Poesia: A Arte da Palavra
A Exploração Criativa da Linguagem
A poesia é uma forma de manifestação artística
que tem a palavra como material de expressão.
Todo texto poético é resultado de um trabalho de
linguagem feito com o objetivo de produzir
determinados efeitos: Observe, por exemplo, como
o poeta Oswald de Andrade trabalha a palavra neste
poema:
Relógio
As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
As horas
Vão e vêm
Não em vão
Numa leitura em voz alta, percebe-se
claramente que o poeta não só falou do relógio como
fez com que o ritmo dos versos lembrasse a idéia do
relógio. Nesse texto, a forma dos versos é tão
importante quanto o seu conteúdo. O poeta explorou o
significante para enriquecer o significado. Explorando
criativamente o ritmo dos versos, a forma e o conteúdo
das palavras, o poeta constrói um objeto artístico.
A LITERATURA E A REALIDADE
A literatura é uma forma artística de
representação da realidade. Por isso, não devemos
confundir o conteúdo de uma obra literária com fatos
da vida real. O escritor, ao criar seu texto cria uma
outra realidade - a realidade artística, que não pode ser
analisada como se estivéssemos diante do nosso mundo
concreto. Para compreendermos bem como ocorre a
representação da realidade na literatura, vamos
considerar dois textos que tratam do mesmo assunto. O
primeiro, é uma notícia de jornal; o outro, um texto do
poeta Mário Quintana.
Mulher assassinada
Policiais que faziam a ronda no centro da cidade
encontraram, na madrugada de ontem, perto da Praça da Sé,
o corpo de uma mulher aparentando 30 anos de idade.
Segundo depoimentos de pessoas que trabalham nos bares
próximos, trata-se de uma prostituta conhecida por Nenê.
Ela foi assassinada a golpes de faca. A polícia descarta a
hipótese de assalto, pois sua bolsa, com a carteira de
dinheiro, foi encontrada junto ao corpo. O caso está sendo
investigado pelo delegado do 2º Distrito Policial.
Jornal da Cidade, 10/09/94.
Observe, agora, como o poeta Mário Quintana faz uma
recriação da realidade:
Pequena crônica policial
Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!
Mário Quintana, Prosa & verso - Porto Alegra, Ed. Globo
A linguagem poética em textos narrativos
Uma obra literária é fruto da criatividade e imaginação
de seu autor; por isso pode apresentar seres ou situações que
não existem na vida real. Pode ocorