, cornos de diversos animais e um saco com ossadas humanas.
Uma notícia de jornal de setembro de 1904, reproduzida no livro de Ortiz, oferece as seguintes
informações: Juan Cabangas era negro e bígamo, estava ferido, dizia-se que carregava um pedaço de
carne humana que, à medida que ia secando, sarava a sua ferida; comentava-se ainda que era auxiliado
pelo coveiro da cidade, e encontrava-se então recluso no hospital de Güines. Não podemos saber com
certeza se Fernando Ortiz procurou Cabangas no hospital de Güines, ou mais tarde em alguma prisão do
país. Ele não relata nenhum encontro com os seus “informantes”. Mas, ao longo do texto sobre os
‘bruxos’ cubanos, encontramos referências a depoimentos de Cabangas e outros. Cabangas era orgulhoso.
Seu nome, segundo afirmara ele próprio, significava “quem canta muito”. Ele acreditava na sua
invulnerabilidade, pois tinha sobrevivido a uma terrível ferida na cabeça. Porém a perda dos jimaguas
constituía uma grande desgraça. Oferecia mais de “20 pesos oro” pela sua aquisição.
Se Cabangas teve alguma influência no jovem Fernando, foi o apreço por aquele par de jimaguas.
O pesquisador achou curioso o preço que Cabangas oferecia por esses “bonecos toscamente construídos”.
Não sabemos se Fernando Ortiz pagou muito ou nada. Mas ele ganhou a custódia dos jimaguas de Juan
Cabangas, em nome da ciência. Reproduziu a sua estampa no livro — omitindo o nome e a história de seu
primeiro dono. Os jimaguas de Juan Cabangas devem ter sido um dos objetos inaugurais da coleção de
Don Fernando, aquela que eu vi na Casa de África em Havana.68
Fernando Ortiz penetrou no campo de estudo da religiosidade dos afro-descendentes em Cuba
seguindo as trilhas da polícia que, na época, empenhava-se em reprimir tais manifestações. Tomou como
base as informações publicadas em 1882 pelo inspetor José Trujillo Monagas no livro Los criminales de
Cuba, que narrava a sua participação na campanha de repressão aos ñáñigos cubanos dirigida pelo
governador Carlos Rodrigues Batista em fins do século XIX. Partindo daí, Ortiz examina informes
policiais, processos judiciais e artigos de jornal relativos à perseguição da ‘bruxaria’, aparecidos entre
1902 e 1905. Muitas destas notícias faziam referência à atividade festiva, que era censurada por estar
vinculada à crenças religiosas de origem africana. Em agosto de 1903, sessenta pessoas “da raça negra”
eram surpreendidas em Pinar del Rio comemorando uma festa conhecida como levantamiento del plato e
92
celebración del Santo, com um tambor e um güiro69. No bairro Masgüira de Abreus, o guarda José
Allunga descobriu um baile em louvor a Santa Bárbara. “Uma mulher vestida de homem bailava uma
dança diabólica” numa casa em que foram apanhados cinco tambores de imenso tamanho. Em Havana, as
autoridades irromperam numa festa com mais de setenta pessoas, na qual havia sido preparada uma
“opípara comida com pratos à moda africana”. Na mesma cidade outra festa foi interrompida pela polícia,
que encontrou mais de cem pessoas reunidas, umas com máscaras e outras sem elas, e onde se confiscou
um boneco “chamado shangó”, que estava no altar, e um prato de quiabo, entre outros objetos suspeitos
(Ortiz, 1995b, p.151-179).
Ortiz acreditava que o estudo do submundo cubano tinha um interesse particular pela singular
composição étnica do país. Julgava que os africanos, marcados pelas crenças e costumes de suas culturas
de origem, chegavam a Cuba ineptos para adaptar-se à civilização. Por tanto, afirmava que em Cuba “toda
uma raça caíra na malandragem” (ibid., p.16). Com essa preocupação, o autor se aproxima do estudo dos
escravos e libertos na sociedade colonial, bem como das suas culturas de origem. Mas o motor de Ortiz
era, em primeiro lugar, a “regeneração” da sociedade cubana. A “bruxaria”, explicava o criminalista,
devia ser tratada como a febre amarela, através de métodos científicos e higiênicos.
Lo primero, pues […] ha de ser acabar con los brujos, aislarlos de sus fieles, como los
enfermos de fiebre amarilla, porque la brujería es esencialmente contagiosa […]
Desaparecidos aquellos embaucadores, terminadas sus fiestas, danzas y salvajes ritos,
desbaratados sus templos, decomisados sus impotentes dioses, cortados todos estos
tentáculos de la brujería, que encadenan a sus creyentes al fondo bárbaro de nuestra
sociedad, podrán éstos — libres de ataduras — ir aligerando sus aún no desafricanizadas
mentes […] y subir a sucesivas zonas de cultura. (Ibid., p. 193)
Nesse processo de limpeza, considerou-se fundamental privar os “bruxos” dos seus prezados
objetos de culto. Mas estes objetos, paradoxalmente, ganhavam novos adeptos, como o curioso e jovem
pesquisador Fernando Ortiz, que em 1906 argumentava:
Desde luego, […] aun cuando no se llegase a una condena, deberían decomisarse los
ídolos, imágenes, collares, fetiches, altares, chumbas y demás enseres y cachivaches de
los templos brujos, los cuales, al menos los más característicos, en vez de ser destruidos
como se ha hecho hasta ahora, debieran ser destinados al museo de antropología de la
universidad nacional. (Ibid., p. 196)
Podemos imaginar que Fernando Ortiz teve acesso à consulta e aquisição de muitos destes objetos
confiscados, como se depreende da história dos jimaguas de Cabangas. As publicações de Ortiz trazem
fotos de peças em posse da polícia, e a sua correspondência, ainda não inventariada, traz evidências que
sustentam tal suposição. Uma carta de 27 de julho de 1927, por exemplo, dá conta dos trâmites de Ortiz
para examinar os objetos pertencentes a Elías Aróstegui, ñáñigo acusado de homicídio em 1922:
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Sr. Dr. B albino González
Presidente de la Audiencia
Ciudad
Estimado Amigo:
Desde hace mucho tiempo te he anunciado una visita para escudriñar en los
archivos de la Audiencia unas piezas de convicción pertenecientes a un respetable
personaje del ñañiguismo que tuvo la desgracia de ser condenado por ustedes a un
montón de años de presidio por homicidio. Me han dicho que en esa causa se ocuparon
numerosas libretas y cachivaches propios del juego ñáñigo.
[…] Te agradezco desde ahora cuanto puedas hacer en obsequio mío y del
ñañiguismo, o sea, dicho con todo respeto, por el mejor estudio de esa asociación.[…]
(Arquivo F.O. — Biblioteca Nacional, pasta 178)
Cerca de 20 anos depois da publicação de Los negros brujos, Ortiz continuava perseguindo o
mistério do ñañiguismo, mas agora se dava o luxo de brincar com a ambivalência do seu ponto de vista.
Trabalhava ele pela erradicação ou pela sobrevivência da associação secreta? Em carta de 1950 à sua
cunhada, a escritora Lydia Cabrera, Ortiz ainda se diverte fazendo referência a si próprio como “este
Iyamba”, sendo que Iyamba é o nome dado ao chefe dos ñáñigos.70 Os seus trabalhos posteriores aos anos
40 foram apoiados pelo conhecimento de colaboradores ligados ativamente às práticas religiosas e
culturais em questão, e não somente de confinados acusados de diversos delitos, como nas suas primeiras
pesquisas. Traçar a relação do autor com seus informantes é tarefa complicada, pois geralmente Ortiz não
cita a procedência dos dados que divulga, quando se trata de fontes orais. Mas certamente Ortiz, o
explorador, foi muito influenciado pelos ‘seus’ achados, embora raramente deixe entrever seu
encantamento com o universo explorado, sempre reclamando que os seus escritos são fruto da observação
objetiva, rigorosamente científica.
Em 1942, numa palestra no Club Atenas — clube social de afro-descendentes — Ortiz discorre
sobre a recepção dos seus trabalhos e da sua pessoa, entre a comunidade afro-cubana:
Entre la gente de color el libro [Los negros brujos] no obtuvo sino silencio de
disgusto […] Para los blancos aquel libro sobre las religiones de los negros no era un
estudio descriptivo, sino lectura pintoresca, a veces divertida y hasta con puntas de
choteo. A los negros les pareció un trabajo exprofeso contra ellos, pues descubría secretos
muy tapados, cosas sacras de ellos reverenciadas y costumbres que, tenidas fuera de su
ambiente por bochornosas, podían servir para su menosprecio colectivo. […]
Como no había actitud despectiva alguna en mis análisis y comentarios, sino mera
observación de las cosas, explicación de su origen étnico y de su sentido sociológico y
humano […] a la hostilidad prejuzgadora que me tenía la gente de color sucedieron
después el silencio cauteloso y la actitud indecisa y una respetuosa cortesía, mezcla de
timidez de disculpa y demanda de favor. No gustaba que yo publicara esos temas, pero no
se me combatía en concreto “¿Qué se traerá ese blanquito?”, oía yo decir más de una vez
a mis espaldas. […] Ya entre la gente de color la desconfianza iba menguando; a veces se
94
me iban acercando para pedirme, como abogado ejerciente que yo era, protección contra
quienes los atropellaban. Cuando menos, se me miraba como un turista del propio patio,
amigo de divertirse con las cosas exóticas, algo así como esos rubios del Norte que de
paso en Cuba pagan por que aquí les bailen la rumba al gusto de su obscenidad. […]71
Quando, no início dos anos 50, Ortiz se dedica a sistematizar as informações sobre os
instrumentos da música afro-cubana, publicando entre 1952 e 1955 cinco tomos dedicados a este assunto,
já tinha se transformado de explorador em colecionador, de curioso em conhecedor, de caçador em
divulgador. Ficara sabendo que os objetos que tanto chamaram sua atenção no Museu de Ultramar de
Madrid em 1901 não eram autênticos. Os ñáñigos Muñanga, nos tempos da intervenção do governador
Rodríguez Batista em 1889, fabricaram artefatos falsos e os entregaram as autoridades, enquanto
escondiam os verdadeiros na casa de um conhecido marquês de Havana cujo cozinheiro era o Iyamba da
associação (Ortiz, 1995 — Los tambores ñáñigos, p.49). Ficara sabendo também que o Museu de
Antropologia da Universidade de Havana igualmente possuía exemplares falsificados, pois os objetos
doados depois da apreensão de 1902 tinham sido misteriosamente trocados por fac-símiles (Ortiz, 1995
— El ekué, p.17). Ortiz acreditava nestas histórias de resistência e entedia porque em 1936, quando
organizou junto com Gilberto Valdés uma audição pública de tambores batá, os músicos exigiram que se
construísse tambores com medidas levemente alteradas das originais, para distingui-los daqueles
batizados, os consagrados aos deuses (Ortiz, 1995 — Los tambores batá, p.12).
A história da coleção de Fernando Ortiz, que traçamos aqui apenas esquematicamente, e da
relação deste intelectual com o universo pesquisado, é reveladora dos embates e caminhos na definição de
paradigmas da cultura nacional em Cuba. Ortiz foi essencialmente um pesquisador e um promotor
cultural, fundador de importantes instituições e revistas. Mas os seus trabalhos influenciaram
grandemente um conjunto de criadores de diversos ramos artísticos e de variada extração social.
Examinemos, a seguir, a relação de Ortiz e da sua empreitada com alguns integrantes do Grupo Minorista
interessados pela cultura popular como base para a criação de uma arte nacional de vanguarda.
Tarde de pleno sol. Por escenario, la campiña cubana. Al fondo un rústico bohío de
pobres y sufridos campesinos. […] Desde que nuestro automóvil se va acercando a la
finca, el viento nos trae las notas, ora melancólicas y tristes, ora de un sensualismo
primitivo y salvaje, de la música africana.[…]72
Era fevereiro de 1927 e o renomeado pensador espanhol Fernando de los Ríos encontrava-se de
visita em Havana. O cronista “Curioso Parlanchín” — Emilio Roig de Leuchsenring73, da revista
Carteles, relata a expedição de um seleto grupo de artistas e intelectuais vinculados ao Minorismo que
95
acompanharam De los Ríos ao povoado de Marianao. Fernando Ortiz tinha organizado uma audição com
músicos populares da região em homenagem ao filósofo espanhol (figs. 35-36). Além dos mencionados,
integravam a comitiva o crítico Alejo Carpentier, o diretor da Orquestra Filarmônica, Pedro Sanjuán, o
compositor Amadeo Roldán, os artistas plásticos Jaime Valls e Conrado W. Massaguer, a escritora e
artista Lydia Cabrera, os escritores Robeño e Roig de Leuchsenring, o cientista Otto Bluhme e o prefeito
de Marianao, entre outros.
A visita começa de tarde e termina ao pôr-do-sol. Mas a crônica narra um percurso mais
comprido, uma viagem por séculos de história no triângulo entre África, Cuba e Espanha. É o relato de
mais um encontro destas três coordenadas. Os visitantes chegam de carro e penetram num cenário onde o
tempo parece não passar. Entre a palhoça, o galo, os bois e os “sofridos camponeses”, ouve-se a música já
tocando. Pelos sons — que o cronista identifica como africanos — nos colocamos num cantinho da África
transplantado para Cuba. O cronista insiste em desenhar o cenário tropical: “tarde de pleno sol”, começa
dizendo, embora as fotos publicadas mostrem damas encasacadas e homens de paletó, pois tratava-se,
afinal, do início de fevereiro, do manso inverno cubano.
O autor logo se dispõe a traçar um contraste de tempos e espaços: a cidade moderna e o campo
atrasado, o civilizado e o primitivo, o “presente cosmopolita e sem cor” e o “passado cheio de cores,
força, caráter e personalidade”, os “brancos, da nossa raça” e os “negros, da sua raça”. Mas embora
estabelecendo a dicotomia, o eixo da crônica vem a ser o trânsito entre tempos e espaços aparentemente
antagônicos. Porosidade esta que explicava, de uma forma algo oblíqua, certos “detalhes da vida e caráter
cubanos que de outra maneira parecem inexplicáveis”, como a sobrevivência entre “determinadas classes
sociais” de costumes que o progresso e a civilização não conseguiram arrancar, ou a permanência de
certos “hábitos, preconceitos ou instintos ancestrais” ainda arraigados entre as “classes superiores”.
Pelo relato do cronista, a expedição bem cumpriu o propósito de reviver, por algumas horas,
épocas passadas. E coube à música a tarefa de guiar o percurso. A audição transcorreu em três sessões.
Em primeiro lugar, apresentou-se o Sexteto Habanero, conjunto dedicado a interpretação do son, gênero
então em voga nos salões da cidade. O sucesso do Sexteto fundava-se na sua capacidade de transportar os
sons dos bairros populares para os palcos da elite. Representava o projeto de uma Havana moderna e
tropical. Logo foi a vez da rumba e da conga, interpretadas por um conjunto onde só entravam
instrumentos de percussão. Nessa altura, os minoristas começavam a fazer anotações dos ritmos, da
dança, das palavras, enquanto os tocadores — observa o cronista — fechavam os olhos, esqueciam o
mundo, e concentravam-se nas lembranças ancestrais que a música lhes provocava e que logo transmitiam
de volta nos seus cantos. Para o “Curioso Parlanchín” esta música evocava o trânsito da liberdade nas
“florestas africanas” para as dores da escravidão. Finalmente, chegou a hora do ritual abakuá, com seus
96
cantos e saudações no linguajar dos ñáñigos — que só Fernando Ortiz podia compreender. Era a vez do
tempo sagrado e imemorial, que coincidiu com o crepúsculo daquela tarde em Marianao.
Um aspecto fundamental da cena descrita em “Una Tarde Afrocubana”, é o testemunho do
cronista sobre as reações dos presentes. Enquanto a rumba vai se esquentando ele observa:
Curiosos observadores, os escritores e artistas minoristas — que eram os “brancos” ali presentes —
passaram da posição de pesquisador de lápis em riste a “inconscientemente” querer entrar na dança. A
viagem que se iniciava imprimia neles novas marcas identitárias. “Cuando la música cesa y el baile
sagrado termina, volvemos a la realidad y nos damos cuenta de que también en nosotros el canto abacuá
nos infiltró su arrobamiento sagrado” (ibid.).
Significativamente, o ano de 1927, tão crucial para o Minorismo e para a afirmação de uma
estética afro-cubanista, inaugurava-se com este encontro memorável. É um momento de intenso debate
sobre a questão racial em Cuba. No jornal Diario de la Marina são publicados, entre maio e agosto, os 21
artigos que formam Azúcar y Población en las Antillas, de Ramiro Guerra y Sánchez. Neste influente
ensaio, o autor critica o modelo tipo plantation de exploração do açúcar, advertindo sobre os perigos da
importação de negros — de origem haitiana ou jamaicana — para o futuro da nação cubana. O escritor
espanhol Luis Araquistáin, autor de La agonía antillana, publica um artigo em Madrid sobre a ameaça
que representava a importação de haitianos, jamaicanos e chineses para os migrantes peninsulares
residentes na ilha, catalogando este processo como “africanização” da maior das Antilhas. Diante do
ataque de diplomatas cubanos às idéias de Araquistáin, Roig de Leuchsenring sai em defesa do intelectual
espanhol nas páginas de Carteles. Tal revista — cujo chefe de redação era nessa altura o próprio Alejo
Carpentier, sendo Roig de Leuchsenring o subdiretor — fazia eco às preocupações de Ramiro Guerra e de
Araquistáin através de editoriais e caricaturas sobre a “invasão” de antilhanos (figs. 38-39). Em novembro
de 1927, esgrimia contra a governo por autorizar a importação de 14.500 trabalhadores antilhanos pelas
empresas Atlantic Fruit and Sugar of Cuba e United Fruit:
Aterra pensar lo que será de la Nación si continúa permitiéndose, a despecho de todas las
protestas de la conciencia cubana, esas importaciones de elementos procedentes de países
menos civilizados que el nuestro. Si para la labor de tres centrales solamente —el
Tánamo, el Preston y el Boston, los tres pertenecientes, según nuestras noticias, a
capitalistas norteamericanos, se necesitan 14,500 braceros y se autoriza su importación,
resulta lógico suponer que, al llegar la zafra, se extienda ese privilegio a muchos otros
ingenios, multiplicándose por consiguiente el número de haitianos y jamaiquinos
importados. […] Ante esta constante invasión de inmigrantes de ese tipo, ¿cómo
97
sorprenderse de que sea cada día más alarmante el número de españoles que dejan de
venir y, lo que es peor, cada día mayor el número de los ya residentes que abandonan a
Cuba? (Carteles, 27/11/1927, p.9)
Os debates sobre as políticas de imigração em países como Brasil, Cuba e Estados Unidos, que
foram grandes receptores nas primeiras décadas do século XX, colocavam em evidência visões
conflitantes e por vezes contraditórias da questão racial. E, dentro destas polêmicas, ouvia-se forte a voz
dos eugenistas. Em dezembro de 1927, no bojo das discussões sobre a migração chinesa e antilhana,
Havana foi sede da Primeira Conferência Pan-americana de Eugenia e Homicultura, organizada pelo Dr.
Domingo y Ramos. A questão das barreiras à imigração veio à tona neste encontro, marcado pela
presença do líder da eugenia nos Estados Unidos, Charles Benedict Davenport, cujos postulados
extremamente racistas e contra a miscigenação foram debatidos por vários delegados latino-americanos74
(Stepan, 1991, p.177).
Entretanto, nas páginas da recém-criada Revista de Avance e de Social, apareciam os frutos das
novas pesquisas estéticas dos minoristas, onde os motivos afro-cubanos ganhavam um inusitado papel de
protagonista em poemas, desenhos e partituras. As anotações de campo daquela tarde em Marianao
adquiriam forma nos desenhos de Jaime Valls, em La Rebambaramba de Amadeo Roldán e no
manuscrito do primeiro romance de Alejo Carpentier Écue-Yamba-Ó.
Considerando a trajetória de Fernando Ortiz, nota-se que a expedição a Marianao marca uma
mudança no sentido de uma aproximação ao popular. Ainda era bastante recente que, em outubro de
1925, um decreto do presidente Gerardo Machado tinha proibido “em todo o território da República […]
as reuniões e manifestações que circulem pelas ruas das cidades ou povoados […] com o uso do tambor
ou outros instrumentos musicais de sabor africano, ou outros análogos, e em que seus componentes
executem contorções com os seus corpos que ofendam a moral e que seus gritos e cantos perturbem o
sossego público […]” (In: Moore, 1997, p.232). Agora porém, Fernando Ortiz caminhava à margem das
autoridades que outrora lhe proporcionaram objetos confiscados e acesso aos ‘bruxos’ na prisão. Ele não
abandonara o seu espírito científico de colecionador, mas naquela tarde a etnografia caminhava à serviço
da arte. Os minoristas registravam motivos para alimentar a sua própria inspiração. Lembravam de
Picasso perante as máscaras africanas no antigo Museu do Trocadéro em Paris. E as páginas de Social
publicavam desenhos de corpos nus contorcidos pelos ritmos afro-cubanos.
Robin Moore observa que entre os intelectuais mais interessados em pesquisar as manifestações
culturais da população afro-descendente nos anos 20 destacam-se aqueles que haviam morado na Europa,
como Ortiz, Roldán, e Valls — todos presentes na excursão antes referida (1997, p. 203). Certamente
pode-se pensar que a experiência européia deixara marcas profundas no olhar estético e social destes
intelectuais, mas é importante lembrar que, nessa altura de 1927, o contato mais intenso dos minoristas
98
cubanos com os movimentos de vanguarda na Europa dava-se principalmente através de revistas e outras
publicações. Pelas traduções da Revista de Occidente entravam em contato com as idéias de Spengler e de
Frobenius. Mais tarde, a partir de 1928, a presença de Carpentier em Paris articulava um forte nexo entre
as pesquisas dos artistas cubanos e todo o movimento que James Clifford catalogou como surrealismo
etnográfico, ligado à publicação da revista Documents (1929-1930).
Aquela tarde em Marianao teve importantes desdobramentos, entre outras razões, porque foi uma
experiência coletiva que articulou preocupações e curiosidades que andavam mais ou menos dispersas.
James Clifford chama a atenção para a historicidade do significado que se outorga a objetos ou
manifestações de culturas outras, continuamente redefinidos segundo complexos sistemas taxonômicos
(Clifford, 1988, p.226). Em fevereiro de 1927, Emilio Roig de Leuchsenring confessa publicamente ser
um homem que detesta a ópera e que, por outro lado, gostava de freqüentar o cinema. Ele descobre que
Alejo Carpentier e o maestro Pedro Sanjuán compartilhavam tais preferências. Mas naquela viagem a
Marianao os três amigos chegam a uma conclusão que transformava os paradigmas estéticos que
primavam em Havana até então: a música afro-cubana era mil vezes superior à ópera:
Y es que veíamos en esos cantos y bailes primitivos y salvajes una riqueza folklórica
extraordinaria; una expresión ruda, pero sincera y humanamente lograda por la música,
del alma de un pueblo y una raza, de sus dolores y tristezas. Allí no había gorgoritos
artificiosos ni agudos de malabaristas de la voz, ni ridículas escenas en las que se falsea
cursimente la vida, la historia y la naturaleza humana, con una ausencia absoluta de
realismo y de arte. En esta música africana palpitaba la vida, descarnadamente, sin
adornos ni retoques, con toda la fuerza emotiva y lírica propias de la tragedia que en sí
lleva la raza negra, oprimida y explotada, cuyos siglos de esclavitud recuerda y llora aún
en esos cantos y bailes.75
Anoitecia e as silhuetas na frente da palhoça sumiam na nuvem de poeira que levantava o Packard
último tipo de Jaime Valls (1883-1955). Mas as imagens permaneciam nítidas na memória daquele artista
que após vários meses completaria uma vintena de desenhos e pinturas sobre motivos afro-cubanos.
Social reproduzia cinco deles em dezembro de 1927, junto com um artigo de Roig de Leuchsenring
aplaudindo a nova produção de Valls, a qual, segundo o crítico, assinalava o caminho que os artistas
cubanos tinham de seguir. Robin D. Moore chamou a atenção para um processo de “nacionalização da
negritude” no discurso cultural cubano dos anos 20 (Moore, 1997). É interessante observar, por um lado,
como a revalorização do negro cubano e suas manifestações culturais foi concomitante com a forte
oposição à incorporação dos imigrantes haitianos e jamaicanos ao tecido social cubano, como vimos
anteriormente. Se o negro cubano tornava-se nacional, aqueles outros eram rejeitados como estrangeiros
— o que não sucedia com os migrantes peninsulares, como o próprio Valls, que era catalão de nascimento
e se naturalizara cubano nesse mesmo ano de 1927.
99
Roig de Leuchsenring exaltava o realismo de Valls. Seu grande acerto era enxergar o que estava ali
patente e ninguém enxergava. Na verdade, desde os anos 10 Valls incorporava personagens afro-cubanos
nos seus desenhos de anúncios publicitários, sem deixar de ser um artista economicamente bem-sucedido
que gostava de oferecer festas e saraus no seu ateliê para os amigos minoristas.76 Os desenhos da série de
1927, feitos já com intenções de serem publicados em livro e expostos em Nova Iorque, Paris e Madrid,
revelam um olhar distanciado de quem representa um outro, embora este lhe seja fascinante. Uma visão
etnográfica talvez, onde prima o gosto pelos traços físicos, os detalhes do rosto — Cabeza de negro
cubano e Cabeza de mulata achinada, o movimento dos quadris — Negro que espera e Ritmo de baile
afrocubano (figs. 24; 26-28). Curiosamente, um dos desenhos mais admirados por Roig, o Negro que
espera, é interpretado por este como a representação do criminoso negro do submundo, “cheio de ódios
ancestrais e desejos de vingança”77. Em outras palavras, segundo a leitura de Roig, seria uma versão
pictórica dos negros da “hampa afrocubana” analisados por Ortiz.
No âmbito musical, o pioneiro na incorporação de elementos afro-cubanos numa linguagem de
vanguarda, o jovem compositor Amadeo Roldán (1900-1939), também esteve presente em Marianao.
Roldán, de mãe cubana mulata e pai espanhol, passou a infância na Espanha e chegou a Cuba já
adolescente em 1919. Carpentier rememora tê-lo conhecido por volta de 1923 no hotel Lafayette, onde os
minoristas se encontravam diariamente e Roldán apresentava-se como violinista. Juntos passaram a
aventurar-se pelos bairros marginais em busca de festas profanas ou sacras onde pudessem escutar os
gêneros musicais afro-cubanos, com seus prodigiosos ritmos que tanto lhes chamavam a atenção.
Carpentier relata, por exemplo, uma visita de nove horas a um baile ñáñigo no bairro de Regla em 1928,
ao qual assistiram em companhia do compositor mexicano Tata Nacho. Roldán fazia anotações numa
folha de pauta quando de pronto foi enfrentado pelo Iyamba, que não gostou daquela prática e os
convidou a abandonarem o templo (Carpentier, 1969, p.100).
Roldán impactou o ambiente cultural havanês com sua primeira obra sinfônica, a Obertura sobre
temas cubanos, de 1925, e no ano seguinte com os Tres pequeños poemas. Mas foi o balé L a
Rebambaramba, trabalhado precisamente nesse ano de 1927, a peça insigne da nova estética musical que
se inaugurava. A polêmica que provocou a sua estréia em 1928 foi descrita pelo escritor Francisco Ichaso
na Revista de Avance como “a nossa pequena batalha de Hernani”. A arte de Roldán era rejeitada pela
elite cubana pois representava uma postura diferente perante o processo civilizador, expressada
esteticamente. Para Ichaso, Roldán era o verdadeiro missioneiro artista — aquele que sabe aproveitar o
valor do primitivo, mas se cuida de deixá-lo intacto, de não catequizá-lo.
100
canciones aborígenes. En presencia del salvaje, se guardará de catequizarlo. Dejará
intacto su salvajismo y de él sacará precisamente elementos inéditos para su arte. Porque
el salvajismo es el único valor artístico del salvaje.78
Francisco Ichaso não pôde desfrutar daquela sessão em Marianao e aparentemente ainda não
descobrira os encantos da música popular afro-cubana. Admirava e aplaudia, porém, a força da música de
Roldán, compositor que era capaz de “salvar” os ritmos “desnudos e pueris” e transformá-los em matéria
artística. O interesse nesse universo outro era principalmente artístico. Para revelar-nos “essa cidade
africana que vive latente, tácita nas nossas cidades brancas”, bastava a música de Roldán. Ichaso via o
mundo popular como as ruínas de tempos imemoriais (ele compara Roldán ao arqueólogo Schliemann ,
que pesquisou as ruínas de Tróia), cuja vida latente e selvagem deveria permanecer intacta.
Mas Roldán não era um missioneiro solitário, como aparece representado no escrito de Ichaso. Já
o surpreendemos ao lado de Carpentier noutras andanças. E naquela tarde em Marianao, além do autor do
libreto de La Rebambaramba, fazia-se acompanhar pelo maestro Pedro Sanjuán, regente da Filarmônica
que estrearia a suíte do referido balé no ano seguinte. Sanjuán era espanhol e quase ao chegar a Cuba
tinha fundado a Orquestra Filarmônica de Havana, que logo se tornara a principal promotora da música
sinfônica moderna. Sanjuán era também um compositor que, seguindo as tendências de autores patrícios
como De Falla e Turina, incorporava nas suas obras motivos do folclore musical espanhol, porém
reinterpretados a partir de novas possibilidades harmônicas, como exemplificava seu poema sinfônico
Campesina, de 1925. Depois de alguns anos em Havana, a música afro-cubana ganhara definitivamente
seu interesse. Em 1929 estreava a primeira obra que revelava tal conquista: Babaluayé. Ana Krusa, da
revista Musicalia, comenta jocosamente o giro que esta obra marcava na trajetória de Sanjuán: “De la
meseta castellana y los cantos de trilla pasa a los cabildos afrocubanos y a los bailes brujos, en un salto
que equivale a un vuelo sin etapas desde el Greco a Gauguin”79. Como Roldán, Sanjuán expandia a
orquestra com uma bateria de instrumentos de percussão nativos, fascinado como estava pelos ritmos dos
gêneros afro-cubanos, segundo confessa em artigo de 1930:
Hasta hace muy poco tiempo no nos habíamos dado cuenta de que las razas nigerianas,
eminentemente dispuestas para la música, realizaban el sorprendente milagro de
estilización en aquello que hemos considerado siempre de baja calidad: el ruido. El ruido
— ello no es hoy un secreto para nadie — está formidablemente organizado en la música
de origen africano. Y junto con los ritmos que hacen del ruido una maravilla exótica están
sus cantos autóctonos de extraña gama oral, bellísimos a fuerza de ser profundo el brote
que los impulsa, rebeldes a la captación pero sugestivos, atrayentes como región
inexplorada. […] El germen de sus acentos tiene hondas, muy hondas raíces: se remonta a
los tiempos en que el hombre no había calibrado el sonido, no había dividido sus
vibraciones, no había establecido sistemas convencionales.80
101
Quando Alejo Carpentier rememorava em Paris a maravilhosa tarde afro-cubana em Marianao,
que deixara marcas tão profundas na obra de Valls, Roldán e Sanjuán, outros dois artistas se lamentavam
de tê-la perdido: o compositor Alejandro García Caturla e o pintor Eduardo Abela. Transcorria o ano de
1928 e a moda da arte africana tomava conta da cidade das luzes. Por insistência de Carpentier, os três
amigos visitavam exibições de arte africana e conversavam sobre os bembés de Remedios e os ñáñigos de
Regla e Guanabacoa. Eduardo Abela nada conhecia destas manifestações, mas no final daquele ano
surpreendeu ao crítico e amigo Carpentier com uma série de óleos inspirados em temas afro-cubanos.
Perante os olhos admirados do escritor apareciam as comparsas populares do carnaval, os rituais de
santería, as procissões marítimas em louvor à Virgem de Regla, os tambores e os bailes afro-cubanos,
registrados em quadros como o célebre El triunfo de la rumba (fig. 25). “Abela chegou de súbito à mais
completa e inesperada revelação de si mesmo”, afirmava Carpentier após a exposição do pintor na Galeria
Zak de Paris. Em crônica enviada daquela cidade para a revista Social, em janeiro de 1929, escrevia:
La comparsa acababa de estallar bajo sus pinceles. En una tarde, con ese cuadro
trepidante, furioso, vehemente, como una página de La Rebambaramba de Roldán, había
nacido un nuevo concepto de la pintura cubana. […] Abela encontró su verdadera vía.
El criollismo de Abela es criollismo en profundidad. Nada más alejado de sus
finalidades que los anhelos del realismo. Abela no se dispone a dejar estampas para
ilustrar manuales de etnografía pintoresca. Su pintura es ante todo pintura. […] Lo cierto
es que ha logrado traducir hondamente la poesía del Trópico, en sus cuadros de técnica
avanzadísima. Sus concepciones son muy cubanas, sin recurrir al menor ardid fotográfico.
Representan, si queréis, la realidad superior de las cosas; esa realidad maravillosa e
invisible que es, en el fondo, la única realidad que queda de todo lo que vemos. Abela nos
sugiere lo tangible, utilizando metáforas plásticas. Su lenguaje es, pues, lenguaje de poeta.
Vosotros podréis afirmar que nunca habéis visto una comparsa como la de Abela.
Pero seréis justos en reconocer que cada vez que habéis imaginado el espectáculo de una
comparsa, lo habéis visto mentalmente, tal cual lo fijó el artista en su concepción
intrépida y fundamental.
Abela nos ha revelado un aspecto mágico de las cosas cubanas.
Ao contrário de Jaime Valls, Abela não tinha visto. Mas ele intuíra uma realidade que, para alguns
intelectuais da época, era mais apreensível através da imaginação do que pelos olhos. Para Carpentier, a
verdadeira essência morava no interior do artista, cuja memória cultural latente era preciso revelar. Mas o
certo é que se Abela, sob influência de Carpentier e de García Caturla, conseguira no meio parisiense
descobrir o fascínio pela cultura popular afro-cubana, de volta a Cuba ele não pôde ver nem intuir e
abandonou tal temática da sua produção artística. Anos mais tarde o artista arrependia-se de tal sina e
explicava que o meio social cubano da época era responsável por ela:
102
mencionado si no sabía cómo comportarme en los lugares donde se encontraba? Y he
dicho solo porque... no había una sola persona, entre las que yo trataba entonces, que me
hubiera confesado su interés por conocer por dentro esos asuntos... Y estaba también el
miedo a lo negro, el temor a las costumbres que, tal vez por ser casi desconocidas, o mal
conocidas, eran tenidas por vulgares ... no puedo dejar de mencionar que se daba el caso
de aquellos para quienes un negro era un delincuente, o, al menos, un delincuente en
potencia. (In: Moore, 1997, p.270)81
103
Tendo se trasladado a Havana em 1922 para prosseguir estudos em direito, García Caturla atuava
como pianeiro nos cinemas da cidade, tocando ao lado de virtuoses da música popular como o flautista
Miguel Vázquez, El Moro. Era um prolífico compositor de danzones, valsas, foxes e outros gêneros
populares e ensaiava os primeiros prelúdios para piano e violino quando, em 1924, conheceu a Alejo
Carpentier, então chefe-de-redação da revista Carteles. Concomitantemente, passou a estudar harmonia e
contraponto com o compositor Pedro Sanjuán e atuava como segundo violino da Orquestra Sinfônica de
Havana sob direção de Gonzalo Roig, que estreou a sua primeira obra sinfônica em 1925, o Minuet para
orquestra. A partir desse ano, estimulado pela amizade de Carpentier e pelas obras de Roldán, Caturla
assumiu com unhas e dentes o credo de um vanguardismo musical inspirado nos gêneros afro-cubanos.
Logo apareceram os primeiros esboços do que viriam a ser as Tres danzas cubanas para orquestra,
que levaram o compositor aos Festivais de Música Ibero-Americana em Barcelona em 1929. A Danza
Lucumí era publicada na sua primeira versão para piano por Social em abril de 1926, e dois anos mais
tarde a revista dava a conhecer a Danza del Tambor, dedicada a Moisés Simons, autor do popular El
Manisero. Em 1927, Caturla projetava a edição de um caderno de danças, intenção que revelava por carta
ao amigo Carpentier: “Espero incluir no caderno as danças: Lucumí, Tambor, Negra, Conga e uma nova
que estou trabalhando com ritmos da região e que penso dedicar a você” (García Caturla, 1978, p. 24).
Por outro lado, criava um Poema negro, que dedicava a Fernando Ortiz, a quem ainda não conhecia
pessoalmente, em homenagem aos escritos deste último sobre folclore afro-cubano. E nessa linha
continuaria o compositor explorando as tradições musicais afro-cubanas e experimentando com novas
harmonias em obras que discutirei posteriormente, como Bembé, Dos poemas afrocubanos, Bito Manué,
La Rumba, Berceuse para dormir un negrito, Obertura cubana, e a ópera inconclusa Manita en el Suelo.
A intimidade de Caturla com o universo afro-cubano era percebida com estranhamento até por
amigos e defensores, como a professora espanhola María Muñoz de Quevedo, que junto com seu marido
Antonio Quevedo era responsável pela publicação de Musicalia. Em artigo de homenagem ao compositor
pouco depois da sua inesperada morte, Muñoz de Quevedo afirmava:
Una terrible fuerza ancestral, que era como un demonio interior de Caturla, le
llevó siempre a los ritmos y melodías afrocubanos, y esta música primitiva adquirió en sus
obras sinfónicas un poder de seducción y un carácter de misterio pagano. Manejaba los
temas negros con la misma habilidad que manejaba Bach los temas de fuga, y eran tan
suyos dentro de la obra que apenas podemos distinguir entre un canto lucumí auténtico y
un tema de su pura invención. Este es un fenómeno que tal vez salga del terreno musical y
entre en el biológico. Caturla, que era un perfecto ejemplar del hombre blanco, un tipo
que pudiera pasar por sajón o escandinavo, tenía un resonancia espiritual por la raza de
color que convive con nosotros en Cuba, que sólo puede compararse con la afinidad, en el
sentido de la investigación folklórica y costumbrista, que tiene Don Fernando Ortiz con
dicha raza. Tal vez sin esa afinidad espiritual su música hubiera caído en el pastiche o en
la imitación.84
104
Um aspecto não abordado na literatura sobre Caturla é sua a atuação como juiz nos casos sobre
‘bruxaria’. Documentos guardados na coleção de Fernando Ortiz nos revelam que, apesar de ter sido
Caturla assíduo em rituais e toques de santo, ele chegou a condenar pessoas por práticas relacionadas com
as manifestações religiosas afro-cubanas. Em 1937, o compositor enviava a Fernando Ortiz um envelope
com três fotos de negros ‘bruxos’, dois homens e uma mulher. Um deles é identificado no verso da foto
com a seguinte informação:
Mesmo entre os maiores entusiastas do afro-cubanismo nas artes e advogados da tolerância nas relações
raciais dentro da sociedade, como Caturla e Ortiz, a percepção do negro como um outro nos anos 30
revela-se cheia de ambivalências e contradições. A página “Ideales de una raza”, publicada entre 1928 e
1931 no suplemento dominical do Diario de la Marina sob direção de Gustavo Urrutia, é um espaço
interessante para observar a complexidade dos discursos sobre ‘raça’ em Cuba na época e as visões
subjacentes na produção artística do afro-cubanismo. A página abriu a discussão sobre a problemática do
racismo, contando com a participação de intelectuais negros como Juan Gualberto Gómez, Lino Dou e
Pedro Marco, além de Urrutia; por outro lado, foi porta-voz da nova poesia, música e produção plástica
de inspiração negrista. Foi nesse espaço que apareceram pela vez primeira, em abril de 1930, os Motivos
de Son, de Nicolás Guillén, que tantas reações provocaram em diversos. Ali publicou-se também uma
“Carta Negra” de outro dos mais destacados minoristas, Juan Marinello, cujas opiniões atestam a
dificuldade que sofriam alguns intelectuais para se livrar de visões muito assentadas sobre a existência de
traços psicológicos particulares a cada ‘raça’, embora sentindo-se afetiva e politicamente ligados à
população afro-descendente da ilha:
[…] No fueron manos blancas las que me ampararon en los años en que se forma el
hombre y temo como a nada el día en que esas manos mulatas vayan a tierra. Yo debo a la
raza negra larga gratitud. ¿Cómo no me han de preocupar — de doler muy adentro — sus
tribulaciones? ¿Cómo no he de festejar los progresos que se anotan en su página dominical
del Diario de la Marina?
¿Y cómo si me unen a ustedes vínculos tan tiernos y si estimo además que importa
de modo esencial en la marcha de Cuba la definitiva colaboración de los blancos y los
105
negros, no les he expresado hasta hoy mis simpatías? Porque he temido a equivocaciones
en la interpretación de mis palabras y esto me será siempre doloroso.
[…] Un ensayo sobre la cuestión del negro en Cuba habría de comenzar por
proponerse el aislamiento riguroso de lo bueno y lo malo que en nuestra evolución
debemos al hombre de color. Habría que señalar las taras que nos vinieron de la vida
africana — imprevisión, pereza, irresponsabilidad... y pesar también los elementos
benéficos —sinceridad, vigor físico, lealtad — ... ¿Tiene culpa el negro de hoy de
imperativos que se integraron en un tipo de vida distante — opuesta — a la que ha de vivir
ahora? ¿No tiene el blanco taras muy singulares? Pero quien entrara en el estudio
cuidadoso —científico— de estos módulos tendría muy pronto la feroz enemiga de no pocos
negros, acostumbrados a la dulce e insincera cantilena del político criollo. […] Por eso no
nos queremos atrever... 86
A produção de ensaios sobre a questão racial na Cuba dos anos 20 e 30 era, sem dúvida, uma
tarefa bastante arriscada, em virtude das tensões sociais existentes e pelas próprias ambivalências dos
intelectuais ‘brancos’ e ‘negros’ em torno desta questão. A via literária, plástica e musical oferecia
caminhos de inovação estética onde a ambivalência podia morar com comodidade entre metáforas, cores
e sons. Os primeiros trabalhos literários de Alejo Carpentier — sem contar os escritos da adolescência —
foram gestados naquele ano de 1927: o romance Écue-Yamba-Ó, esboçado na prisão de Havana durante o
mês de agosto, e um conjunto de textos para serem musicados: libretos para balé e poemas para canções.
Em quase todos estes escritos podemos ver os traços das lembranças da tarde afro-cubana em Marianao.
No entanto, para Alejo Carpentier, a demonstração daquele dia não trouxera tantas novidades. Ele já tinha
assistido a festas e rituais nos bairros de Regla e Guanabacoa. Além disso, o convívio com os camponeses
durante os anos da infância — que transcorreu principalmente nos arredores de Havana — tinha lhe
despertado o interesse pela cultura popular. No prólogo à reedição de Écue-Yamba-Ó, em 1983,
Carpentier rememora a sua convivência com os personagens que logo vieram a integrar o romance. Para
escândalo das famílias vizinhas, Seu Jorge Julián Carpentier deixava o filho Alejo brincar com os
“pretinhos” nas suas “precárias palhoças”.
Por outro lado, na própria prisão de Havana, onde Carpentier redigiu os primeiros rascunhos de
Écue-Yamba-Ó, o autor trava contato com prisioneiros acusados de bruxaria. No intervalo entre sair da
prisão e partir para Paris, o escritor viaja à região oriental da ilha onde visita o terreiro de Taita José e
consegue fotografar vários altares, cujas imagens aparecem na primeira edição do romance, de 1933, com
a explicação que segue:
Las fotos que acompañan estas líneas fueron tomadas por mí en el otoño de 1927 —
en el ‘Cuarto Fambá’ o cuarto prohibido — de un brujo negro, Taita José, cuyo bohío,
ostentando unos cuernos de chivo, se alzaba en una de las regiones más aisladas de la
provincia de Santiago de Cuba.
Los negativos de estas fotos, de las que sólo existe una copia, fueron destruidos en
presencia del brujo. Me apresuro, sin embargo, a decir que no es necesario ir tan lejos, en
106
Cuba, para encontrar a brujos negros. Los hay en las puertas mismas de La Habana. Pero
éstos se muestran tan desconfiados de los blancos, que hubiese sido imposible fotografiar
las imágenes de sus altares.87
Chegando a Paris Carpentier ganha fama de conhecedor dos ritos religiosos afro-cubanos. Sobre o
tema publica os artigos “Chez les sorciers de Cuba” na revista Comoedia e “Lettre des Antilles” em Bifur,
em 1929, e “Images et prières nègres” em Le Phare de Neuilly, em 1933. Mas o tempo lhe revelava que
apesar das incursões em templos e festas afro-cubanas, seu olhar não deixaria de ser externo. Refletindo
sobre os protagonistas de Écue-Yamba-Ó, décadas depois da sua publicação, o autor conclui:
Por outro lado, em La consagración de la primavera — um dos seus últimos romances, surgido em 1978
— Carpentier transporta aquela avidez voraz pela música e a dança afro-cubana dos seus anos de
juventude para a personagem de uma estrangeira: Vera, bailarina russa que chega a Havana em
companhia do cubano Enrique — o arquiteto protagonista com fortes traços autobiográficos. Guiados por
um trompetista, ex-combatente da República espanhola, Enrique e Vera se trasladam até a casa do cantor
Bola de Nieve em Guanabacoa para assistir a uma festa, na qual presenciam danças profanas e rituais,
como a do diablito ñáñigo e a dos ararás. De forma similar ao que revelam os relatos dos minoristas do
final dos anos 20, como aquele do “Curioso Parlanchín”, Vera fica admirada com a sensualidade carente
de lascívia dos bailes profanos, e comovida perante o sagrado, sentindo estar diante de um dos ritos mais
antigos da humanidade. O motor de Vera era também estético. Ela procurava a força de movimento que
pudesse acompanhar a música de Stravinsky em La consagración de la primavera, cujas montagens na
Europa tinham fracassado. Achara a resposta na casa de Bola de Nieve: “Era esto lo que pedía la música
de Stravisnky: los danzantes de Guanabacoa, y no los blandengues y afeminados del ballet de Diaghilev”
(Carpentier, 1978, p. 260). Mas a revelação de Vera já não respondia cabalmente ao credo de Carpentier,
cuja procura identitária nutria-se agora de viagens mais introspectivas — sem menosprezar, no entanto, as
profundas marcas no seu olhar de criador deixadas por experiências vivenciais, tais como as viagens ao
México em 1926, ao Haiti em 1943 e ao Orinoco na Venezuela em 1947.
Pouco menos de dois anos depois da tarde afro-cubana em Marianao, Carpentier e Fernando Ortiz
acompanhavam-se em outra aventura etnográfica e musical. Desta vez nada menos que na pequena rua
Blomet, na cosmopolita cidade de Paris. O guia da expedição era agora Carpentier que, como havia
aprendido a fazer em Havana, perscrutava as ruas da cidade das luzes em busca de sons desconhecidos
107
que o transportassem a novas paisagens e tempos da vida humana. Assim descobriu aquele pitoresco baile
colonial, onde os migrantes das Antilhas francesas dançavam a contradança da Martinica, o merengue e a
mazucamba... sons que “faziam crescer um bananal” em plena urbe.88 O escritor quis mostrar ao
admirado amigo Fernando Ortiz, que se encontrava de visita em Paris, a autenticidade daquele espaço
onde “nenhum ritmo de charleston ou de tango quebrava a harmonia estabelecida entre as danças e as
vestes típicas dos presentes.” “Toda la vida alegre de ambas márgenes del Atlántico ríe con sonoridades
africanas: toda ella gira en un vértigo dominado por el tamboreo negro. En las noches de Europa y
América, bajo luminarias eléctricas, como en los plenilunios del Níger o del Congo, todo es un rito
lúbrico de tam-tam”, observava Ortiz em crônica publicada em Social.89 Acompanhado de Carpentier,
Mariano Brull e o compositor mexicano Manuel Ponce, Ortiz tinha desfrutado nos cabarés da cidade da
riqueza percussiva das músicas antilhana, berbere e turca.
Para os jovens intelectuais e artistas cubanos da geração dos minoristas, a descoberta do mundo
cultural das classes subalternas equiparava-se em termos estéticos à descoberta das novas linguagens das
vanguardas européias. No diálogo entre terreiros havaneses e estúdios surrealistas parisienses articulava-
se um olhar estético sobre o mundo que, de forma singular, permeia a trajetória criativa de um artista
como Carpentier.
108
‘Carnaval Carioca’. Está saindo. […] (In: Moraes, 2000, p.84-85)
O encontro inaugural de Mário de Andrade com o carnaval de Rio de Janeiro — certamente uma
das primeiras e mais intensas experiências de Mário com a cultura popular — ficou registrado em dois
instigantes escritos, ambos dedicados ao poeta Manuel Bandeira: a citada carta de fevereiro de 1923 e o
poema “Carnaval Carioca” do mesmo ano, logo publicado em Clã do Jaboti (1927)90. Para além das
complexas e ambivalentes visões sobre o popular que o escritor possuía na época, as quais podem ser
observadas nestes textos, revela-se também uma interessante reflexão sobre a sua própria identidade
como intelectual modernista brasileiro perante a descoberta do carnavalesco. Quem se firmava como
jovem promessa entre os iconoclastas vanguardistas do Brasil, reunidos exatamente um ano antes no
saguão do suntuoso e marmóreo Teatro Municipal de São Paulo, agora encontrava-se a céu aberto, entre a
multidão ardente reunida em frente ao Hotel Avenida “na mais pujante civilização do Brasil” (Andrade,
1980, p.114).
[…]
Carnaval...
Minha frieza de paulista,
Policiamentos interiores,
Temores da excepção...
A primeira sensação foi a surpresa. O jovem intelectual paulista de 29 anos de idade não conhecia o
carnaval carioca, nem era capaz de imaginá-lo. A segunda foi a repugnância. Mas deixando de lado seus
“preconceitos eruditos”, começara a observar e a compreender o que primeiro lhe parecera vulgar e
ridículo. Avistava-se agora com as pupilas de uma menina que passava comentando: “Pobre do moço
olhando as fantasias dos outros”. E então se reconheceu poeta, com a heróica missão de enaltecer aquela
cena do absorvente carnaval:
109
Eu bailo em poemas, multicolorido!
Palhaço! Mago! Louco! Juiz! Criancinha!
Sou dançarino brasileiro!
Sou dançarino e danço! E nos meus passos conscientes
Glorifico a verdade das coisas existentes
Fixando os ecos e as miragens.
Sou um tupi tangendo um alaúde
E a trágica mixórdia dos fenômenos terrestres
Eu celestiso em euritmias soberanas,
Ôh encantamento da Poesia imortal!... (p. 113)
A essência, a pureza do carnaval estava na rua, revelada na dança de uma jovem negra. Nem lasciva, nem
sensual, a moça dançava com religião. “Não olhava pra lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime.” Em
novembro de 1924, Mário ainda lembrava dela e contava pro novo amigo, o poeta mineiro Carlos
Drummond de Andrade: “Aquela negra me ensinou o que milhões, milhões é exagero, muitos livros não
me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade” (Andrade, 1982, p.5). No poema, ele descreve a cena da sua
revelação:
Mais ainda do que a escuta de um ritmo empolgante ou uma singular melodia, mais do que a
observação de excêntricos figurinos, o carnaval carioca provocou em Mário reflexões sobre o sentido da
vida. O encontro com a cultura popular, naquele carnaval de 1923, foi o estopim de uma convicção
fundamental que o acompanhou em toda a sua trajetória pessoal e criativa. Como compartilha com
Drummond naquela primeira e significativa carta de 10 de novembro de 1924: “Só há um jeito feliz de
viver a vida: é ter espírito religioso” (op.cit., p.3). Isso ele aprendeu com gente “baixa e ignorante”, como
confessa ao amigo mineiro: “Fique sabendo duma coisa, se não sabe ainda: é com essa gente que se
aprende a sentir e não com a inteligência e a erudição livresca. Eles é que conservam o espírito religioso
da vida e fazem tudo sublimemente num ritual esclarecido de religião” (ibid., p.5).
No fim do carnaval “o poeta sente-se mais seu. / E puro agora pelo contato de si mesmo […] O
poeta dorme sem necessidade de sonhar” (Andrade, 1980, p.121). Mário de Andrade descobriu no
carnaval um espetáculo desconhecido de gestos, sons, cores e tipos humanos. A realidade era-lhe mais
impactante do que o sonho. E a realidade trazia-lhe uma revelação da sua própria humanidade, da sua
110
própria brasilidade. Daí em diante, aquelas imagens viajariam com ele, convivendo e tomando espaço dos
preconceitos eruditos na mala do Mário artista e pesquisador.
O primeiro fruto do encontro de Mário de Andrade com a cultura popular, enquanto realização
artística, foi o conjunto de poemas reunidos em Clã do Jaboti, publicado em 1927. As três raças era o
título original imaginado pelo autor para este projeto de livro91, que incluía os versos criados na esteira de
“Carnaval Carioca”, aos quais Mário se referia como seus “poemas brasileiros”. A diversidade das
paisagens e da população do imenso Brasil aparecia em versos, revelando o desejo de apreender
geografias distantes, compatriotas desconhecidos. Nos “Dois poemas acreanos”, esta vontade de conhecer
o outro, se faz pungente, lancinante:
[…]
Que dificuldade enorme!
Quero cantar e não posso,
Quero sentir e não sinto
A palavra brasileira
Que faça você dormir...
[…]
Seringueiro, seringueiro,
Queria enxergar você...
Apalpar você dormindo,
Mansamente, não se assuste,
Afastando esse cabelo
Que escorreu na sua testa.
Algumas coisas eu sei...
Troncudo você não é.
Baixinho, desmerecido,
Pálido, Nossa Senhora!
Parece que nem tem sangue.
Porém cabra resistente
Está ali. Sei que não é
Bonito nem elegante...
Macambúzio, pouca fala,
Não boxa, não veste roupa
De palm-beach... Enfim não faz
Um desperdício das coisas
Que dão conforto e alegria.
111
[…]
Me sinto bem solitário
No mutirão de sabença
Da minha casa, amolado
Por tantos livros geniais,
“Sagrados” como se diz...
E não sinto os meus patrícios!
E não sinto os meus gaúchos!
Seringueiro, dorme...
E não sinto os seringueiros
Que amo de amor infeliz...
[…] (Andrade, 1980, p. 151-152)
Ao olhar aquela moça negra dançando no carnaval, Mário percebera claramente a vontade de
apropriar-se de uma sabedoria que estava fora dos livros, que estava na experiência humana das classes
subalternas. Aqui, novamente, ele manifesta a insuficiência da cultura livresca e a necessidade de ver e
apalpar. Nem por isso deixa de apresentar a visão que fazia do outro, mesmo sem conhecê-lo. A descrição
dos traços físicos do seringueiro dista bastante da que encontramos em relação aos afro-brasileiros na
escrita andradiana da época. A apreciação do seringueiro é bem negativa: um pobre coitado, porém
resistente. Do outro lado, temos o exemplo de Ellis e Dora, personagens do conto “Túmulo, túmulo,
túmulo”, de 1926, incluído em Os contos de Belazarte:
Ellis era preto, já disse... Mas uma boniteza de pretura como nunca eu tinha visto assim.
[…] Com dezenove anos sem nem um poucadinho de barba, a epiderme de Ellis era um
esplendor. Não brilhava mas não brilhava nada mesmo! […] Era doce, aveludado o preto
de Ellis... A gente se punha matutando que havia de ser bom passar a mão naquela cor
humilde, mão que andou todo o dia apertando passe bem de muito branco emproado e filho
da mãe.
Você não imaginou que coisa mais bonita Ellis e Dora juntos! Mulatinha lisa, lisa, cor de
ouro, isto é, cor de óleo de babosa, cor de olhos de Ellis. E nos olhos então todo esse
pretume impossível que o medo põe na cor do mato à noite. […] Que gostosa Dora! Era
uma pretarana de cabelo acolchoado e corpo de potranquinha independente. […] Tinha
uma fineza de S espichado, que fazia ela parecer maior do que era, uma graça flexível...
(Andrade, 1980b, p. 88-89; 94)
A beleza estonteante de Ellis e Dora contrasta com a sua fragilidade e vulnerabilidade, que se revela no
conto com a doença e a morte súbita e inevitável. Tanto a representação deles quanto a do seringueiro
estão impregnadas de uma espécie de afeto paternal — ele sente vontade de lhes passar a mão, de
acalentá-los. A herança da cultura patriarcal na visão de Mário destes outros poderia ser examinada com
mais detalhe particularmente na relação entre o narrador de “Túmulo, túmulo, túmulo” e o seu criado
Ellis.
112
Manuel Bandeira, o principal interlocutor do Mário no processo de polir os poemas de Clã do
Jabuti e de refletir sobre o seu sentido estético e social, se entusiasmava com as realizações do amigo e
compartilhava com ele o desejo de expressar e sentir o Brasil:
Todas essas coisas da terra que você diz tão amendoim-torradamente […] eu sufocava de
dizer. Não sabia como. Você achou como. Que vontade tenho que você viaje ao Norte, veja
os engenhos, o Pará e Amazonas, e depois, o Rio Grande do Sul. Sinto que há em você a
possibilidade de mais uns 4 ou cinco longos poemas como o ‘Carnaval carioca’ e o
‘Noturno de Belo Horizonte’. Este carnaval, num baile do Bridge-Club de Petrópolis tive a
sensação panorâmica do Brasil e que bruta emoção senti vendo aquele povo dançar tão
brasileiramente! (Andrade, 2000, p. 195)
“Carnaval Carioca” e “Noturno de Belo Horizonte” representavam, para Bandeira, a realização inaugural
do “grande poema brasileiro”. Eram precisamente estas poesias o fruto dos primeiros encontros
significativos de Mário de Andrade com a cultura popular brasileira fora da sua cidade natal e suas
imediações: o primeiro carnaval no Rio de Janeiro, em 1923, e a viagem a Minas Gerais durante a
Semana Santa de 1924, em companhia de vários artistas modernistas como Tarsila do Amaral, Oswald de
Andrade e do poeta francês Blaise Cendrars.
Esta viagem a Minas, como vimos na expedição a Marianao no caso cubano, foi uma experiência
de descoberta coletiva motivada pela visita de um intelectual europeu. Ela tornou-se um divisor de águas
na historiografia do Modernismo. Para Telê Porto Ancona Lopez, ela “provoca um amadurecimento no
projeto nacionalista de nossos modernistas, fazendo com que a ênfase, que de início recaía com mais
força sobre o dado estético, possa ir, progressivamente, abrangendo e sulcando o projeto ideológico” (in:
Andrade, 1983a, p.16). A presença, naquela comitiva, de Dona Olívia Guedes Penteado e de Paulo
Prado92, representantes da alta burguesia paulista do café, confirmava a continuidade de um certo
nacionalismo cultural num setor da elite por eles representado. Tal inclinação já tinha se prenunciado em
1919 com a suntuosa montagem da peça de Afonso Arinos O contratador de diamantes no Teatro
Municipal de São Paulo. Segundo anota Nicolau Sevcenko, o elenco e patrocinadores do espetáculo
“compunham uma autêntica relação do quem é quem na elite plutocrática paulista” (Sevcenko, p.241). A
encenação exibia ao mesmo tempo o luxuoso mobiliário e prataria do patrimônio dos Prado e dos
Penteado e uma congada de ‘pretos de verdade’, encaixados numa exaltação aos empresários paulistas do
século XVIII em relação ao regime colonial. Não podemos precisar quem eram exatamente os integrantes
daquela congada, de onde teriam vindo, nem quem os teria contatado. Mas certamente eles devem ter
provocado algo mais do que escândalo na platéia. Algum impacto aquela congada sem dúvida causou, ao
menos no jovem compositor Francisco Mignone, que participava como regente de uma das duas
orquestras organizadas para a representação e que surpreenderia o público dois anos mais tarde com uma
ópera baseada no drama de Arinos, cujo movimento mais célebre era precisamente a congada.
113
A viagem de 1924 pode ser vista como um desdobramento daquele encontro — então restrito
apenas ao palco do Municipal — da elite paulista com o mundo colonial das minas e da cultura popular
afro-brasileira da região. Mas a ligação entre estes dois eventos é cimentada pela coincidente presença de
Affonso d’Escragnolle Taunay, escritor e então diretor do Museu do Ipiranga, no trem em que a comitiva
modernista partira de São Paulo. A crônica “Nós em São João d’el Rey”, aparecida no primeiro número
de Terra Roxa... e outras terras (janeiro de 1926)93, revela tal coincidência, destacando o fato de ter sido
Taunay quem outrora fornecera ao elenco do Contratador dados referentes aos costumes da época,
cuidando da fidelidade da representação. Agora oferecia aos protagonistas da famosa Viagem de
Redescoberta valiosas dicas sobre as cidades que iriam conhecer.
Pegar a estrada em companhia de Cendrars não era casualidade. Era ele o ícone do escritor
viajante. Chegara a São Paulo a convite de Paulo Prado, a quem conhecera em Paris no ano anterior junto
a Tarsila, Oswald e outros artistas brasileiros. Mário de Andrade, que conhecia os seus escritos,
enxergava as coisas com outros olhos. Enquanto Cendrars procurava nutrir-se do exótico, do alheio, para
Mário viajar era um movimento em direção ao conhecimento do próprio. No início da década de 1920 a
sua obcecação era a Paulicéia. Como bem anota Marcos Antonio de Moraes, o “Poema abúlico”,
publicado no número de dezembro de 1922 / janeiro de 1923 de Klaxon, antecipa “a imagem do anti-
viajante Mário de Andrade e a contrapõe à do bourlinguer Blaise Cendrars:
Mário, que bem conhecia os móveis luxuosos da sala de uma Dona Olívia Guedes Penteado, alardeava ter
intimidade também com as curiosas decorações das casas humildes. O bonde era o meio simples e barato
de chegar ao outro. Podia puxar conversa com pessoas simples — como Ellis, o criado do conto — ou
observar as ruas dos bairros populares.
Em 1927 ele trocara o bonde pelo vapor e partira com Dona Olívia Guedes Penteado e as
adolescentes Dolur e Mag com destino ao Amazonas. Não seria até o momento de embarque que Mário
ficara sabendo, desiludido, que Paulo Prado e Affonso Taunay não os acompanhariam como previsto.
Mas não tinha problema, ele gostava de abrir-se sozinho a novos cenários e personagens. Já no ano
seguinte ele descobre o prazer da companhia dos amigos intelectuais nordestinos que também curtiam a
cultura popular (figs.48-50). No entanto, ao subir o rio Madeira a bordo do Vitória, Mário tomara por
costume descer sozinho à terceira classe, depois da janta, para conversar e ouvir cantigas “entre tapuios
114
simpáticos e pacientes” (Andrade, 1983, p.139). Mário acalentava o sonho de conhecer o nordeste e o
norte do Brasil. Em 1926 projetara uma visita a Luiz da Câmara Cascudo, amigo por correspondência,
que acabou não se concretizando. Tinha pensado, por outro lado, estender a viagem organizada por D.
Olívia, ficando na volta mais algumas semanas no Nordeste. Mas afinal limitou-se aos planos da
caravana, que se estendeu por pouco mais de três meses (8 de maio- 15 de agosto), com apenas breves
paradas nas capitais nordestinas. Mário havia viajado por aquelas terras da floresta, dos interiores do país
e dos mitos indígenas através de leituras e da sua imaginação ficcional plasmada em Macunaíma. O herói
sem nenhum caráter, esboçado no ano anterior e cujo manuscrito corrigira e aprontara para publicação
depois de voltar da viagem. O encontro ‘real’ com esse universo adquiria também visos de literatura no
subconsciente do escritor, que uma semana depois de iniciada a viagem, entre Salvador e Maceió, tivera
um sonho revelador a bordo do Pedro I:
Com muito cuidado, escrevi um discurso em tupi pra dizer a nossa saudação a todos,
quando estivéssemos entre os índios. Encontramos uma tribo completa bem na foz do
Madeira, não faltava nem escrivão nem juiz-de-paz pra eu me queixar se alguém bulisse
com a Rainha do Café. Vai, recitei o meu discurso, que aliás era curto. Mas desde o
princípio dele os índios principiaram se entreolhando e fazendo ar de riso. Percebi logo
que era inútil e que eles estavam com uma vontade enorme de comer nós todos. Mas não
era isso não: quando acabei o discurso, todos se puseram gritando pra mim:
— Tá errado! tá errado! (Andrade, 1983, p.56)
115
Para Telê Porto Ancona López, “a viagem à Amazônia, a julgar-se pelos textos de 1927 e 1928
que dela resultaram, foi claramente marcada pela preocupação etnográfica, com Mário de Andrade
procurando entender uma particularidade do Brasil através da observação da vida do povo” (In: Andrade,
1983, p.19). O epíteto de ‘etnográfica’, porém, só vem aparecer nos escritos de Mário no título do diário
da viagem ao Nordeste de 1928-1929. Parece-me, de fato, que é onde se aplica com mais rigor. O diário
da viagem amazônica, intitulado O Turista Aprendiz, tem um tom muito mais impressionista. Mais do que
uma vontade de registro científico, prevalece uma rigorosa e contínua observação de si mesmo. Quando
preparava a publicação do diário, em 1943, o autor escreve uma advertência/prefácio em que confessa um
certo desagrado pelo personalismo da escrita, concluindo, no entanto, que esse tom respondia ao caráter
da viagem: “Se gostei e gozei muito pelo Amazonas, a verdade é que vivi metido comigo por todo esse
caminho largo de água” (ibid., p.49) (figs. 43-45).
É certo que em 1926, quando anuncia o primeiro projeto de viagem ao Nordeste, em carta a
Manuel Bandeira, revela-se a intenção de pesquisa etnográfica que Mário cultivava então: “você deve de
perder a esperança de algum novo poema gênero “Noturno” ou “Carnaval”. O tempo dessas coisas já
passou e estou completamente casado com a inteligência outra vez (Andrade, 2000, p.279). Mas nesse
depoimento Mário referia-se ao seu projeto de expedição de viagem de pesquisa ao Nordeste. A
expedição amazônica fora projetada por Dona Olívia Guedes Penteado e Mário simplesmente se deixara
levar. Com os manuscritos de Macunaíma e de Clã do Jabuti aguardando publicação trabalhos estes
que abordavam aspectos culturais da região amazônica é de se pensar que as preocupações de caráter
estético tivessem um lugar importante para Mário na experiência da viagem amazônica. De fato, no citado
prefácio ele indica: “Durante esta viagem pela Amazônia, muito resolvido a ... escrever um livro
modernista, provavelmente mais resolvido a escrever que a viajar […] tomei muitas notas como vai se
ver” (Andrade, 1983, p.49). Se a viagem amazônica foi uma primeira experiência em direção ao cultivo
de um olhar etnográfico que viria a se manifestar plenamente na viagem nordestina, pode-se pensar, por
outro lado, que a diferença na postura de Mário em ambas viagens tenha a ver também com sua particular
visão e interesse a respeito das manifestações culturais dos indígenas e caboclos em relação às dos afro-
brasileiros, caipiras e matutos etc. Nas tradições indígenas ele procurava apenas casos interessantes e não
necessariamente os segredos do caráter nacional. Macunaíma, nascido no meio indígena, revela-se herói
sem nenhum caráter, perspectiva que poderíamos contrastar com a caracterização de um Chico Antônio
em Vida do Cantador, como veremos posteriormente. Em carta a Carlos Drummond de Andrade, Mário
justifica a abordagem da temática indígena na Lenda do Pai-do-Mato e em Macunaíma da seguinte
maneira:
Você fala que não tem nenhum interesse pelos índios... Sob ponto-de-vista artístico,
imagino. Eu nem sei bem como me explicar, palavra. Eu tenho interesse artístico por eles.
116
De vez em quando fazem coisas estupendas. Certas cuias do Norte, certos vasos
marajoaras certos desenhos lineares, certas músicas e sobretudo certas lendas e casos são
estupendos, Carlos. Aliás sempre tive uma propensão imensa por tudo quanto é criação
artística popular. Não só brasileira não. De toda a parte. Tenho uma coleção de músicas
populares de toda a parte e sempre falei com escândalo de todos que jamais um compositor
erudito inventou músicas tão bonitas como certas coisas do povo. O povo tem isso que
entre coisas sublimes bota uma porrada de coisas duma banalidade fatigante, porém isso é
natural. Falta neles aquela dose de critério suficiente, aquela vontade-de-análise que deixa
as obras dos artistas verdadeiros sempre intelectualmente interessantes mesmo quando não
prestam. (Andrade, 1982, p. 103-104)
117
Ruy Cirne Lima.99 Outros colaboradores que Mário destaca numa nota final do livro são: Germana
Bittencourt, Mário Pedrosa, Benedito Dutra Teixeira, Fabiano Lozano, Aida de Almeida e João Cibella.
Por outro lado, Mário se dedica também à procura e transcrição de documentos musicais nos
arredores de São Paulo. Em Araraquara ele descobre um romance cantado por moças que lembravam de
tê-lo ouvido na infância de um palhaço preto que se apresentava por vezes na cidade. Através de várias
entrevistas ele consegue reconstruir também o “Lundu do Escravo”, que seria outra peça do repertório do
tal palhaço, conhecido como Veludo. Nos dois artigos sobre estas peças que Mário publica na Revista de
Antropofagia (em agosto e setembro de 1928) 100 já se revela o desejo do autor de incorporar elementos e
processos das manifestações populares na arte erudita, principalmente na música e na literatura. Ele
reconhecia a fecundidade de aspectos formais da expressão popular — como a liberdade rítmica do canto,
no caso do citado lundu — e, por outro lado, observava na música popular uma facilidade para a
integração de elementos provindos de diversas matrizes culturais, síntese que vinha para tornar-se um
apoio ao sentimento de nacionalidade, segundo analisei em trabalho anterior (Quintero-Rivera, 2000). Na
viagem ao Nordeste, tais visões ganham corpo e profundidade a partir do encontro com dezenas de
artistas populares, cujas músicas e danças dramáticas este “turista aprendiz” foi registrando
sistematicamente.
Manu
Bom dia e boas festas. Ando catimbosando, ouvindo coco, vendo “baiano”, Boi, colhendo
Congo, talvez amanhã colherei Fandango também inteirinho, apesar das dificuldades já
colhi umas 150 melodias. Estou fazendo aliás observações bem interessantes sobre a
maneira de cantar da gente de cá. […] Tou sarapanteado com a luminosidade da
inteligência nordestina. Vivo, eu sem memória, paulista pesadão, com talento imitativo
nenhum, difícil de refletir, mau pegador de andorinha, uma figura meia besta no meio deste
fuquefuque de solão de seca sobre areia. Paciência, vou indo e a verdade é que todos são
bons pra mim. Só me penaliza um bocado a sensação de escritor célebre que me dão certos
admiradores daqui. Felizmente que outros me tomam bem por Mário de Andrade mesmo
[…] (Andrade, 2000, p.411)
A viagem etnográfica ao Nordeste (27 de novembro de 1928 a 24 de fevereiro de 1929) foi para
Mário de Andrade a constatação de que havia na cultura popular substâncias ricas nas quais cimentar uma
civilização brasileira. Mário escutou, transcreveu, observou, curtiu e principalmente admirou dezenas de
cantores e brincantes interpretando cocos, emboladas, marchinhas de carnaval, benditos, bois, pastoris,
cheganças, fandangos, congos, maracatus, frevos, cabocolinhos etc. Escreveu a série de crônicas O
Turista Aprendiz, publicadas no Diário Nacional, umas breves Notas de viagem — diário em que
consignava dia a dia, ainda que muito esquematicamente, as suas atividades durante o percurso — e fez
118
uma quantidade volumosa de anotações e transcrições das manifestações musicais que ia conhecendo,
para futura análise e publicação. Aquela percepção do que é curioso, do engraçado no outro, que
observáramos anteriormente em relação à viagem amazônica, raramente aparece agora, com exceção das
descrições relativas às práticas religiosas ou de “feitiçaria”, como se verá mais tarde.
Aqui expõem-se os nomes e os rostos dos cantadores e cantadoras. É a preta Maria Joana, de
Olinda, “filha ainda de africanos legítimos, com seus 30 anos talvez, [que canta] esplendidamente
emboladas, sambas, marchinhas de carnaval, ritmo prodigioso, inconcebível, voz de metal, com cor de
prata polida, nítida feito alfinete, formidável de encanto” (Andrade, 1982, p.347). É o coqueiro José,
“nordestino puro. Baixote, cabeça achatada, ele todinho tão achatado que tem todas as linhas do corpo
horizontais. As cantigas são tão planas, e no geral tão planas as terras de cá que, parece fenômeno de
mimetismo, as linhas físicas do ser humano se organizam por aqui todas no sentido horizontal... […] Que
voz!... Não é boa não, é ruim. Mas é curiosíssima e a do companheiro dele é inda mais. Em que
tonalidade estão cantando? As vezes é absolutamente impossível a gente saber” (p.239). É o estivador
Hortêncio, que lhe revela melodias de carregar piano. É Marim, o gaiteiro dos Cabocolinhos, o
rabequista Vilemão, “mulato escuro que me dá desafios estupendos” (p.356). São as crianças tocando e
dançando coco na praia da Paraíba: “[…] o ganzá era batido por um piazote que não teria 6 anos, coisa
admirável. Que precocidade rítmica, puxa! O piá cansou, pediu pra uma pequena fazer a parte dele. Essa
teria 8 anos certos mas era uma virtuose no ganzá. Palavra que inda não vi, mesmo nas nossas
habilíssimas orquestrinhas maxixeiras do Rio, quem excedesse a paraibaninha na firmeza, flexibilidade e
variedade de mover o ganzá” (p. 308). É Odilón do Jacaré, além do célebre Chico Antônio, “simpático
e formidável”. (Figs.51-55)
Chico Antônio é o artista popular que maior impressão causou em Mário de Andrade. O coqueiro
analfabeto que Mário escutara no Engenho Bom Jardim da família de Antônio Bento de Araújo Lima, no
Rio Grande do Norte, virou protagonista do romance Café — nunca concluído — e das lições da Vida do
Cantador, publicadas no jornal Folha da manhã no ano de 1943. “Estou divinizado por uma das
comoções mais formidáveis da minha vida”, escreveu depois de ouvir por primeira vez o cantador:
Que artista. A voz dele é quente e duma simpatia incomparável. […] O que faz com
o ritmo não se diz! Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental que
aparecia, se movem interminavelmente no compasso unário, na “pancada do ganzá” Chico
Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas
que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. E quando tomado pela exaltação
musical, o que canta em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte, se é
heroísmo. Não se perde uma palavra que nem faz pouco, ajoelhado pr[a] [cantar o] “Boi
Tungão”, ganzá parado, gesticulando com as mãos doiradas, bem magras, contando a
briga que teve com o diabo no inferno, numa embolada sem refrão, durada por 10 minutos
sem parar. Sem parar. Olhos lindos, relumeando numa luz que não era do mundo mais.
Não era desse mundo mais. […]
119
Chico Antônio não é só a voz maravilhosa e a arte esplêndida de cantar: é um
coqueiro muito original na gesticulação e no processo de tirar um coco. Não canta nunca
sentado e não gosta de cantar parado. Forma os respondedores, dois, três, em fila, se
coloca em último lugar e uma ronda principia entontecedora, apertada e sempre a mesma.
Além dessa ronda, inda Chico Antônio vai girando sobre si mesmo. Ele procura de fato
ficar tonto porque quanto mais gira e mais tonto, mais o verso da embolada fica
sobrerrealista, um sonho luminoso de frases, de palavras soltas, em dicção magnífica.
Poemas que nenhum Aragon já fez tão vivo, tão convincente e maluco. É prodigioso.
(p.277-278)
No prefácio à edição de Vida do Cantador, Raimunda de Brito Batista observa que o epíteto de “lições”
que Mário utiliza para referir-se às seis crônicas que compõem a série revela um sentido múltiplo, pois se
remete aos significados que a palavra têm na tradição católica — cantos de louvação a um santo; na
cultura popular — enquanto desafio; e na linguagem coloquial — como ensinamento didático. O valor de
Chico Antônio, elevado à categoria de santo popular, fundamenta-se no fato de que as suas destacadas
virtudes individuais fazem dele, no entanto, um “valor social”, graças ao poder da música (in: Andrade,
1993b).
O canto dele exerce a função das encantações primitivas […] Chico Antônio principiou
cantando e era de noite. […] Os moradores vieram vindo atraídos. Sentavam, se
acocoravam, ficavam em pé na barra do semicírculo de luz, vultos imóveis na escureza.
Escutando. Enquanto durou a cantiga ninguém não se afastou dela. Nem eu, sentindo se
renovarem as forças nativas que de tempo em tempo careço de retemperar, viajando por
meu país.101
Mais uma vez vemos que o elemento da inconsciência na criação é tido como substrato da
genialidade artística. Transparece, igualmente, uma visão do gênio autêntico desta vez o gênio popular
como figura essencial à coletividade. Até o artista Mário de Andrade foi atingido pelo encantamento
de Chico Antônio. Entretanto, Mário em diversos escritos sinalizou a ligação especialmente afetiva que
surgiu entre os dois. Num dos primeiros trechos de Vida do Cantador, interessantemente redigido do
ponto de vista do coqueiro, este descreve a impressão que lhe causa o “moço rico do sul”, sentindo que
pela primeira vez estava frente a um igual. Desta maneira sulista e nordestino, letrado e analfabeto,
escritor e cantador aparecem irmanados.
O cantador, como rapsodo brasileiro, provoca um grande interesse em Mário de Andrade, como se
faz patente em Macunaíma e em Clã do Jabuti (Brito Batista, op. cit.). Instância de cruzamento entre a
palavra e a música, suas grandes paixões, o canto lhe era fascinante. Num tempo em que Mário de
Andrade se empenhava em sistematizar uma escrita em “brasileiro” e, por outro lado, dedicava-se ao
estudo de elementos melódicos propriamente nacionais, o encontro com Chico Antônio tornou-se
fundamental. O canto popular fazia-lhe rever as hierarquias e as noções assentadas sobre a arte culta.
120
Uma comparação com a ópera, por exemplo, era inevitável numa época em que o canto lírico
considerava-se o patamar do bom gosto burguês. Mário descobre, porém, que Chico Antônio valia “uma
dúzia de Carusos”; sua voz era “uma das mais maravilhosas que já escutei em vida minha, Gigli
inclusive” (Andrade, 1993b, p.87). Apesar de Mário reconhecer em Chico Antônio um caso fora do
comum, seu fascínio pelo canto popular não se limitava a ele. Está presente na descrição de vários
encontros com vozes do “povo” como a de uma velha que pedia esmola em Catolé do Rocha,
agradecendo o trocado com a interpretação de um bendito: “Termino de anotar a melodia e fico
maravilhado contemplando a simplicidade genial dela. Que perfeição de linha, que equilíbrio de
composição! E que desmentido pra certas teorias. Canto em maior e rápido e apesar disso duma dor
magnífica, pobre, mesquinha, triste mesmo” (Andrade, 1983, p.293).
Além das qualidades na emissão da voz, no acoplamento de palavra e giro melódico, no domínio
do ritmo, Mário de Andrade admirava o processo criativo de Chico Antônio. O primeiro passo consistia
em “desnivelar” uma melodia tradicional ou, em outras palavras, simplificá-la para facilitar a sua fixação
na memória. Assim “desnivelada” é que ela exercia, segundo Mário, “a fascinação de efeito garantido,
verdadeiro valor terapêutico na alma do povo e na minha” (Andrade, 1993, p.89). Uma vez incorporada a
melodia ao repertório do cantador, este a enriquecia com novas variações e fantasias no momento em que
atingia a possessão, espécie de transe que no caso de Chico Antônio era conseguido através da
combinação do canto com o movimento corporal. O processo artístico do cantador contava, assim, com
uma fase de repetição/fixação e uma fase de variação e invenção em estado de transe criativo. A partir da
análise da arte de Chico Antônio, Mário esboça uma compreensão da cultura tradicional como algo vivo e
em contínua renovação.
Por outro lado, Mário de Andrade se esforçaria em transportar alguns destes ensinamentos dos
cantadores populares e seus processos criativos para o contexto da composição erudita. Já em 1928, em
artigo sobre o “Lundu do Escravo” cantado pelo palhaço preto Veludo, ele faz um chamado aos
compositores eruditos, não necessariamente no sentido de incorporar motivos populares nas suas obras,
mas sim de aprender dos processos, das soluções artísticas da música popular:
Me parece que os nossos compositores deviam de estudar mais essa tendência pro
recitativo de expressão prosódica, e pro ritmo livre, de muito documento popular
brasileiro. […] os nossos compositores podem conceber normas caracteristicamente
brasileiras de criar melodia infinita. Nas emboladas, nos cocos, nos desafios, nos pregões,
nos aboios, nos lundus e até nos fandangos, a gente colhe formas de metro musical livre e
processos silábicos e fantasistas de recitativo, que são normais por aí tudo no país. Isso os
artistas carecem observar mais. (Andrade, 1963, p.79-80)
121
Tal preocupação o levaria em 1937, como Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, a organizar
o Congresso da Língua Nacional Cantada, com o objetivo de discutir questões relativas à composição e
interpretação de obras eruditas escritas para canto em língua nacional.
A viagem de Mário de Andrade ao Nordeste fora planejada para aproveitar o ciclo de festas
vinculadas ao calendário cristão, ocasião em que eram representadas as principais danças dramáticas da
região: a chegança e o pastoril no Natal, o boi no dia de Reis e o maracatu e os cabocolinhos na época do
Carnaval. Até aos bairros operários de Natal, como Areal e Alecrim, Mário chega a se deslocar em
companhia de Antônio Bento, Cascudo e outros amigos nordestinos, a fim de assistir aos ensaios de
cheganças e bois. Geralmente se espanta com a resistência dos brincantes, que passam longas horas na
dança e cantoria, bem como com a mistura de tradições que estas apresentam. Ele cita os mestres que vai
conhecendo para colher os textos e melodias por inteiro. Assim, registra o congo de Jovino em Natal, o
boi de uma mulata em Recife, e o maracatu de Eduardo José Pereira, “preto pernambucano […] jardineiro
e pouco alfabetizado […] Reis e dono do maracatu da Nação do Sol Nascente”. Assistindo ao tal
maracatu, em Recife, Mário registra duas situações relativas ao transe provocado pelo poder da percussão.
Na primeira trata-se de uma vivência própria, onde o escritor revela-se sensível, porém desacostumado e
temeroso da experiência do transe. Já a segunda apresenta mais um exemplo do que Mário apontava como
sentido religioso da dança festiva:
[A] fabulosa orquestra da Nação do Leão Coroado, que escutei tocar, se compunha de
doze zabumbas, nove gonguês e quatro ganzás. O ritmo se tornava tão dinâmico, tão
contundente, que eu, mesmo colocado junto dos dois Dereitos do cordão, não lhes escutava
absolutamente nada o canto. Mesmo, num momento dado, as batidas me violentaram tão
intensamente que me faltou a respiração, eu cairia redondamente se não me afastasse com
pressa do meio do inferno. (Andrade, 1982c, p.152)
[…] as negras velhas, de olhos no chão, solenes, se movem com uma volúpia religiosa de
assombrar. Embebedadas pela percussão, dançam lentas, molengas, bamboleando
levemente os quartos, num passinho curto, quase inexistente […] sem nenhuma figuração
dos pés. Os braços, as mãos é que se movem mais, ao contorcer preguicento do torso. Vão
se erguendo, se abrem, sem nunca se estirarem completamente, no ombro, no cotovelo, no
pulso, aproveitando as articulações com delícia, pra ondularem sempre. […] Mas também
ás vezes um, outro braço, quedam de supetão em gestos bruscos, rapidíssimos, como si um
tremor, um sopro de inferno, perturbasse o êxtase panteísta, ... E cessa logo. Continua a
lentidão voluptuosa, sem nenhuma impureza, seres vindos de outros pensamentos, que na
miséria, na velhice e no contraste de agora, exigiam, além da minha curiosidade, meu
respeito, tão cheios de sua verdade eles estavam. (Ibid., p. 152)
No manuscrito original deste ensaio102, publicado postumamente, aparece riscado no final, “não
me podem ser ridículos, tão cheios de verdade estão”. Mais uma vez, como constatáramos nas suas
impressões sobre o carnaval carioca, Mário defrontava o autêntico ao ridículo. Vencia o estranhamento,
122
através da observação e da admiração. Assim se deu com o carnaval, com as danças dramáticas e os
cantores populares. Nas incursões ao terreno dos rituais de caráter religioso, porém, Mário de Andrade
não conseguira ir por cima do estranhamento. Ao menos publicamente, nas crônicas, artigos e passagens
de ficção em que trata do assunto, ele demonstra curiosidade mas não convencimento. Mário dedica, no
entanto, várias crônicas de O Turista Aprendiz ao catimbó, oferecendo grande quantidade de informações
detalhadas sobre as diferentes entidades que o compõem, reproduzindo rezas etc (fig. 65). Numa das
entrevistas com dois catimbozeiros, ele descobre a referência a um Mestre malfeitor chamado Antônio
Tirano, que exigia carne humana de algum familiar da pessoa que solicitasse os seus serviços. O tal
Mestre, asseguravam os colaboradores “não se invoca mais!” “ — Mas às vezes aparece, não?”, indagava
Mário... E eles confirmavam constrangidos que aparecia sim e que pedia sangue, relatava Mário numa
pequena crônica enviada à Revista de Antropofagia, para interesse dos cultores da “antropofagia
filosófica paulista”.103 Na última sexta-feira do ano, dia muito propício para coisas de feitiçaria, Mário
aproveita para “fechar o corpo” no catimbó de dona Plastina, num bairro pobre de Natal. Deste episódio,
que foi transformado numa apimentada crônica, mais tarde incluída na conferência Música de Feitiçaria
no Brasil — apresentada na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro em 1933 — vejamos apenas
alguns trechos:
123
Agora Mário protagonizava uma sessão de “feitiçaria”, tal qual Macunaíma no afamado terreiro da Tia
Ciata no Rio de Janeiro. Mas a motivação do autor era a curiosidade etnográfica, enquanto que seu
personagem acudira ao ritual por desejo de vingança. Acompanhado por um seleto grupo de amigos
macumbeiros — entre os quais, Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira,
Raul Bopp e Antônio Bento — o herói sem nenhum caráter, com o auxílio de Exu, conseguira atingir o
gigante Venceslau Pietro, Pietra, que jazia inexplicavelmente ferido no palácio da rua Maranhão em São
Paulo. O ambiente do terreiro, ao menos o da Tia Ciata, tornara-se espaço de encontro de diversas classes
sociais. No citado capítulo “Macumba” de Macunaíma — baseado, entre outras fontes, em entrevista do
autor com o célebre músico popular Pixinguinha — recalca-se em vários momentos a heterogeneidade
dos assistentes: “gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados
gatunos […] marinheiros marceneiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos […]
taifeiros curandeiros poetas o herói, gatunos, portugas, senadores […] médicos padeiros engenheiros
rábulas polícias criadas focas assassinos [… etc.] ” (Andrade, 1985b, p.45-47).
Nem bem Macunaíma fora lançado, o Museu Paulista abria uma exibição de objetos de culto
originários dos candomblés da Bahia. Affonso de E. Taunay, que acabou não acompanhando a caravana
de descoberta na viagem amazônica de 1927, viaja nesse mesmo ano à Bahia, onde consegue do
secretário de justiça do estado (Sr. Bernardino Madureira Pinho) a doação de vasto material angariado
pela polícia em “batidas feitas em casas onde se realizavam cerimônias proibidas fetichistas, muçulmanas,
etc.” A exposição de tais “espadas, machadinhas, fios de contas, foicinhas, facas de matança, lanças,
tabaques, chaxaraz, caraquicés, egans, e outros utensílios […] causou o maior interesse em São Paulo”,
afirma o próprio Taunay em crônica publicada na revista Ariel.104 Dez anos mais tarde, durante viagem
pelo nordeste, a Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura de São Paulo adquiriu um
belo acervo de “instrumentos, santos, vestuários e insígnias” apreendidas pela polícia nos Xangôs de
Recife (Toni, s.d., p.34). As proibições e restrições oficiais não se limitavam só aos rituais religiosos afro-
brasileiros, embora estes devam ter sido os mais atingidos. Os grupos de danças dramáticas, entre outros,
eram obrigados a pagar pela licença da polícia para sair na rua ou mesmo para realizar os seus ensaios.
Durante a viagem etnográfica ao Nordeste, Mário percebeu esta situação com os cabocolinhos na Paraíba
e o com o Boi de Alecrim em Natal. Sobre a apresentação deste último no dia seis de janeiro de 1929,
Mário registra:
124
dos sacrifícios que já faz pra encenar a dança, pagar licença, não entendo. (Andrade, 1983,
p.207)
A Igreja aprendera a tolerar a batida dos tambores e os cânticos dos afro-brasileiros nos cortejos e danças
que organizavam as confrarias de pretos e mulatos em homenagem à Nossa Senhora do Rosário, a São
Sebastião, São Benedito, São João, aos Reis e outros santos de tradição católica. Mas no caso de uma
manifestação de caráter profano, como o samba, houve tentativas de censura. Em 1939, uma missão do
Departamento de Cultura que devia registrar o samba de Pirapora, no interior de São Paulo, viu o seu
trabalho impossibilitado pela ação da igreja. Em carta a Mário de Andrade, Oneyda Alvarenga explica:
Foi-se a Pirapora (SP) mas nada se conseguiu fazer. Os padres arranjaram como o
interventor uma proibição de samba! Conta o Saia que a negrada estava louca de raiva.
Nem alegando caráter de estudo ele pôde fazer a pesquisa. Como os sambadores vêm
dançar aqui no Jabaquara ainda este mês, consegui autorização para o trabalho.
(Andrade, 1983b, p. 143)
Eram os tempos do Estado Novo e o governo promulgava um ideal de civismo que atingiu de
forma fundamental o universo da cultura, com amplo registro de todas as manifestações, do erudito ao
popular. Através de novas instituições como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e a
Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA), estimulou-se a produção cultural que servisse
de apoio à propaganda patriótica oficial de corte ufanista. Até o Carnaval foi alvo dessa visão, da qual
Mário de Andrade se ressentia. Em relação à campanha governamental de moralização no Carnaval
carioca de 1939, o autor expõe:
Não tem dúvida que as nossas danças de origem mais ou menos negra, ou pelo menos já
conformadas pelo negro brasileiro, como o samba e o maxixe, mantêm todas elas uma forte
aparência (ou realidade se quiserem) de sexualidade. Foi isso aliás, que fez com que os
cronistas e viajantes estrangeiros gritassem ao escândalo, fugissem horrorizados diante
tamanha imoralidade. Não tenho a menor intenção de considerar moral ao Carnaval e às
suas coreografias; o que há mesmo de mais espantoso nesta coisa de bons costumes é que
ainda haja polícia neste mundo que tente moralizar o Carnaval, que é imoral por definição.
Tudo a Polícia proíbe, tudo ela dispersa, de forma que a imoralidade fique apenas menos
imoral. E enquanto isso o Carnaval manqueja, arriado de proibições. Suprima-se o
Carnaval, estarei perfeitamente de acordo sob o ponto de vista dos bons costumes, porém
moralizá-lo me parece perfeitamente absurdo.105
125
inconsciência e o transe como estados propícios à criação artística, experiência que ele próprio tinha
vivido com a escrita de Paulicéia Desvairada e de Macunaíma. Com o passar dos anos, a sua
aproximação às manifestações populares foi se tornando mais “científica”, os sentidos mais voltados para
a observação cuidadosa do que para a inspiração. Na crônica citada anteriormente sobre o Carnaval de
1939 ele afirma que, apesar de estar ainda em idade para gozar as “volúpias do corpo”, havia passado
“mais um Carnaval dedicado quase exclusivamente à observação” (ibid., p.161). Seguindo as pegadas de
Mário ano após ano durante o período de Carnaval, podemos verificar esta transformação. Por exemplo, o
estudo sobre o samba rural paulista se inicia por acaso no Carnaval de 1931, quando o autor, vagando pela
avenida Rangel Pestana, se topa com um samba grosso que nada tinha a ver com os sambas cariocas de
Carnaval. “Tomei algumas notas e quatro textos, por mero desfastio de amador. E continuei meu
carnaval” (Andrade, 1963b, p.145). Nos carnavais de 1933 e 1934 Mário procura novamente aquele
samba, agora “com melhores intenções folclóricas”. Mas é só em 1937 que, resolvido a fazer estudo
sistemático, viaja a Pirapora para completar as suas observações sobre o samba rural e publica o ensaio
sobre tal manifestação (figs. 60-62). Neste então, lamentava-se por ter assumido amadoristicamente a
coleta nos anos anteriores:
Com a criação em 1935 do novo Departamento de Cultura de São Paulo, sendo Mário de Andrade
nomeado diretor e chefe da Divisão de Expansão Cultural, a investigação etnográfica vai tomar um
grande impulso no país. O departamento organiza um seminário sobre etnografia, ministrado por Dina
Lévi-Strauss, abre as páginas da Revista do Arquivo Municipal para as novas pesquisas dos membros da
Sociedade de Etnografia e Folclore e promove uma importante viagem de estudo e coleta etnográfica ao
Nordeste, conhecida como a Missão de Pesquisas Folclóricas, de fevereiro a julho de 1938. Através da
atividade do Departamento expandia-se o projeto de registro e estudo das manifestações populares através
do país, que Mário iniciara como empreendimento pessoal, embora sempre contando com a colaboração
dos amigos. Vendo limitadas as suas possibilidades pessoais — por compromissos administrativos,
doenças e outros inconvenientes — depositava suas esperanças em colegas e alunos como Oneyda
Alvarenga, diretora da Discoteca Pública Municipal, Luís Saia e o compositor Camargo Guarnieri, entre
126
outros. Este último, que já acompanhara a Mário em 1933 numa viagem a Santa Isabel para registrar o
moçambique na festa do Espírito Santo, era mais tarde, em 1937, enviado do Departamento de Cultura ao
2º Congresso Afro-Brasileiro em Salvador, com a incumbência de pesquisar a música dos candomblés
(figs. 66-67). Ouvindo de longe o “baticum dos tambores na noite escura” a caminho do terreiro de Mãe
Aninha, Guarnieri inspirava-se para compor a Dança Negra (Lühning, 1998, p.67).
O encontro com o popular deixou marcas profundas na produção musical, literária e plástica dos
criadores ‘eruditos’ brasileiros da época não somente pela matéria patente nas artes populares, mas pelo
impacto de novos ambientes humanos e geográficos. De que forma os artistas eruditos trabalharam com a
reminiscência desse encontro na busca de linguagens para representar o nacional é assunto que se
discutirá nos próximos capítulos.
127
SEGUNDA PARTE
Identidades em construção
128
CAPÍTULO 5
Diálogos sobre o processo criativo:
música ‘erudita’ para uma nação emergente
129
correspondência cruzada entre X ou Y ou a crítica musical aparecida em determinado periódico.
Em relação a Mário de Andrade, já foram feitas importantes contribuições dentro dessa linha,
existindo ainda muitas por fazer. A crítica musical de Alejo Carpentier também foi objeto de
pesquisa, organização e reedição, mas o mesmo não acontece com sua correspondência, que se
encontra perdida ou não revelada — excetuando-se cartas esparsas que têm sido publicadas por
alguns dos destinatários.106 Partindo do exame de uma documentação volumosa e diversa, parte
dela inédita, a nossa leitura propõe uma análise das relações entre crítica e criação, como espaço
para onde convergem projetos estéticos e ideológicos individuais e coletivos. Um espaço de
descoberta, de iluminação e de atritos. É verdade que a obra de arte, em sua forma e conteúdo, tem
autonomia para revelar-nos leituras diversas. Mas examinar os processos criativos nos permite
entender melhor a relação entre uma obra em particular e o seu contexto cultural, as trocas entre
arte e sociedade. Pondo em foco os principais compositores brasileiros e cubanos ligados ao
projeto de construção de uma música nacional nas décadas de 1920 e 1930, traçamos uma
trajetória da relação de cada um deles com Mário de Andrade e Alejo Carpentier, respectivamente,
fazendo um contraponto entre o diálogo epistolar e o debate crítico no terreno das publicações
periódicas.107
130
Mário de Andrade conhecemos 24 cartas de Villa-Lobos, 56 de Gallet, 32 de Lorenzo Fernández,
110 de Mignone e 16 de Camargo Guarnieri, além de muitas outras que nos servem de referência
— incluindo as de Renato Almeida, Sérgio Milliet, Liddy Chiafarelli, Oneyda Alvarenga e
Manuel Bandeira. Do outro lado da moeda, da correspondência de Mário de Andrade aos
compositores somente foi possível examinar 13 missivas a Camargo Guarnieri, 4 a Heitor Villa-
Lobos, 2 inéditas e 4 publicadas a Francisco Mignone, e 1 a Luciano Gallet, encontrando-se a
maior parte delas perdida. Porém testemunhos da voz (ou das vozes) de Mário não faltam para
desenvolver a análise que aqui nos interessa. O seu juízo transparece na pena dos interlocutores, e
ainda contamos com volumes de cartas publicadas a outros amigos artistas e escritores que nos
trazem referências valiosas, sem falar das suas próprias críticas e ensaios publicados na época.
Apesar do interesse suscitado pela publicação de volumes de cartas de Mário de Andrade
nas últimas décadas, não existe uma bibliografia crítica sobre estes documentos. As cartas são
citadas profusamente pelos dados que revelam e pelas ideias que expressam. Mas o diálogo
epistolar, como forma dialógica de conformação de um pensamento estético ou social ainda não
foi justamente atendido. Entre as primeiras aproximações ao universo das cartas andradeanas,
destacam-se os trabalhos de Santos (1998) e Moraes (in: Andrade, 2000). A correspondência
cruzada entre Mário de Andrade e Camargo Guarnieri foi anotada por Flávia Camargo Toni e
analisada por Lutero Rodrigues, focalizando as possíveis transformações estéticas na obra de
Guarnieri a partir dos intercâmbios com Mário de Andrade (in: Silva, 2001). Por outro lado, o
estudo das relações entre crítica e composição musical, partindo da atuação de Mário de Andrade,
encontra-se numa fase incipiente. Contier abordou particularmente o diálogo da crítica andradeana
com a produção musical de Francisco Mignone e Heitor Villa-Lobos (1997 e 1996). De outra
parte, Chagas (1978) e Toni (1987) tentaram evidenciar as possíveis influências do pensamento de
Mário de Andrade na obra de Luciano Gallet e Heitor Villa-Lobos, respectivamente. A presença
crítica de Mário de Andrade no universo musical brasileiro dos anos 1920 aos 1940 é tão
significativa que torna-se quase impossível encarar uma análise da composição erudita da época
sem ponderar a atuação do escritor na conformação de um projeto nacional para a música.
Heitor Villa-Lobos
131
compositor carioca, observa-se que a primeira ligação fundamental entre eles foi a de artistas
colegas, criadores de literatura e música respectivamente. Mesmo nas polêmicas surgidas após a
Semana sobre a música de Villa-Lobos, foram as vozes de outros modernistas, como Ronald de
Carvalho, Oswald de Andrade e Menotti del Piccia, que gritaram alto em defesa do compositor.
Talvez precisamente pela sua maior ligação com o mundo musical — Mário exercia já a profissão
de professor de piano e estética — a voz do crítico nesse momento de batalha pública se manteve
discreta, enquanto a sua poesia e idéias literárias, estas sim, entravam para a arena da controvérsia.
A primeira carta de Villa-Lobos de Paris ao amigo paulista é motivada por uma colaboração
literário-musical:
Caro Mário,
Villa querido:
Tua carta, que prazer. Tua carta triunfal. Vejo que estás com o verdadeiro
espírito que eu te desejara. Coragem e entusiasmo a que nenhuma pieguice e
restrição desses franceses abaterá. Bravo.
Estou louco pra ver e ouvir “A menina e a Canção”. Sou feliz em saber que
de alguma coisa te serviram esses meus versos. Que bela coisa deves ter feito! […]
Através das cartas, Villa-Lobos vai se mostrar sempre um grande entusiasta das criações literárias
de Mário. Elogia, por exemplo, o Losango Cáqui e faz pedidos de colaboração. Em 1926 insiste
que está “à espera da tua poesia ou prosa para os meus Cinemas” e dois anos mais tarde, de Paris,
propõe a Mário a idéia de compor um bailado baseado no Macunaíma.
A dedicatória a Mário de Andrade no Choros n. 2 para flauta e clarinete, composto em
Paris em 1924, não só é prova da admiração de Villa-Lobos pelo poeta mas, segundo já anotaram
José Maria Neves (1977) e Arnaldo Contier (1988), revela a sintonia estética da série recém-
inaugurada com as idéias que Mário também começava a esboçar sobre a arte nacional { - 2}.
132
Note-se que na primeira carta citada Villa-Lobos enfatiza precisamente o “regionalismo” do
poema de Mário e a transposição da técnica do cavaquinho para o violino na sua composição.
Embora Neves sustente que Villa-Lobos — pelo seu temperamento e por ter conhecido o crítico
sendo já um artista maduro — esteve fora da influência direta de Mário, reconhece que Os Choros
devem ter sido inspirados pelas idéias do escritor, mesmo sendo o Choros n. 1 anterior ao
encontro deles na Semana, na hipótese desta peça já existente ter sido tomada como abertura da
nova série (Neves, 1977, p.40). Muito agradou a Mário tal dedicatória, como afirma em carta ao
compositor (3/8/1925) após receber a transcrição para piano da peça:
Villa querido:
Desde os primeiros escritos em que se refere a Villa-Lobos, Mário destaca a sua qualidade
de expressar um caráter nacional indefinível, idéia que tornara-se central no discurso do autor
sobre a construção de uma música nacional no plano do erudito. “Deu-se em Villa-Lobos todo um
movimento de concentração, de cristalização, que salvou seu nacionalismo da síncopa obrigatória
e do tema exagerado”, afirma no artigo de 1923 (op.cit.). Em 1924, sob a pena de A.G. do Amaral,
insiste: “De onde vem no entanto, ao ouvirmos certas peças desse principal representante da
música moça nacional [Villa-Lobos], essa impressão muito mais brasileira que a que temos ao
ouvir certas peças nacionalizantes de outros compositores? De onde vem no entanto, ao ouvirmos
por exemplo a admirável coleção das Bonecas, se tenha essa sensação de coisa nacional muito
embora essas obras na sua veste harmônica lembrem a todo momento o impressionismo gaulês
notadamente Debussy? […] O sentimento nacional está na base de toda obra que queira ser
nacional. E é por isso que certas páginas do Sr. Villa-Lobos, recheadas de elementos exóticos
europeus, são eminentemente brasileiras. Exemplo característico é essa admirável Lenda do
Caboclo”110 { - 1}. Autodidata e embebedado do mundo musical dos chorões cariocas, Villa-
Lobos escapava, aos olhos do Mário, do dilema de um Francisco Mignone. Filho de italianos,
criado na babel de São Paulo e moldado por uma educação européia, “o organismo psíquico, não é
nacional no Sr. Mignone”.
133
Ao regresso de Villa-Lobos da primeira temporada parisiense, trazendo na mala os Choros
n.2 e n.7, assim como o Noneto, estreado em Paris, Mário de Andrade confirma e celebra a
tendência nacional que observava no compositor. Em carta de 29 de dezembro de 1924 destinada
a Manuel Bandeira afirma:
Vê se te resolves a vir pro concerto do Villa. Estive ouvindo umas coisas do Noneto
e da peça para piano e orquestra. Fantástico. Se estiveres aqui eu te mostrarei as
maravilhas que tem lá dentro. O que é mais engraçado é que o Villa está fazendo
justamente o que nós queremos e o Z... não quer — Primitivismo pau-brasil. Não
conte pro Villa isso. Era capaz de fazer música universal e integrar-se no Cosmos.
(Andrade, 2000, p.172)
[…] É curioso: quando eu escrevo uma crítica estou sempre pensando no artista
criticado e nos outros artistas da mesma arte. […] Quero dizer: não viso iluminar
um público mas salvar o artista. […] eu quero que a minha palavra 'sirva', que a
minha crítica produza o máximo de rendimento didático. D’aí eu fazer muitos
esforços, até os da representação teatral, pra me impor aos artistas. E como sei, de
longa prática, que essas crianças só respeitam quem demonstra conhecimento
técnico, muitas vezes sem necessidade pessoal nenhuma enfeito uma passagem com
um berloque bem bonitinho, que eu sei vai produzir um efeito decisivo no aluno...
que não sabe que está sendo meu aluno, mas que, me respeitando, insensivelmente
vai aprendendo comigo. E às vezes, franqueza, tenho dado golpes admiráveis de
segurança. As Cirandas e em conseqüência as Cirandinhas, sem dúvida das coisas
mais geniais do Villa, ele as deve a mim. Fui eu que observando certa resistência
no Villa em aceitar o aproveitamento folclórico, observando a dificuldade de
construção formal dele e outras coisas assim, escrevi uma carta de pura mentira
pro Villa, me dizendo encantado com as obras de Allende, um chileno que eu fingia
descobrir no momento […] fingindo uma admiração danada pelo homem, que ia
escrever sobre ele, coisas que, eu sabia, deixavam o Villa sangrando em sua
134
imensa vaidade. Mas a esperteza maior foi, em seguida, fingindo amizade
subalterna, pedir a ele que me escrevesse uma peças de meia-força pros meus
alunos de piano. Como sempre nenhuma resposta […] Mas poucos meses depois
vim no Rio […] E ele imediatamente: ‘Olhe, vá lá em casa! tenho umas coisas pra
você. Bem! não é nada daquilo que você me pediu!’ E sorriu com arzinho superior
meio depreciativo. Eu fui e eram as Cirandas. E era exatamente o que pedira, o
que tivera a intenção de provocar no Villa, embora estivesse longe de imaginar
Cirandas. (Andrade, 1983b, p. 282-283)
A carta citada por Mário, de fato, era a mesma em que agradecera a Villa-Lobos a dedicatória do
Choro n. 2, num momento em que talvez o crítico sentira-se mais animado a aproveitar a sua
influência sobre o compositor:
Ontem pensei muito em você. Recebi uma coleção de peças dum músico moderno
chileno, um tal Allende, conhece? Pois um sujeito muito interessante. Peças
inspiradas na música popular, de fatura curiosíssima e harmonização
extraordinariamente fina sem exageração. Um bom-gosto excepcional. Não me
parece sujeito genial não, porém sensibilidade certa sempre despertada e
acompanhada por uma técnica seguríssima e rica. Porém não foi por nada disso
que me lembrei de você quando lia as peças dele: foi porque as tais peças são dum
gênero de que há muito eu estava pra te pedir alguma coisa. Eu sei a facilidade
maravilhosa do espírito de você Villa e acho que não tomaria muito seu tempo
escrever uma série por exemplo de Vinte Peças Populares Brasileiras pra piano.
Não pense não que estou fazendo encomenda nem achando que você está fazendo
caminho errado. Artista verdadeiro nunca faz caminho errado e você sabe o meu,
o nosso entusiasmo aqui pelas últimas coisas que você tem feito. […] Se eu lembro
essas peças é porque a literatura pianística brasileira está carecendo delas. E só
um artista como você poderia dá-las de maneira a serem representativas da nossa
raça e sem deformações italianizantes ou debussiantes. Atualmente no Brasil só
vejo você pra escrever essas músicas. Tente Villa. Será certamente mais uma obra
maravilhosa. Estou carecendo delas pro meu curso. Você já sabe que quem
introduziu e sustentou você no Conservatório daqui fui eu. Tenho essa felicidade.
Pois me mande essas peças que serão adotadas como as outras todas. Disse vinte
porque não carece fazer coisas compridas. Um tema popular de moda, de dança,
de lundu harmonizado da maneira tão característica de você. Seria uma delícia! E
com essa facilidade que você tem não tomaria muito tempo. Pense nisso e faça as
peças como entender. Você sabe o que fará e não estou aqui pra dar conselhos.
Estou pedindo porque careço disso pros meus cursos e o Brasil carecendo pra sua
literatura musical. E é uma coisa que só Villa-Lobos pode fazer agora no Brasil.
(3/8/1925)
A notícia das Cirandas vem numa carta de 12 de abril de 1926, do Rio de Janeiro, a qual é mais
um testemunho de que na época o compositor sintonizava-se com o programa do crítico e buscava
consagrar-se com ele:
Atualmente, estou escrevendo coisas que te vão interessar muito. Além das
séries dos "Choros" (que já vão a 14), os “Cinemas”, (que são 6) que já tens pelo
135
menos noticias, escrevi uma longa série de 20 peças cujas formas e processos
novos dei o nome de "Cirandas". São todas para piano ou pequena orquestra; e
por fim, uma outra série para canto e piano, intitulada "Serestas".
Em tudo isso, venho completando o meu velhíssimo programa de escrever
musica regional, ou melhor, de escrever a música deste grande país, sem estilizá-
la, nem harmonizá-la, nem tão pouco adaptá-la, no ambiente da técnica musical
européia, tão diferente da nossa, que é vivida ha séculos nos nossos choros.
É verdade que até a minha Prole do Bebé n. 1- (1918), escrevi dentro da
técnica européia, vários temas inteiramente brasileiros, porém sempre estudando a
forma que pudesse ver-me livre desta influência cascuda. Já no meu Quarteto
symbolico, comecei a me ver livre desta terrível peia, acordei no meu Sexteto
Mixto (1921), sacudo por completo as asas, e realizo as minhas duas (queridas)
Sinfonias Indígenas ou Selvagens (1922)- das quais nasceram os meus, Nonetto,
Malazarte, Os Choros, Cinemas, Cirandas, Serestas e não sei o que será mais do
teu Villa-Lobos.
Manuel Bandeira, que ouvira naqueles dias algumas das Serestas e Cirandas em audições
particulares, atribui às leituras e estudos folclóricos que Villa-Lobos realizava na época uma
influência na feitura destas novas composições. O contato com o folclore teria “adoçado,
simplificado e clarificado” a música do compositor. “A série das Cirandas para piano são tão
bonitas, tão brasileiras e tão pianísticas. É uma gostosura, como você diz”, comenta Bandeira em
carta a Mário de Andrade, de 1o de maio de 1926 (Andrade, 2000, p.288). Segundo anota Marcos
Antônio de Moraes, o material folclórico coletado pelos Oito Batutas por encomenda do
empresário Arnaldo Guinle, fora transferido a Villa-Lobos pelo próprio Guinle no seu encontro
com o compositor em Paris (ibid. p.289). Villa-Lobos projetava a publicação de uma obra em três
volumes com o título de Alma do Brasil, manuscrito em processo que por sua vez oferece a Mário
de Andrade em 1928 para que o levasse até o fim, reconhecendo carecer da capacidade e do tempo
necessários para realizar obra de valor (carta de 25/12/1928). Durante esse período no Brasil,
antes de partir novamente para a Europa em 1927, Villa-Lobos de certa forma participou das
trocas e conversas sobre folclore brasileiro, que agora despertava grande interesse em Mário de
Andrade, Manuel Bandeira, Jaime Ovalle e Luciano Gallet, entre outros criadores que se
preocupavam com o caráter nacional da expressão artística. Quando falava da sua música, no
entanto, Villa-Lobos insistia que ela era expressão da sua sensibilidade, sendo os temas sempre
fruto da própria invenção: “El folklore no me preocupa. Mi música es como es, porque la siento
así. No cazo temas para utilizarlos después. Escribo mis composiciones con el espíritu de quien
hace música pura. Me entrego completamente a mi temperamento”, explicava o compositor em
entrevista a Alejo Carpentier, com quem se encontrou em Paris (in: Carpentier, 1980, p.47).
Talvez precisamente nessa atitude se radicasse tanto a grandeza que Mário via em Villa-
Lobos quanto o seu calcanhar de Aquiles. A criação num estado de inconsciência nacional era
136
para Mário o alvo ao qual se dirigiam os seus esforços sistematizadores. Mas, no estágio atual da
música brasileira, a posição de Villa-Lobos o levava, segundo o crítico, a um individualismo cujo
“valor normativo” era “quase nulo”. A ordem do momento devia ser a “transposição erudita” dos
elementos já existentes na música popular. “Mas como a tudo quanto faz, Villa-Lobos imprimiu
aos Choros, Serestas, Cirandas, uma feição individualista excessiva, não se utilizando
propriamente das formas populares nem as desenvolvendo” (Andrade, 1962, p.63). Anos depois,
discutindo com Camargo Guarnieri o problema da forma da criação musical, Mário vem
reivindicar de certo modo a invenção de formas próprias e livres: “Villa-Lobos tem
essencialmente razão quando falou que os Choros, as Cirandas, as Serestas, eram ‘formas novas’,
contra o que danou Luciano Gallet. Há realmente nos Choros uma forma conceitual que é de
Villa-Lobos, específica dele. […] Uma forma sem forma, sei, mas que não deixa de ter sua
objetividade, seus pontos de referência, suas bases temáticas, etc. Muito mais visivelmente ainda,
as Cirandas têm forma própria, que é delas” (carta de 22/8/1934).
Veja-se que as censuras que Mário fazia a Villa-Lobos, principalmente nos tempos do
Ensaio, estavam ligadas à sua preocupação com a fase que vivia então a música brasileira, a
chamada fase de construção ou fase primitiva. Mas o certo é que o crítico admirava
profundamente as obras dele, especialmente o Trio para clarinete, oboé e saxofone, a Lenda do
Caboclo, o Choros n.7, as Cirandas e o Amazonas, entre outras. Os primeiros escritos em que o
autor se estende sobre algumas destas peças são as críticas aparecidas no Diário Nacional sobre os
dois concertos realizados em 1929 em São Paulo, logo após o retorno do compositor de Paris. O
autor destaca particularmente a construção do Choros n.7 — o Settimino —, “parede mestra”
desse “monumento único da arte nacional” que considerava ser a série dos Choros, da qual o
encantador Choros n.2 faria o papel “dum desses graciosos frontões arabescados da nossa
arquitetura colonial”. Em termos melódicos o Choros n. 7 apresentava duas formas de
aproveitamento do populário: a deformação melódica de um tema tradicional, no caso, indígena
— assim interpreta Mário o motivo de abertura apresentado pelo clarinete e o violoncelo { - 3} —
e a invenção de motivos dentro do caráter da música popular, no caso, dos choros cariocas { - 4}.
Escapando da forma tradicional, Mário via neste Choro uma construção firme, onde pequenos
motivos apresentavam-se com enorme variedade rítmica expandindo o timbre dos distintos
instrumentos numa “ilação, admiravelmente inventada, da forma de rondó”. Finalmente,
harmonias modernas, como a série de nonas paralelas no final, acomodavam-se na peça a serviço
de uma maior expressividade e comoção. “É prodigioso”, concluía o crítico.
Além desta exaltação de processos melódicos, rítmicos, harmônicos, tímbricos e formais,
detectados em determinados momentos das obras apresentadas, as duas críticas de 1929 discorrem
137
sobre outro tema central e polêmico da obra de Villa-Lobos. No linguajar da época, tratava-se de
uma certa expressividade bárbara, ou expressividade do primitivo. Já nos primeiros parágrafos do
Ensaio sobre a música brasileira, publicado no ano anterior, Mário manifesta-se contrariado pela
recente recepção das obras de Villa-Lobos na Europa, aparentemente aclamadas pelo seu
exotismo. Referia-se principalmente a uma crítica de Henry Prunnières, diretor da Revue
Musicale, reproduzida no jornal O Estado de São Paulo em 11 de janeiro de 1928, onde se
afirmava:
138
principalmente mais eficácia de expressão, uma transposição erudita da barbárie” (in: Batista
1972, p.366). A nova versão do poema sinfônico Amazonas { - 5}, apresentada ao público de São
Paulo em 1930 numa temporada de concertos dirigidos pelo próprio Villa-Lobos, representava a
culminação dessa tendência que Mário descrevia como “música-natureza”. Grande admirador
desta obra, o crítico entendia que se ela se afastava da música européia não era pelo emprego ou
inspiração de temas musicais brasileiros, mas por uma expressividade própria que acomodava de
maneira única os procedimentos musicais modernos:
É verdade que ao longo da crítica citada Mário de Andrade procura esmiuçar a partitura do poema,
destacando trechos e procedimentos musicais originais, considerando a técnica e a expressividade
do compositor. Mas as conclusões finais, representadas pelo trecho citado, na verdade não distam
muito das opiniões do crítico francês H. Prunnières sobre a música do Villa-Lobos, que Mário
tanto censurou. O imaginário sobre as terras virgens da floresta encantava também artistas latino-
americanos tão urbanos como Villa-Lobos, Mário de Andrade e o cubano Alejo Carpentier. Para
este último, Villa-Lobos era um grande exemplo de alguém que deixava sair esse “incêndio
tropical que temos dentro de nós”. Ele expressava as “vozes virgens” que o Velho Mundo
desejava escutar. O artista latino-americano tinha de cavar a sua própria sensibilidade.
Expressando esta descoberta interior seria capaz de conquistar a Europa, como a música que
brotava da imaginação de Villa-Lobos, vinda de rios cujo caudal deslustrava as harmoniosas
fontes da cidade das luzes:
139
piano — ¿baquetas de tambor? — golpean mil lianas sonoras, que transmiten ecos
del continente virgen.
Y ante el discurso de la palmera que piensa como palmera, calla por un
instante, como avergonzada, la fuente de la plaza Saint-Michel. (Carpentier, 1980, p.
50-51)
Durante a série de concertos regidos por Villa-Lobos quando retornou de Paris em 1930
houve atritos entre o compositor e os professores da Orquestra, atritos esses que, como explica
Arnaldo D. Contier, “denotam um complexo jogo de emoções, ações, práticas culturais ligadas às
representações político-artísticas das elites dominantes brasileiras, durante os anos 20 e 30”
(Contier, 1996, p.110). Com a revolução de 1930, Villa-Lobos achou uma alternativa para a sua
difícil inserção no meio social e cultural brasileiro. “Sob o governo getulista (1930-1945), Villa-
Lobos consolidou um amplo projeto em prol da catequese do povo brasileiro através de atividades
artísticas” tendo ocupado, desde 1932, o cargo de Diretor da Superintendência de Educação
Musical e Artística das Escolas Públicas do Rio de Janeiro (SEMA) (ibid., p.114). Os
posicionamentos políticos de Villa-Lobos e a sua relação com o governo provocaram um
distanciamento entre o compositor e Mário de Andrade. Publicamente o crítico manteve silêncio,
mas na intimidade da correspondência com os amigos, revelava seu desgosto tanto pelo
oportunismo político do compositor, quanto pela sua recente criação artística. Em carta de 20 de
janeiro de 1933 a Prudente de Moraes Neto, afirma:
Bem: o Villa, de amoral inconsciente que sempre fora, e delicioso, virara canalha
com sistema, e nojento. Mudança tão violenta assim, de contextura moral, havia
necessariamente de afetar a criação, afetou mesmo. A produção musical do Villa
baixou de sopetão quase ao nada, como valor. Compôs uns hinos, uns coros, umas
transcrições de fugas de Bach pra celo e piano e umas pecinhas pianísticas, tudo
simplesmente porco. De vez em longe uma linha, uma invenção de efeito, acusava
no meio da porcaria, o gênio despaisado […] Essa VONTADE DE SERVIR a toda
gente é que faz toda a imoralidade repulsiva do Quarteto [n.5 …]. Quer conciliar as
coisas, e, pois que tornou-se um sistematizado lambedor de cus, lambe os ditos do
acadêmico criticante como do burguês ouvinte, do modernista embandeirado como
do passadista louco pra se rever no novo.[…] (In: Toni, 1987 p. 41-42)
Mário quebra o silêncio crítico que mantivera por anos sobre Villa-Lobos com um artigo
dedicado às Bachianas Brasileiras { - 6} (23/11/1938), que lhe despertaram admiração. Os velhos
camaradas tinham reiniciado alguma correspondência depois de que Mário de Andrade assumira o
cargo de Diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1935. Em janeiro de 1936, Villa-
Lobos enviava para avaliação do crítico o texto preliminar do “Guia Prático para Educação
Artística e Musical” que preparava então, e saudava o amigo com as seguintes palavras: “Quando
se vive trabalhando para ser útil ao mundo, o silêncio do tempo entre as relações de amizade se
140
transforma num sentimento íntimo e ponderado de admiração aos seus amigos mais eleitos, muito
maior do que quando se vive em contato constante. Eis o nosso caso” (14/1/1936). Embora lhe
desgostasse muito o ufanismo das atitudes de Villa-Lobos e sua conivência com a ditadura de
Vargas, Mário discretamente reconhecia os esforços dele pela educação musical, dentro de uma
atitude socializante que destacava os compositores brasileiros da época de outros colegas latino-
americanos. Como parte de uma polêmica com Francisco Curt Lange, que teria censurado o
“folclorismo” dos compositores brasileiros, Mário elabora um interessante argumento segundo o
qual o caráter nacional das obras dos seus contemporâneos não devia ser visto a penas como uma
questão de nacionalismo mas como “uma tendência para diminuir anti-capitalistamente, a
distância social hoje tão absurdamente exagerada entre a arte erudita e as massas populares”:
Embora Mário de Andrade tivesse uma relação conflitante com Heitor Villa-Lobos,
ressentindo muitas vezes certos aspectos da personalidade do compositor, a música deste se
apresenta como a primeira e mais significativa inspiração na configuração do pensamento
andradeano sobre a música nacional. Curiosamente, o afamado compositor brasileiro foi também
uma influência significativa no cubano Alejo Carpentier, para quem a música de Villa-Lobos
traçava o caminho a seguir pelos compositores de todo o continente latino-americano.
Luciano Gallet
O compositor, folclorista e educador Luciano Gallet (1893-1931) foi um dos muitos
amigos que Mário de Andrade cultivou principalmente por correspondência. Num período de
cinco anos — entre 1926, quando tem início o intercâmbio epistolar, até a morte de Gallet em
1931 — Mário recebeu mais de 50 cartas do compositor carioca. Importantes trechos de várias
delas foram publicados pelo escritor no prefácio ao livro de Gallet Estudos de Folclore, dado à luz
postumamente graças aos trabalhos de organização e edição feitos pelo próprio Mário e por Luiza
Gallet, viúva do compositor. Estes fragmentos de tão sugestiva correspondência serviram de base
para estudos sobre a relação entre as idéias de um e as músicas do outro, como a monografia
Luciano Gallet via Mário de Andrade (Chagas, 1978) ou, mais recentemente, a dissertação O
141
nacionalismo na trajetória musical de Luciano Gallet (Bardanachvili, 1995). Hoje, com a
possibilidade de se consultar integralmente ao menos as 56 cartas de Gallet preservadas no
Arquivo de Mário de Andrade, temos acesso a novas informações referentes ao intercâmbio entre
estes dois artistas que tantos esforços consagraram ao desenvolvimento da música brasileira.
A primeira missiva de Luciano Gallet a Mário de Andrade data de agosto de 1926. O
compositor lhe agradece o envio de vários livros, entre eles a Escrava que não é Isaura, e
aproveita para lhe fazer uma consulta em relação a um pedido de Villa-Lobos. Pouco tempo antes,
em julho do mesmo ano, Mário de Andrade estivera no Rio, ocasião em que devem ter se
conhecido pessoalmente, talvez por intermédio de Renato Almeida, amigo de ambos. Mas é numa
segunda carta que se revela propriamente a amizade e o caráter da relação que se iniciava:
Mário amigo. A sua carta foi para mim prodigiosa. Causadora de satisfação como
poucas tenho tido. […] Tive a sensação de encontrar um amigo […] de igual a
igual. […] Por causa da dita, vieste embaralhar as resoluções — disposições do
momento. Tinha resolvido deixar em sossego a música, a composição, até... nova
ordem. E vieste atirar-me a um balanço retrospectivo do meu eu musical. Buli
papeis, analisei oito anos de trabalho anterior, muito bem guardado, que nem eu
sabia o que lá andava, e fizeste-me descobrir coisas pasmosas. Conclusões
inesperadas. Resultado — Estou preparando, desde domingo último, a atrapalhada
toda, pondo em ordem, documentando, esclarecendo horizontes e resultados
obtidos. E farei chegar às tuas mãos. Pobre Mário, que perspectiva! Talvez chegue
a interessar-te. (5/9/1926)
142
Luciano Gallet descobriu um filão. Em vez de pegar no canto popular, e fazer dele
um mero jogo temático, ele o respeita inteirinho. E é pela harmonização, pela
rítmica e pela polifonia que, buscando interpretar e revelar a cantiga registrada,
ele faz obra de verdadeira invenção, conseguindo até uma originalidade bem
pessoal. Por aí principalmente a obra séria dele se afasta fundamentalmente do
diletantismo com que mesmo compositores profissionais harmonizam de vez em
quando as modas da gente. (In: Batista, 1972, p.335)
Um ponto de contato entre Gallet e Mário de Andrade foi o interesse pela música de
Ernesto Nazareth, como já vimos no capítulo terceiro. Gallet tinha sido pianeiro nos cinemas e
bares do centro carioca, tendo inclusive tocado num sexteto dirigido por Villa-Lobos no Bar Rio
Branco. A influência de Nazareth, o maior representante desse mundo dos pianeiros, se revela em
duas das suas primeiras composições: o maxixe Caxinguelê, escrito para concurso em 1917, e o
Tango-Batuque de 1918. Na época, porém, o compositor criava principalmente sob o signo do
impressionismo debussista e influenciado pelo intenso contato que tivera com a música de Glauco
Velásquez. Por outro lado, tendo conhecido o francês Darius Milhaud em 1917, penetrava nas
inovações de compositores modernos como Stravinsky, Schoenberg e Satie. Em 1921, Gallet
organiza um concerto no Instituto Nacional de Música apresentando 30 composições brasileiras
para piano de diversos autores, convidando Ernesto Nazareth para interpretar algumas das suas
músicas ao vivo, participação que provocou críticas e polêmicas no meio cultural da época. Para o
compositor carioca, Nazareth representava “a síntese do sentir brasileiro”, como escreveu em carta
a Mário de Andrade (22/10/1926).
A música urbana carioca de começos do século XX, que Gallet conhecia através do
contato com os pianeiros e com Ernesto Nazareth, inspirou uma das obras de fôlego do
compositor, a Suíte Popular para Orquestra de Câmara, de 1929. Cada um dos movimentos desta
peça (Doubrado / Tanguinho / Polka / Seresta / Maxixe) citava um tema conhecido de um
compositor popular. Assim, Gallet rendia homenagem a Eduardo das Neves, Ernesto Nazareth,
Pedro de Alcântara e Paulino Sacramento (Bardanachvili, 1995, p.53). No Ensaio sobre a música
brasileira Mário de Andrade chamava a atenção dos compositores para as possibilidades estéticas
da forma da suíte como molde no qual desenvolver obras de caráter nacional. Argumentava que
manifestações tradicionais como o bumba-meu-boi, o maracatu, os reisados, etc. Prestavam-se
admiravelmente como modelos formais. E, de fato, compositores como Gallet e Lorenzo
Fernández dedicaram os seus maiores esforços criativos a obras que seguiam a forma da suíte,
como veremos a seguir.
Os vestígios do diálogo com Mário de Andrade aparecem de alguma maneira em todas as
obras principais da chamada fase nacionalista de Luciano Gallet. A peça considerada pela crítica
como a “primeira obra instrumental nacionalista” de Gallet, a Suíte Turuna de 1926, foi dedicada
143
ao crítico e amigo paulista (Bardanachvili, 1995, p.50). Turuna, para violino, clarinete, saxofone e
bateria, é formada por três movimentos, Seresteiro — terminado depois da visita de Mário de
Andrade ao Rio, segundo carta do compositor — Saudoso e Mandinga, estes últimos baseados em
dois esboços criados em 1923 “em busca de um sentir brasileiro”, e re-trabalhados em 1925
(ibid.). “Com Turuna já estamos numa outra intimidade com o nacional que não com a Dança
Brasileira de 1922”, afirmava Mário de Andrade (in : Gallet, 1934, p.20). Esta Dança,
apresentada no Festival de Música Característica Brasileira, organizado pelo próprio Gallet em
1923, embora agradando o crítico, era questionada na sua “brasilidade” por uma razão curiosa: o
aspecto rítmico que dava caráter à peça não era considerado brasileiro, mas sim africano ou, pior
ainda, falso-africano: “Não quero desfazer desta [da Dança] que gosto bastante, ainda nitidamente
acordal, com momentos de saborosa harmonização. O que a prejudica bem é o título, pelo qual,
nós, nacionais temos uma tendenciazinha prá repudiá-la. Porque pouco de brasileiro ela tem.
Ainda muito metido com seus cacoetes europeus de cultura, Luciano Gallet quis fazer brasileiro e
saiu africano. […] Essa falsificação inconsciente já não existe no Turuna, cuja essência bem como
realidade são perfeitamente nacionais” (ibid.).
Por outro lado, a Suíte Nhô Chico para piano (1927) nasce de uma sugestão de Mário de
Andrade de compor uma obra no estilo dos Tableaux d’une Exposition de Mussorgski, com base
numa coleção de temas populares de bumba-meu-boi que ele prometera a Gallet. Em abril de
1927, o compositor envia o primeiro da série em processo, que consistiria de “3 números
brasileiros para piano, meia dificuldade, encomenda do Mário de Andrade, servindo de estudo
preparatório para o Bumba meu boi, que você vai mandar o mais breve possível” (14/4/27). Nessa
mesma carta, o compositor pedia indicações de como obter o folclore de Kodaly, Bartók e
Allende, que desconhecia, e ao qual certamente Mário devia ter feito referência por carta. Mesmo
antes da sua primeira viagem ao nordeste, Mário tinha mostrado um interesse especial pelo
bumba-meu-boi. O fato de ter oferecido a Gallet a documentação que possuía sobre tal
manifestação e de estimulá-lo a servir-se dela é um indicador das expectativas que Mário de
Andrade formava a respeito deste compositor. Gallet sabia da importância que o crítico outorgava
a este projeto e em várias ocasiões manifesta remorso por não ter ido além daquela primeira
realização da Suíte Nhô Chico. Em carta de 1930 se manifesta desejoso de iniciar uma série de 9
números para piano baseados no “Bumba”. Tratar-se-ia de peças virtuosísticas, desta vez. “O
projeto de Bailado-Coros fica para depois” (21/1/1930). Mário reconhecia a sua participação
nesta idéia e inclusive aceitava parte da responsabilidade por não ter sido levada até o fim. Após a
morte do compositor, afirma: “Mas a vida não lhe permitiria pôr em andamento uma obra que ele
desejava, e eu esperava, fosse a consagração definitiva do compositor. Ambos nos tínhamos posto
144
levianamente a farejar a obra-prima, e essa ousadia creio que nos assustava um pouco aos dois. E
o trabalho enorme ficava pra dias de maior repouso” (in: Gallet, 1934, p.29).
Outra forma de convergência entre Mário de Andrade e Luciano Gallet no plano da criação
se realizou com a canção Lenda do Pai do Mato, baseada em poema de Mário da série do Clã do
Jaboti. Em outubro de 1928 Gallet dá notícia de ter concluído a peça, e no mês seguinte, a
caminho do Nordeste, Mário assistia no Rio a um ensaio da canção na casa da cantora Julieta
Telles de Menezes. Baseado em texto de inspiração ameríndia, Gallet se servira de dois temas
originais indígenas aproveitados episodicamente, o que dava ao poema “uma estranheza melódica
admirável”. A interpretação do sentido emotivo dos seus versos deixou Mário profundamente
assombrado com esta peça, que ele considerava “uma das obras mais impressionantes da lírica
nacional”:
A Suíte sobre temas negro-brasileiros de 1929 é onde melhor se pode enxergar o folclorista
e o compositor Luciano Gallet, ambos caminhando de mãos dadas. Gallet fez muita pesquisa
sobre música brasileira em arquivos e bibliotecas, tendo anotado também diversos temas
oferecidos por amigos como Antônio Bento, a cantora Germana Bittencourt, e outros. Entre as
poucas experiências que realizou de registro de campo, destaca-se a pesquisa feita em 1928 sobre
cantos e danças de negros do interior do estado do Rio, enquanto recuperava-se de uma doença
numa fazenda de São José da Boa Vista. Este material foi a base para o trabalho preparado por
motivo do Congresso de Artes Populares de Praga, organizado pela Liga das Nações. Durante o
processo de redação e análise do material, Gallet escreve ao amigo paulista: “Desde que voltei de
São Paulo, afundei nos negros. E foi um mergulho daqueles! Só agora estou levantado a cabeça,
isto é boiando. Por causa dos negros andei pelos índios. Foi um passeio longo. Tão longo que nem
pude dizer bom dia sequer aos amigos” (15/8/1928). A motivação para aproveitar esta expedição
pelas regiões sonoras afro-brasileiras vem com o pretexto de enviar uma peça de câmara para um
concurso de composição em Washington. Cada um dos movimentos da suíte, para flauta, oboé,
clarinete, fagote e piano, baseia-se em um tema folclórico afro-brasileiro. O primeiro movimento,
Macumba, é um desenvolvimento da harmonização feita anteriormente sobre o tema religioso de
Xangô incluído no Ensaio sobre a música brasileira. O segundo movimento, Acalanto, inspirou-
145
se no tema Nigue nigue ninhas, acalanto paraibano, que Mário lhe enviara por carta em abril de
1928 atendendo a pedido de Gallet de documentos musicais afro-brasileiros para incluir na
memória destinada ao Congresso de Praga.112 O último movimento, Jongo, foi composto a partir
de uma das danças negras do estado do Rio, recolhidas pelo próprio Gallet (Bardanachvili, 1995,
p.60). Para Mário de Andrade — e a pesquisadora Rosane Bardanachvili compartilha esta opinião
— a Suíte sobre temas negro-brasileiros constitui a melhor obra de Luciano Gallet:
A apreciação que Mário fazia da obra em 1934 destaca o elemento da “barbárie” como valor
positivo em termos de expressividade. Tratava-se, porém, de uma “barbárie” diferente daquela que
o crítico apontava na música de Villa-Lobos, a qual nascia do temperamento violento do
compositor. A “barbárie” de Gallet provinha do folclore afro-brasileiro. A sabedoria deste se
radicava, segundo se desprende da crítica, na habilidade de dominar a barbárie, de organizá-la, de
amansá-la, de transformá-la num eco de “sinistras e antigas fatalidades” e concluir com um
“brilho claro”, conseguido pela sobriedade de um mestre na lógica da harmonia. Fazer música de
caráter nacional significava, de alguma maneira, saber lidar com a barbárie, saber incorporá-la
utilizando o filtro [crivo] da técnica erudita. Os julgamentos de Mário de Andrade sobre esta obra
revelam o posicionamento do crítico no começo da década de 1930 em relação à missão social dos
artistas diante do projeto de uma civilização brasileira.
A procura de uma linguagem musical nacional foi o assunto privilegiado do diálogo entre
Mário de Andrade e Luciano Gallet. O compositor afirmava ter encontrado em Mário “a crítica
clarividente que procura equilibrar, e que orienta como se fosse ultra-evidência” (carta de
14/4/1927). Mas a preocupação de ambos por impactar o meio musical da época os levou a
coincidirem e colaborarem em iniciativas diversas relacionadas à pesquisa folclórica, à educação
146
musical e ao desenvolvimento de uma crítica musical séria. Em novembro de 1928 aparece o
primeiro número de WECO (Revista de Vida e Cultura Musical), patrocinada pelos editores
Wehrs & Co. E sob a direção de Luciano Gallet. Publicada mensalmente até janeiro de 1931, a
revista dava notícia dos concertos e atividades musicais da cidade, reproduzia artigos sobre a
composição musical contemporânea e a pesquisa folclórica, fazendo ainda homenagem aos
principais compositores brasileiros em atividade, incluindo Henrique Oswald, Villa-Lobos, José
Francisco de Freitas, Francisco Braga, Lorenzo Fernández, Francisco Mignone e o próprio
Luciano Gallet, além de alguns mestres do passado como José Maurício, Carlos Gomes e Alberto
Nepomuceno. Em 1930 foi a porta-voz de uma campanha impulsionada por Gallet que visava
reagir contra o estado da música no país em face do impacto da emergente indústria musical.
Dessa iniciativa organizou-se a Associação Brasileira de Música, que promoveu conferências
ilustradas e passou a publicar a Revista da Associação Brasileira de Música (1932-1934). Com o
triunfo da Revolução de 30, Gallet aceita a direção do Instituto Nacional de Música e dedica-se a
um projeto de reforma elaborado em colaboração com Antônio de Sá Pereira e Mário de Andrade.
O empenho de Gallet como compositor, como educador e como promotor da vida musical
granjearam-lhe a amizade e o respeito de Mário de Andrade, que após a sua morte afirmaria:
“Luciano Gallet realizou, como talvez ninguém com a mesma integralidade, o músico brasileiro.
Se na composição a morte lhe deixou a arte incompletada; músico, na mais humana significação
do termo, ele o foi completamente” (in: Gallet, 1934, p.32).
O compositor carioca Oscar Lorenzo Fernández (1897-1948) formava junto com Heitor
Villa-Lobos e Luciano Gallet a tríade que em 1928 Mário de Andrade denominava “o grupo dos
Três” por serem os músicos brasileiros “que abandonando o ecletismo internacional da
composição sem caráter étnico, endireitaram definitivamente a música entre nós para uma criação
mais nacional e mais justa.”113 Lorenzo Fernández, colega de Luciano Gallet no Instituto Nacional
de Música, ganha a atenção da crítica com seu Trio Brasileiro, de 1924, que mereceu o Primeiro
Prêmio do Concurso da Sociedade de Cultura Musical. Na Suíte Sinfônica, estreada no ano
seguinte, o compositor dá continuidade a esta busca, iniciada com o Trio, da expressão de uma
brasilidade na música erudita através da exploração do universo popular.
A correspondência com Mário de Andrade, iniciada em 1927, vem reforçar o credo numa
música nacional e provocar reflexões estéticas e sociais sobre a Arte. Na primeira missiva,
Lorenzo Fernández comenta com Mário as suas intenções expressivas na Suíte Sertaneja — mais
147
tarde conhecida apenas como Suíte para quinteto de sopros — participando-lhe que a obra seria
dedicada a ele. O compositor visualizava este trabalho como um verdadeiro manifesto do seu
critério estético, ou melhor, uma metáfora do seu despertar como artista brasileiro, de um encontro
com seu destino:
148
a música é nobre! Música de caipira a gente deixa para os caipiras. Indecente!... Depois então o
senhor não há de mais aplaudir essas bobagens de cidade sem civilização!... Música é Chopin,
moço, é Liszt!” (Andrade, 1976, p. 74). A história de Dona Eulália não deve ter sido um caso
incomum nos auditórios da época mas, concretamente, ela parece inspirada num anedótico
episódio acontecido com outro notável escritor do Modernismo, segundo comenta Lorenzo
Fernández na carta citada:
Lorenzo Fernández, como vimos igualmente com Gallet e Villa-Lobos, admirava a obra
literária de Mário de Andrade e desde o início da correspondência com o escritor vai procurando
formas de colaboração. Exige o envio dos livros que Mário lhe prometera, solicita “poesias ou
lendas para musicar ou beber inspirações brasileiras” (25/1/1927), elogia o Clã do Jaboti e o
Macunaíma, sobre o qual propõe fazer um bailado, como veremos no próximo capítulo, e no fim
desse ano de 1927 compõe a Toada pra você, sobre versos do poema “Rondó pra você”: “Senti
uma música muito dengosa e brasileira. Ficou lenta e muito repetida. Não sei se você sentiu mais
vivo, se errei na interpretação, diga sem reservas” (14/2/1928).
Eram os tempos da redação do Ensaio sobre a música brasileira, e Mário de Andrade
debruçava-se sobre os traços da arte no período “primitivo” de nacionalização em que se
encontrava o Brasil, meditando sobre a função social do artista nessa fase de construção. Entre os
compositores em atividade, Mário reconhecia em Lorenzo Fernández uma qualidade única como
sistematizador e divulgador do credo nacionalista. “A sua criação não tem aquelas invenções
arroubadas com que Villa-Lobos dispensa a técnica pra criar uma possível ‘técnica’ que só a
boniteza da obra parece justificar. Nem a inquietação tormentosa, o excesso de inteligência crítica,
que perturbava a liberdade criadora de Luciano Gallet” (in: Andrade 1993, p.127). “Ele mantém
entre nós o mesmo destino de um Ravel ou dum Respighi. Não traz nada de propriamente novo,
mas pela segurança, equilíbrio e profundeza técnica, generaliza e mesmo tradicionaliza o novo já
existente”.115 Sentindo-se em confiança e aproveitando o respeito que os compositores amigos
149
guardavam por sua opinião crítica, de vez em quando Mário se atirava no diálogo epistolar a
reflexões arriscadas e complexas, que provocavam perturbação ou mesmo reações defensivas nos
seus amigos. Uma carta de Lorenzo Fernández de 1928 mostra o impacto das considerações do
crítico sobre ele:
Socorro! Socorro!!
Socorro!!!
Estou no mato sem cachorro!
Socorro!!!!
Estou pedindo socorro a você, caro amigo, pela sua carta. Li, reli, treli e...
cada vez entendo menos. Você diz que a minha arte funcionando socialmente
perdeu a personalidade (Aí eu fiquei muito triste) mas logo após você diz que esse
é também o seu caso (Aí eu fiquei muito contente, mesmo). Agora pergunto eu: isto
é paradoxo? Pois se você diz que eu estou no seu caso (antes fosse) e eu acho você
tão original, como é que você quer que eu entenda isso. Não posso e por isso peço
socorro, para que você me explique mais detalhado e mais claro. […]
Esse período me fez pensar muito. Será que eu estou retrogradando? Fiquei,
sinceramente, impressionado. Ah! você não sabe a falta que me está fazendo. Se
você estivesse aqui no Rio, nós conversaríamos muito. Nós, Artistas, por estas
paragens, vamos ficando insulados, atrofiados. Não temos quase com quem trocar
idéias. E depois o trabalho é extenuante.
Mas eu peço que em nome da nossa boa e sincera amizade você me diga tudo
o que pensa sobre a minha obra. Você sabe que eu estimo, em muito, a sua
lealdade (os elogios não adiantam em nada, na obra do artista). […] Pode ser que
a cara fique triste mas o coração fica alegre quando ouve as verdades; e eu ficarei
mais seu amigo. (24/10/1928)
150
Os três tempos, magnificamente bem proporcionados, são uma síntese da estética
nacionalista de Lorenzo Fernández, que desde o Trio, já aplicava o elemento
folclórico apenas como princípio temático, reduzindo-o muitas vezes a um mínimo
de célula condutora da invenção. Realmente, ninguém mais inteligentemente, nem
mais habilmente que ele já soube aproveitar as constâncias rítmico-melódicas, as
células caracterizantes da nossa produção popular e tirar delas as possibilidades
duma criação livre, individualista, mas incontrastavelmente nacional. (In: Andrade
1963, p.181)
Outro assunto sobre o qual Lorenzo Fernández solicitara o conselho de Mário em diversas
ocasiões foi a procura de títulos para as obras, como foi o caso de algumas das peças mais
conhecidas do compositor: o poema Imbapára (batizado por Mário) e o Reisado do Pastoreio.
Tendo concluído esta última suíte, de caráter “absolutamente brasileiro”, o compositor indaga se
seria possível chamá-la de ‘Maracatu’, que, segundo Mário precisara no Ensaio, era uma forma de
suíte. “Gostaria de ser o primeiro a empregá-lo”, confessa o compositor, que no entanto não
conhecia suficientemente a manifestação popular para saber que os movimentos Pastoreio, Toada
e Batuque não se acomodavam bem sob o nome do bailado nordestino, como certamente deve ter
lhe esclarecido o crítico (23/2/1930). A suíte ficou Reisado do Pastoreio (sugestão de Mário,
talvez), mas curiosamente o título pelo qual Lorenzo Fernández tornou-se mais conhecido e
recordado foi Batuque, que nomeava tanto o terceiro movimento desta peça, como o último da
suíte da ópera Malazarte (com libreto de Graça Aranha), finalizada em 1933.
Os batuques de Lorenzo Fernández foram célebres e polêmicos. O primeiro, da Suíte
Reisado do Pastoreio { -10}, foi incluído em concerto de Toscanini no Rio de Janeiro em 1940,
enquanto o de Malazarte mereceu prêmio da New Music Association of California, em 1938.
Ambos constavam nos programas de música brasileira que Lorenzo Fernández apresentou, como
enviado do Ministério de Relações Exteriores do Brasil, nos festivais comemorativos do IV
centenário da fundação de Bogotá, em 1938, e numa turnê que incluiu, além da Colômbia,
apresentações em Cuba, Panamá e Chile, entre outros países latino-americanos. Obras de Carlos
Gomes, Nepomuceno, Francisco Braga, Henrique Oswald, Villa-Lobos, Francisco Mignone, além
da Suíte do Pastoreio, o Imbapára e o Batuque de Malazarte, do próprio Lorenzo Fernández,
integraram o repertório dos programas, que foram muito elogiados pela crítica local. O compositor
e regente quis compartilhar o sucesso dos concertos com seu amigo Heitor Villa-Lobos, então
Diretor do Departamento de Música da Prefeitura do Rio, e assim lhe escreve de Bogotá no dia 9
de agosto de 1938:
Não imaginas a alegria com que te escrevo esta carta, que é a primeira que envio
após os meus concertos. A nossa música conquistou um verdadeiro triunfo e o
público vibrou com delirante entusiasmo, obrigando-me a bis, o que é um fato inédito
151
aqui em Bogotá. Ensaiei o “Descobrimento” e o “Uirapuru” com tanto carinho que
os músicos estavam admirados do meu entusiasmo pela sua obra. Falei muito no seu
nome que já era conhecido e admirado aqui e na formidável obra que estás
realizando na Prefeitura como educador das massas humanas. A tua música agradou
imensamente e estava tão identificada comigo que um jornal trocou as nossas
fotografias, com grande satisfação para mim que assim fiquei menos feio.
Curt Lange contrapunha a contemporaneidade das obras dos novos compositores chilenos e
argentinos, “criadas com intervenção do intelecto”, ao “regionalismo” fácil e passadista da música
brasileira. Mário responde num artigo intitulado “Nacionalismo musical” (Estado, 14/5/1939)
onde defende a escolha consciente dos compositores brasileiros de assumir uma “função social
mais eficiente”: “Querem representar uma nacionalidade e fortificá-la em suas bases musicais
necessárias. É possível não esquecer a pluritonalidade nem a lição de Stravinsky dentro de um
ritmo de candomblé, de uma melodia de modinha, ou de uma invenção nova criada segundo a
fatalidade musical de um povo” (ibid., p.297). A postura de Mário de Andrade frente às
afirmações de Curt Lange deve ser examinada, porém, no contexto mais amplo da sua trajetória
crítica, sempre fruto do diálogo com a produção musical da época.
Mário de Andrade optara por conviver com o paradoxo de acreditar esteticamente na Arte
pura ao mesmo tempo em que, fazendo uma análise da evolução cultural do Brasil, concluía que
socialmente era imprescindível nacionalizar a expressão artística do país. Desta forma, poderia
achar bonita a Dança Brasileira de Luciano Gallet, mas esta não era aceitável como digna
representante da música brasileira, pelo seu “falso africanismo”. Igualmente, o Imbapára de
Lorenzo Fernández podia conter “delícias de combinações de sopro” ou temas de “excelente
152
caráter”, mas por ser música de inspiração indígena “pouco ou nada nos fala à alma nacional”
(Andrade, 1993, p.129 e Andrade, 1963, p.286). Seguindo o pensamento de Mário, tratava-se do
perigo de ser “unilateral”, ou de servir-se do “característico excessivo”. Nos seus batuques, porém,
o compositor soubera trabalhar sinfonicamente o folclore afro-brasileiro dos temas e integrá-los
em suítes que bem pareciam representar a música nacional quando foram estreados no início da
década de 30. É nos trabalhos de orquestra “onde melhor impressão se pode obter desses temas
bárbaros” — confessava o compositor por carta a Mário de Andrade na época em que trabalhava
na suíte de Malazarte (15/8/1933). O crítico conseguia perceber o impacto que esta música
poderia ter no processo de nacionalização da burguesia. Os batuques sinfônicos teriam
conquistado até a milionária Sara Light, de ascendência judia e nascida em Nova Iorque —
personagem fictícia de O Banquete:
Mas já no final da década Mário percebia que a música brasileira estava “insistindo um
bocado excessivamente nos ritmos de batucada” (Andrade, 1963, p.286). A explicação para esse
fenômeno estaria, segundo o crítico, na ignorância sobre folclore nacional por parte dos
compositores brasileiros, que conheciam apenas o samba carioca e algo do folclore nordestino,
ambos muito perigosos por serem “característicos por demais” e “com uma base muito vermelha
de negrismo”: “[…] já está se tornando insuportável, fatigantíssimo, viciado, recendente de
decorativo, o ar de dança, de batuque mesmo, da música brasileira mais complexa, corais,
conjuntos de câmara e sobretudo obra orquestral, poemas sinfônicos, concertos, suítes” (Andrade,
1977, p.151). A pesquisa e estudo do folclore não era de fato o lado forte de um compositor como
Lorenzo Fernández, a quem Mário, no entanto, respeitava e admirava pela sua facilidade de
invenção melódica de inspiração nacional e segurança técnica. Através da correspondência com
Mário de Andrade se confirma que o compositor tinha certa intimidade apenas e justamente com
músicas afro-brasileiras do Rio de Janeiro — faz referência a temas de macumba coletados por ele
mesmo — e com as nordestinas que conhecera através de Antônio Bento.
Lorenzo Fernández teve, por outro lado, uma atuação bastante significativa como educador e
promotor da cultura musical do Rio de Janeiro. Sendo professor do Instituto Nacional de Música,
como Gallet, ele funda em 1930 a revista Ilustração Musical, que contou com a colaboração de
Mário de Andrade. Projetara-se como uma revista exclusivamente “informativa e educadora” sem
153
propagar nenhum dogma artístico, dedicando as suas capas principalmente a mestres da música
européia — Wagner, Berlioz, Verdi, Fauré — ou a consagrados compositores brasileiro do
passado — Carlos Gomes e José Maurício. Incluía também uma longa seção de comentários sobre
a produção discográfica, tanto de música erudita quanto popular. A partir do número de novembro
de 1930, com a instauração do governo de Vargas, a revista publica diversos editoriais e artigos
por Lorenzo Fernández, Luciano Gallet, Heitor Villa-Lobos e outros a respeito da renovação da
educação musical no país. Por outro lado, em 1936 o compositor funda o Conservatório Brasileiro
de Música que, segundo Marcus Straubel Wolff (1991), foi “reduto de forças dissidentes” —
como o prof. Hans Joachim Koellreutter — ao mesmo tempo em que também era colaborador dos
esforços de Villa-Lobos no Conservatório de Canto Orfeônico.
A relação entre Lorenzo Fernández e Mário de Andrade acompanhou a trajetória criativa do
compositor — principalmente entre os anos 1927-1934 — embora esta amizade nunca tivesse o
grau de intimidade ou camaradagem que Mário cultivou com outros compositores da época.
Ambos navegaram as águas do Modernismo, porém, segundo já observara Marcus Straubel Wolff
(1991), dentro desse universo havia particularmente uma afinidade importante entre a obra de
Lorenzo Fernández e as idéias do escritor Graça Aranha. Wolff sustenta que a aproximação do
compositor ao mundo rural — ele analisa a Canção sertaneja de 1924, mas isto bem se aplica à
Suíte sertaneja, assim como ao Reisado do Pastoreio — esteve informada pelo monismo
filosófico de Graça Aranha. Tratava-se de “transformar a relação da cultura com a natureza num
hino dionisíaco no qual a primeira se funde no ritmo vital da segunda” (Wolff, 1991, p.30). Foi
Graça Aranha o autor do libreto da única ópera de Lorenzo Fernández, Malazarte, composta entre
1931 e 1933 e estreada no Rio de Janeiro em 1941. Ouvindo certos trechos sinfônicos da obra em
1934, Mário mostrara-se “inquieto” com o que ouvira. Com exceção do célebre “Batuque”, o
crítico observara certo “retrocesso” na criação do compositor, com uma revalorização melódica
das cordas, que assumiam o predomínio absoluto num “appasionatto muito próximo do banal”
(Andrade, 1993, p.128). Por outro lado, segundo relato da cantora Liddy Chiafarelli, esposa do
compositor Francisco Mignone, a acolhida da ópera em 1941 não teria sido muito positiva:
Mário, eu fui ao Malazarte com o firme propósito de achar bom, pois não quero
'bancar' mulher de pianista que acha todos os outros ruins'. Mas não foi possível
achar bom Mário! […] É de um vazio […], é tudo tão lento, tão tétrico, mesmo
nos momentos nos quais poderiam ser aproveitados os contrastes criados pelo
caráter dos personagens! O batuque do I ato é a única nota vibrante. […] O
público, cheio de boas intenções no I ato, foi se cansando e no fim só havia umas
50 pessoas que batiam palmas […] Tive pena, tanto trabalho para por de pé isto
tudo e que resultado! Fiquei aniquilada e estou exausta hoje! E os críticos amigos
hoje elogiam francamente tudo!! (1/10/1941)
154
Mário de Andrade nunca mostrou um entusiasmo pelas composições de Lorenzo Fernández,
comparável ao que podemos observar em depoimentos sobre certas obras de Villa-Lobos,
Francisco Mignone ou Camargo Guarnieri. Mas este compositor ocupou um lugar de destaque em
escritos andradeanos, como o Ensaio sobre a música brasileira, pela consistência que mostrava a
sua trajetória. Lorenzo Fernández era para Mário o protótipo talvez do compositor integrante de
um Escola Nacional. Não o gênio, mas o imprescindível sistematizador.
Francisco Mignone
155
[…] Atualmente, por exemplo, está chamando a atenção sobre si um jovem
compositor paulista cujo talento é muito grande e que possui admiráveis disposições
para o sinfonismo. Quero falar do sr. Francisco Mignone. Sem contrariar
absolutamente o valor sobejamente provado desse notável artista e a sua maestria de
sinfonista, sem mesmo contestar o delicioso prazer que se tem ao ouvir certos trechos
sinfônicos seus tais como a excelente Congada, as viris Cenas da Roça e a
delicadíssima Velha Lenda Sertaneja, acho porém que este compositor não resolveu
ainda o problema da música nacional, embora a sua contribuição seja
importantíssima.
Os temas de que se aproveita nessas obras nacionalizantes, os ritmos de que se serve
são brasileiros e despertam em nós movimentos e sensações nacionais de intenso
prazer. As imagens hereditárias tradicionais dentro de nós se põem a vibrar
reforçadas quando ouvimos essas obras notáveis.
Mas a sensação crítica e mesmo o sentimento geral criado em nós à audição
dessas obras não é nacional. Por quê? Toda a razão reside em que a intuição
criadora que está nas partes inconscientes do nosso organismo psíquico, não é
nacional no Sr. Mignone. (“Música Nacional” Ariel, outubro de 1924, p. 469-472)
156
anos se passariam até Mignone assinar uma nova ópera, sendo que as próprias tentativas de
compor uma ópera de temática nacional, com libreto de Mário, ficariam inconclusas. Embora as
obras de Mignone após 1929 mostrassem afinidades com o projeto estético de Mário, a
interpretação da personalidade do compositor como fruto de uma pugna interior se fincaria no
discurso crítico sobre a sua trajetória. Segundo aponta Arnaldo D. Contier (1997), a crítica
posterior em torno da obra de Mignone tem reproduzido as interpretações de Mário, as quais, no
entanto, devem ser avaliadas tomando em conta o contexto histórico em que surgiram. Uma
leitura das cartas de Francisco Mignone a Mário de Andrade nos abre as portas para melhor
compreender a própria consciência crítica do compositor gerada no diálogo com o escritor.
O intercâmbio epistolar contínuo entre Mário de Andrade e Francisco Mignone abarca os
anos de 1934 a 1945117, com um lapso entre meados de 1938 e início de 1941, período em que o
escritor morou no Rio, onde estreitara grandemente os laços de amizade com o compositor e a
sua esposa, a cantora Liddy Chiafarelli. Como vimos recorrentemente na correspondência dos
compositores antes examinados, observa-se, principalmente quando se inicia o diálogo epistolar,
um desejo de justificar a trajetória artística percorrida e de afirmar os critérios do credo
nacionalista. A primeira carta que Francisco Mignone envia do Rio a Mário de Andrade
(13/5/1934) tinha por objetivo esclarecer a opinião do crítico sobre o seu passado musical.
Mignone fazia referência às declarações de Mário num artigo recém-publicado sobre a Terceira
fantasia brasileira para piano, no qual, além de aplaudir certos aspectos da obra, o escritor
discorria sobre a personalidade artística do compositor:
Está claro que Francisco Mignone está cheio de saúde e passa muito bem, obrigado.
Mas que trágica, dolorosa mesmo, me parece ser a sua luta interior. Francisco
Mignone se debateu e sempre se debate. A sua personalidade dramática transparece
mesmo em suas obras sinfônicas. […] Porém, Francisco Mignone nasceu no Brasil.
Lutou, se debateu, fez óperas, fará óperas mais, porém, aos poucos foi obrigado a
conformar a sua personalidade, abandonar a espécie mais natural dela, e hoje
Francisco Mignone escreve pra câmara ou pra sinfonismo. (In: Andrade, 1993,
p.181-182)
157
fizeram deparar ‘sempre’ em você um Mignone melodramático, gritalhão, lacrimoso
[…] A minha educação musical foi feita por mãos italianas tanto aqui que na terra
de Mussolini e ciente ou inconscientemente fui atraído na órbita dos que fazem arte a
base de berros e marretas. Carlos Gomes também com o seu fenomenal
temperamento não fugiu desse cerco. Felizmente os tempos nos quais vivemos
conseguiram tempestivamente abrir meus olhos […] às verdadeiras vias para onde,
há muito deveria ter trilhado.
Garanto […] que nunca me senti à vontade escrevendo óperas. Lembro-me da
minha revolta antes de compor o “Contratador dos Diamantes”. A insistência do
professor de composição em São Paulo […] O sucesso efêmero colocou-me durante
um curto lapso de tempo na bifurcação entre a matéria e espírito. O instinto
protestava. A própria “Congada” é uma manifestação altissonante disso. […] Não
conseguia desvencilhar-me... lá estava ainda qualquer coisa que não era meu!... As
“Fantasias” foram, creio, o primeiro estilo de revolta em via de sucesso, ou melhor,
de sossego espiritual. Hoje […] sei onde quero chegar. […] Essa aspiração que me
vinha dos primeiros trabalhos escritos para piano e que eu apresentava com
pseudônimos vários porque, diziam, a música brasileira era arte que envergonhava.
Estou, por isso, coleccionando todas as obras desse período para, mais adiante, as
publicar a título de curiosidade e para demonstrar a inutilidade de maestros
estrangeiros na nossa terra ou melhor da necessidade de abrasileirar os que desejam
viver e trabalhar aqui. (13/5/34)
158
caio como tico-tico. […] O anjo é que procura me realizar. O demônio me esconde em minhas
tendências mais instintivas” (Mignone, 1947, p.49). A ausência de Mário o convertia em sentinela
da sua própria personalidade artística. Agora teria de velar sozinho para controlar certas
tendências naturais, como o gosto pelo brilho ou a facilidade melódica. Mas se a ausência do
crítico lhe provocava um sentido forte de autoconsciência artística, também o liberava de uma
autoridade que agora não aceitaria de mais ninguém: “Se os outros disserem que estou imitando,
se disserem que a minha invenção melódica é banal, que estou mostrando o meu rabinho italiano
em meu brilho e violências apaixonadas, mandarei todos àquela parte” (ibid., p. 39-40).
O debate público sobre a personalidade musical de Francisco Mignone tem que ser
compreendido no contexto da concretização de um projeto de música nacional que Mário se
empenhava em promover e sustentar teoricamente. A correspondência entre eles, por outro lado,
permite vislumbrar a relação de tais princípios programáticos com a prática e a individualidade de
algumas composições importantes de Mignone durante essa etapa. Bailados, planos de ópera e
composições sinfônicas têm raízes no diálogo com o crítico, situando-se em pontos diversos da
trajetória do pensamento estético e social de ambos. Curiosamente o fruto mais completo da
colaboração entre Mário de Andrade e Francisco Mignone foi o primeiro: o bailado Maracatu de
Chico-Rei, considerando-se o nível de envolvimento de ambos no projeto, seu sucesso em termos
de recepção e o lugar que veio a ocupar dentro da produção musical brasileira no âmbito erudito.
Infelizmente contamos com poucas referências sobre a gênese e construção da obra, já que data de
1933, quando Mignone ainda morava em São Paulo. Mas sabe-se que, além de sugerir o enredo,
Mário oferecera a Mignone temas musicais dos maracatus do Nordeste e escrevera a letra dos
coros. Abordaremos esta obra com mais profundidade no próximo capítulo. O sucesso do
Maracatu de Chico-Rei deixara Mignone entusiasmado com a exploração da temática afro-
brasileira em forma de bailado. Com o esboço de uma nova composição, inspirada em algumas
citações de poemas de Jorge de Lima, ele solicita a Mário a criação de um enredo:
Você invente a “trama” que você quiser. O importante é que fique uma coisa, como
diria... quente, sensual e bem misteriosa. Por exemplo, uma 1 cena de exorcismos
não ficaria mal... Estou adiantando demais e não quero atrapalhar os seus grandes
e completos conhecimentos sobre a matéria... Faça você, Mário, está em boas mãos
o meu trabalho e pela mostra do Maracatu espero grandes coisas. (2/1/1936)
Tratava-se de Babaloxá, peça sinfônica estreada em 1937, para a qual, apesar da insistência do
compositor em cartas sucessivas, Mário de Andrade não chegou a propor enredo algum. Mignone,
porém, continuava aguardando alguma proposição do amigo escritor com o intuito de realizar uma
obra de importância, segundo se releva em carta de 27 de abril de 1936:
159
Agora, depois de tudo, só espero que você cumpra, quando puder, com a promessa.
Estou sem argumento para um novo trabalho musical e com uma vontade louca de
escrever alguma coisa que desmanche inteiramente uma porção de senões e falhas
que notei nos meus trabalhos sinfônicos e que por pudor não digo a ninguém quais
são. […] Não quero esticar também esta carta e termino insistindo para que você me
mande logo alguma coisa para me ocupar pois tenho necessidade artística de
escrever o que um dia será para os brasileiros o “meu confesso”! (27/4/1936)
Nessa altura, o escritor começava a achar que a insistência de Mignone pela temática afro-
brasileira tornava-se infecunda. A Terceira Fantasia, o Babaloxá e o Maracatu de Chico-Rei
eram por ele considerados como marcos monumentais, mas a “fase negra” teria de terminar numa
desilusão. Mignone, que era “de uma especificidade brasileira tão íntima como a de qualquer
outro”, havia parado “honestamente a tempo”: “porque se o filão negro lhe dera algumas obras
principais da nossa música, na verdade era uma riqueza artisticamente muito pobre por causa do
seu excesso de caráter”, afirmava o crítico em artigo de 1939 (Andrade, 1963, p. 312). Agora era o
ranço afro-brasileiro — como antes o italiano — o que incomodava o crítico, que almejava para
Mignone uma fase de maior “alcance nacional”. Com este propósito, Mário sugere ao compositor
quatro títulos a modo de inspiração para trabalhos sinfônicos: Festa das Igrejas, Sinfonia do
Trabalho, Visão Amazônica, e Poema dos Sacys. Em 1940 Mignone dá notícias do processo de
composição do primeiro destes projetos. O tema da religiosidade é tratado nesta Festa das igrejas
principalmente no aspecto histórico e cultural. Mignone convoca quatro igrejas de regiões
diferentes do Brasil, aspecto que lhe permitia projetar uma representação mais abrangente da
nação. As igrejas são vistas aqui no diálogo entre o sacro e o profano, entre o interior do templo e
a festa na rua.
A primeira visita nos leva à igreja de São Francisco na Bahia, monumental exemplar do
barroco brasileiro { -11}. O autor prefere focalizar o cenário da rua, onde observa uma brincadeira
de crianças e todo um ambiente festivo. Ouve-se um tema de cantiga de roda infantil. O povo, aos
poucos, entra na igreja, mas o autor fica fora adivinhando o que acontece, explica o compositor
em carta de 15/1/1941. Já na segunda parada, Nossa Senhora do Rosário em Ouro Preto, o autor se
situa dentro da igreja { -12 }. Em todo o Brasil, Nossa Senhora do Rosário é a protetora das
irmandades de homens pretos. Congadas, moçambiques e outros cortejos em sua homenagem se
realizavam nas portas da igreja. De fato, foi esse o cenário escolhido para o bailado Maracatu de
Chico-Rei. Agora o autor penetrava no interior daquela estrutura construída por mãos pretas, para
lembrar as “multidões sacrificadas, escravizadas e atormentadas”, explorando o registro grave da
orquestra num canto de lamento interrompido por violentas fanfarras dos metais, evocando lutas e
dores da escravidão. O Outerinho da Glória no Rio de Janeiro é, sem dúvida, a igreja com a qual o
160
autor mais sente identificação, dedicando-lhe uma música “gostosa”, do tipo que “a gente sabe
como é feita” { -13}. Um tema modinheiro — claramente profano — apresentado pelo clarinete,
acompanhado de um sincopado pizicato das cordas, evoca os chorões da cidade naquela ladeira da
Glória, onde nos tempos do Império acontecia a singular Festa da Glória. Segundo relembra
Manuel Bandeira (1965, p.109 ), a comemoração “reunia todas as raças […] todas as posições
sociais e profissões […] dando ao cortejo um cunho de comunhão democrática que singularizou
entre todas as comemorações eclesiásticas o dia da Glória do Outeiro”. Finalmente, a festa
sinfônica nos leva à igreja da Nossa Senhora do Brasil em Aparecida, São Paulo{ -14}. Aqui o
uso do órgão nos transporta brevemente para o átrio da igreja, enquanto um tema festivo de caráter
popular apresentado ora pelos metais, ora pelo tutti, e as escalas maiores ascendentes repetidas do
começo ao fim do movimento nos situam entre a multidão de romeiros que acodem anualmente de
todo o Brasil para venerar a virgem aparecida no rio Paraíba em 1717.
Nem bem terminava a orquestração de Festa das Igrejas, o compositor recebe o pedido de
compor um bailado para um entrecho de Vaslav Veltchek. A obra composta, Leilão, recriava
cenários como o mercado de escravos e a corte da Princesa Isabel no momento da assinatura do
decreto da abolição. Alguns temas musicais do bailado assemelham-se aos da Festa, como, por
exemplo, a melodia de abertura apresentada pelas cordas, muito próxima daquela inspirada no
Outerinho da Glória. Alguns efeitos cômicos, como o uso de surdinas nos metais, relembram
passagens do Maracatu. Verifica-se a consolidação de um estilo nas obras sinfônicas de Francisco
Mignone desse período. O compositor termina a partitura em poucos dias pela premência da
encomenda e dá notícias ao amigo, que recém-mudara-se de volta para São Paulo: “A música tem
de tudo, seu Mário, coisas ótimas, algumas boas, outras medíocres e mesmo lamentáveis. De vez
em quando aparece uma frasezinha banal mas eu não a modifico até a primeira audição! Como
você vê tenho trabalhado. Você pode não gostar da peça ter surgido sozinha mas, afinal, quem
mandou você ir embora?” (22/3/1941).
Poucos meses mais tarde Mignone comentava com Mário sobre a composição de outro
bailado por encomenda. O Espantalho, com enredo de Vera José Olímpio, inspirava-se em dois
quadros de Cândido Portinari. Através da correspondência, observa-se que tanto em termos de
exploração formal, como de conteúdo, o compositor ensaiava pôr em prática idéias que discutira
previamente com o crítico:
Desta vez trabalhei da maneira mais livre possível. Não me incomodei com ‘forma’,
proporções, equilíbrio […] Recordo-me que uma ocasião você me disse: “porque
não escreve uma obra musical que tivesse um seguimento completamente livre?”
Pois é mais ou menos o que eu fiz. Há muita invenção rítmica e temática sempre.
161
Aliás a obra deveria sustentar-se exclusivamente nisso, se é que consegui o meu
intento. Você pode bem imaginar o desejo que tenho de mostrar o que fiz a você.
Agora, uma coisa: todo o primeiro quadro está elaborado sobre temas nossos
(cantos de criança brasileira). Quando as crianças voltam no segundo quadro já
adultas […] não fiz música de caráter brasileiro; porém quando a cegonha volta com
seu carro de boi a música é a mesma do I quadro, brasileiríssima! Você não acha
que procedi bem? Tenho a impressão de ter conseguido assim uma grande variedade
além de fugir ao perigo de insistir em música brasileira […] (13/7/41)
162
que está completamente virgem do que se passou na trabalheira toda pode de pronto enxergar o
que o entusiasmo da elaboração me vedou controlar ou calcular” (11/6/1942).
A obra Quadros Amazônicos foi concebida como uma suíte para dança destinada à
bailarina Chinita Ullman. O compositor inspirou-se num dos títulos sugeridos por Mário anos
antes, Visão Amazônica, e trabalhou inicialmente quatro quadros: Cobra Grande, Iara, Coapora e
Sacy, acrescentando mais tarde Jaci, Caiçara e Urutau. Após a estréia da peça em julho de 1942,
Mignone continua fazendo retoques visando uma possível publicação da partitura. Concentra-se
particularmente na Iara, chegando a refazê-la umas dez vezes, segundo confessa ao Mário, sendo
que nela o compositor tentava pôr em prática novas preocupações formais:
[…] Consegui pela primeira vez compor uma obra que acho perfeita tanto nas
proporções que na homogeneidade de estilo. Para escrever essas seis páginas de
piano levei tanto tempo e creia que não me envergonho […] prefiro essas seis
páginas a uma sinfonia que tivesse trezentas. (17/11/1942)
163
sinfonia paulista, Mignone resolve servir-se de uma idéia que Mário lhe propusera anos antes. Em
dezembro de 1942 comunica o novo plano da sinfonia e pede a opinião do crítico, assim como
autorização para o uso da sua idéia inicial. Em carta de 26 de setembro de 1943, após finalizada a
obra, Mignone discorre sobre a concepção musical dos quatro movimentos: Canto da máquina,
Canto da família, Canto do homem forte e Canto do trabalho fecundo.
Considerando a bagagem inicial de Francisco Mignone, era de se esperar que o projeto de
compor uma ópera sobre libreto de Mário fosse tema obrigatório. E, de fato, houve várias
tentativas de ambas partes de concretizar uma obra de tal natureza. Em 1936, Mignone lança a
Mário uma primeira proposta de desenvolver um enredo baseado num conto de Monteiro Lobato.
Um ano mais tarde, o compositor volta a insistir nessa idéia. Solicitava uma ópera em um ato só
de assunto cômico, com muitas personagens e episódios, para depois sintetizar: “Leia o Gianni
Schicchi de Puccini, depois O comprador de fazendas de Monteiro Lobato. Faça um ‘cocktail’ dos
dois e ... espere um tempinho, uma semana se tanto. Em seguida deixe a sua fantasia escapar e
escreva tudo o que ela mandar. Não releia […] Mande logo pra mim. O que eu quero é
comicidade […] Nada de negraria. Prefiro um assunto moderno mesmo, cidade, ‘smoking’, jazz
[…]” (16/11/1937). Este projeto parece não ter vingado, porém a promessa do libreto ficava em
pé. E a resposta viria anos mais tarde com o Café, obra cuja análise abordaremos no próximo
capítulo. Grande empenho puseram ambos neste novo empreendimento que, no entanto, ficara
inacabado. Várias hipóteses podem ser sugeridas, além da morte de Mário, para explicar o fato do
compositor nunca ter concluído a partitura da peça. Bruno Kiefer cita um depoimento de Mignone
a respeito da dificuldade de criar música sobre o escrito de Mário que, segundo o compositor, não
continha propriamente situações dramáticas e cujos versos eram muito longos (Kiefer, 1983,
p.28). É de se notar que a poesia de Mário, em geral, parece não ter se apresentado a Mignone
como muito propícia para ser vertida em música. Inicialmente ele mostrara interesse em realizar
alguma colaboração nesta linha, como se verifica em carta de 1934: “não se esqueça de me enviar
alguma poesia para musicar. Por intuição sei que você tem muita coisa boa escondida”
(13/5/1934). Porém, seria só após a morte do escritor que Mignone comporia canções sobre versos
de Mário: Rudá, Rudá e Cantiga do ai. Já Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida lhe
pareciam os poetas brasileiros “mais musicalizáveis” (Mignone, 1947, p.42). De fato, seu catálogo
de obras inclui boa quantidade de composições sobre poemas deles, assim como de Carlos
Drummond de Andrade e Ribeiro Couto.
Uma das obras de Francisco Mignone que maior admiração provocava em Mário de
Andrade era a Sonata para piano, de 1941. Ao lado de certas Bachianas de Villa-Lobos e
Ponteios de Camargo Guarnieri, o crítico destacava nesta peça a liberdade de criação isenta de
164
qualquer “populismo condescendente”, porém sem deixar de ser “popular, como Scarlatti é
popular”: “Alegre, viva, sadia, livremente inspirada nas forças musicais nativas, o povo brasileiro
se reconhecerá nela, mas apenas naquilo em que ele é melhor” (Andrade, 1963, p.365). A reflexão
e experimentação em relação à forma ocuparam o compositor durante o processo de criação desta
obra, tendo se suscitado igualmente a questão do atonalismo, assunto que o autor assegurava ter
aparecido de forma inesperada:
A Sonata, que foi estreada em concerto-homenagem a Aaron Copland em novembro de 1941, “foi
recebida sem hostilidade e sem entusiasmo. O que, aliás, muito me satisfez porque eu também
vivo musicalmente nesse estado”, comentou Mignone (25/11/1941). Mário, no entanto, publica
por motivo da Sonata um artigo na revista Música Viva, no qual destacava de tal forma o valor do
compositor, que Mignone inquietava-se pelas expectativas que o crítico depositaria nele:
“Confesso também que tive um medo louco ao pensar na responsabilidade que você me arruma
sobre as costas e que, especialmente em determinados dias de mau humor e de insensível
desconfiança em mim mesmo, não acredito poder agüentar” (20/8/1942). Nesses últimos anos,
antes da morte de Mário em 1945, ambos compartilharam momentos de crise e angústia em
relação à criação artística. O projeto inacabado da ópera Café era visto como a oportunidade para
realizar uma obra de peso, e talvez por isso mesmo sentiam tanta dificuldade para encaminhá-lo.
Em carta do dia 19 de março de 1943, Mignone confessava:
Tenho andado num sofrimento artístico desgraçado depois da Iara. Sinto que me
estou afastando da verdadeira música e que me perco em jogos ‘gostosos’ de
técnica harmônica e orquestral […] Eu devo parar com certos ‘self-amusement’ que
me permito em música, do contrário acabarei compondo música que muitos […]
considerarão de ‘metafísica’ e que eu, cá por dentro classifico de ‘onanista’. E pró
‘Café’, seu Mário, eu devo ser melódico e realizar as maiores safadezas artísticas
dentro de um plano melódico claro, sentido, de grande respiro e despreocupado. Se
me ‘lavar’ e tornar o meu ‘eu’ musical mais sincero vencerei em ‘Café’ cem por
cento. Se não, me f...... todinho, todinho. (10/3/1943)
No ano seguinte, a aflição do compositor acrescia, sentindo-se ele sumido num vergonhoso
silêncio artístico. Mário respondia com uma carta calma, serena e compreensiva, segundo juízo do
165
próprio compositor. Como se pudesse prever a próxima ausência do amigo, Mignone assim lhe
escrevia:
Vou guardar a sua última carta como uma espécie de guia moral e artístico porque
acho-a sensata, amiga e boa, mas boa no sentido […] da compreensão ditada por
esse cenho que sofreu, viveu e resolveu o seu eu com todas as suas qualidades e
defeitos grandes e pequenos. (11/1/1945)
Camargo Guarnieri
166
peça. Mas talvez essa observação do crítico tenha servido de inspiração para Guarnieri, que pouco
depois aparece com o primeiro caderno de Ponteios para piano. Nestas obras, Mário observava um
desenvolvimento significativo da composição de caráter brasileiro, uma importante “conquista do
expressivo nacional”. Considerando a trajetória do compositor, afirma: “A diferença entre os
Ponteios e a Dança [Brasileira] é completa. Enquanto esta é o tipo de peça característica, dum
brasileirismo exterior bastante fácil, os Ponteios, muito mais livres, possuem uma intimidade
nacional muito forte e já nenhum verdeamarelismo de indumentária” (Andrade, 1993, p.31).
Ao examinar a trajetória do diálogo entre Mário de Andrade e os compositores
contemporâneos — particularmente Francisco Mignone e Camargo Guarnieri, que tiveram uma
convivência mais íntima com o escritor — observa-se, em primeiro lugar, a preocupação em
nacionalizar a produção musical destes. Mais tarde, o crítico começa a sinalizar e insistir sobre
outros problemas relativos à forma e linguagem musical. É notória a reflexão sobre o próprio
processo criativo e a insistência em desenvolver nos compositores um sentido de autoconsciência
crítica. Isto se revela de forma singular numa troca de longas cartas com Camargo Guarnieri a
respeito da Segunda Sonata para violino e piano { -16 }. Apesar possuírem um intercâmbio
pessoal freqüente, por morarem na mesma cidade, Mário propõe ao compositor o diálogo epistolar
para tratar de certos assuntos de estética relacionados com a produção de Guarnieri. O ponto
fundamental da inquietação de Mário era a importância de se diferenciar a verdadeira obra
essencial, fruto de uma invenção consciente, da simples utilização de uma técnica aprendida, de
um métier. O perigo se radicava no momento em que a técnica “vai se introduzindo sub-
repticiamente no nosso ser psicológico, e ameaça substituir a invenção.” Nesse caso a obra deixa
de tratar-se “dum apelo profundo do ser, dum grito necessário, duma verdade lírica fruto de
sofrimento, de gozo ou mesmo de reflexão: se trata sim de macaqueação de tudo isso, feita pela
habilidade técnica” (8/1934)118. O crítico percebia este problema na referida Sonata de Guarnieri e
assim advertia ao compositor:
Verifico pois que ela [a Sonata] não é essencial, não é uma coisa necessária. Isso
está me preocupando um bocado na obra de você. Você está moço e por isso sente
aquela facilidade natural de compor da mocidade, e está compondo demais. E o
que é pior, compondo com muita rapidez. É raríssimo você voltar sobre uma obra
já feita e recompô-la. […] Isso, além de mostrar uma suficiência de si mesmo que é
perigosíssima pra um artista, prova principalmente que você não reage diante da
sua própria invenção. […] Você está sendo inteiramente escravizado pela sua
invenção, ou, e o que é pior, por aquilo que você pensa que é a invenção, e não é.
É apenas a falsificação intelectual da invenção. (8/1934)
167
Para Camargo Guarnieri a obra em discussão tinha um peso importante dentro da sua
trajetória, representando “um período de transição e de libertação de muitos cacoetes”
(13/8/1934). Também não concordava com a avaliação do crítico a respeito da “falsificação da
invenção”. A gestação da obra, argumentava Guarnieri, era sempre fruto inicial de um desafogo,
mas depois ela sofria uma “expurgação” consciente até chegar à sua forma final. Aceitava, porém,
que a sua autocrítica talvez não estivesse bastante desenvolvida, ou que a obra poderia ser boa ou
ruim, mas defendia o princípio do seu processo criativo. A explicação do compositor, no entanto,
deixava o crítico ainda mais preocupado. Guarnieri confessava que a forma da obra surgia no
próprio processo, a partir do material temático, o que muito espantava Mário. Veja-se, a seguir,
um trecho da carta de Guarnieri, com anotações (em negrito) feitas pelo destinatário:
Quando escrevo, nunca o faço porque quero, sempre uma força, uma vontade
interior me obriga a isso. Nesse primeiro impulso, nem penso na forma.
Naturalmente quando já estou escrevendo, de acordo com as possibilidades do
material (temático) é que se vai processando o desenvolvimento e
conseqüentemente determinando a forma. Vamos ao caso da 2ª Sonata na qual
você não encontrou justificação artística. Quando comecei a escrevê-la, confesso a
você, eu não pensei que com a continuação, ela se tornasse uma sonata.
Comecei a trabalhar uma peça para piano e depois de alguns compassos, senti a
falta de um outro instrumento que respondesse ou repetisse ao que havia já feito o
piano e nesse momento, veio-me a mente o violino, como poderia ter sido qualquer
outro instrumento.
Que absurdo de desleixo de criação. Nem sabia o que ia fazer! […] veja como
estava se deixando levar por alguma coisa que era simplesmente memória...
muscular, memória técnica […] Puro impressionismo, e o que é pior, dentro do
vício formalístico exterior.
Mário respondia com uma carta ainda mais incisiva, na qual esboça uma teoria sobre o
essencial na obra de arte: “Não é apenas essencial aquilo que é realmente invenção no artista. Pelo
contrário, há muita coisa que o artista inventa […] que lhe surge incontestavelmente do
subconsciente, e que no entanto não chega a ser essencial” (22/8/1934). Identificava três formas
através das quais uma obra atingia essencialidade: “tem de trazer em si uma finalidade que fira
direta e profundamente ou o indivíduo, ou a humanidade ou a arte”. O autor via a essencialidade
168
como uma exigência necessária para o artista. Reconhecia que nem toda a criação era essencial,
mas o critério da essencialidade teria que nortear a criação. Esta consciência que guiava a sua
própria obra, Mário tentava impô-la também ao jovem compositor: “Mas o que interessa
principalmente aqui é firmar em você esta enorme tortura, que é tortura, mas de que você só pode
beneficiar: o artista tem de criar (pra publicar, dar ao público) o essencial” (ibid.). Nessa procura
pelo essencial, o autor considerava imprescindível o “controle” do processo criativo. Guarnieri, na
sua explicação, insistira sobre o trabalho de “expurgação” feito depois da Sonata ter se revelado
instintivamente. Mário argumentava que a consciência, o “controle” tinha que guiar o próprio
processo, como observava na obra de grandes compositores: “De Mozart se sabe que ele brigava
interiormente com seus temas e só se botava a escrever quando já tinha toda a obra, ou sua parte,
interiormente composta dentro do cérebro. […] De Beethoven, os cadernos de esboços
demonstram que ele corrigia, concertava, modificava, transformava até integralmente um tema,
antes de começar a compor a obra ou sua parte em que vinha aquele tema. De Cesar Franck se
sabe o mesmo. Isso é que eu chamo controle, que não apenas se realiza depois, mas antes, e não
vai criando conforme as possibilidades que acha em caminho, mas criando por causa das
possibilidades encontradas antes” (ibid.).
Dentro dessa argumentação, a expressividade do nacional — salientada publicamente pelo
crítico nas composições de Guarnieri — não bastava para a construção de obras de arte
significativas que adiantassem a nacionalidade. Era necessário o trabalho consciente com a forma
— como Mário observava nas Cirandas, Choros e Serestas de Villa-Lobos — bem como com
todos os elementos que formam a linguagem musical. Nesse plano, Mário destacava a obra de
Lorenzo Fernández, “muito mais pobre de criação que a de você, [mas] muito mais rica de
nacionalidade, pela quantidade vasta de problemas nacionais que estão nela em resoluções
artísticas, em transfigurações dele” (22/8/1934). Além disso, pensando no exemplo destes colegas,
instava o compositor a novas exigências: “Você repare agora no seu desleixo formalístico
(também a forma por si pode ser uma criação inspirada, vinda do subconsciente...), suas peças
instrumentais para piano são todas um dormir na rede duma forma já estereotipada que você
jamais se preocupou de transformar. Um eterno ABA […]” (ibid.).
Outro assunto que surge nestas cartas é a questão do atonalismo, que o crítico considerava
“o problema mais terrível da músico do nosso tempo” (8/1934). Assim, ele censura duramente na
referida composição de Guarnieri o que lhe parecia ser um uso gratuito da dissonância:
No Segundo tempo, me horroriza desde logo, essa vontade do mal, essa perversão
que hoje reputo incontestável que é a dissonância pela dissonância. Que quer dizer,
meu Deus! esse elemento acompanhante iniciado pela mão direita e que com uma
169
malvadeza sadista se prolonga e muda de notas com uma malvadeza insuportável
durante duas páginas. O que é isso! Não é musicalmente nada. […] Ora eu não
consigo perceber nenhuma razão nem de invenção, nem intelectual, nem harmônica,
nem rítmica, nem mesmo puramente técnica que justifique esse ondular vazio de
nonas e sétimas. E a sistematização delas por duas páginas, sem justificação
nenhuma, só posso chamar de sadismo e masoquismo. Vontade de maltratar e ser
maltratado. […] (8/1934)
O compositor, por sua vez, argumentava que o uso da dissonância nessa passagem tinha uma
razão de ser expressiva. Destinadas a ser tocadas em pianíssimo, as 7as e 9as estavam ali para criar
um ambiente num terceiro plano sonoro desprovido de qualquer caráter de protagonista. Anos
mais tarde, após a morte de Mário, Guarnieri tornaria-se um fervente crítico das tendências
atonalistas e dodecafonistas que começavam então a ser exploradas mais sistematicamente no
Brasil. Na famosa “Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil”, de 1950, o compositor descrevia
o dodecafonismo como “um requinte de inteligências saturadas, de almas secas descrentes da vida,
um vício de semi-mortos, um refúgio de compositores medíocres, seres sem pátria […]”.119 Este
documento, como argumenta Arnaldo D. Contier (1991), simplificava algumas posturas de Mário
de Andrade e apresentava o nacionalismo modernista como um projeto imutável e hegemônico.
Apesar das polêmicas e discussões estéticas entre crítico e compositor, temos que
reconhecer que desde que Mário de Andrade conheceu o jovem Camargo Guarnieri, este passou
encarnar a maior promessa de realização musical que o escritor almejava para o Brasil. Tornara-se
talvez o seu único discípulo no âmbito da composição. Desde os primeiros encontros, Mário
cultivara em Guarnieri o interesse pelo folclore. Em 1928 lhe emprestava partituras de cantos
indígenas120, em 1933 o convidava para assistirem juntos o moçambique em Santa Isabel e em
1937, como diretor do Departamento de Cultura, o enviava em viagem oficial a Salvador para
registrar a música dos candomblés. E as obras de Guarnieri iam revelando tal orientação. Em
1935, Mário publica um elogioso artigo sobre a sonata para violoncelo e piano, onde destacava a
capacidade do compositor para combinar e sintetizar tradições diversas da música brasileira, assim
como os seus dotes de polifonista e a bem concebida arquitetura formal da sonata (Andrade, 1993,
p.292-296). Perante o projeto de novas obras, o compositor afirmava ter bem presente as questões
estéticas discutidas com o crítico. Assim revelava em carta de 1940, quando se preparava para
iniciar a criação da sua primeira sinfonia: “Guardei comigo aquelas sugestões que você me
forneceu e espero resolver os problemas da melhor maneira possível. Talvez até você nem se
recorde: evitar o caráter coreográfico no alegro final; construir linha bem característica, mas sem
as síncopas sistematizadas […]” (5/3/1940). Outro trecho da correspondência desse mesmo ano,
fazendo referência aparentemente a um desentendimento de Mário com Francisco Mignone,
170
evidencia o peso que a relação com Mário de Andrade tinha na trajetória criativa de compositores
como Guarnieri e Mignone:
Meu caro Mário, você é um sujeito formidável! Estive pensando em tudo quanto você
me contou a respeito de Mignone. Você é o único artista no Brasil que sabe ser
amigo. Sempre o desenvolvimento dos outros, da arte neste país […] é provocado
por um gesto, um exemplo, uma palavra sua. Oxalá, ele, Mignone, compreenda a sua
intenção! Tenho, também, passado pela má experiência. Com alegria interior vejo-
me num nível mais perto da verdade. Isso tudo é a você que devo. O seu princípio da
contradição não é uma verdade ilógica! As suas premissas são sempre preparadas
para uma conclusão lógica, as argumentações estão em relação à capacidade de
quem as tenta resolver. A princípio irrita, depois vem o resultado do esforço pra
justificar e assim o progresso aparece. Quanto você me fez sofrer! Haja visto o caso
da minha 2a Sonata para violino e piano. O sofrimento resultou em benefício dela,
pois procurei aperfeiçoá-la o melhor possível e agora tive o prazer da sua completa
aprovação. Aí está o resultado. Você contradiz por benefício! É o seu pragmatismo.
Continue assim, nós lucraremos com isso e o lucro maior será para a nossa arte
brasileira. É preciso que o Mignone perceba isso e o tenha sempre em contato com
ele. A burrice de outros tem atrasado enormemente o desenvolvimento da nossa
música. Você é o nosso ‘magister’! […] (31/5/1940).
171
Carpentier e a dupla do afro-cubanismo:
Amadeo Roldán e Alejandro García Caturla
172
afirmar uma arte autóctone e moderna. Entretanto, “esse acontecimento capital” seria superado
sucessivamente pela estréia dos Tres pequeños poemas, de La Rebambaramba e da Danza Negra.
Carpentier considerava a sucessão de obras de Roldán como um percurso ascendente no caminho
da realização do ideal de uma arte nacional. Nos poemas Oriental, Pregón e Fiesta Negra,
estreados por Sanjuán em janeiro de 1927, afirmava-se a tendência que logo passaria a chamar-se
de afro-cubana. A obra, na verdade, retratava o ambiente popular da cidade: a canção santiagueña
que chegava com as ondas migratórias do Oriente cubano para Havana; o pregão de rua
imortalizado na música popular da época; a rumba dos solares, ou pátios urbanos dos setores
subalternos.
É nessa época que Roldán e Carpentier iniciam as suas andanças pelos terreiros de tradição
afro-cubana, e os motivos musicais destes rituais logo começam a penetrar nas novas
composições. Paralelamente, organizavam concertos de “música nova” para iniciar o público
cubano nos principais compositores contemporâneos da cena européia. Alejandro García Caturla,
que recém-retornara à cidade de Remedios, impulsionava uma iniciativa similar com a criação de
uma Orquestra de Câmara para a divulgação da música moderna. Com este fim, em março de
1927, encomendava obras de Ravel, Schönberg, Honneger, e Stravinsky. Projetava igualmente
incluir obras de Roldán e de Sanjuán, assim como convidar o amigo Carpentier a pronunciar uma
palestra sobre música de vanguarda. Por outro lado, a revista Social que iniciara em 1925 a
publicação de um suplemento musical mensal com partituras de autores cubanos, passa a partir de
1927 a incluir peças dos modernos europeus, como Debussy, Satie, Ravel, Milhaud, Stravinsky,
Franck, Bartók e Falla, entre outros.
A amizade de Roldán e Carpentier tornava-se mais próxima. Após a segunda sessão do
cinema Fausto, Carpentier aguardava pelo violinista e compositor num café do Parque Central
para trabalhar numa primeira colaboração literário-musical. Tratava-se de um conjunto de quatro
balés sobre temas cubanos, dos quais chegaram a concluir La Rebambaramba e El milagro de
anaquillé, ficando inacabados Azúcar e Mata-cangrejo. Porém, no dia em que a Orquestra
Filarmônica, sob batuta do próprio autor, estreava a suíte musical da primeira destas obras, em
agosto de 1928, Carpentier já se encontrava morando em Paris. La Rebambaramba foi talvez a
obra de Roldán mais debatida e mais difundida, tendo sido regida por Carlos Chávez em 1929 no
México e por Nicolás Slonimsky em 1931 em Paris. O vínculo de Carpentier com figuras
principais do mundo da música de vanguarda em Paris, particularmente com o compositor e
regente Marius François Gaillard, foi a porta de entrada para as obras de Roldán e García Caturla
nos cenários europeus. Na distinta série de concertos modernos da sala Gaveau, Gaillard estreava
em abril de 1929 a Danza Negra de Roldán, composta sobre poema do porto-riquenho Luis Palés
173
Matos, texto que lhe fora sugerido por José Antonio Fernández de Castro. Interpretada pela
cantora cubana Lydia de Rivera, o poema apresentava um acompanhamento instrumental de duas
violas, dois clarinetes e três instrumentos típicos de percussão (bongô, maraca e cencerro). Apesar
do seu entusiasmo pela obra, expresso em artigo para Carteles121, a instrumentação desta obra
parecia um tanto esquisita a Carpentier, segundo confessa em carta ao compositor de maio de
1929:
Por mi parte, me parece que tu Danza negra es, en cuanto a materia puramente
musical, de lo mejor que has hecho. […] Ahora, entre nosotros, no te niego que me
ha sorprendido un tanto el raro cocktail de instrumentos que has metido. La
batería suena maravillosamente, los clarinetes también, pero ¿por qué has metido
en una cosa tan recia de inspiración dos instrumentos tan sordos como las violas?
Creo ver en ello un deseo de traducir la sonoridad a la vez estrepitosa y confusa de
ciertas charangas en que los elementos puramente armónicos se encuentran algo
ahogados bajo la percusión y la línea vocal desnuda.122
174
negros que puedan realmente comprenderlos, porque siento que no la estamos
realizando en su verdadero espíritu.
¿Tiene usted hasta el presente, o va usted a escribir en el futuro una obra
corta simple, algo que exprese la intensidad y fanatismo de los rituales negros y lo
suficientemente corta y sencilla que pueda ser un ensayo especial con mi sección
de baterías y tratar de hacerlos comprender la vitalidad de ritmo?
Usted puede tener en mente algo para componerlo en esta forma. Estoy
interesado en su música, pero la encuentro muy difícil para ejecutarla con mi
orquesta, la cual por ser de origen europeo no comprende el estilo de esta música.
(18/11/1932) 123
Alejo Carpentier e Amadeo Roldán se encontraram pela última vez em Havana em 1936. Na
ocasião, relata Carpentier, o compositor lhe solicitou uma série de invocações. O escritor logo
enviaria as duas primeiras: “A Changó, para que desencadene una tempestad... A Echú, para que
el caballo no pierda las herraduras” (in: Carpentier, 1994, p. 549). Porém, a morte prematura de
Roldán, em 1939, os privaria de concluir estas novas colaborações.
A estreita amizade com Alejo Carpentier deixou marcas profundas na trajetória de
Alejandro García Caturla, que juntamente com Roldán formava a dupla do afro-cubanismo
musical. A freqüência e o tom da correspondência que principia no ano de 1927 são testemunho
da camaradagem que surgira entre eles durante a estada de Caturla em Havana. O compositor
confiava os seus projetos musicais ao amigo escritor, solicitava favores geralmente relacionados à
divulgação da sua obra em Havana e o instava a lhe enviar textos de sua autoria para trabalhos
cênicos. Perante o crítico, Caturla procurava afirmar a sua sintonia com o caminho estético que
Carpentier, sobretudo nos escritos sobre as primeiras obras de Roldán, começava a articular:
No sabes cuánto le voy a dar que hacer a Sánchez de Fuentes, pues la música que
hago en estos últimos días es rabiosamente afrocubana y le preparo a Sanjuán 2
bocetos o sketchs todo a base de ritmos negros, para toda la orquesta. (29/3/1927)
García Caturla, que no plano pessoal tinha assumido as conseqüências sociais de fazer pública a
sua união conjugal com uma mulher negra, enfrentava a arena cultural como campo de batalha.
Gostava de assinar manifestos, agitar o ambiente, publicar a sua música, fazê-la ouvir, ser
comentado e expor as suas idéias. Praticamente autodidata em termos de composição, García
Caturla compreendia que Carpentier era um dos poucos que o levavam mais ou menos a sério. E o
compositor esforçava-se por honrar as esperanças que o crítico depositava nele, enquanto
Carpentier o estimulava e aplaudia a cada novo sucesso. Às vésperas da estréia das suas Tres
175
danzas cubanas nos Festivais Sinfônicos Ibero-Americanos de Barcelona, em outubro de 1929, o
escritor lhe comentava em carta de Paris: “En época en que todavía no eras, al decir de las gentes,
más que un loco, yo sabía que el loco llegaría lejos. […] ¡Albricias!” (4/10/1929, in: Henríquez,
1998, p. 182).
Desde o início de 1927 Carpentier e Caturla discutiam a possibilidade de colaborarem num
trabalho cênico-musical. Na mesma época em que principiava os trabalhos sobre L a
Rebambaramba com Amadeo Roldán, Carpentier apresentava a Caturla uma primeira idéia para
desenvolver um balé vernáculo:
Hace tiempo que estoy obsesionado por la idea de trazar definitivamente tres
o cuatro scenarios de ballets cubanos, para someterlos a Roldán y a ti. La tardanza
en exponer alguna idea concreta proviene de que no quiero hacer las cosas a
medias, y aunque un argumento de ballet se traza en cincuenta líneas, estas deben
contener una verdadera quinta esencia de muchas ideas. No quiero darles ideas
mediocres; estoy digiriendo mis esquemas originales con el fin de obtener algo que
reúna una gran cantidad de cubanismo y un espíritu de hoy suficiente para
eximirlos de insularismos intrascendentes.
[…] Y pensando en escenas sugerentes, he hallado una que se presta a hacer
un admirable boceto sinfónico: tiene ironía y color, dos condiciones imprescindibles
en una obra moderna. Se trata de describir musicalmente uno de los
acontecimientos capitales de la vida provinciana en Cuba: la llegada del circo.
Una tarde plácida, soleada, bochornosa; una especie de modorra se
extiende sobre todas las cosas. De pronto la escena se anima; resuenan unos
formidables golpes de caja; sobre la calma criollísima cunden los acordes metálicos
de un estribillo canallesco arrojado por los instrumentos de una banda de mala
muerte. Imagina los músicos de esa banda: ceñidos por uniformes ridículos,
enarbolando viejas tubas y trombones averiados; los bajos caen en falso. Y
comienza a reinar una animación desaforada; bandadas de chiquillos siguen el
cortejo; los guajiros de jamelgos famélicos contemplan el desfile con admiración
beatífica. Pasan jaulas multicolores; lentos y pesados elefantes pasean sus moles
grises entre guardianes uniformados; un rag-time canallesco y desarticulado
anuncia el paso de los payasos de cara enharinada. Y durante todo esto el ambiente
no ha perdido su cubanismo; los ritmos, en el fondo, conservaron la pátina criolla.
(15/3/1927, in: García Caturla, 1978, p.314)
176
A convivência em Paris durante as duas estadas do compositor — de junho a outubro de
1928 e de novembro a dezembro de 1929 — renderam frutos importantes. Durante a primeira
temporada, enquanto García Caturla assistia a aulas de contraponto e fuga com a professora Nadia
Boulanger, nasce Liturgia, um poema para orquestra e vozes sobre versos de Carpentier. A obra
foi estreada dois anos mais tarde sob batuta de Amadeo Roldán com o novo título de Yamba-O.
Incluía uma bateria aumentada de 11 percussionistas e originalmente previa a utilização de
megafones para a recitação do poema. Mas perante as dificuldades que apresentava a utilização
deste recurso, o compositor optara por eliminá-lo e incluir o texto de Carpentier no programa
impresso. Um fragmento deste poema sinfônico foi publicado pela revista Social em novembro do
mesmo ano da estréia, dedicado a Pedro Sanjuán e sua orquestra.
A segunda viagem a Paris motiva a criação de duas novas composições sobre poemas de
Carpentier. Mari-sabel e Juego Santo, assim como Liturgia, eram parte de um conjunto de poemas
de temática afro-cubana que o escritor concebera antes de viajar a Paris, na época em que
trabalhava no primeiro romance, Écue-Yamba-Ó . Lydia de Rivera, a cantora cubana que tinha
estreado a Danza Negra de Roldán, preparava um recital com obras de autores ibero-americanos, e
Carpentier tomara a iniciativa de oferecer-lhe duas canções que encomendaria a García Caturla.
Apenas um mês antes do concerto previsto, Carpentier envia por carta o referido pedido,
sugerindo a utilização dos seus poemas:
A encomenda de Carpentier foi assumida com interesse pelo compositor e as canções foram
estreadas na sala Gaveau no dia 19 de novembro de 1929, num programa que incluiu músicas de
vários compositores cubanos, entre eles Sánchez de Fuentes, Anckermann, Moisés Simons,
Lecuona e García Caturla. Carpentier, segundo relatava o compositor em carta a seu pai, estava
“louco de contente” com a versão musical dos seus versos vanguardistas (ibid., p. 93). Outra obra
estreada nesse período parisiense foi Bembé, para piano, conjunto de sopros e bateria { -18}.
Dedicada ao casal Quevedo, ela foi criada pensando-se na formação instrumental dos concertos de
Gaillard para a referida temporada. Antes da viagem, Carpentier alertava o compositor:
177
¿tienes alguna obra lista para metales, maderas, batería y piano? ¿o para alguno
de esos elementos combinados? Gaillard quiere tocarte si posible en su primer
concierto — noviembre —; ha dado ya tu nombre a la prensa […] Pero, para su
primer concierto, sólo tocará obras […] que exigen las familias instrumentales
citadas. (4/10/1929, in: Henríquez, 1998, p.182)
Bembé, editado pela casa Senart, tornou-se uma das obras de García Caturla mais interpretadas no
exterior. Por motivo da sua apresentação em concertos regidos por Nicolás Slonimsky em 1931
em Paris, Carpentier relatava a curiosidade que despertava a obra entre os principais críticos e
compositores europeus que a escutavam. O escritor cubano apontava certos defeitos na sua
arquitetura, mas reconhecia o valor da peça, que “encarnava a alma dos bailes de santería”:
No te creas que he dejado caer este asunto por indolencia; lo que acontece es que
actualmente creo que escribir un ballet, es pura pérdida de tiempo para el libretista
y el compositor... ¿Quién demonios va a estrenarlo?... En tiempos de Diaghileff
178
había la esperanza de que algún día se decidiera a ponerlo en escena — antes de su
muerte estuvo a punto de montar La rebambaramba... ¿Pero ahora? Es triste
decirlo, pero no hay actualmente en Europa una sola organización apta a poner en
escena un ballet moderno... (6/7/1931, in: García Caturla, 1978, p. 362)
A nova sugestão de Carpentier era criar uma ópera para títeres sobre um personagem famoso do
ñañiguismo (sociedade secreta afro-cubana). No capítulo seguinte examinaremos o texto e a
música desta peça, que se intitulou Manita en el suelo. A composição sobre textos literários de
caráter afro-cubano é um aspecto que se destaca na obra de Caturla. Além dos escritos de
Carpentier, o compositor inspirou-se em poemas de Nicolás Guillén, José Zacharias Tallet e
Emilio Ballagas. A aparição em 1930 de Motivos de son, de Guillén, teve grande impacto na
música cubana. Em junho desse mesmo ano, Caturla dava ao poeta por carta notícia sobre a
composição de obras sobre seus Motivos, particularmente sobre os versos de Tú no sabe inglé,
transformados na canção Bito Manué, editada pela casa Senart em 1931
Tengo buenas noticias: estoy trabajando sobre sus Motivos con verdadera atención y
vea usted lo que es la musa: esquiva a veces, espléndida otras y caprichosa siempre:
uno de los mejores poemas de los que ya tengo producidos de los suyos es
precisamente aquél que creí no poder utilizar [“Tu no sabe inglé”]. Estoy
terminándolo de pulir con preferencia a los demás, a ver si bien en Social, o en
Musicalia o en la Revista Nueva Música, de California, lo dan a la publicidad como
mejor vehículo de anuncio para el resto de ellos que constituirán una suite para
orquesta y voz. A mi regreso a la Habana tendré muchísimo gusto en hablar con
usted sobre la posibilidad de obras grandes entre usted y yo de que ya le he hablado.
(17/6/1930, in: García Caturla, 1978, p.139)
Da série dos Motivos de son, na verdade, o compositor concluiria apenas a versão para
canto e piano de Bito Manué e de Mulata. Mais tarde, em 1933, assina outra composição sobre
versos de Guillén, intitulada Yambambó. García Caturla, como se sugere no trecho da carta citada,
almejava grandes projetos em colaboração com Guillén. Projetava a composição de uma obra
coral afro-cubana. Em agosto de 1933 solicitava o envio de um primeiro texto, uma “Oración a
Yemayá”, e lamentava não ter tido tempo de fazer a viagem que pretendiam realizar juntos a
Regla, Marianao ou Guanabacoa (4/8/1933, in: García Caturla, 1978, p.270). Nessa época o
compositor recém-terminara outra importante peça para canto. Tratava-se de La Rumba, sobre
poema de José Z. Tallet, para voz e orquestra, estreada sob batuta de Roldán no dia 31 de
dezembro de 1933. Em 1937 assina uma nova canção com texto de Guillén, Sabás — para voz,
quinteto de sopros e piano — e outra com texto de Ballagas, Berceuse para dormir a un negrito.
Para Alejo Carpentier, a música de Alejandro García Caturla representava uma
aproximação singular às tradições populares cubanas. Sustentava que o compositor não abordava
179
o folclore como Roldán, aos poucos, tentando compreender primeiro para depois se acomodar:
“Sin vacilación, comenzó a expresarse en un lenguaje nutrido por raíces negras — guiado por un
obscuro instinto y por las afinidades que se habían manifestado ya, de modo elocuente, en su vida
privada” (Carpentier, 1988, p.292). Apesar da insistente exploração da temática afro-cubana em
obras para orquestra ou grandes formações, como Bembé, Yamba-O, La Rumba e Obertura
cubana — que foi premiada em 1938 no Concurso Nacional de Música — entre outras, ao avaliar
o conjunto da obra do compositor, Alejo Carpentier escolhe destacar uma breve peça para piano: a
Berceuse campesina { -19}, de 1939. Escrevendo em 1945, o crítico, que recém-concluíra uma
minuciosa pesquisa de arquivos sobre a música colonial cubana, estimava agora uma expressão
mais simples e mais sintética das tradições nacionais. Os tempos da batalha do afro-cubanismo
tinham chegado ao fim. Era a capacidade integradora, e não mais a revelação de riquezas
desconhecidas, o que Carpentier elogiava na Berceuse campesina:
O povo é a fonte, enquanto for folclórico... As águas da fonte são sempre as mesmas,
porém os rios correm diferentemente. E eu sou o rio.
A fala de Janjão em O Banquete (Andrade, 1977, p.61) resume várias questões que
caracterizam as posturas dos compositores aqui examinados em relação ao popular. A metáfora do
rio tornou-se um lugar comum. O compositor nacional era visto como o elo entre a terra interior,
com suas ricas fontes, e os oceanos da música universal. O folclore, por outro lado, entendia-se
como algo imutável, eterno, fora da história. O compositor deveria representar a síntese de várias
afluentes, construindo sempre o seu próprio caminho pela força do torrente, enquanto o folclore
deveria manter intacta a sua fonte. Porém, como observamos particularmente nos capítulos 1 e 4, a
aproximação dos intelectuais ao mundo popular foi possibilitada em grande parte pelo próprio
trânsito do popular; pelos novos trilhos percorridos pelos músicos tradicionais, do campo à cidade,
dos bairros aos cinemas da avenida, dos cabarés locais aos de Paris e Nova Iorque. Ao mesmo
tempo, o contorno dos debates sobre a música erudita nacional delineava-se num trânsito que
também ultrapassava as próprias fronteiras nacionais. As cartas e periódicos são testemunho de
um diálogo que cimentava pontes entre várias coordenadas: Rio–São Paulo; São Paulo–Paris;
180
Havana–Paris; Remedios, Nova Iorque, Chicago, Boston, Barcelona, Milão, Berlim... É, de fato, a
própria distância, e o desejo de proximidade, que motivam o diálogo epistolar que hoje se revela a
nós em valiosos documentos. Com o respeito que se impõe ao abrirmos o misterioso envelope que
não nos foi destinado, quis compartilhar aqui preciosos fios da relação entre críticos como Mário
de Andrade e Alejo Carpentier e os compositores seus contemporâneos. As vezes emaranhados, as
vezes nítidos, são fios que contêm ainda muitos enigmas e perguntas para o pesquisador, são
janelas que apenas começam a ser exploradas. Nesta primeira aproximação, no entanto, já nos
revelam interessantes aspectos da trama musical da época.
A oposição entre internacionalismo e nacionalismo está presente também na leitura que
críticos como Andrade e Carpentier faziam da produção musical do século XIX e inícios do XX.
Para o escritor cubano, por exemplo, um compositor e pianista aclamado na Europa como Nicolás
Ruiz Espadero (1832-1890) apresentava um valor nulo para a música nacional, por seu apego ao
virtuosismo romântico. Em contraposição, Manuel Samuell (1817-1870) e Ignacio Cervantes
(1847-1905), que desenvolveram o gênero da contradanza, representavam o antecedente vital de
compositores como Roldán e García Caturla. Por outro lado, Mário de Andrade destacava a
função histórica de autores como Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Alexandre Levy (1864-
1892) perante o suposto estrangeirismo de Henrique Oswald (1852-1931), Leopoldo Miguez
(1850-1902) e Glauco Velázquez (1884-1914).125
Uma figura interessante que de alguma maneira vem prenunciar algo do que irá eclodir
sobretudo a partir da década de 1920, em termos de desenvolvimento de uma linguagem inspirada
na música afro-americana passada pelo tamis da escola francesa, é o pianista e compositor Louis
Moreau Gottschalk (1829-1869). Um pouco na esteira de Liszt, Gottschalk representou o modelo
do virtuose internacional, tendo viajado extensamente pela Europa como solista. No entanto este
compositor, nascido em Nova Orleans de pai inglês e mãe francesa, destacou-se por incorporar nas
suas obras os sons daquilo que Ángel G. Quintero Rivera (1998) denominou as “mulatas margens
da modernidade”. Segundo Fred Flaxman (1997), que batizou Gottschalk como o “o primeiro
Gershwin”, desde as suas obras iniciais o compositor revelava a influência da música creole da
sua cidade natal, berço do jazz. Entre 1857 e 1862 o compositor dedicou-se a viajar pelo Caribe,
tendo visitado Haiti, Jamaica, Martinica, Guadalupe, Cuba e Porto Rico, onde compôs a Marcha
de los Gíbaros, baseada num aguinaldo tradicional muito popular na ilha, conhecido como Si me
dan pasteles. Em Havana, estreou em 1861 a sinfonia Una noche en el trópico, com quarenta
pianos e participação de um tradicional cabildo francês, tradição afro-cubana da região oriental da
ilha, marcada pela influência haitiana. Em 1865, Gottschalk embarca para a América do Sul, tendo
passado por Peru, Chile e Uruguai até chegar no Rio de Janeiro em 1869, onde encontrou a morte.
181
A sua famosa Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Brasileiro, para piano, entrou para o
repertório de gerações de pianistas brasileiros. Com certo sarcasmo, Mário de Andrade costumava
dizer que os intérpretes nacionais, quando sentiam o apelo do amor pátrio, ao invés de interpretar
alguma peça de autor brasileiro contemporâneo, satisfaziam-se com a citada Fantasia de
Gottschalk.
Corria o ano de 1918 e o jovem Darius Milhaud (1892-1974) voltava para casa junto com
o embaixador Paul Claudel, depois de dois anos de estada no Rio de Janeiro. Avariou-se o navio
no meio da travessia atlântica e atracaram em Porto Rico. Zonzo pelo calor, Milhaud havia se
deitado cedo, quando de repente foi acordado pelo som de uma orquestra típica que tocava
nalguma festa da vizinhança. “Desde o primeiro momento senti-me profundamente atraído por
essa música, nova para mim. Parecia-me alguma coisa entre Bach e os negros. Bach pelo
movimento contínuo de melodias rápidas e ininterruptas. Os negros pelas bases rítmicas”,
relembraria Milhaud dez anos mais tarde em conversa com Alejo Carpentier (Carpentier, 1994, p.
209). Seduzido pela música, o compositor desceu à rua e procurou até achar a festa, onde lhe
informaram que o conjunto interpretava um danzón do cubano Antonio Romeau. Em vão Milhaud
tentaria que lhe enviassem de Cuba música impressa naquele estilo. Tudo o que recebia eram
partituras “de uma pobreza desesperante”. Carpentier aproveitava a anedota de Milhaud para
insistir na riqueza musical dos gêneros afro-cubanos, desprezados pela maior parte dos
compositores eruditos da ilha e que sem dúvida, pensava Carpentier, deslumbraria compositores
como Verèse, Honegger, Stravinsky e o próprio Milhaud, que voltava a Paris em 1918 fascinado
também pela música brasileira. Surgiram na seqüência obras inspiradas na música que o
compositor ouvira nas ruas cariocas: Le bœuf sur le toit, em 1919, e as Saudades do Brasil, em
1920. Por outro lado, as harmonias e ritmos do jazz apareciam no balé La création du monde, de
1923, ano em que o compositor viaja pelos Estados Unidos — onde de fato divulga, entre outras
composições, as Saudades do Brasil — e escreve artigos sobre o jazz e a música afro-americana.
O próprio Stravinsky, então em Paris, já tinha explorado as sonoridades do jazz no Ragtime para
onze instrumentos (1918) e no Piano ragtime music (1919).
No trânsito entre Paris e os Estados Unidos projeta-se igualmente nesses anos 20 a figura
de Edgard Varèse (1883-1865), que chamou a atenção do mundo musical da época com a obra
Ameriquès, de 1921. A estréia desta obra em Paris foi dada no mesmo concerto em que estreava o
Amazonas de Villa-Lobos, em 1929. Nesse mesmo ano os caminhos deste compositor na capital
francesa cruzavam-se com a obra de Amadeo Roldán nos concertos Gaillard, onde dava-se a
primeira audição em Paris dos Integrales (1925) de Varèse e da Danza Negra do compositor
cubano. Varèse compartilhava com os compositores brasileiros e cubanos o interesse pelas
182
possibilidades expressivas dos instrumentos de percussão. A famosa obra Ionisation (1930), para
37 instrumentos de percussão e 13 intérpretes, certamente é devedora do contato de Varèse com
obras como La Rebambaramba de Roldán e o Bembé de García Caturla, assim como com as
composições de Villa-Lobos.
A qualidade rítmica das obras dos cubanos despertaria o interesse de compositores e
regentes nos Estados Unidos, particularmente aqueles ligados ao movimento da Pan American
Association of Composers.126 As Rítmicas V e VI de Roldán, de 1930, seriam pioneiras como obras
dedicadas exclusivamente a conjunto de percussão. Em 1939, John Cage já organizava concertos
de obras para percussão, para os quais solicitava obras de García Caturla:
Henry [Cowell] me dice que usted querría saber qué instrumentos típicos
cubanos tenemos. Siento decirle que aquí en Seattle no están a la mano. Solicité un
par de maracas y he recibido un terrible par comercial — imitaciones americanas.
Tenemos siete gongs, cuatro tom-toms, dos platillos chinos, platillo de jazz, bombo,
dos tímpanis sin pedales, dos triángulos, algunos blocks, muchas varillas de bambú,
diversas cosas tales como cajas, etc. ¿Sería posible que fuera tan bueno de enviarnos
una partitura, y prestarnos los instrumentos cubanos que ella sugiere? Si no pudiera
prestárnoslos, ¿podría comprarlos para nosotros pagaderos C.O.D.? En ese caso
deberán ser baratos. Tenemos 5 ejecutantes buenos, y las partes fáciles pueden ser
tocadas por 2 ó 3 más, que haría 8 en total.
El último concierto fue recibido con un entusiasmo bárbaro, así puedo
asegurarle una sensitiva audiencia de cerca de 400 personas. (15/3/1939, in: García
Caturla, 1978, p.380)
183
Stokowski (1882-1972), que regeu os Tres toques de Roldán e as Tres danzas cubanas de García
Caturla com a Orquestra Sinfônica de Filadélfia.
A obra dos compositores Aaron Copland (1900-1990) e George Gershwin (1898-1937)
ficou conhecida pelo desenvolvimento de um caráter marcadamente norte-americano e pelas suas
aproximações à música popular. Copland, natural de Nova Iorque, realizou estudos musicais em
Paris entre 1921 e 1924, sendo aluno de Nadia Boulanger, a reconhecida professora que mais tarde
orientaria o cubano García Caturla. A influência do jazz, música pela qual se interessa
particularmente durante a sua estadia na Europa, se faz patente no seu Piano concerto de 1926,
assim como na Rhapsody in Blue de Gershwin, que havia estreado dois anos antes. Esta famosa
composição de Gershwin teve a sua primeira audição em Havana em 1929, pela Orquestra
Sinfônica do maestro Gonzalo Roig, com Ernesto Lecuona como solista. No ano seguinte,
Alejandro García Caturla interpretava a peça acompanhado pela Banda de Remedios. Copland,
que tivera contato com o compositor mexicano Carlos Chávez (1899-1978) desde fins da década
de 1920, viaja ao México em 1932 e entre 1933 e 1936 compõe El salón de México. Sua
aproximação à música cubana se revela no Cuban danzón (1942). A incorporação de temáticas
musicais cubanas ou mexicanas poderia ser vista como parte desse projeto de representação do
‘melting-pot’ da nação americana, assim como da política cultural de ‘boa vizinhança’
impulsionada pela Pan American Union.
A música de jazz ia ganhando uma importância cultural considerável, para além do sucesso
europeu, no bojo do movimento conhecido como o Harlem Renaissance, que eclode
particularmente nos anos 20. O diálogo com a experiência afro-caribenha foi extremamente
significativo para o movimento. No plano político, o jamaicano Marcus Garvey teve um destacado
papel, exercendo grande influência ideológica através do periódico Negro World, que ele funda
em Nova Iorque em 1916. Em 1921 Garvey visita a ilha de Cuba, criando lanços de solidariedade
para o seu movimento Universal Negro Improvement Association (UNIA), particularmente entre a
população de migrantes jamaicanos. Edições em inglês e em espanhol de Negro World circulavam
em Cuba durante a década de 20. Por outro lado, o porto-riquenho Arturo Schomburg, meticuloso
estudioso da história e cultura africana, foi outra destacada figura que promoveu o
desenvolvimento de um pensamento afro-americano próprio, além de inspirador de uma legião de
intelectuais e artistas relacionados com o Harlem Renaissance. O grande poeta do movimento,
Langston Hughes, rendia homenagem ao jazz, assim como Guillén inspirava-se no son cubano. Os
dois poetas travam amizade numa visita de Hughes a Havana em 1930, voltando a se reencontrar
em Paris em 1937, no Congresso Internacional de Escritores em Defesa da Cultura. No ano
seguinte, outra marcante figura do Harlem Renaissance desafiava os terrores da guerra para apoiar
184
a República espanhola, apresentando-se no campo de batalha no meio da Guerra Civil. Tratava-se
de Paul Roberson, o afamado ator e cantor negro de Emperor Jones e Show Boat. A cena de
Roberson cantando Ol’ Man River e outros spirituals diante das brigadas internacionais ficou
imortalizada no romance La consagración de la primavera de Alejo Carpentier.
A divulgação nos Estados Unidos da música dos brasileiros Francisco Mignone e Camargo
Guarnieri teve como peça-chave o compositor Aaron Copland — que esteve no Rio de Janeiro em
1941 e depois em 1947. De Chicago, a cantora Liddy Chiafarelli relatava a Mário a recepção das
obras de Mignone (seu marido), de Camargo Guarnieri e de Villa-Lobos no concerto da League of
Composers. A organização e o nível das orquestras norte-americanas e a difusão da música
sinfônica e coral entre o grande público entusiasmaram grandemente Mignone. Porém, segundo
relata em carta a Mário de Andrade, o compositor sentia falta de um ambiente de discussão
estética e de projeção da música nacional:
No ano seguinte era a vez de Camargo Guarnieri oferecer o seu testemunho do panorama
musical norte-americano. Novamente o compositor Aaron Copland fora um contato fundamental
para programar concertos e adentrar o compositor brasileiro no meio musical. Guarnieri ficara
igualmente admirado com a qualidade das orquestras e dos corais, embora achasse os programas
nem sempre muito interessantes e o gosto do público parecido com o brasileiro. Em termos de
composição, destacava a obra de Copland, com a qual certamente encontrava pontos de contato:
Ainda faz pouco, visitei a 'High School of Music and Art'.[…] Estive lá em
companhia do Copland, pois estavam preparando a representação de uma ópera
dele, escrita especialmente para essa escola. Existe uma orquestra de crianças que é
uma maravilha. Com que entusiasmo aqueles garotos tocam! Fiquei comovido com o
185
que vi. Esse trabalho do Copland é muito interessante, muito original. Ele é o maior
músico deste pais. O Copland representa o artista típico de uma cultura musical
francesa aliada a uma sensibilidade de judeu americano. Os aproveitamentos que ele
tem feito de ritmos e mesmo de temas latino-americanos dão à música dele uma
grande riqueza e interesse. Ha poucos dias ouvi o seu último trabalho, para dois
pianos: Birthday Piece (On Cuban Themes) for Two Pianos. Gostei muito dessa
obra. Engraçado que cada vez que ouço música dele me lembro da Grécia. Não disse
besteira, não! Explico-me. Ele usa de um processo, em seus trabalhos, que dá
sensação de vazio: oitavas, em distância de duas oitavas; quartas e quintas, não
seguidas, misturadas. Fica bonito. Não sei se você me entendeu! Há qualquer coisa
de primitivo na música dele, entretanto, ela é moderníssima. (1/1/1943)
186
sombrero de los tres picos, encomendado por Diaghilev e estreado em Londres em 1919, foi uma
obra de grande influência. A relação do ambiente musical cubano com o espanhol foi bastante
forte na década de 20 em função da chegada em Cuba de Pedro Sanjuán e do casal Quevedo, que
mantinham laços estreitos com os músicos da península. Por outro lado, a visita de Turina a Cuba
em 1929, ocasião em que oferece palestras em várias cidades, seria muito bem aproveitada por
García Caturla, que logo trava amizade com o maestro espanhol e explora a possibilidade de fazer
ouvir algumas das suas obras em Madrid.
Nesse mesmo ano de 1929 tiveram lugar os Festivais de Música Ibero-Americana na
Exposição Internacional de Barcelona. De Cuba foram convidados Alejandro García Caturla, com
as Tres danzas cubanas, e Eduardo Sánchez de Fuentes, com Anacaona, justamente os mais
radicais representantes das facções que se enfrentavam no cenário musical havanês da época.
Participaram também Manuel Ponce, representando o México, e Heitor Villa-Lobos, do Brasil,
entre outros. Para García Caturla os concertos foram um fracasso em termos musicais, mas a sua
participação lhe granjeara respeito no meio musical cubano e uma recepção de homenagem na sua
volta. Sobre a atuação de Villa-Lobos, a sua esposa Lucila Guimarães relata em carta a Mário de
Andrade o enorme sucesso do brasileiro em Barcelona. Dos quatro concertos Ibero-Americanos,
os primeiros três foram regidos por Mario Mateo e o último, dedicado à música brasileira, pelo
próprio Villa-Lobos: “O concerto foi realizado no Palacio Nacional num salão que comporta 15
mil pessoas! Meu caro amigo tivemos a sala quase cheia, 10 mil pessoas ou mais. Um sucesso
colossal! O Villa foi uma revelação para esse povo, pois era quase desconhecido na Espanha”
(7/11/1929).
A atuação internacional dos compositores aqui examinados não se limitou aos eventos que
abordamos até agora. Francisco Mignone, por exemplo, fez importantes apresentações como
regente em Berlim e Milão em 1938. Por outro lado, embora não tenha havido contato direto dos
brasileiros e cubanos com os compositores da escola húngara, Bela Bartók (1881-1945) e Kodály
(1882-1967), esta teve uma influência considerável. Os escritos de Bartók sobre a relação entre
pesquisa folclórica e o desenvolvimento de uma música nacional no âmbito erudito tem muitos
pontos de confluência com as idéias de Mário de Andrade, como sugeri em trabalho anterior
(Quintero-Rivera, 2000, p. 188-190). Todas estas são apenas algumas coordenadas, que tentamos
traçar até aqui, de um intercâmbio musical que deixou marcas importantes na obra dos
compositores brasileiros e cubanos da época.
Mário de Andrade e Alejo Carpentier admiravam e respeitavam em extremo o labor do
compositor erudito. Possuindo formação musical e almejando ouvir os sons que imaginavam, é
curioso notar que tanto Mário como Alejo logo descartaram a possibilidade de dedicar-se à
187
composição. A música lhes infundia um respeito considerável. Muitas vezes insatisfeitos com as
realizações dos seus contemporâneos, noutras ocasiões certas obras os surpreendiam, os
maravilhavam. A sua dedicação à crítica e à orientação estética alimentava-se daquelas primeiras
promessas que expressavam sonoramente traços tão estimulantes de um projeto cultural que
começava a se forjar. Se o exercício da crítica garantia-lhes certa participação no desenvolvimento
da composição nacional, a possibilidade de empreender projetos em colaboração sempre lhes foi
muito incitante. Por outro lado, para os compositores, uma colaboração com Carpentier ou com
Mário de Andrade representava de alguma maneira uma garantia de inserção no panorama
cultural, pela autoridade que ambos atingiram como críticos e escritores desde muito jovens. Neste
capítulo procurei examinar, no caminho da correnteza, todo um esforço de construção, de debate,
de tentativas frustradas e realizadas, assim como diversos pontos de confluência. Façamos agora
um percurso através da desembocadura e examinemos os sedimentos sonoros e conceptuais que
foram para o palco da representação nacional.
188
TERCEIRA PARTE
Identidades em cena
189
CAPÍTULO 6
A nação que canta e dança: da poética à representação
190
que da imaginação do escritor ingressam definitivamente no imaginário nacional,
como o célebre Macunaíma, “o herói sem nenhum caráter”.
O conjunto de projetos colaborativos de balé e ópera que destacamos neste
capítulo se apresenta como uma instância fecunda para aproximar-nos ao estudo
desse terreno movediço das trocas entre pensamento crítico e criativo em Mário
de Andrade e Alejo Carpentier. São obras relativamente pouco conhecidas, onde
os autores procuraram integrar as suas investigações etnográficas e históricas,
suas preocupações estéticas e sociais. Destinadas ao palco, elas abriam um espaço
para ensaiar a representação de uma poética sobre a nação, a qual se forjava nas
viagens de redescoberta que examinamos na primeira parte deste trabalho e no
intenso diálogo com os compositores e outros colegas artistas contemporâneos. A
centralidade da música e do baile nas sociedades da região caribenha e no Brasil é
um fenômeno que se evidencia claramente de formas diversas. Tal constatação,
porém, tornaria-se em diferentes momentos históricos um elemento conflitante
para os discursos hegemônicos sobre a ordem e a construção nacional dentro dos
paradigmas ocidentais de civilização. Afinal tratava-se de manifestações que
revelavam, de alguma maneira, a presença africana nas sociedades cubana e
brasileira, fosse como resultado direto da importação de africanos à América, ou
como fruto da própria herança cultural de uma península ibérica marcada por
séculos de convivência com populações árabes e negro-africanas. Em trabalho
anterior examinei alguns destes debates na época colonial e mais detidamente nas
décadas de 1920 e 1930, no contexto do surgimento das técnicas de gravação e
radiodifusão (Quintero-Rivera, 2000, p.93-150).
Mário de Andrade e Alejo Carpentier foram figuras-chave no processo de
reavaliar certas manifestações populares de música e dança e outorgar-lhes um
papel significativo na conformação de uma cultura nacional. A transposição
erudita destas tradições apresentava-se aos olhos deles como o espaço para
concretizar uma representação do nacional mais transcendente, que pudesse
sustentar-se nos palcos internacionais. Por outro lado, uma releitura erudita dava
margem para se colocar em cena elementos e personagens de tradições diversas,
possibilitando-se marcar os traços distintivos de certos tipos nacionais e ensaiar
formas de interação entre eles, formas de sociabilidade. Nesta empreitada os
autores resolveram aproveitar-se das tradicionais formas ocidentais de canto e
dança cênicos: a ópera e o balé, elaborando assuntos e libretos em colaboração
com os compositores contemporâneos. Esta escolha, porém, apresentava
191
ambivalências e desafios, pois tanto Andrade quanto Carpentier sentiam antipatia
pelo caráter que tinham adquirido tais manifestações a partir do século XIX,
dentro da cultura burguesa emergente. As suas críticas às temporadas líricas em
São Paulo e Havana, respectivamente, eram severas. Ambos apontavam
problemas semelhantes: um repertório gasto de óperas célebres mas muitas vezes
de escasso valor estético; a conseqüente deformação do gosto do público;
montagens medíocres, tanto musical quanto cenicamente, repousando sobre a
aparição de alguma estrela internacional do canto; empresas desinteressadas na
cultura musical do público; ingressos exorbitantes que enchiam o teatro de uma
burguesia mais interessada em mostrar suas novas vestes do que na arte musical
etc. Veja-se os seguintes testemunhos de Carpentier e Andrade nos artigos “Los
males de la ópera”, de 1924 e “Campanha contra as temporadas líricas”, de 1928,
respectivamente:
192
Espetáculos abaixo de qualquer valor. Óperas sem interesse
nenhum. Encenações escandalosamente pobres e banais. Coros
insuportáveis de desequilíbrio [ … ] e sem a mais mínima
interpretação. Guarda-roupa ridículo de pobreza e falsificação.
Comprimários envelhecidos ou destituídos de valor, quer como
representação, quer como técnica ou beleza vocal. E no meio
dessa inqualificável mesquinharia antiartística, o esplendor
maravilhoso da sra. Muzio, e a voz magnífica do sr. Gigli!
(Andrade, 1963, p.194;198)
193
A história que dança da rua ao palco:
O Maracatu de Chico-Rei e La Rebambaramba
194
sinfônico ou mesmo […] bailado”3, Mário de Andrade envia ao compositor uma
versão da rapsódia do herói sem caráter, que ainda não tinha sido publicada.
Trata-se aparentemente de um texto de duas páginas datilografadas (sem data) que
aparece no arquivo do Mário de Andrade com o título de “Macunaíma: Ópera em
seis quadros”. O escrito descreve as cenas propostas que narram os amores de
Macunaíma com a Ci, Mãe do Mato, o envenenamento do filho deles, o
nascimento de uma plantinha de Guaraná no lugar onde foi enterrada a criança, a
transformação de Ci na estrela Papaceia (Vesper), e a morte de Macunaíma pelo
encantamento da Iara (Arquivo MA, caixa 87). Ao longo da descrição o autor faz
sugestões quanto ao caráter musical da obra, propondo incluir uma dança de
Ciranda, danças corais para acompanhar a entrada de um grupo de Sacis, o canto
coral das Iaras, etc. No final comenta: “Estude bem tudo que vai aí e veja se não
dá pra uma ópera interessante. Bem espetaculosa e bem rica de alegrias e dores e
danças e música variada.”
Lorenzo Fernández responde com a idéia de transformar o assunto
sugerido num bailado:
Li e reli com grande interesse o assunto de ‘Macunaíma’ e,
com toda a franqueza (como você pede na carta) digo que achei
um ótimo, um excelente assunto para bailado ou então para um
poema sinfônico. […] Que maravilha! Quanta música e quanta
dança interessante se poderia fazer. Além de que bailado é arte
moderna e parece se adaptar melhor para assuntos indígenas.
Digo sinceramente a você que tenho muito medo de
meter índio n’alguma ópera. Você compreende, depois de Carlos
Gomes...Daí resultaria um fracasso inevitável nesse gênero.
Mesmo o assunto me parece um pouco monótono para a ópera. No
bailado a coisa muda de figura. O próprio assunto indígena cria
um ambiente de fantasias que muito influirá para a beleza do
bailado. E depois podem-se fazer as cenas com muito cuidado,
procurando evitar qualquer lado ridículo, que é sempre muito
perigoso, principalmente para espetáculos públicos. […] Feliz de
mim se pudesse trocar impressões pessoais com você, porque de
uma colaboração mútua na música e no texto, a obra só teria a
lucrar.[…]
Quer dizer que, se você quiser, poderemos pensar
no bailado de Macunaíma. A não ser que você queira mesmo fazer
ópera, e, nesse caso, eu gostaria de ter mais detalhes. (4/12/1927)
195
Li teu colossal Macunaíma. […] Há mais de um ano comecei
escrever um bailado, saudoso de música feticha dos nossos
fanáticos macumbeiros. Não havia meio de me vir um título, nem
me sentia com coragem de escrever um argumento. Eis que recebo
o teu último livro e logo devoro as suas páginas com os meus olhos
contentes. Uma idéia me veio. […] O meu bailado chamar-se-á
Macunaíma e o seu assunto será de Mário de Andrade, extraído do
capítulo Macumba.
Serve? (25/12/1928)
196
cronistas, viajantes e pintores de costumes. Em 1866, Aurelio Pérez Zamora
publicava em Madrid a seguinte descrição:
197
depreende da seguinte caracterização que faz João José Reis, as irmandades
podem nos oferecer uma espécie de planilha da estratificação social da época:
O poder de ação das irmandades durante o século XVIII em Minas Gerais chegou
a ser tal que os párocos da região queixaram-se às autoridades portuguesas pela
prerrogativas que tinham adquirido tais associações, em detrimento dos padres.
As irmandades de homens pretos, cuja protetora através de todo o Brasil ficou
sendo a Nossa Senhora do Rosário, proporcionavam um espaço de sociabilidade a
escravos e libertos, no qual desenvolviam-se e validavam-se os líderes
comunitários, transmitiam-se valores e tradições e ganhava-se um lugar a partir do
qual interagir com as autoridades políticas e eclesiásticas (Ramos, 1998). É no
seio destas confrarias que se propaga a tradição das congadas ou congados.
Chico-Rei, personagem homenageada no bailado de Mário de Andrade e
Mignone, na tradição oral é vinculado às festas do congado. Diz a lenda que
Chico-Rei fora capturado na África junto à sua família e sua tribo, da qual era rei.
Tendo conseguido alforriar-se por meio do seu trabalho, ele chega a adquirir a
Mina da Encardideira em Vila Rica, obtendo lucros que lhe permitem alforriar
todos os membros da sua tribo e construir junto com eles a Igreja de Santa
Ifigênia no Alto da Cruz. Sabe-se que a meados do século XVIII Chico-Rei e os
integrantes da confraria da Nossa Senhora do Rosário, representavam o congado
na frente da igreja no dia dos Reis Magos. O maracatu pernambucano também
deriva das festas que as irmandades do Rosário organizavam principalmente no
dia 6 de janeiro, como o congado minero e do sudeste, também chamados
reinados. Porém, aos poucos ele perderia o caráter religioso, assim como o
entrecho dramático, mantendo-se como cortejo festivo que se integraria
finalmente ao Carnaval pernambucano.
Desde os tempos do Ensaio sobre a música brasileira, Mário de Andrade
vislumbrava as possibilidades artísticas das tradicionais danças dramáticas
198
brasileiras, instando os compositores a explorarem a forma da suíte que se
encontrava claramente nos maracatus, cheganças, reisados, fandangos, bumbas-
meu-boi, pastoris etc. Sugeria mesmo a utilização desses nomes tradicionais para
batizar as composições eruditas — e acabar com a “repugnante” denominação de
Suíte brasileira — bem como a possibilidade de incluir em tal estrutura tanto
temas típicos como outros de invenção dos compositores: “[…] E se pode utilizar
nessas formas os próprios temas populares, como estes mudam de lugar pra lugar,
de tempo em tempo, de ano em ano até, o que é que impede a utilização nessas
formas de temas inventados pelo próprio compositor? Nada” (Andrade, 1962,
p.69). O escritor definia os maracatus, como “cortejos semi-religiosos semi-
carnavalescos” e indicava que o nome deste bailado nordestino seria apropriado
para designar uma suíte de caráter solene.
O contato direto com o maracatu na viagem ao nordeste de 1928-1929
intensificara o interesse de Mário por tal manifestação. Na ocasião ele assistira ao
cortejo do Leão Coroado e anotara cantigas do Sol Nascente. Justamente na época
de gestação do bailado em que colabora com o compositor Francisco Mignone,
Mário de Andrade trabalha paralelamente dois escritos de investigação
etnográfica e histórica de grande importância: o ensaio A Calunga dos Maracatus,
enviado ao 1º Congresso Afro-Brasileiro realizado em Recife em 1934, e a série
de artigos sobre Os Congos, publicados nesse mesmo ano no Diário de São
Paulo. Ciente do parentesco histórico entre os maracatus nordestinos e os
congados mineiros e do sudeste, Mário concebe uma obra que fundia elementos
das duas tradições. Ele recria a história de Chico-Rei e sua tribo, vinculada ao
congado, porém escolhe para o bailado o título de Maracatu do Chico-Rei. Talvez
o fato de se tratar de uma suíte de danças, sem o entrecho dramático próprio do
congado, teria contribuído para essa escolha. E lembremos que as coreografias do
maracatu que ele observara no Recife tinham lhe causado grande impressão. Por
outro lado, Mignone já obtivera sucesso com a Congada da ópera O contratador
de diamantes, enquanto que Maracatu era um título ainda inédito na música
erudita brasileira. Finalmente, cabe apontar que dentro do seu projeto de
nacionalização das artes, Mário tinha pouco interesse em fortalecer as identidades
regionais, e sua obra revela o desejo contínuo de pôr em diálogo elementos de
diversos pontos do país. Na ópera Pedro Malazarte, como veremos mais adiante,
tradições amazônicas e nordestinas formam parte de um enredo que se passa em
Santa Catarina.
199
O bailado Maracatu do Chico-Rei para orquestra, coro e cantantes solistas,
cuja partitura leva assinatura de fevereiro de 1933, está arquitetado como uma
suíte de danças que apresentam cada um dos personagens da história. Apenas no
final efetua-se uma ação coreográfica que resolve o conflito do enredo: a alforria
dos últimos seis escravos da tribo do Chico-Rei. Além do assunto, traçado
brevemente em algumas orações, Mário de Andrade ofereceu ao compositor
indicações sobre os figurinos e sobre o caráter dos textos para os coros, chegando
a propor alguns versos para cada um dos números. Por outro lado, o escritor deve
ter compartilhado com Mignone o manuscrito de um ensaio sobre o maracatu que
estava trabalhando e incluía as observações que fizera no Recife em 1929, bom
como a coleção de toadas do Maracatu do Sol Nascente.
Através das nove danças que compõem a obra — incluindo uma
introdução e uma dança final — vemos passar um repertório de identidades que
oferecem uma leitura da sociedade colonial brasileira. Se a rua é o palco desta
história, prevalece nela a presença dos afro-descendentes. É claro que Mário de
Andrade não escolheu passear pela Vila Rica do século XVIII numa ocasião
qualquer. Tratava-se de um dia de festa em que a irmandade dos homens pretos de
Nossa Senhora do Rosário tornava-se protagonista da cidade. Os reis do cortejo
no bailado de Mignone — Chico-Rei e a Rainha N’Ginga — simbolizam
claramente a luta pela liberdade. Se Chico-Rei é o mítico fundandor do congado,
ele no entanto tradicionalmente não aparece como personagem nas danças
dramáticas brasileiras. Já a rainha N’Ginga, ou Nzinga Mbandi, é uma referência
importante no congado. Embora ela não conste diretamente como personagem do
entrecho, este muita vezes representa o enfrentamento da embaixada de Nzinga,
rainha de Angola, com a do rei Cariongo do Congo. Para Mário de Andrade,
como as danças dramáticas no Brasil são tradicionalmente dançadas
exclusivamente por homens, a invisibilidade da rainha Nzinga, representada no
bailado pelo seu embaixador, evitava o ridículo de ter uma protagonista feminina
sendo interpretada por um homem (Andrade, 1993, p.179).
A presença dos portugueses na região do Congo-Angola, que se remonta
aos fins do século XV, é uma das experiências mais profundas e estendidas de
contato político, econômico e cultural entre Europa e a África subsaariana. As
sucessivas embaixadas que transitavam entre os reinos vizinhos do Congo e
Lisboa formam parte do imaginário resgatado na tradição do congado brasileiro. É
lendária a memória, por exemplo, do faustuoso séquito levado a Luanda em 1621
200
por Nzinga — então irmã do rei de Matamba, em Angola. Mas a embaixatriz que
buscava a paz com Portugal, batizada nessa ocasião como Ana de Souza, tendo
ocupado o trono dois anos mais tarde após a morte do irmão, rebela-se contra os
portugueses, liderando uma guerrilha de resistência que lutou durante mais de
uma década antes de ser finalmente derrotada (Ki-Zerbo, 1980). É esta Nzinga
Mbandi Ngola a rainha N’Ginga que acompanha Chico-Rei na dança central do
bailado de Francisco Mignone.4
A história destes dois protagonistas é muito importante para compreender
a postura da obra perante o tema da escravidão e das relações entre portugueses e
africanos no quadro do Brasil colonial. Afinal, a rainha Nzinga representava uma
luta de resistência fracassada. O seu arrependimento no fim da vida confirmava
que a oposição ao sistema colonial escravista não era uma opção viável para o
africano. Por outro lado, o sucesso de Chico-Rei não se sustentava num
enfrentamento com o sistema, mas numa hábil adaptação ao mesmo. Sabendo
aproveitar-se da única via legal para a liberdade do escravo, que era a alforria, ele
chegara a tornar-se um próspero empresário do negócio da mineração. Chico-Rei
pode ser visto, desta maneira, como símbolo do anseio de liberdade, mas não
como opositor ao regime da escravidão. O que o bailado comemorava era
precisamente esta capacidade do afro-descendente de ajustar-se aos preceitos
políticos, econômicos, sociais e culturais do sistema colonial português,
negociando a sua identidade. A inspiração nas tradições do congado e do
maracatu destacava precisamente o espaço social conquistado pelas expressões
culturais sincréticas ligadas ao catolicismo popular.
O coral da Introdução do bailado, proposto por Mário, com texto em
português salpicado de palavras em quimbundo, representa bem o caráter de um
cortejo cuja oferenda mais prezada para a virgem do Rosário era a própria dança,
a quizomba:
{ e - 20 }
A Nação de Angola
E vem festejá
A Santa Senhora
No Santo lugá
Aiuêh!
Oi, lê, lê, lê, lê, lê, uá!
Aiuêh!
Sarangomberá!
Oi, lê, lê, lê, lê, lê, uá!
201
A mãe do Rusaro
Vamo Saravá!
Quizomba, quizomba
Prá Santa Sinhá!
Nesta introdução, para a qual não existem indicações coreográficas, o eixo central
é a apresentação do texto. Este aparece numa primeira vez como um cânon a
quatro vozes, sendo cada uma delas dobrada por alguns instrumentos da orquestra
e, mais tarde, repetido por todo o coral em uníssono. O desenho rítmico
empregado para a primeira estrofe é derivado do padrão 3 3 2, característico da
música da região do Congo-Angola, tão influente nas Américas.
202
igrejas, das estátuas, das casas particulares, de edifícios públicos,
estes sim formam a coreografia específica do Maracatu, são
lerdos, tardonhos, muito graves […] (Andrade, 1982c, p. 153)
{ e -22}
Quizomba, Quizomba,
oi, congo!
culenga cangola
jongo oi lê, lê!
Congo jongo oi lê! lê uá! ih!
Quizomba, zomba oi lê! lê uá!
Jongo oi lê, lê!
Muchino quiah’ e lá!
Mammeto tat’eto, uêh!
Quizomba oi lê! lê uá!
Congo jongo oi lê! lê uá! êh!
Muchino jongo eh!
203
nem coreografia — o autor do entrecho da obra gostou particularmente desta
dança, sobre a qual escreveu em crítica publicada no Diário de São Paulo: “[…]
está de um tecido quente, doirado, dum palhetamento luminoso de primeira
ordem. Tenho quase certeza que esse número do bailado ficará como uma das
obras-primas do sinfonismo nacional. É lindíssimo” (Andrade, 1993, p.259).
A Dança das Mucambas, que vem logo depois da Chegada do Maracatu,
é um número fundamental para o enredo do bailado, embora não tenha muita
relação nem com o maracatu tradicional nem com o drama popular do congado.
As mucambas ou mucamas eram as escravas domésticas, que portanto tinham
uma relação próxima com a vida social dos amos brancos. Conta a tradição oral,
resgatada pelo bailado, que as escravas que trabalhavam no garimpo do ouro de
vez em quando escondiam na carapinha pedaços do metal esfarelado. Nos dias de
festa lavavam o cabelo na bica da igreja, deixando o ouro, que era juntado por
Chico-Rei para a alforria dos seus companheiros. A música dessa dança explora
num tom humorístico a burla que estas moças conseguiam fazer dos senhores.
Numa aparente imitação das sinhazinhas brancas, as mucamas dançam ao som de
trêmulos, apojaturas e outros ornamentos graciosos uma dança em 3/4 — a única
neste compasso dentro do bailado — que pode ser interpretada como uma
macaquice das singelas danças que animavam as cortes européias dos séculos
XVII e XVIII. { -23 } Para este número, Mário de Andrade sugerira um coro
masculino sobre as palavras “Mucamba-lê, Mucamba-lâ, Mucamba, mi m tem
n’lemba”, que significavam, segundo o autor, “mucamba, tenho o preço de teu
casamento”; sugerira também uma exaltação às dançarinas com as palavras
“Muleca-lê, Muleca-lâ”. Para o presto final, propunha a utilização da palavra
“Matunga-tunga”, que quer dizer “música”. Estas idéias, porém, não foram
incorporadas ao bailado.
A Dança dos Três Macotas, num violento contraste com a anterior das
Mucambas, parece querer exprimir um caráter bárbaro, de atmosfera lúgubre.
‘Macota’, palavra de origem quimbundo, significa homem de prestígio político,
sendo que na Bahia é também o título dado a quem comanda o maculelê. Junto a
estes Macotas, integra-se na dança o feiticeiro N’Ganga Zumba. Ganga, também
de origem quimbundo, é título dado a reis ou sacerdotes. O nome de N’Ganga
Zumba é vinculado ao quilombo dos Palmares, sendo este o epíteto com que se
conhece o chefe — pai de Zumbi — que assinou acordo com as autoridades
coloniais. A partitura indica que nesta coreografia os Macotas e o feiticeiro põem
204
os distintivos nos reis, consagrando-os. A música apresenta um padrão rítmico
repetido nas cordas, trompas, fagote e tímpano, sobre o qual se destacam notas
compridas dos metais (trompetes e trombones). { -24} Esta combinação lembra
certos trechos da Sagração da Primavera, de Stravinsky, como o famoso ostinato
nas cordas do segundo episódio, com seus acentos bruscos, sobre o qual também
se destacam os metais. Dentro de um bailado que honra a Virgem do Rosário, esta
dança é a única que aborda aspectos de um ritualismo africano ainda isento da
intervenção do catolicismo. É por esta razão que o compositor deve ter salientado
o caráter exótico, o qual é acentuado musicalmente também pelo uso da escala
pentatônica chinesa (Fá#, Sol#, Lá#, Dó#, Ré#) em certas entradas dos sopros. A
indicação de Mário de Andrade para o figurino de N’Ganga Zumba encaixa-se
nesta linha: “O feiticeiro também poderá estar quase nu, mas com enfeites
malucos... à feiticeira” (Andrade, 1933). O texto do coro nesta dança baseia-se no
nome de N’Ganga Zumba e é apresentado no mesmo padrão rítmico ostinato das
cordas, utilizando cada uma das vozes uma única nota, sem variação melódica.
O Príncipe Samba-Eb parece ter mais relação com a parte dramática
tradicional do congado do que com a história do Chico-Rei. Algumas narrativas
da lenda do Chico-Rei argumentam que este teria alforriado primeiro o seu filho
— o único da família que junto com ele sobrevivera à travessia atlântica. Este,
com seu esforço, teria ajudado a alforriar todos os outros membros da tribo. Nem
a partitura nem as anotações de Mário de Andrade sobre o bailado trazem
referências à ação coreográfica de Samba-Eb. O escritor apenas comenta sobre o
figurino deste: “O príncipe Samba-Eb pode estar nu, só com uma tanga prateada,
pra contrastar bem com os outros personagens excessivamente enfeitados”
(Andrade, 1933). No seu ensaio Os Congos, Mário de Andrade destaca a figura do
príncipe Suena, também chamado de “Mameto”. No enfrentamento entre o rei
Congo e a rainha Ginga, o príncipe Suena é preso e morto, sendo porém
ressuscitado depois. Segundo aponta Mário de Andrade, o princípio da
ressurreição aparece também em outras danças dramáticas brasileiras, como o
bumba-meu-boi, representando um “novo mito do renascimento da primavera, ou
pelo menos... [no caso do congado] do futuro renascimento do Congo” (Andrade,
1935, p.66).
A música deste número, que se segue à Dança do Chico-Rei e da Rainha
N’Ginga, apresenta certa semelhança com a dos Macotas e N’Ganga Zumba. O
texto — todo em palavras do quimbundo, muitas delas já utilizadas em outros
205
trechos do bailado, como “Quizomba” e “Jongo Congo” — não é propriamente
cantado. É praticamente gritado em frases rítmicas de escassa variação melódica.
{ -25 } A dança toda é construída sobre desenhos rítmicos apresentados por
alguma seção da orquestra (coro, madeiras, metais, cordas ou percussão) e
respondido por alguma outra. Há um crescendo de dinâmica e de andamento ao
longo da dança que parece evocar talvez a luta, morte e ressurreição do mameto
do congado. No bailado popular, Mário de Andrade observa a partida do príncipe
para a luta como “uma coreografia guerreira de magnífico esforço muscular”
(Andrade, 1935, p.65). Outra possível fonte de inspiração para a Dança do
Príncipe Samba-Eb, ou talvez para a Dança dos Três Macotas, que já
comentamos, são os Caboclos de Pena, ou Caboclos de Nação, personagem
importante nos maracatus pernambucanos. Sobre eles diz Mário de Andrade:
“Uma figura etnográficamente bem curiosa é o Caboclo de Nação que é o abre-
alas do cortejo. Se escolhe pra essa função coreográficamente importantíssima ao
mesmo tempo que perigosa porque nos encontros de cordões esse é o indivíduo
alvejado pelos inimigos, um cabra avalentoado e bailarino exímio. Nações há, ou
pelo menos houve que levavam dois caboclos na frente, saracoteando em suas
fabulosas acrobacias” (Andrade, 1982c, p.150).
A brusquidão da Dança do Príncipe Samba-Eb, feita de frases
entrecortadas, contrasta com a mansidão e a arquitetura fluida da Dança dos Seis
Escravos. A ação coreográfica, segundo aponta a partitura, mostra os escravos
carregando pedras numa subida e numa descida. A construção melódica da dança
reforça esse movimento, com uma introdução em escala ascendente que tem a sua
inversão no final com uma escala descendente. O tema da dança é tomado do
Ensaio sobre a Música Brasileira, de Mário de Andrade, como bem observou
Paes (1989, p. 150). Trata-se do Canto de Xangô, encantação recolhida das
macumbas do Rio de Janeiro (Andrade, 1962, p.104). Este é apresentado pelo
fagote e logo, num estilo “quase recitativo” — segundo indica a partitura — por
um baixo solista que é dobrado pelo clarone. O tema é repetido sucessivamente
pelo barítono e pelo tenor, acentuando o movimento ascendente no registro
sugerido na introdução. No ponto central do número, a melodia é interpretada por
todo o coro e as madeiras. A apresentação inicial deste tema tem um caráter
monódico que lembra o canto gregoriano. Desta forma, Francisco Mignone toma
um motivo de caráter religioso afro-brasileiro, o Canto de Xangô, e o transfigura
num tema litúrgico do cristianismo medieval. { -26 } Os escravos, sempre
206
carregando pedras, parecem expressar a reminiscência de um tipo de sociedade
ultrapassada. Presos a esse eterno subir e descer da ladeira — e aos seus cantos
rituais — eles não apresentam, porém, nenhum sinal de rebeldia. A sua alforria é
fruto da negociação de Chico-Rei com os amos brancos, auxiliado pela esperteza
das mucambas. O texto acoplado à melodia do Xangô é constituído de palavras
em quimbundo ou onomatopéicas, cujo significado desconhecemos: “Uandalaié
cosumbo bica? / Oi diata, oi nata”. Para este número Mário de Andrade tinha
sugerido ao compositor a utilização de alguma cantiga tradicional brasileira de
carregadores de pedra, as quais são “feitas no geral sobre onomatopéias, que
determinam o ritmo de puxar a pedra, de mudar o passo” (Andrade, 1933).
A Dança dos Príncipes Brancos é uma gavota que mostra os traços mais
característicos desta dança de origem francês: compasso de 2/2 e frases que
começam no segundo tempo de cada compasso (Holst, p.126). É o único número
do bailado completamente instrumental, sem a participação do coro. { -27} Mário
de Andrade, afirmava no argumento que a introdução de dois personagens
brancos no bailado traria “maior diversidade, e permite o emprego episódico e
descansante de música de caráter europeu” (Andrade, 1933). Desta maneira os
amos brancos são caracterizados como figuras da aristocracia européia
transplantados ao Brasil sem apresentarem nenhum rasto de ação cultural do meio
brasileiro. Uma visão bastante estereotipada e alheia à realidade do colonizador
português. Este aspecto cortesão seria reforçado pela presença de quatro músicos
que atuariam como figurantes, fingindo tocar no palco, segundo revela uma carta
de Mignone a Villa-Lobos relativa à estréia do bailado (14/5/1934). Por outro
lado, ausente do bailado está qualquer tipo de conflito social ou racial. Os
senhores brancos aceitam o ouro reunido por Chico-Rei, consentindo assim na
liberdade dos escravos. Se Mário de Andrade guardava algum temor sobre a
monotonia do bailado pelo excesso de caráter musical afro-brasileiro, Mignone
criara uma suíte de grande diversidade e casualmente o número que não satisfez o
escritor numa primeira audição foi esta última dança:
207
Na versão apresentada recentemente pela Cia. de Dança Cisne Negro em São
Paulo5, a coreografia deste número mostra Chico-Rei e sua tribo imitando os
nobres a quem antes serviam.
O Maracatu de Chico-Rei foi estreado em outubro de 1934, mas nessa
ocasião contou apenas com a parte sinfônica. Meses antes Mignone ainda
esperava poder ver a encenação integral do bailado, como revela uma carta
destinada a Villa-Lobos, que então dedicava-se a propulsar o ensino do canto
orfeônico no Rio de Janeiro:
[…] certifico que para o meu bailado preciso de uma massa coral
de, no mínimo, 120 vozes. O coro é misto portanto a quatro vozes
assim discriminadas: sopranos (1as e 2 as) meio-sopranos (ou
contraltos, 1as e 2as), tenores (1 os e 2 os), barítonos e baixos.
O cenário é um só. Trata-se de uma cena que se passa na
frente da Igreja de Nossa Senhora do Rosário (Ouro Preto —
Minas) em construção. No meio: uma pia — chafariz onde as
pretas moças (mucamas) lavam a cabeça polvilhada de ouro. No
fundo uma vista panorâmica da cidade. Céu azul e estrelado. A
cena toda passa-se de noite. […] Advirto-o mais que preciso para
a orquestração de um pandeiro, reco-reco, chocalho […] o
xilofone e o carrilhão são também indispensáveis para os efeitos
em combinação com o piano, harpa e celesta. (14/5/1934)
208
O estranhamento de Itiberê Cunha perante a representação deste bailado
nos deixa entrever algo do embaraço que provocava, em 1939, a passagem do
maracatu pelo palco do Municipal e, por outro lado, nos faz avistar a situação da
dança no Brasil da época. Se o enredo do bailado e a música de Mignone
apresentavam um certo intento de aproximação às tradições populares, na
coreografia a coisa mudava de figura. A empreitada estava a cargo de Maria
Olenewa, bailarina russa vinda para o Brasil em 1927 e diretora da Escola de
Danças Clássicas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. O bailado de Mignone e
Mário de Andrade, como vimos, não apresentava uma ação coreográfica
complexa. A essência da peça estava na exposição de identidades diversas do
universo colonial brasileiro, particularmente do mundo afro-brasileiro. E o caráter
distintivo dos personagens havia de se revelar através do movimento corporal.
Mas o distanciamento de Olenowa e seus bailarinos da linguagem corporal afro-
brasileira era evidente, e a coreografia possivelmente tinha mais relação com os
passos de Nijinsky que com os do maracatu ou do congado. O papel de Chico-Rei
ficara nas mãos do checo Vaslav Veltchek, que tinha chegado ao Rio de Janeiro
nesse mesmo ano de 1939. A sua interpretação, segundo o crítico, mostrava um
“primitivismo estudado”. Nada mais longe do caráter libertário e do rebolado
solto que parecia exigir a música e a concepção daquele trecho do bailado.
Mário de Andrade, admirador profundo do corpo em movimento, chegara
a detestar o balé clássico, como abominava o cultivo de todo virtuosismo técnico
nas artes. Num manuscrito de 1942, refletindo sobre a desumanização da ópera na
sociedade burguesa, proferia os seguintes comentários: “Mais odiosa que ela
apenas a dança ‘clássica’, verdadeira monstruosidade […] explosão de vaidade
física, de exibicionismo absurdo de bailarinas, feira de corpos para uma classe de
escravocratas. Onde ficara em tudo isso a sublimidade da Dança!”6 (Andrade,
1942). Duas bailarinas brasileiras, porém, chamavam a atenção do crítico como
promessa de uma dança erudita livre da técnica clássica, e que se orientava para a
expressão de uma gestualidade nacional. De Chinita Ullman, em primeiro lugar,
destacava a fluidez e espontaneidade. Uma interpretação da Dança do chocalho,
samba do século XIX, porém, revelava a Mário que a bailarina, embora dançasse
com muita graça, ignorava os fundamentos das danças tradicionais do Brasil. “Há
uma coreografia nacional riquíssima de passos, de gestos, de atitudes que
careceria transpor pra coreografia erudita. Esse era um trabalho que Chinita
Ullman poderia bem tentar, em vez de criar livremente como fez sem se basear
209
em coisa nenhuma de realmente característico e nacional” (Andrade, 1993,
p.206). Era esse precisamente o mérito que, alguns anos mais tarde, o crítico
observava na bailarina Eros Volúsia. Justamente em 1939, poucos meses após a
estréia do Maracatu do Chico-Rei, Volúsia apresentava um espetáculo que bem
impressionou Mário de Andrade:
210
raiz desse vínculo pode encontrar-se na história familiar ou comunal, assim como
na função social que a pessoa está chamada a cumprir, de acordo aos seus dotes
físicos ou psicológicos. Esta flexibilidade corporal e espiritual para incorporar
identidades diversas é um elemento interessante de se observar na história social
do Brasil, como do Caribe.
211
negro curro é a sua vestimenta: traje multicolor, gravata estrondosa, grande
chapéu de copa, luvas e bastão. Os curros, segundo Ortiz, eram ostentosos e
exibicionistas. Ao contrário dos ñáñigos, cuja identidade era mantida geralmente
em segredo, os curros eram essencialmente públicos, e o seu âmbito de ação era a
rua:
Los negros curros se distinguían de los demás mortales por
multitud de detalles. Su figura, su peinado, sus andares, su camisa,
sus calzones, su calzado, su sombrero, su pañuelo, sus dientes,
etc., todo denotaba al curro. No podía observarse en él ninguna
adaptación mimética al ambiente social en que medraba, antes
parecía que su afán luchaba por apartarse y distinguirse de todos
los demás individuos, para que lo reconociesen y admirasen o
temiesen. (Ortiz, 1995c, p.52-53)
212
soldado se escondem. Entra o amo, acompanhado do cocheiro Aponte. Este é o
terceiro pretendente de Mercé, que pretende assumir a posse da mulata pela
autoridade do seu posto. Embora escravo, o cocheiro tem a incumbência de impor
a lei do amo. Para isto é portador até das suas armas de fogo. A presença de dois
sujeitos alheios ao universo doméstico da criadagem e, ainda por cima,
concorrentes aos favores de Mercé, acende a ira do cocheiro. O curro consegue
escapulir delatando o soldado espanhol, escondido no quarto de Mercé. Este, por
sua vez, é camuflado numa fantasia de diablito. O cocheiro acaba duplamente
burlado. Mas enquanto cresce a sua fúria, a cidade amanhece no dia em que tudo é
permitido. Os escravos saem pra rua com seus tambores e fantasias. O curro e
Mercé, que já brilharam na contradanza e na rumba, giram pelo palco num duo
final.
O segundo quadro do balé passa-se na Praça da Catedral. A cena é calcada
na descrição de Ramón Meza, publicada no jornal La Habana Elegante em 1891 e
citada por Ortiz em artigos sobre o tema, aparecidos na década de 1920:
Desde los primeros albores del día, oíase por todas partes el
monótono ritmo de aquellos grandes tambores […] Los criados
abandonaban las casas muy de mañana […] Todos corrían a
incorporarse a sus cabildos respectivos, que tenían por jefe,
generalmente, al más anciano de la tribu o nación a que
pertenecían. Por donde quiera se formaba un gran corro. Los
enormes tambores se colocaban a un lado a guisa de batería. A
horcajadas sobre ellos batían incansables los tocadores […]
agitando los hombros, crujiendo los dientes, a medio cerrar los
ojos, como embargados por fruición inefable. En el centro del
corro bailaban dos o tres parejas, haciendo las más extravagantes
contorsiones, dando saltos, volteos y pasos, a compás del agitado
ritmo de los tambores. La agitación y la alegría rayaban en el
frenesí. […] El de la banderola la hacía flamear paseándola sobre
el grupo. Las abundantes plumas de pavo real que llevaban atadas
a la cabeza los bailadores, estremecidas por sus ágiles
movimientos, brillaban con tornasoles metálicos a la luz que,
sobre aquel abigarrado conjunto, dejaba caer a plomo el ardiente
sol. Los espejillos de los sombreros, las lentejuelas y los tisús de
los trajes, las grandes argollas de pulido oro que colgaban de las
orejas de ébano, las alcancías que pasaban de mano en mano para
recibir de los espectadores el aguinaldo, los sablecillos, todo
destellaba como para deslumbrar la vista mientras el ruido aturdía
los oídos. […] A las doce del día la diversión llegaba a su apogeo.
En las calles de Mercaderes, Obispo y O’Reilly era una procesión
no interrumpida de diablitos. Todos se encaminaban a la Plaza de
Armas. A poco la muchedumbre colmaba el lugar y a duras penas
podía transitarse […] (In: Ortiz, 1992, p.26-27)
213
Por outro lado, os óleos, gravuras e desenhos de pintores de costumes como o
basco Víctor Patricio Landaluze (1828-1889) e o francês Frédéric Mialhe (1810-
1881), que deixaram abundantes registros iconográficos sobre esta festa,
constituíram, segundo testemunho de Carpentier, a inspiração primeira para La
Rebambaramba (fig. 88). Dito vocábulo cubano que dava título ao balé, segundo
o Nuevo catauro de cubanismos organizado por Fernando Ortiz, significa
confusão, desordem, alvoroço (Ortiz, 1985b, 428). É neste contexto de escândalo
sonoro e visual que se situa a trapalhada ideada por Carpentier, onde as
identidades, em vez de sumirem no tumulto, transparecem com maior claridade,
como acontece com o assustado soldado espanhol, que foge do cocheiro vestido
de diablito ñáñigo — também chamado de írime — mas termina sendo
humilhantemente desmascarado. A participação destes diablitos na festa era de
grande importância, segundo destaca Ortiz:
214
ritual. […] El diablito inhábil, acosado, trata de esmerarse, de
hacerlo mejor y sólo logra hostigar la agresividad de los de la
Comparsa. De pronto, éstos le arrancan el gorro, la cogulla, el
vestido, los atributos, y aparece el soldado pelirrojo galán de
Mercé. (Carpentier, 1983, p.206)
215
En suma, un ballet sin estrellas, sin danzas individuales, llevado hacia
movimientos colectivos que serían animados por auténticos bailarines populares”
(Carpentier, 1994, p.559). Levar estas comparsas para o palco do Teatro
Nacional, coisa que ficara na imaginação de Carpentier, teria sido uma
experiência cultural interessantíssima num momento em que ainda era
questionada a participação de tais conjuntos nas festividades de rua, como o
Carnaval. A tradicional festa do Dia de Reis tinha sido proibida em 1884,
paradoxalmente alguns anos após a abolição da escravidão. Ainda em 1937, um
grupo liderado por Fernando Ortiz advogava a autorização definitiva para as
comparsas afro-cubanas desfilarem com sua música e trajes típicos nos dias de
Carnaval (Ortiz, 1946c).
Por outro lado, Alejo Carpentier chegou a aproximar-se de Diághilev para
explorar a possibilidade de que os balés russos encenassem o bailado em Paris.
Mas esta tentativa ficara truncada com a morte do famoso empresário. L a
Rebambaramba foi estreada em versão coreográfica adaptada para televisão em
1957, com coreografia de Alberto Alonso. Como espetáculo de palco foi
apresentada em 1961 pelo coreógrafo Ramiro Guerra, que modificara o assunto
do bailado, editando também à sua parte musical. Infelizmente a gravação
existente aparentemente corresponde a esta última versão, que por ter sido
refundida não permite corroborar a concretização musical das indicações do
libreto de Carpentier. No primeiro quadro, destaca-se a incorporação da
contradanza San Pascual Bailón. { -28} O segundo quadro, que apresentava as
comparsas tradicionais, é construído sobre um tema que utiliza a escala
pentatônica chinesa, { -29} recurso que, como vimos no Maracatu do Chico-Rei, é
utilizado para reforçar o caráter exótico. Neste segundo quadro, utilizaram-se pela
primeira vez na música erudita cubana instrumentos de percussão típicos da
música popular. Este foi um dos aspectos que mais chamou a atenção do público
em 1928. Na época, María Muñoz de Quevedo observou:
216
O Maracatu de Chico-Rei e La Rebambaramba são fruto da admiração de
Mário de Andrade e Alejo Carpentier pela estética dos tradicionais cortejos e
comparsas dos afro-descendentes no Brasil e em Cuba, respectivamente. Outorgar
caráter de protagonista cênico a estes sujeitos outros poderia ser lido como um ato
questionador das visões hegemônicas sobre o negro. Por outro lado, a
transposição para o palco destas festividades de rua demarcava a distância entre
participantes e espectadores. Perpetuar artisticamente — embora através das artes
efêmeras do espetáculo — tradições musicais e de dança vinculadas a um
contexto ritual enraizado na história dos afro-descendentes na América é um gesto
que não pode deixar de ser entendido na sua relação com o intuito ocidental da
museologia etnográfica. Porém, não pode ser reduzido a isto. A liberdade criativa
que os libretos apresentam para combinar elementos de manifestações diversas e
outorgar novos sentidos a histórias ou personagens da tradição oral, assim como a
experimentação que se observa nas partituras, apontam para outros caminhos.
217
Heróis malandros e o canto nacional:
Pedro Malazarte e Manita en el suelo
218
Estas óperas devem ser examinadas levando em conta, igualmente, a sua
relação com os romances Macunaíma e Écue-Yamba-Ó. Publicados em 1928 e
1933, respectivamente — lembre-se, porém, que o primeiro manuscrito de Écue
data de 1928 —revelam-se marcados pela participação dos seus autores nos
movimentos de renovação artística da época. São textos que dialogam com um
coletivo de artistas experimentais contemporâneos, ensaiando novos vocabulários
para expressar a realidade nacional. Exibem traços da plástica vanguardista, da
sonoridade moderna das novas composições, dos ritmos da música popular que os
autores iam descobrindo através de percursos diversos, assim como vestígios das
polêmicas literárias e sociais. Seus personagens reaparecem em textos diversos,
próprios ou de outros autores, integrando novas narrativas, imagens e melodias.
Como vimos anteriormente, Mário de Andrade não respondeu aos pedidos
que lhe fizeram Lorenzo Fernández e Heitor Villa-Lobos de versões para bailado
do seu Macunaíma. Talvez pensando numa transposição cênica deste, o escritor
desejasse preservar o interesse narrativo guardado pelo “herói sem nenhum
caráter”, o qual parecia não se acomodar ao formato de bailado. A idéia de ópera
possivelmente lhe seduzia mais, apesar das restrições de Lorenzo Fernández, que
mostrava-se preocupado de abordar a temática indígena numa ópera — depois de
Carlos Gomes — levando-se em conta a comicidade da obra, que parecia-lhe
correr o risco de cair no ridículo. Porém, em 1939 Camargo Guarnieri — de Paris
— lembrava da idéia que talvez Mário tivesse acariciado: “Uma feita você me
prometeu transformar uma passagem do Macunaíma em ópera. No que ficou a
promessa?” (13/5/1939). Embora este projeto não se concretizasse, a ópera-bufa
Pedro Malazarte pode ser vista de certa forma como um filhote da célebre
“rapsódia”. Escrito entre 27 e 29 de agosto de 1928, o libreto da ópera vem na
esteira da publicação de Macunaíma. Como já observou Telê Ancona Lopez
(1992), os vínculos de ambos textos revelam-se em várias instâncias, que podem
resumir-se em dois pontos fundamentais: no aproveitamento de episódios do ciclo
de histórias do personagem da literatura oral Pedro Malasartes, e na proposta de
desregionalização através da reunião de elementos — naturais e culturais — de
diversos recantos do Brasil. Algumas idéias musicais esboçadas no libreto de
ópera baseado no Macunaíma e enviado ao Lorenzo Fernández, reaparecem neste
novo projeto, como é o caso do aproveitamento da ciranda amazônica.
Pedro Malasartes é um personagem da literatura oral muito arraigado no
Brasil. Segundo afirma Cascudo (1988), é originário da Península Ibérica, e a sua
219
primeira referência em Portugal data de fins do século XIV, com o nome de Payo
de Maas Artes. Já na Espanha, aparece como Pedro de Urdemalas em vários
textos do século XVI, incluindo uma comédia de Miguel de Cervantes publicada
em 1615. Tendo migrado às Américas, foi visto no Chile como Pedro Urdenzales,
e em Porto Rico como Pedro Urdemala ou Juan Animala (ibid.). Trata-se de uma
figura que provém dos estratos mais baixos da sociedade, mas consegue burlar os
poderosos através da astúcia. É um verdadeiro artista do engano, que atua sem
remorso e sem escrúpulos. Sobre a trajetória de Malasartes no Brasil, Roberto da
Matta nos informa:
220
de Minas, publicado em 1918. Tratava-se do episódio “De como Malazarte fez o
urubu falar”:
221
loiro, rubicundo” que veste “dolmã e calça curta abotoando no joelho, bem larga,
tudo de veludo verde-claro, cor de alface. Sapatos amarelos. Chapéu de veludo
marron, com flores silvestres do lado”. Malazarte é um “moço moreno magro” e
apesar da sua origem humilde vem vestido com elegância, “paletó pra cima da
bunda, calça bem larga, camisa de esporte aberta no peito e boné xadrezão
colorido”. A disputa pelos favores de uma mulata entre um personagem negro ou
moreno, malandro e astuto e um estrangeiro branco europeu, ridicularizado nas
suas vestes e bobo, nos faz relembrar o enredo de La Rebambaramba. Em ambos
casos, como veremos, o triunfo do malandro ‘de cor’ está relacionado ao seu
domínio dos códigos da música popular. Descobrindo a presença de um estranho
na casa, o alemão exige uma explicação. Malazarte, por sua vez, improvisa uma
embolada carregada de humor com a qual consegue ganhar a confiança do
Alamão e ser convidado para a janta da Baiana:
{ e - 30}
Eu?...
Sou Malazarte, minha parte é em toda a parte
Minha terra é em toda terra
Em que erra a serra da minha arte.
Trailailai! sou Barzabum,
Chinfrin xodó forrobodó
Dob orrobó doxó frinch im
Tupim-ninquim bom jour banzai!
Corripinhos Pingus
Taura sem eira nem beira
Nunca vi segunda feira
O meu mês só tem domingo
Trailailai!
Ganho no ofício
De acabar com todo vício
Diga aos homens: Deixem disso!
222
Diga às donas: Trabalhai!
Por isso mesmo
Ninguém viu o que vi hoje
Enxerguei daquela altura (aponta pra onde estava)
A Baiana te esperá
Diz que eu queria
Aprender como se trep a
Bobo é quem cai e se estrepa
Já sou dunga pra trepá
223
Porém o que mostra o enredo da ópera é que o poder do gato está, na verdade, no
próprio Malazarte. Afinal ele é o gato. É ele que pula das vigas do teto, é ele que
adivinha os segredos da baiana, é ele que consegue mudar o rumo das coisas em
seu benefício, e é ele que no fim das contas foge até da própria amante. Como
observa Roberto Da Matta: “O poder dos fracos é um poder que se atualiza por
meio de qualidades intrínsecas, irremovível dos seus portadores e concebido
como sendo natural, dado pelo nascimento através do caráter. Os poderes dos
fracos, assim, são poderes internos que não podem ser roubados. Donde sua
profunda associação com o mágico e o místico […] Já os poderes dos fortes são
fundados em objetos, elementos e instrumentos externos. Podem passar — como
ocorre com altos cargos e sobretudo com o dinheiro — de mão em mão” (Da
Matta, 1983, p.230).
Malazarte saciara-se com a comida e a mulher do alemão. Mas a burla
maior está na venda do gato. Em fazer o alemão acreditar que o gato lhe traria
algo do que estava reservado à própria identidade de Malazarte. No momento
central da peça, quando se revelam as qualidades do gato e aparecem na mesa os
tesouros escondidos que vêm da cozinha, o alemão entoa a sua ária, que
demonstra a perfeição do engano:
{ e - 31}
Meus senhores vou cantar
Uma sentida homenagem
Pra mulher de brasileiro
Brasileiro está de viagem
A mulher de brasileiro
Fica em casa a suspirar
A j anta sempre na mesa
A mulher no seu lugar!
224
A compra do gato pelo alemão pode ser entendida, de alguma maneira, como uma
tentativa de transgredir a barreira identitária que, mesmo sendo ele nascido no
Brasil, o condenava ainda a permanecer estrangeiro e alheio a certos códigos
culturais — e até fisionômicos — compartilhados entre Malazarte e a Baiana.
Outro assunto que está presente em toda a ópera é o motivo da viagem.
Desde que Malazarte chega, carregando a sua folha de porta, avisa para a baiana:
“Agora vou-me embora por esse mundo feroz, vou me fazer seringueiro, enquanto
a borracha der, ai, lai!...”. Mas não é ele o único personagem itinerante. O alemão
também vai e vem da casa à cidade, para fazer seus negócios. Por outro lado,
como pano de fundo da ópera aparece um coro que representa uma ciranda
amazônica. Não somente as aparições e sumidas do coro ao longo da ópera dão a
sensação de movimento: os próprios versos da ciranda fazem referência ao tema
da peregrinação:
{ e - 32}
Senhora dona de casa
Abra a porta, deixa entrá!
Ciranda veio de longe
Na vossa casa dançá!
[…]
225
Os triângulos de amores não correspondidos abundam na história da
literatura popular e culta. Segundo Walter Neiva, diretor da mais recente
encenação desta ópera, na construção do libreto Mário de Andrade busca apoio
também nos arquétipos da Commedia Dell’Arte, “pois os personagens: Baiana,
Alamão e Malazarte, são uma versão brasileira de Colombina, ingênua e
apaixonada, Pierrot, o cornudo, e Arlequim, o galanteador vilão e grande
oportunista.”9 Como os arquétipos da picaresca ou certas convenções formais da
opera buffa, a Commedia Dell’Arte, tão difundida na Europa renascentista, é
também uma fonte referencial para autores como Mário de Andrade e Alejo
Carpentier. O Arlequim apresenta definitivamente muitos dos traços picarescos
que exibe o Malazarte da ópera, como a busca por comida e a facilidade para
gozar da companhia feminina. E, de fato, um dos animais que costuma escoltar o
Arlequim é um gatinho. Por outro lado, a Colombina é um dos poucos
personagens capazes de aparecer sozinha no palco, sendo-lhe o prólogo muitas
vezes confiado, como no caso de Pedro Malazarte, que abre com a Baiana.
Lembrando agora do enredo de La Rebambaramba, pode-se acrescentar que um
dos tipos representados na Commedia Dell’Arte é um capitão espanhol,
geralmente ridicularizado, como acontece no balé de Carpentier. Note-se também
que, vinculados ao carnaval veneziano, muitos destes personagens da Commedia
introduziram-se nas festividades carnavalescas brasileiras e cubanas e, portanto,
tinham seu lugar no imaginário popular de inícios do século XX. A Commedia
Dell’Arte pode igualmente funcionar como referente [ou referência ?] na hora de
se apresentar um quadro social heterogêneo. Lembremos que compareciam nela
personagens procedentes de lugares diversos, e a caracterização destes muitas
vezes recorria ao uso de diferentes dialetos regionais da Itália.
Pedro Malazarte não pretendia ser uma obra de peso — preocupação que
mais tarde perpassa toda a concepção da ópera Café. Em carta a Manuel Bandeira
(10/9/1928) o autor do libreto declara: “Está claro que meu interesse é fazer um
espetáculo musical bonito, movimentado e cheio de possibilidades musicais e
coloridas, nada mais” (Andrade 2000, p.404). O texto destinava-se a um
compositor jovem e virtualmente desconhecido: Camargo Guarnieri, “21 anos,
moderno, brasileiro, inteligente”, comenta Mário com Bandeira. Reunia todas as
qualidades para compor uma obra despretensiosa mas astuta como o próprio
protagonista. A música do compositor paulista Camargo Guarnieri data de 1932, e
a ópera estreou em 1952 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Na encenação de
226
Walter Neiva, feita pela primeira vez em 1996 em Belo Horizonte e reposta no
ano 2000 em São Paulo, a representação de um painel brasileiro foi acentuada.
Nela cada personagem do coro representou um arquétipo do povo brasileiro,
desde jogadores de futebol até noivas, padres e palhaços, afirmou o diretor em
entrevista à Rádio Cultura (28/4/2000).
227
cadencia de refranes populares, locuciones típicas, canciones y
sones. […] Gráficamente, todo lo que ocurre en el pequeño
escenario debe verse envuelto en una atmósfera de oraciones,
litografías de cajas de tabacos, imágenes de santería y altares de
brujería. (Carpentier, 1983, p.241)
228
processo de revisão do romance, mostra a preocupação de trabalhar seu texto
partindo de informações fidedignas:
229
Juan Indio, Juan Esclavo e Juan Odio, conformam uma unidade: os Tres Juanes.
Os personagens femininos, símbolos da religiosidade popular, fortalecem o
contraste antes esboçado: a mãe de santo, Candita la Loca, em oposição à virgem
mestiça.
A ação de cada uma das cenas que compõem a ópera é introduzida por um
personagem narrador, no estilo dos antigos oratórios ou cantatas —
ocasionalmente se verifica também nas óperas — em que um solista resumia os
fatos da história, quase sempre em recitativo. Carpentier funde este recurso com a
forma tradicional do son cubano que, segundo observa o próprio autor, dividia-se
em duas partes: largo e montuno.
Señores,
señores,
los familiares del difunto
me han confiado,
para que despida el duelo,
del que en vida fue
Papá Montero.
Esta letra popular que Carpentier recolhe nos seus trabalhos musicológicos é um
ponto de partida para a ópera. Papá Montero era um personagem da mitologia
popular que chamava bem a atenção do escritor. Aparece citado nos poemas
Litugia e Canción e num artigo sobre Stravinsky publicado na revista Social em
1927. Papá Montero, marimbulero, lembrado pelo esplendor musical do seu
cortejo fúnebre, entra em cena como narrador da ópera, entoando versos calcados
precisamente na canção tradicional que acabamos de citar. O canto apresenta uma
melodia pentatônica e é acompanhado pela tradicional clave instrumento
característico do son, marcando o padrão rítmico que leva esse mesmo nome —
clave 3-2. Ouve-se também um trompete solo que repete o desenho melódico do
canto:
{ e - 34}
PAPÁ MONTERO:
Señores,
Señores,
230
Abran las guatacas
pa que sepan la historia
del que en vida fue
Manita en el suelo,
ñáñigo del tiempo antiguo,
que desinfló la luna
de una puñalá.
(Carpentier, 1983, p.243-244)
231
poderes vinculados às condições meteorológicas, pois é ele que invocará a
tormenta que surpreende os Tres Juanes em alto-mar.
Como em muitas cidades do Caribe, em Havana os setores populares
foram ocupando o manguezal. No litoral da baía formou-se El Manglar, um bairro
que foi zona dos negros curros. Conta Fernando Ortiz (1995c, p.15) que na rua
Esperanza, esquina com San Nicolás, achava-se a Bodega del Cangrejo, ponto de
encontro dos criminosos da zona. Alejo Carpentier conhecia esta referência e
situou ali a primeira cena da ópera. O lugar era concorrido por gentes diversas. No
caso, Manita en el suelo, o Capitán General de España e o Chino de la Charada.
Cada um apresentava-se como o chefão da sua turma:
Insistindo nas suas diferenças identitárias, estes logo fazem uma relação dos
elementos que os distinguem: os animais da charada, espécie de jogo do bicho,
pertencem ao chinês, o espanhol alude aos símbolos do seu poder militar e
econômico, enquanto Manita aponta para o tambor e o galo, elementos
indispensáveis nas cerimônias dos ñáñigos. A heterogeneidade do conjunto é
enfatizada musicalmente pelo estilo contrapontístico com que se apresentam as
falas do trio.
A breve ação desta primeira cena gira em torno da charada china, um jogo
de adivinhações introduzido em Cuba pelos migrantes chineses. Além daqueles
importados como escravos — que começam a chegar a Cuba em números
significativos a partir de 1847 — entre 1860 e 1875 houve também uma
importante leva de chineses que vinham da Califórnia fugindo de um clima de
232
hostilidade racial (Pérez de la Riva, 1978). Muitos destes eram comerciantes com
algum poder econômico que se assentaram na capital. O jogo da charada chinesa
baseava-se em 36 números que representavam principalmente animais. Tendo
escolhido um deles, o promotor do jogo recitava uma adivinha, sobre a qual se
baseavam as apostas dos jogadores. A charada chinesa tornou-se uma prática
muito popular que se vinculou a outros jogos, como a bolita, assim como a
diversos sistemas de adivinhação tradicionais — os búzios da santería, a
cabalística, etc. A presença do Capitán General neste encontro na Bodega del
Cangrejo, aludia à notícia que se tem dos tratos das altas autoridades com o sub-
mundo. É talvez uma referência ao Capitán Vives, que implantou em Cuba o
‘governo dos três ‘b’ (baile, botella y baraja). Carpentier aqui aproveita um verso
muito tradicional na charada que geralmente levava o jogador ao equívoco.
“Animal pequeno que anda pelo telhado”, anunciava o chinês, e o Capitán
respondia “gato”. A resposta porém era o número 9, que representava tanto o
elefante como a língua. Esta última é quem “caminha pelo telhado da boca”
(Arguedas, 1962). O Capitán, furioso, ameaçava de proibir o jogo, enquanto o
chinês, para contentá-lo respondia dando vivas a Espanha e declarando-o
vencedor. “Pela glória da metrópole, a harmonia entre os homens!” concluía o
Capitán.
O final desta primeira cena completa musicalmente a estrutura do son —
segundo foi definido por Carpentier — que iniciara com o largo de Papá Montero.
Trata-se da forma antifonal de chamada e resposta. O solista aqui é Manita en el
Suelo, que vem apresentar o Gallo Motoriongo, animal de suma importância para
o ñañiguismo. O coro é uma louvação ao galo: “¡Gallo Motoriongo / Congo
Abasí!” — sendo que “Abasí” em efique, a língua africana que é base do jargão
ñáñigo em Cuba, significa “deidade suprema” (Sosa, 1982, p.397). Manita, nos
seus versos, vai referindo as múltiplas funções do galo nos ritos abakuás11:
233
Congo Abasí...!
234
significados que transcendem o mito integracionista criollo. A história do milagre
da Caridad del Cobre remonta-se ao início do século XVII, na região oriental da
ilha. A maior parte dos relatos da aparição da imagem coincidem em assinalar que
ela teria sido encontrada por dois índios e um moleque negro que navegavam na
baía de Nipes em busca de sal. A sua representação como uma virgem mestiça e a
transformação dos protagonistas do milagre numa trilogia do povo cubano — hoje
lembrados geralmente como Juan Criollo, Juan Indio e Juan Moreno — tornaram
a Virgen de la Caridad del Cobre num poderoso emblema da fundação de uma
comunidade nacional amalgamada. Para Benítez Rojo o relato do milagre
“comunica mitológicamente el deseo de alcanzar una esfera de efectiva igualdad
donde coexistieran sin violencia las diferencias raciales, sociales y culturales
creadas por la conquista, la colonización y la esclavitud” (Benítez Rojo, 1989,
p.27).
A força do mito da Caridad del Cobre assenta-se na história da sua
devoção. A imagem encontrada em Nipes fez uma peregrinação de cerca de 40
anos por várias ermidas e templos até fixar-se no lugar onde ergueu-se
definitivamente o santuário, no cerro da mina da pequena cidade de Santiago del
Prado, hoje El Cobre, próxima de Santiago de Cuba. Como aponta Olga
Portuondo (1995) essa região distingue-se por uma intensa convivência interétnica
de populações que viveram parcialmente à margem do controle das autoridades
coloniais. Em todos os lugares mencionados nas narrativas do milagre se
corrobora a existência de estações aborígenes tardias, em cujos estratos culturais
superiores se verificam intensos contatos culturais entre o índio e o europeu.
“Desde Nipe, al norte de la porción oriental de Cuba, hasta las inmediaciones
septentionales de la Sierra Maestra, existe una amplia región fuertemente
transculturada” (Portuondo, 1995, p.69). Durante o século XVIII, perante o
expansionismo dos fazendeiros e terratenentes de Santiago, travou-se uma disputa
com a população de Santiago del Prado pela posse da terra. A devoção à Virgem,
que se disseminava na região, fortaleceu-se o sentido de comunidade dos
cobreros, em sua grande maioria afro-descendentes e mestiços. Nesta época o
povoado era descrito da seguinte maneira:
235
Charidad, á donde de todas partes van en romería, y se han
experimentado algunos milagros.12
236
por Carpentier em Manita en el Suelo tinha raiz nas realidades culturais que o
autor observava ou intuía. Anotava Ortiz:
237
El gallo —jamás la gallina por pertenecer al sexo femenino— está
presente en toda la ceremonia ñáñiga: sirve para las limpiezas y
para preparar las mokubas13 que alimentan —con su fortalecedora
mezcla— tambores, objetos y hombres. Por ser precursor del día
—lo llama— está relacionado con los astros y con Abasi14. (Sosa,
1982, p.223)
O galo vivo é utilizado entre os ñáñigos para purificar espaços e pessoas. Nas
cerimônias iniciáticas, indica Sosa (1982, p.227), “el íreme [diablito] pasa el gallo
vivo por sus cuerpos para que recoja sus impurezas y, al terminar, lo colgará de su
cinturón en prueba del cumplimiento de este aspecto del rito”. Na iconografia dos
diablitos ñáñigos que desfilavam pelas ruas de Havana no dia de Reis, de fato,
aparece freqüentemente esta imagem dum galo atado à cintura do mascarado
(figs. 94-95). O animal que carregava estas impurezas, depois do ritual, era
deixado em liberdade. O sacrifício do galo, porém, também cumpre um papel
fundamental. Como que evocando o exotismo que provocava nos viajantes
estrangeiros do século XIX a visão destes diablitos, o escritor cubano Miguel
Barnet, presidente da Fundação Fernando Ortiz, escreve num contemporâneo guia
turístico de Havana que em Guanabacoa — bairro de grande presença abakuá e
lucumí — a cada cinco minutos morre um galo sacrificado.15
Motoriongo, diz Carpentier em Écue-Yamba-Ó, é o nome do primeiro galo
sacrificado na fundação do juego santo16. Com a morte de Motoriongo na ópera,
Carpentier invoca o mito originário dos abakuás, que nasce da crença em um
peixe maravilhoso — reencarnação do velho rei Tánze — cuja captura e morte
daria um destino de glória e prosperidade ao povo que o possuísse. Os homens da
aldeia em vão tentavam a captura do peixe. Mas a portadora do cobiçado Tánze
seria uma mulher, Sikaneka, que todos os dias buscava água no rio antes do
amanhecer. A magia do peixe estava na sua voz de leopardo, que os homens
ouviam no rio sem poder enxergar. Com a pele de Tánze os sacerdotes da região
do Velho Calabar construíram um tambor buscando aquela voz sagrada, mas foi
em vão. Experimentaram com peles e carapaças de diversos animais, mas foi em
vão. Então Sikán foi condenada à morte. Seu sangue deveria atrair de volta o
espírito de Tánze. As penas do primeiro galo oferendado a Sikán adornaram o
tambor. A portadora do segredo morria, mas a voz de Tánze continuava
irrecuperável. Foi a pele de um enorme bode que finalmente reproduziu o som
desejado. Assim se construiu o ékwé, o instrumento sagrado que guarda o segredo
da voz de Tánze: o rouco rugido de leopardo (Sosa, 1982). Ele tem um
238
mecanismo de fricção algo inusual, similar ao da cuíca brasileira, não à toa
conhecida também como tambor-onça.
Nesta ópera de Carpentier e García Caturla, embora o quadro social
apresentado seja prioritariamente masculino, o âmbito do segredo divino é
reservado à mulher. No entanto, a revelação é sempre destinada ao benefício
masculino, seja dos Juanes, de Manita ou de todos os homens da comunidade,
como no mito de Sikán — de quem foi roubado o segredo. Para saber quem
matou o galo sagrado, Manita recorre à ajuda de Candita la Loca, na casa-templo
do “bruxo” Tatá Cuñengue. Conta a tradição, citada em Écue-Yamba-Ó, que
Candita foi uma santera que morreu de mau-olhado. No romance, o escritor cita
um refrão que depois aparece transmutado no libreto de Manita:
Ainda mais afortunado que o cantor dessa copla era o herói ñáñigo da ópera, pois,
segundo narrava Papá Montero:
239
um círculo ao redor de Candita, prática referente ao espiritismo de cordón.
Médium e mãe de santo fundem-se nesta caracterização de La Loca. No final da
cena, depois de revelado o autor da morte do galo, Carpentier introduz uma
“marcha guerreira” que evoca os cortejos abakuás. Desta forma, a cena descrita
incorpora elementos da ritualidade da santería, do espiritismo e dos abakuás.
{ e - 38}
CANDITA LA LOCA
Tiri17 bayari,
tiri naná.
Tiri bayari,
tiri naná.
¿Quién lo mato lo mato
quién lo mató?
{ e - 39}
TODOS
Olelí, olelá,
Olelí, olelá,
Olelí, olelá,
Olelí, Olelá,
{ e - 40}
TODOS [En marcha guerrera]
¡Masongo, abasongo,
ericondó...!
Enkino Motoriongo
ericondó.
240
desconhecido. O dom da mediunidade causava espanto, admiração e até inveja no
escritor:
{ e - 41}
LA VIRGEN DE LA CARIDAD
241
O final da ópera revela a urdidura que Carpentier realiza entre as
narrativas do milagre da Virgem, do ritual abakuá e dos sistemas de adivinhação
iorubá e chinês. Resgatando o vínculo do galo com os astros na tradição ñáñiga, a
morte de Motoriongo — com o auxílio de Santa Bárbara — provoca o furacão
que surpreende os Juanes em alto mar. As representações da Virgen de la Caridad
del Cobre a mostram montada sobre uma meia-lua invertida. Não pode se
descartar a relação desta imagética com a evocação do eclipse da lenda de Manita.
Na ópera, não há referência direta ao eclipse. Embora este relato deva ter
inspirado Carpentier a criar uma situação que parecesse burlesca, ele encerra
significados diversos: a ira de Manita o leva a apunhalar a Lua. Lembre-se
também que a Lua, como o galo, marca a passagem dos dias. A morte da Lua para
vingar o galo reforçaria a tragédia que significava a perda da noção do tempo. Por
outro lado, sabe-se que algumas correntes marítimas, concretamente a maré,
dependem da atração que exercem o Sol e a Lua. A morte da Lua teria, pois,
conseqüências importantes para a sobrevivência dos Tres Juanes e para a
possibilidade de se obter o sustento através da pesca — poderia-se pensar também
numa relação entre a infrutuosa pesca dos Juanes e as tentativas frustradas dos
homens de capturar o peixe Tánze na mitologia abakuá, ambos salvos pelo
milagre de uma mulher ligada ao divino.
A representação da morte da Lua na ópera não é só um episódio cômico,
uma caçoada surrealista, prenunciando a extinção dos românticos sonetos e
noturnos. É também uma ligação fundamental entre a história de Manita e a dos
Tres Juanes. Para completar o quadro, no final da obra, o chinês volta a entrar em
ação com a seguinte charada: “¡Animá redondo que sale de noche en la laguna...!”
— “Sapo”, respondem todos. “¡Luna!”, arremete o chinês. E o globo da Lua volta
ressuscitado ao firmamento. A Lua realmente pertencia ao jogo da charada,
representando o número 17, junto com San Lázaro, o santo milagroso. “Puñalá de
ñáñigo nunca mató Luna...!” afirma Papá Montero com entonação que lembra
uma burla de criança travessa, como querendo indicar que tudo não passou de
uma brincadeira, de um teatro dentro do teatro. A ópera conclui com uma
louvação coletiva aos Tres Juanes e à ressurreição da Lua. Afinal, Manita era um
personagem em extinção, enquanto os Tres Juanes abençoados pela Virgem
representavam a continuidade do povo cubano. O resgate de uma narrativa mítica
nascida na região oriental da ilha e a tentativa de criar uma trama de vínculos
242
diversos com o mundo havanês corroborava o desejo de firmar uma cultura
integradora.
O libreto de Manita en el suelo foi escrito em Paris e enviado a Alejandro
García Caturla em 1931. Carpentier imaginava a encenação da ópera com muita
precisão. Sugeria a construção de um teatrinho em que títeres, mimos e atores
representassem a história narrada por Papá Montero. A decoração do teatrinho
devia reproduzir a atmosfera popular das bodegas e dos altares domésticos, que o
escritor andava descobrindo e aprendendo a admirar. Como que para justificar
este encanto e situá-lo dentro dos movimentos artísticos da época, numa crônica
de 1939, Carpentier cita uma conversação com Georges-Henri Rivière,
organizador do Musée de l’Home de Paris, em que o etnógrafo defendia a
importância do objeto cotidiano, aquele que não é considerado “arte”. No mesmo
escrito, passava a elogiar as fachadas das bodegas Tarzán e King-Kong, no bairro
de Regla, e uma vitrina na Plaza del Vapor que lhe parecia um verdadeiro museu:
243
conmovedores. Mucha percalina, papelitos de colores y cintas. Los
ojos como dos alfileritos de cabeza reluciente. En resumen: el
teatro de títeres que soñaría un negro. Los únicos personajes
estilizables son el Capitán General y lo guardias civiles de cartón.
Y eso, lo menos posible. El Capitán puede llevar una máscara de
carnaval de las que se venden por la calle. Todo muy popular, muy
arrabalero. Ahí es donde está el auténtico arte moderno. Las
estilizaciones cubistas estaban buenas para Parade, en 1917. Hoy
estamos en 1932. Los suprarealistas de ahora te dirían que
“tenemos el deber de dignificar aquellos elementos desaparecidos
por los estetas, y considerados como inferiores y vulgares por la
gente fina. ¡Al diablo con los estetas! (In: García Caturla, 1978,
p.373-374)
244
seguir — também inspiraram realizações cénico-musicais em colaboração com
compositores europeus, durante a estada de Carpentier em Paris. Em 1931, Alejo
Carpentier da notícia nas paginas de Social de uma obra em preparação do
compositor Edgard Varèse com libreto escrito a três mãos por Georges R.
Dessaignes, Robert Desnoes e o escritor cubano. The one all alone, devia
aproveitar grandes massas corais e abordava a trajetória de um anti-cristo numa
cidade moderna. Uma das cenas, de autoria de Carpentier, baseava-se em palavras
do vodu e do ñañiguismo.19 A cantata La Passion Noire, por outro lado, com
música de Marius François Gaillard tem a sua estréia em 1932 na Salle Gaveau de
Paris. A obra criticava as condições de trabalho dos negros nas usinas. A morte
acidental de um operário numa turbina transformava-se no escopo que gerava um
canto de revolta. Finalmente, Yamba-O (trágedie burlesque nègre), também com
música de Gaillard baseava-se numa releitura do mito de fundação do ñañiguismo:
o sacrifício de Sikanekoua. Estreada em Bruxelas em 1936 a obra apresenta
elementos tratados por Carpentier principalmente em Manita, porém combinados
com outras referências e estereótipos da ritualidade africana tomados de diversas
fontes. Um exame minucioso deste libreto e da música que o acompanha
certamente traria a tona interessantes elementos para compreender os vínculos do
afro-cubanismo carpenteriano com a moda da arte negra que difundia-se em certos
círculos europeus.
245
grotesco das classes dominantes. Seja através de um milagre ou da revolução
social, assistimos, no final, à redenção do povo.
Entre 1926 e 1927 a imaginação de Carpentier dançava entre diablitos,
guajiros, mulatas, engenhos açucareiros, ruas havanesas e manguezais. Nessa
época concebeu ao menos cinco projetos de balé. Dois deles chegaram a
concretizar-se: La Rebambaramba e El milagro de Anaquillé, ambos com música
de Amadeo Roldán. Se o primeiro celebrava a presença cativante, embora fugaz,
de escravos e libertos nas ruas do centro da capital, o segundo retrata a incômoda
confluência no campo de guajiros, negros trabalhadores da cana e os norte-
americanos donos do engenho. El Milagro de Anaquillé apresenta, no mesmo
cenário camponês, dois universos sócio-culturais completamente divergentes que,
porém, compartilham as conseqüências de uma economia latifundiária dominada
pelo capital norte-americano. Por um lado, os guajiros, dedicados a uma
agricultura de subsistência e, por outro, os trabalhadores da cana, empregados do
engenho. Justo no ano em que Carpentier esboça o assunto deste balé, publica-se
na imprensa cubana os artigos de Ramiro Guerra y Sánchez criticando
severamente o modelo de exploração agrícola baseado na monocultura. Grandes
centrais açucareiras tinham sido fundadas particularmente no período entre 1915 e
1926, sendo que mais do 50% da produção era gerada pelos engenhos de capital
norte-americano. Para Guerra y Sánchez esta política econômica atentava
precisamente contra o pequeno proprietário agrícola, grupo social visto pelo autor
como base da nacionalidade:
246
masas del pueblo cubano a la miseria. (Guerra y Sánchez, 1976, p.
99-100)
247
Nesse instante entra um casal — marine ianque e flapper — dançando um black
bottom. Era o jazz da moda: Black Bottom Stomp, da banda de Jelly Roll Morton,
tinha sido lançado justo em fins de 1926 (Tirro, 1977, p.194). A flapper era uma
nova e ainda esquisita figura na paisagem cubana. Segundo Carpentier, até a
década de 1930 Havana era uma cidade sem mulheres. Restritas ao âmbito
doméstico, tornava-se virtualmente impossível vê-las nos bares e cafés do centro,
a não ser nalguns estabelecimentos específicos onde os casais costumavam ir
depois da ópera (Carpentier, 1987, p. 71-76). Em março de 1926, Social publica
uma caricatura de página completa da enigmática flapper — termo popular entre
os anos 1910 e 1930, segundo o dicionário Webster, para designar um tipo de
mulher jovem pouco convencional e arrojada no seu caráter e na sua vestimenta.
Cabelo curtíssimo, saia justa, um cigarro numa mão e uma taça de champanha na
outra, a flapper era caracterizada pela androginia, a Jazz Mania, um frio coração
insensível e o gosto pelo luxo. “De dónde proviene el frío y cruel egoísmo que las
mueve?... ¿Cómo nació ese ímpetu para gozar a todo trance de las cosas sensuales
y dispendiosas de la vida […]?”, perguntava-se o autor do artigo que
acompanhava a caricatura.20 Ao som do saxofone, que interpreta a melodia do
segundo tema desta dança, o business man instala grandes cartazes nas palhoças...
Ice Cream Soda, Bar, Church of the Rotarian Christ (The biggest in the world).
No fundo da cena ergue-se um aranha-céu.
Os guajiros continuam observando amedrontados. O business man dirige
uma nova cena de transformismo. Ao som de uma dança espanhola, o marine vira
toureiro e a flapper exibe uma fina mantilha castelhana, executando uma
coreografia burlesca. O business man distribui pandeiros aos guajiros, que
circundam o casal, e se prepara pra filmar a cena. Oito carregadores de cana,
todos negros, avançam lentamente com movimentos perfeitamente sincronizados.
Seguindo o Iyamba, que encabeça o cortejo, passam na frente da câmara,
poluindo a imagem que o business man achava tão perfeita. O Iyamba arranca os
cartazes sem prestar atenção aos protestos do business man e inicia uma
cerimônia ritual. Começa a dança do diablito, acompanhada da bateria de
instrumentos típicos de percussão: maracas, timbal , triângulo e campana. Os
violinos e violas interpretam um motivo rítmico de dois compassos, repetido em
ostinato ao longo da dança. A campana e o trompete acentuam o ritmo, enquanto
flauta e clarinete vão alternando um segundo motivo rítmico que também se
repete em ostinato ao longo da dança. O libretista descreve o rito dos abakuás: a
248
dança pulada do diablito; a limpeza dos negros com um galo preto que lhes é
passado pelo corpo; o oferecimento da mocuba, bebida ritual; a dança do diablito
sobre o fogo; a dança dos negros na roda até que um deles consegue capturar a
mocuba; a persecução do novo iniciado pelo diablito etc.
O business man mostra-se interessado no ritual que observa. Prepara seu
casal de dançarinos para uma nova cena. O marine ostenta uma pele de tigre e
vários colares no torso nu, enquanto a flapper vira dançarina havaiana. O ritual
dos ñáñigos é o fundo perfeito para os novos personagens. Mas os negros resistem
à aproximação destes estranhos. O business man tenta se impor, sem sucesso.
Ébrio de furor, destrói o altar com o tripé. Os fiéis se lançam contra ele, mas antes
de tocá-lo se detêm, como por uma força inexplicável. Na porta da palhoça
aparecem dois enormes bonecos pretos de forma cilíndrica. Trata-se de um par de
Jimaguas de porte gigantesco. Os Jimaguas, ou Ibeyes (Ibêji) são uma divindade
gêmea representada por dois bonequinhos de madeira idênticos, cujos pescoços
aparecem muitas vezes unidos por uma corda. Os Jimaguas avançam, dançando
pesadamente, e já no centro da cena realizam um brusco movimento com o qual
conseguem enforcar o business man utilizando a corda que os une. No fundo da
cena se desvanece o arranha-céu. Os guajiros, o marine e a flapper ficam imóveis
enquanto os fiéis erguem os braços ao firmamento.
Num arquivo de documentos pertencentes a Alejo Carpentier, disponível
na Biblioteca Nacional José Martí, encontra-se uma descrição da cenografia deste
balé acompanhada de um recorte de jornal de 1923 intitulado “El Milagro”. O
artigo se refere a um dos milagres de San Félix de Nola: um camponês perde uma
junta de bois brancos que lhe são devolvidos milagrosamente pelo Santo. Nos
altares dos cultos religiosos de ascendência africana em Cuba quase todas as
deidades — na santería chamam-se orixás — são representadas por imagens de
santos católicos. Os Jimaguas, no entanto, não aparecem sincretizados, constando
geralmente nos altares na forma de bonecos de madeira ou pano. De todo o
panteão de deidades veneradas nas religiões afro-descendentes, Carpentier
escolhe, neste mistério, justamente aquela que não é representável através de um
santo católico. É um ídolo, um anaquillé, no sentido de amuleto. ‘Anaquillé’
também é nome dado a um boneco que era carregado e dançado em cortejos e
festividades (Ortiz, 1985, p.532-535), um parente das calungas dos maracatus,
que tanto chamaram a atenção de Mário de Andrade (figs. 98-99). Por outro lado,
249
existem relatos populares cubanos em que os Jimaguas aparecem enfrentando o
diabo, sempre com bom resultado.21
El Milagro de Anaquillé aborda através da sátira um cenário de conflito
social. Embora a problemática econômica acompanhe de forma subjacente o
assunto do balé, é o embate cultural que aparece no primeiro plano da obra. Se o
business man é o dono do engenho — como refere o autor em vários textos
(Carpentier, 1988, p.285) — o principal confronto deste balé envolvia
proprietários e trabalhadores de uma mesma companhia. Aqui, porém, o
antagonismo se revela entre um cinegrafista estrangeiro que pretende apoderar-se
da imagem real e manipulá-la ao seu agrado — tentativa que o leva a destruir o
altar da cerimônia em andamento — e um conjunto de homens pertencentes ao
ñañiguismo, que vêem seu espaço ritual invadido e ameaçado pela presença do
business man. Trata-se de um embate entre a autenticidade e a imagem falsa,
adulterada, publicista. A sua condição social de carregadores de cana não é
questionada. Nessa hora, aparecem perfeitamente sincronizados na sua marcha,
formando uma unidade persistente na sua faina, tal qual os carregadores de pedra
do Maracatu do Chico-Rei. Os guajiros, por outro lado, somente conseguem se
manifestar quando são donos exclusivos do cenário, como que evocando um
passado em que a terra lhes pertencia. Posteriormente assistem mudos e passivos
o drama da sua existência. Seriam incapazes de defender ao menos sua cultura —
como os ñáñigos — ou estariam jogando o papel de coitados, escondendo
estratégias de resistência não confrontantes?
É interessante constatar que os guajiros e os ñáñigos não interagem em
momento algum. A sua relação, a sua vizinhaça é resultado da presença dos norte-
americanos. Isto reflete a visão de Carpentier, de fato predominante na
historiografia cubana, de apresentar os guajiros como setor social integrado
exclusivamente por descendentes de europeus, abismalmente distanciados em
termos culturais da população afro-descendente. De fato, referindo-se à música do
balé, Carpentier faz um comentário engraçado que coloca os americanos, de fato,
como ponte cultural entre estes dois universos longínquos:
250
de Cuba, en este caso perfectamente delimitados. (Carpentier,
1988, p.285)
251
arma ostensiva da classe dominante. Ópio do povo,
distanciamento dos ricos (In: Coli, 1998, p.101).
252
dedica-se a impulsionar uma vasta série de projetos culturais: a criação de novas
instituições como a Discoteca Pública Municipal, a Sociedade de Etnografia e
Folclore, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a
Revista do Arquivo Municipal; a promoção de concertos gratuitos; a criação de
parques infantis; a organização de eventos, como o I Congresso da Língua
Nacional Cantada, em 1937 etc. Demitindo-se do Departamento em 1938,
contrariado pela conjuntura política do país, traslada-se para o Rio de Janeiro,
onde fixa residência até 1941, desempenhando a função de professor do Instituto
de Artes da Universidade do Distrito Federal e também consultor do Instituto
Nacional do Livro. De volta em São Paulo, Mário finalmente retoma os projetos
de maior envergadura — de pesquisa e criação — que havia iniciado no começo
da década anterior e deixara à espera de tempos mais sossegados. Durante o
período de “exílio” no Rio, Mário estreitara a amizade com o compositor
Francisco Mignone e sua esposa Liddy Chiaffarelli. Como vimos no capítulo
anterior, o crítico seguia de perto a evolução do compositor, e o diálogo entre eles
tornara-se cada vez mais consistente e profundo. Mário o considerava o melhor
sinfonista do Brasil, e além disso não esquecia os pendores de Mignone para a
música dramática. A escolha deste compositor para o novo projeto de ópera era
natural.
A elaboração do libreto para Café foi um processo complexo, no qual
entraram em jogo profundas inquietações estéticas e artísticas, no sentido que
Mário dava a estas palavras: o estético como o relativo aos elementos de beleza na
obra de arte, e o artístico em referência à arte como instrumento de comunicação
entre os seres humanos (in: Coli, 1998, p.105). Longe estariam os dias em que
Mário de Andrade escrevia o libreto inteirinho de uma ópera como Pedro
Malazarte em menos de uma semana, com a intenção de oferecer um texto de
muito colorido a um jovem e talentoso compositor. Agora se tratava de uma
empresa que condensava propósitos múltiplos e essenciais. Através da sua
correspondência evidencia-se que, nesta ocasião, Mário de Andrade trabalhava
com uma autoconsciência extrema do próprio processo criativo. Pouco antes de
iniciar o trabalho intensivo na elaboração de Café — o qual se concentrou nos
meses de agosto a dezembro de 1942 — Mário de Andrade publica um artigo em
que explica a tendência estética do nacionalismo musical no Brasil como uma
resposta à necessidade de diminuir a distância social no país, um gesto de
253
aproximação ao povo. Este escrito conclui com uma reflexão que sintetiza as
principais problemáticas que permeiam toda a concepção de Café:
254
determinava mais profundamente era aquele eterno e universal
princípio místico de “morte e ressurreição” do deus da natureza,
do sustento tribal, que está na base duma infinidade de tradições
[…] atingindo mesmo certas formas da sociedade civilizada. E
talvez seja a própria inspiração primeira do teatro cantado, na
Grécia, na Ásia, na Idade Média e que fundamenta as nossas
danças-dramáticas de origem não-erudita, os Congos, o Bumba-
meu-Boi, os cordões de bichos [ … ] Mesmo nos tempos
policultores mais acertados de agora, e apesar de institutos, de
armazéns reguladores e o diabo, se pode dizer que a oscilação da
economia paulista determina-se pela morte e ressurreição ânua do
café. (In: Coli, 1998, p.105)
255
Arnaldo D. Contier — no exemplo alemão, onde tal prática expandia-se ligada à
ascensão do nazismo (ibid., p.251). É interessante observar que embora Mário
admirasse o grau de unanimidade atingido pelos corais russos e alemães e o
potencial disciplinador deste tipo de prática, ao mesmo tempo deixa as portas
abertas para observar como algo talvez positivo o fato de que nos países latinos a
realidade cultural nos distanciava deste ideal. Em artigo de 1923 sobre os coros
ucranianos ele observa:
256
permanece inédito. Coli destaca o fato de Boris ter sido originalmente uma ópera
sem enredo amoroso — mais tarde, porém, Mussorgsky se vê obrigado a fazer
uma segunda versão introduzindo novos personagens e ações dramáticas. E como
Mário afirmava num dos artigos citados, Café pretendia filiar-se ao “grande teatro
sem amor de todas as verdadeiras épocas do teatro social” (in: Coli, 1998, p.104).
Para Coli os vínculos de Café com Boris Godunov não somente revelam o
interesse de Mário particularmente por Mussorgsky e sua obra prima, mas criam
um elo entre a obra mariodeandradeana e a tradição da ópera histórica, da Grand
Opéra, da qual Guilherme Tell, de Rossini — obra sobre a qual Mário também
escreve na época — seria o modelo mais acabado (ibid., p.327).
As ambivalências de Mário em torno do gênero sob o qual catalogaria o
Café na verdade mostram a multiplicidade de fontes referenciais que informavam
o autor e a autonomia com a qual ele foi construindo a obra sem se assentar numa
tradição única. Imerso no processo criativo, Mário escreve a Mignone em
novembro de 1942: “Hoje acabei a marcação completa da ópera. Afinal, ainda não
pensamos: como é que vamos chamar o troço: ópera? drama lírico? melodrama?
ópera coral? tragédia-lírica? Só ‘ópera’ acho impossível, é uma confusão danada.
Gostava de ‘tragédia-lírica’, mas primeiro não é tragédia e depois fica pomposo
por demais. Creio que estou tendendo pra ‘melodrama’ palavra geral e pouco
usada, que não confunde nem com ‘Parsifal’ nem com ‘Guarani’” (in: Fernandes,
s.d, p.110). Quando terminada a primeira versão do libreto — que incluía uma
introdução e uma Concepção Dramática — em dezembro de 1942, Mário escolhe
a denominação “oratório secular” acentuando o aspecto mais reflexivo e menos
dramático da obra, assim como a ênfase nos coros. Compositores como
Stravinsky, Honegger e Hindemith também tinham se servido da forma de
oratório secular em trabalhos das décadas de 1920 e 1930, expandindo as
possibilidades do gênero. De fato, na própria Alemanha de fins dos anos 20 houve
um movimento de canto coral antinazista, assim como experiências inovadoras
com as formas do oratório e da cantata em obras de compositores como Kurt
Weill (1900-1950) e Hans Eisler (1898-1962), que também colaboraram com
Bertold Brecht em peças de teatro musical de grande impacto.26 Não podemos
deixar de notar, finalmente, que o grande compositor de oratórios e cantatas,
Johann Sebastian Bach escreveu uma cantata profana e humorística intitulada
Café (KafeeKantate).
257
Termos como melodrama e tragédie lyrique, por outro lado, vinculam-se à
tradição do teatro e da ópera franceses. Melodrama referia-se geralmente a uma
peça teatral com textos falados e acompanhamento musical. O compositor Darius
Milhaud, por exemplo, catalogara o seu Cristophe Colomb como melodrama. Nos
séculos XVII e XVIII tragédie lyrique era o equivalente na França da opera seria
italiana. Gênero estabelecido principalmente pela obra do compositor Jean
Baptiste Lully, servia-se abundantemente de partes corais. Em 1711, um cronista
referia-se à inclinação do público a cantar junto com os atores nas partes corais
deste tipo de representação, dando-se o caso do intérprete no cenário chegar
meramente a iniciar o canto de alguma canção famosa que era terminada de cantar
apenas pelo auditório (Raynor, 1986, p.303-304). Outra característica deste
gênero foi a de incluir cenas alegres que interrompiam a ação principal, muitas
vezes recorrendo-se para elas ao balé. Como veremos, este recurso aparece em
Café, na cena da “Câmara-Ballet” (ibid.).
Em fins de dezembro de 1942 o casal Mignone recebia no Rio de Janeiro o
libreto de Café, dedicado a Liddy Chiaffarelli. Em carta de 31 de dezembro o
compositor comentava entusiasmado a suas primeiras impressões de cada um dos
corais que compunham as cenas. A obra estrutura-se em três atos e cinco cenas. O
autor elaborara uma Concepção Dramática em que discorria com bastante detalhe
sobre cada uma das cenas — incluindo a decoração, figurinos e ações dramáticas.
O libreto consistia de um conjunto de textos que Mário ainda não considerava
finais — como libreto de ópera — e preferia chamar de “poema”. O primeiro ato
estava integrado por duas cenas: “Porto Parado” e “Companhia Cafeeira, S.A.”. A
música na primeira cena devia apoiar o conflito entre a lerdeza do porto parado e
a grande inquietação interior dos estivadores. A cena abria com uma orquestra
“agitadíssima, desagradável, quase tão irrespirável como o turbilhão que agita
interiormente os estivadores” (p.401)27. Embora os estivadores vestissem o
mesmo figurino, pequenos detalhes, como um bigode ou uma boina, deveriam
denunciar a presença de portugueses, espanhóis, negros e mulatos (p.402). A
problemática é introduzida pelos estivadores no “Coral do Queixume”:
Sem saber o que fazer os homens se estiram em diversos cantos da cena, enquanto
um grupinho prefere recrear-se no jogo e interpretam o “Madrigal do Truco”. As
258
mulheres vêm quebrar o marasmo com seu “Coral das Famintas”, cantando em
tutti:
259
A primeira cena do segundo ato é uma espécie de interlúdio humorístico
que interrompe o enredo da obra, como na tradição da tragédie lyrique. É a
“Câmara-Ballet”. Através da farsa, a cena esboça uma crítica ao sistema político.
Os deputados dormem em plena sessão, falam de bobagens, ou tentam ganhar
simploriamente a simpatia do povo. A cena começa com o deputado Som-Só:
“um escolado velhusco, que já sabe que se falando num som só, todos dormem e
as falcatruas se fazem com mais facilidade. […] Como era de esperar todos
dormem, toda a Mesa, os vários deputados, todos os jornalistas, e até um único
operário que está nas galerias ronca de papo pro ar. Só os serventes à direita é que
parolam suas intriguinhas de ofício, problemas de gorgetas, intercâmbios de
amantes de deputados, […]” (p. 408). Esse é o “Quinteto dos Serventes”, o
primeiro coral da cena, com o pano de fundo do discurso do Som-Só. Segue o
Deputadinho da Ferrugem numa fala “andantino grazioso” que “entre aplausos e
gostosa satisfação toda a câmara entra no movimentinho suave se movendo
pendularmente de cá pra lá, de lá pra cá.” (p.409):
A EMBOLADA DA FERRUGEM
Sobre a ferrugem
Das panelas de cozinha
Do país maior mistério
Diremos uma cousinha
O assunto é sério
Que as cozinheiras já rugem
Coléricas com a ferrugem
Das panelas da cozinha
[…] (p.435)
Nas galerias o povo quer saber “o que se decide da vida”. Um operário grita do
alto: “Praque falar em ferrugem de panela, si não tem o que cozinhar” (p.409).
Nessa hora aparece em cena uma mulher, com três filhos. O Deputado Cinza lhe
fizera decorar um discurso dizendo que a vida era triste mas o governo era muito
bom. Porém a farsa se conclui. E a Mãe canta o único solo da peça: “A Endeixa
da Mãe”
260
[…] (p.437)
261
Do que nos chega da tradicional literatura oral dos celtas, sobressaem os
cantos heróicos, filhos de uma sociedade guerreira (Oviedo, p.14). Justamente no
coral “Estância de Combate”, o primeiro em que ouvimos os revolucionários,
verificam-se certas imagens que podem ter surgido em Mário de Andrade da
leitura dos poemas celtas. Comparemos o final deste coral com alguns versos do
poema que Amerghin recita ao desembarcar na Irlanda, (em tradução castelhana):
Outro vestígio dos bardos celtas no poema Café aparece no “Coral do Queixume”,
onde a louvação à terra relembra o poema em que Amerghin invoca a terra de
Irlanda (Oviedo, p.25). De outra parte, uma das poucas instâncias em que o autor
propõe a utilização de documentos folclóricos brasileiros é no “Fugato Coral” e
no “Grande Coral de Luta”, construídos sobre texto de luta das danças dramáticas
do país. Mário de Andrade sugeria também a utilização da melodia tradicional,
cuja partitura se inclui no libreto. Em carta ao compositor Francisco Mignone ele
insiste nesta idéia:
Bom, este fugato e coral nada tive que escrever, lembrei textos
tradicionais populares, dos mais conhecidos em todo o Brasil, e que
aparecem nas 2 cheganças, nos congos, nos congados, etc. Serão
aliás os únicos textos folclóricos de que me aproveito, mas até este
aproveitamento, principalmente ele me parece de grande felicidade,
uma verdadeira invenção. São textos de guerra que circulam em
quase todas as nossas danças-dramáticas populares e vêm a calhar.
Quando mandar, mando com a música tradicional pra você ver se
pode aproveitar. Eu aconselharia a aproveitar. (In: Fernandes,
p.106)
262
último e maior sacrifício. Na véspera de pronunciar a famosa conferência O
Movimento Modernista, ele escreve uma longa carta a Francisco Mignone, onde,
além de revelar claramente as suas motivações mais íntimas para a realização de
Café, emprega seus dotes de persuasão para incumbir o compositor duma missão
de grandes proporções:
263
observar que o embrião de Café surge do trabalho com os textos etnográficos
colhidos durante a viagem ao Nordeste de 1928-1929. Sendo a obra originalmente
concebida como um longo romance, o protagonista de Café haveria de ser o
coqueiro Chico Antônio, talvez o artista popular que maior impressão provocara
no escritor modernista. Uma década mais tarde, Mário ainda revela grande
interesse pelo embolador nordestino e refunde os manuscritos do romance
abandonado numa série de crônicas ficcionais publicadas entre agosto de 1943 e
março de 1944 sob o título de “Vida do Cantador” (Andrade, 1993b). Mas o
protagonista da verdadeira obra de arte almejada já não poderia ser nem o Chico
Antônio, nem o Chico-Rei, nem nenhum Chico popular brasileiro.28
Mário de Andrade ensaiava agora uma aproximação ao povo como
conceito coletivo, como classe social. E, nessa conjuntura, interessava-se pelos
destinos sociais e culturais da Rússia revolucionária. Particularmente no plano da
criação musical, além da lição de Mussorgski, observava com atenção a produção
de Schostakovich. Para Mário, este compositor representava o dilema do artista
erudito comprometido com realizar uma arte para as coletividades. As
contradições na música de Schostakovich derivavam, segundo o autor, da
dificuldade de conciliar uma técnica refinadíssima com as exigências de criar uma
música “fácil” que atingisse a sensibilidade do povo. A partir de algumas
declarações que o compositor russo fizera nesses anos, Mário admirava a
consciência que Schostakovich parecia revelar sobre a sua arte: “Mas justamente
o que mais me entusiasma nele é percebê-lo consciente das suas lutas e a lealdade
com que ele procura solucioná-las, sem que o consiga todas as vezes, está claro.”,
escreve em carta a Camargo Guarnieri (28/1/1943). Mesmo a um intelectual que
ainda vivia e sofria o Estado Novo, como Mário de Andrade, pareciam escapar os
dilemas que Schostakovich enfrentava em relação às políticas culturais do Estado
soviético. Ou seria que o autor resolvera, talvez, passar por cima destas suspeitas
para insistir no exemplo estético e social que oferecia a obra de um artista
aparentemente engajado num processo revolucionário?
O certo é que se Mário resgatava as posturas de Schostakovich, o homem,
é porque entusiasmava-se com as suas realizações estéticas. Schostakovich estava
conseguindo criar música que se popularizava entre as massas de uma forma que
Mário avaliava como orgânica e não produto das dinâmicas da imposição
hegemônica de uma ideologia social, como seria o caso, mencionava o autor, de
Palestrina, Bach, o Gregoriano, Wagner ou Chopin (in: Coli 1998, p.403).29 A
264
fina corda bamba entre o “fácil” e o “banal”, na qual, aos olhos de Mário,
Schostakovich se balançava, era também o difícil trilho que Mário passava a
exigir dos compositores brasileiros. Principalmente de Francisco Mignone no
projeto de Café. O elemento musical destacado como o mais importante para criar
uma música de “funcionalidade popular” era a melodia. Porém justamente ela
representava o lugar de onde mais facilmente poderia-se escorregar no banal:
265
esboçava uma ópera coral que minimizava, tanto em termos formais como de
conteúdo, as referências concretas ao “povo brasileiro”. A obra cantava a
revolução como um gesto verdadeiramente orgânico e produto da luta de classes.
Mas embora visando atingir as massas, tratava-se duma concepção de dois
eruditos: Mário de Andrade e Francisco Mignone. Desta vez Mário rejeitava
apoiar-se nos encantos do popular. As únicas propostas de aproveitamento do
folclore musical brasileiro que previa o libreto eram justamente em momentos de
sátira — a embolada da ferrugem — ou de guerra — nos corais da luta, baseados
nas danças dramáticas. Por conta da invenção de Mignone ficavam os cantos da
dor, da consciência, da redenção. O compositor, porém, nunca chegou muito
longe na missão que Mário de Andrade lhe reservou. O amigo e idealizador da
obra se foi, e Mignone ficaria com o dissabor da incumbência não cumprida. Por
fim, acabaria passando o libreto a Guarnieri, que aparentemente também não
encarou o projeto. Curiosamente, as duas montagens sobre as quais tenho
referência conceberam esteticamente a obra a partir de patamares diferentes e que
talvez se afastam do conceito original do autor. O compositor Koellreutter,
justamente um dos que provocaram a polêmica com Camargo Guarnieri sobre o
atonalismo, compôs uma versão da ópera que foi encenada em Santos em fins da
década passada. Por outro lado, alunos do Departamento de Artes Cênicas da
UNICAMP, dirigidos por Márcio Marciano e com direção musical de Walter
Garcia, encenaram o poema partindo musicalmente do roteiro do Turista
Aprendiz, em outras palavras buscando explorar os recursos do folclore brasileiro.
Talvez a ópera coral que Mário de Andrade concebeu nunca tenha
chegado ao palco, mas, ao menos, o autor satisfazia-se de ter vivido aquele
processo criativo que o redimia. Em carta a Henriqueta Lisboa de 15 de
novembro de 1943, confessa:
266
sofrimentos horríveis. […] e enfim explodiu no “Café” como
criação, e na doença como carne. E foi neste último momento de
criação, de outubro a dezembro passado [1942], talvez o momento
mais dramaticamente feliz de toda a minha vida, que eu percebi.
Como eu atingira uma elevada moralidade de mim! como eu
estava (como homem) grande! como eu me purificara em Homo!
Havia uma exigência extrínseca sublime de aperfeiçoamento do
ser, que não nascia de dentro pra fora, mas me vinha da obra-de-
arte. […] Que meses foram aqueles, que luta, que fome! Mas pelo
menos a obra-de-arte eu conquistei. Hoje, acalmados os ânimos,
eu a sinto muito imperfeita, tem coisas nela que não me satisfazem
mas que eu não sei como fazer, não consigo fazer milhor. […] Mas
a verdade é que eu me sinto prodigiosamente diverso e mais
elevado. Se deu como que uma depuração de humanidade em mim.
(Andrade, 1991b, p. 137-139)
267
REFLEXÕES FINAIS
268
O olhar comparativo é uma valiosa ferramenta para pôr em perspectiva
processos ou verdades que se apresentam como únicos. Tratando-se de narrativas
sobre a identidade, isto torna-se crucial. Não foi o nosso intuito descartar a
originalidade de certas soluções para o nacional que se desvendam na produção
crítica e literária de Mário de Andrade e Alejo Carpentier. Tampouco
desqualificar a especificidade histórica e cultural brasileira ou cubana. Mas ao
encarar uma reflexão sobre as estratégias dos intelectuais latino-americanos para
lidar com a heterogeneidade cultural e propor definições do nacional no contexto
da modernidade, encontramos que considerar os vínculos das experiências de
Brasil e Cuba pode ser iluminador. Em nenhuma outra região latino-americana
assenta-se tão acirradamente como no Brasil e no Caribe a noção do tropical
como rasgo identitário. Embora Mário de Andrade e Alejo Carpentier rara vez se
refirem a esse conceito, seus escritos têm contribuído para a sua fixação nas
representações endógenas e exógenas do caráter nacional brasileiro e cubano,
respectivamente. Talvez o gesto de uma permanente redescoberta, que tentamos
destrinchar na primeira parte desta tese, seja uma chave para entrar nesse campo
de análise.
A obra andradeana e carpenteriana, apesar de extensa e diversa, apresenta
consistências marcantes. Entre elas, distingue-se o traço recorrente da admiração,
do assombro perante a realidade circundante. Alejo Carpentier caracterizou este
feitio como o “maravilhoso” — conceito que a crítica tem esmiuçado e
expandido. É interessante observar que ele parte do confronto com aquilo que é a
um tempo próprio e desconhecido. São esses enigmas de uma entidade nacional
que parecia difícil de apreender que provocam espanto e deslumbramento. Em
Alejo Carpentier, isto eventualmente se expande para uma idéia do ‘americano’,
sendo marcantes na sua trajetória criativa as viagens ao Mexico, ao Haiti e à
Venezuela, entre outras. Mas não se pode deixar de notar que ele parte
invariavelmente do entorno cubano e a ele sempre retorna. De tal perspectiva
emerge uma visão do nacional como território que excede o domínio do
intelectual. Mas não como algo simplesmente alheio, capaz de germinar sem a
concorrência do homem de letras. Muito pelo contrário, o intelectual passava a se
revestir da responsabilidade de ir ao encontro daqueles territórios outros, as
paragens da cultura popular. Pois, acreditava-se, seria nessa encruzilhada que se
cristalizaria uma identidade vigorosa e expressiva. O projeto nacional no plano
cultural delineia-se, assim, a partir de uma redescoberta do outro interior. As
269
dinâmicas entre a escrita e oralidade ganham uma importância radical. E é nesse
plano que a música revela o seu papel fundamental na articulação de sentidos
identitários.
A aproximação de Mário de Andrade e de Alejo Carpentier aos territórios
do outro interior se realiza principalmente através da música. É na expressão
musical que eles conseguem reconhecer certos traços culturais que demarcariam
os contornos de uma identidade nacional. Uma identidade que teria que ser
construida a partir de um universo heterogêneo; que, ao invés de se reportar a uma
essência originária, aspirava a instaurar um novo ponto de partida. Uma questão
que espantava os intelectuais era a fluidez cultural que observavam nos setores
populares: a capacidade de se revestir de identidades diversas. Isto se revelava,
por exemplo, no domínio de gêneros musicais de variada procedência e na
capacidade de readaptá-los aos novos contextos. Tal ‘jogo de cintura’ é o atributo
sobre o qual se fundam os mitos modernos brasileiros e cubanos: os ‘heróis sem
caráter’, protagonistas de várias das óperas e balés que aqui discutimos. Os
intelectuais pareciam se debater, porém, entre a admiração por esta flexibilidade
cultural e até o desejo de conquistar o dom desta fluência e, por outro lado, o
estranhamento e a insegurança que provocava uma identidade que parecia
fugitiva, dificultosa substância para compor um conceito de coletividade.
A mais de meio século de distância, os discursos culturais contemporâneos
ainda frequentemente se paralisam diante dessa aparente encruzilhada. A obra de
Mário de Andrade e de Alejo Carpentier, particularmente na instância do seu
diálogo com o universo musical da época, apresenta visões do nacional marcadas
pelos dilemas sociais, políticos e culturais do contexto histórico em que foram
articuladas. Esta investigação sugere que, mais do que as soluções apresentadas
nos textos andradeanos ou carpenterianos, a crítica contemporânea precisa atender
aos dilemas que eles enfrentaram na elaboração de tais relatos identitários. Além
dos propósitos acadêmicos — de caráter teórico ou historiográfico — contidos
nesta tese, o esforço de pesquisa e análise mobilizado para o presente trabalho foi
gerado também por um desejo de compreender as matrizes ideológicas e
conceituais das políticas culturais contemporâneas no Caribe e no Brasil.
270
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Correspondência a Camargo Guarnieri. (Arquivo pessoal Vera Sylvia Camargo)
Correspondência a Heitor Villa-Lobos. (Museu Villa-Lobos)
Correspondência a Francisco Mignone.2 (Arquivo MA, IEB-USP)
CHIAFFARELLI, Lidy.
Correspondência a Mário de Andrade. (Arquivo MA, IEB-USP)
CURT LANGE, Francisco.
2
Trata-se de duas cartas guardadas com os documentos sobre Café.
289
Correspondência a Heitor Villa-Lobos. (Museu Villa-Lobos)
GALLET, Luciano.
Correspondência a Mário de Andrade. (Arquivo MA, IEB-USP)
GUARNIERI, Camargo.
Correspondência a Mário de Andrade. (Arquivo MA, IEB-USP)
Correspondência a Heitor Villa-Lobos. (Museu Villa-Lobos)
FERNÂNDEZ, Lorenzo.
Correspondência a Mário de Andrade. (Arquivo MA, IEB-USP)
Correspondência a Heitor Villa-Lobos. (Museu Villa-Lobos)
MIGNONE, Francisco.
Correspondência a Mário de Andrade. (Arquivo MA, IEB-USP)
Correspondência a Heitor Villa-Lobos. (Museu Villa-Lobos)
MILHAUD, Darius.
Correspondência a Heitor Villa-Lobos. (Museu Villa-Lobos)
MILLIET, Sérgio.
Correspondência a Mário de Andrade. (Arquivo MA, IEB-USP)
VILLA-LOBOS, Heitor.
Correspondência a Mário de Andrade. (Arquivo MA, IEB-USP)
ALEGRÍA, Ricardo
Correspondência a Fernando Ortiz (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
ALMEIDA, Renato
Correspondência a Fernando Ortiz (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
CARPENTIER, Alejo
Correspondência Amadeo Roldán (Arquivo AR, Museo de la Música)
COMHAIRE-SYLVAIN, Suzanne
Correspondência a Fernando Ortiz (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
COURLANDER, Harold
Correspondência a Fernando Ortiz (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
CURT LANGE, Francisco
Correspondência a Fernando Ortiz (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
ORTIZ, Fernando
Correspondência a Ricardo Alegría (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
Correspondência a Francisco Curt Lange (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
Correspondência a Harold Courlander (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
Correspondência a Balbino González (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
Correspondência a Suzanne Comhaire-Sylvain (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
Correspondência a Renato Almeida (Arquivo FO, Biblioteca Nacional)
ROLDÁN, Amadeo
Correspondência a José Antonio Fernández de Castro (Arq. AR, Museo de la Música)
290
STOKOWSKI, Leopoldo
Correspondência a Amadeo Roldán (Arquivo AR, Museo de la Música)
Periódicos (BRASIL)
Periódicos (CUBA)
Fontes adicionais
• Catálogo de recortes do Arquivo Mário de Andrade. Inclui artigos das seguintes publicações periódicas,
entre outras: L’Arte Pianistica; Le Menestrel; The Chesterian; La Gaceta Musical; Le Courrier; The
*
Anos consultados
291
Musician; Le Monde Musical; Il Primato; Le Guide Musical; Brasil Musical; Imago; Die Musik; La
Civilization Française; Candide; Revue Musical.
• Arquivo fotográfico de Mário de Andrade.
• Arquivo pessoal de Fernando Ortiz (Inclui fotografias, recortes e manuscritos, entre outros)
• Arquivo de recortes de Alejo Carpentier (de artigos da sua autoria).
• Arquivo pessoal de Amadeo Roldán. (Inclui programas de concerto, recortes, correspondência e
manuscritos, entre outros.)
• Arquivo pessoal de Alejandro García Caturla. (Inclui programas de concerto, recortes, fotos,
correspondência e manuscritos, entre outros.)
• Arquivo sobre Marius François Gaillard, Biblioteca Nacional, Paris.
292
Notas: Introdução
1
Todas as traduções são minhas.
2 Este trabalho foi orientado pela Dra. Lisbeth Rebollo Gonçalves do Programa
de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM-USP). Uma
versão revisada da dissertação foi publicada pela editora Annablume (São
Paulo, 2000).
3 Menezes Bastos chama de “estudos musicais” a um “projetado campo
ao que ele define como ‘Outro exterior’, poderíamos considerar que este
conceito está implícito na sua análise. Por outro lado, em Myth and Archive: A
theory of Latin American Narrative, Roberto González Echevarría (1990)
emprega o conceito em inglês de Other Within numa análise sobre o Facundo
(1845) de Domingo Faustino Sarmiento e Os Sertões (1901) de Euclides da
Cunha.
7 “Segundo muitos musicólogos tem compreendido (e verbalizado), a
musicologia neste estágio do seu desenvolvimento reclama enriquecer-se de
outras disciplinas; e neste aspecto encontra-se muito mais atrasada que a
história da arte, os estúdios literários e o resto das ciências humanas e sociais,
talvez pelo caráter auto-contenido da natureza da sintaxe musical, tão
aparentemente recalcitrante para o entendimento humanístico geral. A
música, no entanto, pertence a este mundo, e não somente ao mundo do
músico. Ela deve ser assunto de discussão tanto desde fora como partindo do
seu interior. […]” (Kivy, 1988, p. xi).
293
8 Os escritos sobre música de Carpentier a partir dos anos 50 não são
considerados nesta tese, que focaliza as décadas de 20 a 40. Porém cabe
assinalar que Carpentier continuou ativo como crítico musical, destacando-se
a sua colaboração nos anos 50 em El Nacional de Caracas, Venezuela.
9 O catálogo inclui o lugar, data, extensão, forma de tratamento e assinatura
de cada carta, assim como um brevíssimo resumo (em geral de uma oração)
do conteúdo da mesma.
10 O IEB exige do pesquisador uma autorização de algum membro da família
294
danza, criação de músicos artesãos destinada principalmente aos bailes dos
fazendeiros (Quintero, 1998, p.252-259).
11
“Los bailes de moda”. Social, vol.I, n.1, janeiro de 1916; “Ayer y hoy”. Social,
abril de 1916, p.39; Dados sobre Carmen Miranda e o Trío Matamoros em: Souza,
1998, p.8; e Díaz Ayala, 1981, p.120.
12
“Reagir”, WECO, ano II, n.2, março de 1930, p.3-7.
13
“O momento musical”, WECO, ano II, n.5-6; junho-julho de 1930, p.5-6.
14
“A traição da música popular”. WECO, ano II, n.5-6; junho-julho 1930, p.6-8.
15
“Música & Co.” WECO, ano II, n.5-6; junho-julho de 1930, p.3-4.
16
WECO, ano I, n.8, outubro de 1929, p.23.
17
Ilustração Musical , ano I, n.2, setembro de 1930, p.63.
18
Arquivo MA- Série Discos, IEB-USP.
19
Andrade, Mário de. “Originalidade do maxixe”, Ilustração Musical, ano I, n.2,
setembro de 1930.
20
Arquivo MA- Série Discos, IEB-USP.
21
Andrade, Op.cit.
22
Quintero-Rivera 2000. O terceiro capítulo: “Vulgar?, Imoral?, Popularesca?: A
música urbana e a construção do Outro” aborda particularmente estes debates no
contexto do Caribe Hispânico.
23
“Gravação nacional” (1930), In: Andrade, 1976.
24
WECO ano II, n.5-6, 1930, p.4.
25
Carteles, (Havana) 14 de maio de 1930, p.16; 73-74.
26
“O cinema falado entre nós”. WECO, ano I, n.8, outubro de 1929, p.20.
27
“Noticiário”. WECO, ano II, n.5-6, junho-julho de 1930, p.40.
28
Recriação baseada no relato “La Habana vista por um turista cubano” (1939). In:
Carpentier, 1987.
29
Seu Agache, marchinha de Ari Kerner. In: Alencar, 1980, p.177.
Notas capítulo 2
30
“Los minoristas sabáticos escuchan al gran ‘Titta’”. Social, fevereiro de 1924.
31
Publicado em Social, junho de 1927, p.7. Reproduzido em Schwartz (1991), entre
outras antologias.
32
“El Grupo Minorista I”, Social, setembro de 1929, p.24,53,60-61,91 e “El Grupo
Minorista II” Social, outubro de 1929, p. 32,54,60-61,66.
33
“Modernismo não é escola: é um estado de espirito. Entrevista com Prudente de
Moraes, neto e Sérgio Buarque de Hollanda”, Correio da Manhã, 19/06/1925, R.J.
34
“Poesia Pau-Brasil”. In: Bandeira (1986, p.248).
Notas capítulo 3
35
“Festa de anniversario”. Ariel, ano II, n. 13, outubro de 1924, p.455-460.
36
Paráfrase do texto do uruguaio José E. Rodó, no editorial do primeiro número de Ariel, (ano I, n.1,
outubro de 1923, p.3).
37
Revista de Antropofagia, ano I, n. 7, novembro de 1928, p.1.
38
Informação tomada de diferentes entrevistas, compiladas em Carpentier, 1985, p.
41, 226, 254 e 277.
295
39
Desde 1917 Mário escrevia crítica de arte e música em jornais católicos, mas os
seus primeiros trabalhos significativos sobre música datam de 1921, quando começa a
publicar em periódicos de maior divulgação.
40
Ariel, ano I, n.7, abril de 1921, p. 266.
41
Arquivo F. Ortiz (pasta 326, n.1196), Instituto de Literatura y Lingüística, Havana.
42
“En perspectiva. Un concierto típico cubano”. La Discusión, 2/08/1923, p.3. In:
Carpentier, 1994, p.351-352.
43
“El concierto de Ayer”. El Heraldo, 27/10/1924, p.7. In: Carpentier, 1994, p.364-
365.
44
“Alejo Carpentier”. Diario de la Marina, 9 de octubre de 1924, p.3. In: Cairo, 1985,
p.380.
45
“La música moderna”. La Discusión, 24/05/1923, p.3.
46
“João de Souza Lima”. Klaxon n.7, novembro de 1922.
47
“O caso Magdalena Tagliaferro”. Ariel, ano I, n.12, setembro de 1924.
48
Klaxon, n.6, outubro de 1922, p.13
49
Ariel, ano I, n.3, dezembro de 1923, p.91-95.
50
Ariel, ano I, n.8, maio de 1924.
51
Ariel, ano I, n.9, junho de 1924.
52
Ariel, ano II, n. 13, outubro de 1924, p.469-472.
53
Embora em “Festa de Aniversário” — número 13 da revista — Ariel declare: “Vou
gordinha e forte… Acho que viverei muitos anos ainda”, no número 14 a publicação
entra numa nova fase, sob direção de J. Câmara, abandonando o debate mais
aprofundado e incorporando seções de atualidades e mundanismo. Uma nova etapa da
revista ainda inicia com o número 33, de março de 1926, quando passa a catalogar-se
como “Revista Mensal de Artes e Actualidades Sociais”. Em carta a Mário de
Andrade, de 16 de novembro de 1924, Bandeira comenta o fim da revista, que mudara
radicalmente de orientação: “Então Ariel semi-morreu. E morreu pra nós. Tenho pena,
também. Tinha meu fraco por Ariel.” (Andrade, 2000, p.148).
54
Em carta de 31 de março de 1928 escreve a Manuel Bandeira: “Do Rio me
mandaram falar (Renato e Gallet) que convinha não dar a melodia toda: ia servir pros
músicos europeus. Me recusei a proceder assim, está claro, porque os documentos que
possuo são de domínio universal e tenho horror a todo particularismo nacionalista,
você sabe. Fiquei até meio indignado com o ciúme” (Andrade, 2000, p.383).
55
Para uma análise de conteúdo do Ensaio, ver Contier (1988).
56
“Una obra sinfónica cubana”. Social, fevereiro de 1926, In: Carpentier, 1994,
p.514.
57
Carpentier, 1994, p.261.
58
“Fiesta negra en Cleveland”. Diario de la Marina, (12/02/28). In: Carpentier, 1994,
p.528.
59
Em trabalho anterior abordei os termos desta polêmica. (Quintero-Rivera, 2000,
p.144-145).
60
Carta a um amigo — possivelmente Mariano Brull, que providenciara os trâmites
para o seu desembarque na França. (Lembre-se que Carpentier partira de Cuba
utilizando o passaporte de Robert Desnoes). In: Baquero, 1993, p. 6-7.
61
“Un carrefour du Monde: L’admirable musique cubaine”. Le Soir, 1/04/28.
62
Sobre dito encontro, Carpentier publica a crônica “Ouvert la nuit: la séptima noche
de Paul Morand”. Diario de la Marina, 1/1/1928.
63
O recorte deste artigo encontra-se no Arquivo Fernando Ortiz (pasta 326, n.1196),
Instituto de Literatura y Linguística, Havana.
64
In: Bartók, 1979, p.19.
65
Ariel, ano I, n. 2, p.54.
296
Notas capítulo 4
66
Deidades cultuadas em Cuba e relacionadas aos Ibêji africanos.
67
A coleção de tambores encontra-se em exibição no Museo Nacional de la Música,
em Havana.
68
A história dos Jimaguas de Cabangas pode ser traçada a partir de referências
esparsas em Los negros brujos, p. 74,106,118,120,159-160.
69
Raspador parecido ao reco-reco, feito de cuia.
70
Pasta 168 — Lydia Cabrera, 26/9/50.
71
“Por la integración cubana de blancos y negros”. Estudios Afrocubanos, vol.V,
1940-1941, p.220.
72
“Una tarde afrocubana”. Carteles, 13/2/1927, p.12-13
73
Embora a identidade do pseudônimo não fique explícita neste escrito, há indícios de
que poderia ser Roig de Leuchsenring. Um artigo assinado por ele em dezembro do
mesmo ano (“Un animador de tipos afrocubanos, Social, dezembro de 1927, p. 18-
19;68;94), contém parágrafos quase literais da crônica do “Curioso Parlanchín”,
confirmando desta forma a sua autoria.
74
Segundo argumenta Nancy Leys Stepan, em termos gerais, na América Latina a
eugenia vinculou-se às campanhas de saúde, baseando-se na possibilidade da
regeneração. Esta tendência partia dos postulados de Lamarck, que desenvolveu a
primeira teoria científica sobre o transformismo. De outro lado encontravam-se os
eugenistas mendelianos, como Davenport, para quem os cuidados sanitários afetavam
a seleção natural. Os médicos cubanos Domingo y Ramos e Eusebio Hernández,
dentro da tendência neo-lamarckiana, introduziram em 1911 o conceito de
homicultura, que se referia ao cultivo científico do indivíduo desde antes do
nascimento até a maturidade (Stepan, 1991).
75
Roig de Leuchsenring, “La Tragedia de un Hombre que Detesta la Ópera, Acto
Segundo”. Social, março de 1927, p. 33.
76
Este fato é registrado em crônica do mexicano Juan de Dios Bojorquez, “Los
minoristas de Cuba” (Social, junho de 1927, p.35), e no artigo “Música del bohío, la
del batey, la de barrio abajo”, publicado no Diario de la Marina em 5/4/1927 e citado
por Moore (1997, p. 200).
77
Social, dezembro de 1927, p. 94.
78
Revista de Avance, 15/9/1928, p. 245
79
Musicalia, julho-agosto de1929.
80
Diario de la Marina, 20/4/1930. Examinei o recorte deste artigo na coleção de
Fernando Ortiz, (pasta 326, n. 1196). Trata-se de um artigo assinado por Sanjuán
dentro da coluna regular de Nena Benítez. O título do artigo tem a primeira palavra
ilegível, mas calculo que pode ter sido “Posibilidades Artísticas en la Música
Africana”.
81
Este testemunho aparece no livro de José Seoane Gallo, Eduardo Abela cerca del
cerco. La Habana, Editorial Letras Cubanas, citado por Moore (1997).
82
María Antonieta Henríquez (1998) compilou uma série de depoimentos sobre as
visitas de Caturla aos templos religiosos afro-brasileiros, de amigos como Ángel
Rojas Rojas e Florencio Gelabert.
83
Carta de 13/3/1931, in García Caturla (1978, p.346).
84
“Alejandro García Caturla”. Musicalia, janeiro-fevereiro de 1941, p. 14.
85
Arquivo F.O. — Instituto de Literatura y Lingüística, Pasta 262, n. 1160.
86
Publicada no Diario de la Marina em 5/5/1929 e reproduzida em La Gaceta de
Cuba, ano 36, n. 4, julho-agosto de 1998, p.11.
297
87
Citado in: Vázquez (1985), p. 182-183.
88
“Bailes populares de Paris”. Carteles, 19/5/1929.
89
“El arte africanoide en Europa”. Social, fevereiro de 1929, p.15.
90
Cito o poema da edição das Poesias Completas (1980).
91
“Ninguém acha bom o nome. Nem eu. Há uns vinte dias imaginei Clã do Jabuti.
Gosto do nome. E tem um pouco do totemismo fresco, engraçado” (Andrade, 2000, p.
119).
92
Telê Porto Ancona Lopez inclui Paulo Prado e René Thiollier na comitiva paulista,
embora outros documentos — Andrade, 1982 / “Nós em S. João d’el Rey”. Terra
roxa (janeiro de 1926) — não registrem sua presença, fazendo supor que devem ter
assistido a apenas a uma parte da viagem.
93
Possivelmente de Gofredo Teles ou Paulo Prado.
94
“Anectodario Contemporáneo”. Social, agosto de 1932, p.78.
95
Veja-se a descrição da tribo dos Pacaás Novos (Andrade, 1983, p. 90-93) e os
vários episódios dos imaginários “índios Do-Mi-Sol”.
96
Ambas foram incluídas no Ensaio sobre a música brasileira publicado em 1928.
(Ver Andrade, 1962, p. 93 e 107).
97
No capítulo 3 discuto a gênese do Ensaio.
98
Antônio Bento de Araújo Lima (1902-1988) era paraibano mas morava no Rio
desde 1923. Ele forneceu inúmeros documentos musicais nordestinos a Mário de
Andrade e a Luciano Gallet.
99
No catálogo da série de correspondência passiva no Arquivo Mário de Andrade
pode-se verificar a indicação de remessas de transcrições musicais destes
colaboradores nos meses prévios à publicação do Ensaio.
100
O “Romance do Veludo” e o “Lundu do Escravo” foram reproduzidos em Música
Doce Música (Andrade, 1963).
101
“Chico Antônio”. A República (Natal), 27/01/1929. In: Andrade, 1984, p. 379.
102
Acessível no Arquivo de Mário de Andrade, no IEB-USP. O manuscrito não tem
data, mas poderia ter sido preparado em 1933, época em que o autor redigia o assunto
para o bailado Maracatu do Chico Rei.
103
“Antropofagia?”. Revista de Antropofagia, fevereiro de 1929, p. 5.
104
Taunay, A. de E. “O fetichismo transplantado no Brasil”. Ariel, ano V, n.67, 16-31 de outubro de
1928.
105
“Choreographias”. Diário de São Paulo, 5/3/39. In: Revista do IEB, n.36, São
Paulo, 1994, p.162.
Notas capítulo 5
106
Cabe assinalar que Alejo Carpentier não sofria da ‘mania epistolar’ que padecia
Mário de Andrade. De fato, em carta a Alejandro García Caturla, o escritor cubano
fala da “doença de não escrever, da impotência epistolar” que achava nele a sua
máxima expressão (García Caturla, 1978, p. 360).
107
Pelo caráter das fontes, a abordagem de Mário de Andrade e os compositores
brasileiros será mais extensa que a de Carpentier e os cubanos.
108
A correspondência cruzada entre Mário de Andrade e Camargo Guarnieri acaba de
ser publicada dentro do livro Camargo Guarnieri: O tempo e a música (Silva, 2001).
109
Tratando-se de manuscritos inéditos, indico apenas a data da carta citada. Na
bibliografia pode-se conferir a localização destes documentos em arquivos.
110
“Musica Nacional”. Ariel, outubro de 1924, p. 469-472. No capítulo 3 sugeri a
hipótese de que A.G. do Amaral seja um pseudônimo de Mário de Andrade.
298
111
“A obra póstuma de Luciano Gallet”. Revista Brasileira de Música, ano I, n.1,
março de 1934, p. 49-53. Ver também Batista, 1973, p.379 e Andrade, 1983, p.202.
112
Rosane Bardanachvili (1995) achou cópia desta carta no Arquivo de Luciano
Gallet, a qual vem como anexo em sua dissertação.
113
“Luciano Gallet”. Diário Nacional (São Paulo), 29/5/1928. In: Batista ,1972,
p.336.
114
Curiosamente, o Pesadelo foi eliminado da versão gravada na década de sessenta
pelo Quinteto de Sopro da Rádio MEC e editada recentemente em CD.
115
“Movimento Musical”. Revista da Associação Brasileira de Música, ano II, n. 8-9,
1934, p.19.
116
“Música. F. Mignone”. Klaxon, n. 6, outubro de 1922, p.12-13.
117
Há, porém, uma única carta enviada por Mignone de Milão em 1926, na qual
agradece as críticas de Mário de Andrade às suas obras mais recentes.
118
Cito do manuscrito das cartas. Estas, porém, já podem ser consultadas na sua
edição publicada in Silva, 2001.
119
In: Caderno de música n.7, junho-julho de 1981, p.11.
120
Ver carta de Guarnieri a Mário de Andrade de 14/9/1928.
121
“Un compositor cubano, una intérprete y un éxito en París”. Carteles, 29/7/1929,
p. 43-45. In: Carpentier, 1994.
122
Arquivo de correspondência de Amadeo Roldán, Museo Nacional de la Música,
Havana. Fragmento reproduzido em Gómez, 1977, p.70.
123
Uma cópia desta carta, preparada para ser exibida numa exposição sobre o
compositor, encontra-se no arquivo de correspondência de Amadeo Roldán no Museo
Nacional de la Música, em Havana. Não tendo tido acesso ao original da carta, não
posso confirmar se ela foi enviada em espanhol ou trata-se de uma tradução feita para
a referida exposição.
124
“Erik Satie, Profeta y Renovador”. Social, setembro de 1927, in: Carpentier, 1980,
p. 318-324.
125
Para uma discussão mais aprofundada da interpretação de Carpentier e Mário de
Andrade da história da música erudita em Cuba e no Brasil, ver Quintero-Rivera,
2000, p.153-165 e Contier, 1978.
126
Em 1930 Varèse era o presidente dessa associação, Henry Cowell vice-presidente
para a região da América do Norte, Carlos Chávez vice-presidente para o México e
América Central e José André para a América do Sul. Nesse ano, Cowell escrevia a
García Caturla solicitando-lhe que chegasse a um acordo com Roldán e Sanjuán para
que um deles representasse o Caribe no conselho de diretores da associação. (García
Caturla, 1978, p.327).
Notas capítulo 6
1
El Heraldo, 9/09/1924, p.7.
2
Ariel, ano I, n. 3, dezembro de 1923, p. 91-95.
3
Fernández (Carta a MA, 16/11/1927).
4
Cabe notar, porém, que o nome da Rainha N’Ginga não é mencionado no argumento
de Mário de Andrade. É possível que isto tenha sido uma sugestão de Arthur Ramos,
que, segundo Francisco Mignone em entrevista realizada por Priscila Paes, teria
auxiliado o compositor na escolha de nomes para os personagens do bailado (Paes,
1989).
5
A apresentação teve lugar dentro do Encontro Nacional de Cultura, na Estação Júlio
Prestes em São Paulo no dia 7 de novembro de 1997. Não contou com música ao
vivo. A coreografia na ocasião esteve a cargo de Mário Nascimento. A encenação
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apresentou várias mudanças no caráter das coreografias originais. Os Macotas
aparecem em versão feminina, como “as macotas” que “dançam para Chico Rei com
graça e sensualidade”. A rainha N’Ginga desaparece do bailado e a dança do Chico-
Rei mostra um ritual de trabalho com fortes lembranças dos tempos da escravidão.
6
Este manuscrito foi publicado com algumas alterações na Folha da Manhã, com o
título de “Teatro cantado” (4/11/43). Na versão publicada o trecho citado ficou da
seguinte maneira: “Mais odiosa que ela apenas a dança ‘clássica’, monstruosidade
infamante, cujo espetáculo principal jamais se realizou no palco, mas no Foyer de la
Danse. Onde ficara em tudo isso a sublimidade sobrehumana da dança!”
7
Estes foram postumamente editados junto a outros manuscritos sobre o assunto. Ver:
Ortiz, 1995c.
8
“Orquesta Filarmónica”. Musicalia, set-out., 1928, p. 107.
9
Notas ao programa de Pedro Malazarte, Theatro São Pedro, São Paulo, 2000.
10
Templo ritual dos ñáñigos, onde se guardam os segredos.
11
Ñáñigo e abakuá são utilizados como sinônimos.
12
Nicolás Joseph de Ribera, Descripción de la Isla de Cuba. In: Portuondo 1995,
p.161.
13
Bebida ritual.
14
Deidade suprema.
15
“Barnet, Miguel, “Mysterious Havana”. In: Cuba. The Complete Guide to Havana
and the Old City, Santiago, the Beaches and the Lively Nightlife. New York, Fodors,
1996.
16
“Las sociedades secretas ñáñigas son declaradas, indistintamente, como ‘tierras’,
‘potencias’, ‘juegos’ o ‘naciones’.”(Sosa, 1923, p.123).
17
Tiri, em malinca, significa ‘aturdido, tonto’, segundo um dicionário de malinké-
francês de 1906, citado por Ortiz (1990). Foi esta a única referência que consegui
apurar das palavras usadas neste canto, que não constam no Glosario de
Afronegrismos de Ortiz, nem nas relações de vocabulário ñáñigo e lucumí que pude
consultar.
18
Alejo Carpentier, “Medgyes, escenógrafo moderno”. Social, janeiro de 1930, p.61.
19
Carpentier, Alejo. “Edgard Varèse escribe para el teatro”. Social, abril de 1931,
pp.11-12.
20
José Juan Tablada, “Flappers...”. Social, março de 1926, p.21.
21
Ver de Lydia Cabrera, “Se cerraron y volvieron a abrirse los caminos de la Isla”. In:
La Habana Elegante, dezembro de 1999, www.habanaelegante.com/Winter99
/Bustos. htm.
22
R.R., “Orquesta Filarmónica. ‘El Milagro de Anaquillé’ de Roldán”. Musicalia,
nov-dic. de 1929., p. 101.
23
Mário de Andrade, “A negrada” (do romance Café). Movimento Brasileiro, ano II,
n. 6, abril de 1930, p. 10-12.
24
Em carta a Carlos Drummond de Andrade, de 24 de agosto de 1944, confessa:
“Quando imaginei neste romance, achei o título tão bom mas tão fácil de qualquer um
achar, que no primeiro livro que publiquei em seguida anunciei ele entre as ‘Obras a
publicar’. Foi o mal. Tanta gente se interessou, tanta imaginou no que ia ser, tanto
amigo inocente me perseguiu com perguntas, entusiasmado, aplaudindo
preliminarmente aquele... coroamento de carreira que iria enfim justificar o
insatisfatório que existe em todas as minhas obras, que me vi, diante do papel branco,
não só na obrigação de escrever a obra-prima, mas o que é horrível ainda mais: na
intenção, na vontade, de criar uma obra-prima. O que sofri, Carlos, você não pode
imaginar. Até que um dia desisti, em favor da minha liberdade. Da minha
sinceridade” (Andrade, 1982, p.232).
300
25
Mário de Andrade, “Coros Ucranianos”. Ariel, outubro de 1923, p. 26-28.
26
Eisler escreveu música coral de militância para conjuntos corais de agitprop e
desenvolveu um estilo próprio de canções de combate (Kampflieder). Em 1926
compôs a cantata Tagebuch des Hanns Eisler op. 9 (Hanns Eisler’s Diary). Weill, por
sua vez criou em 1925 a cantata Der neue Orpheus para soprano violino e orquestra
baseada num poema de Iwan Goll. Com Bertold Brecht, colabora em peças de teatro-
musical como The Threepenny Opera (1928), The Rise and Fall of the City of
Mahagonny (1929) e Happy End (1929).
27
As citações são da versão publicada nas Poesias Completas (Andrade, 1987c),
incluindo a “Concepção Melodramática” e “O poema”.
28
Lembre-se que, curiosamente, Chico ou Pai Francisco é também o nome do
protagonista — palhaço popular — dos autos de Bumba-meu-boi.
29
“Introdução a Shostakovich”, prefácio à tradução de Shostakovich, livro de Victor
Illich (Rio de Janeiro, O Cruzeiro S. A., 1945), reproduzido in: Coli, 1998.
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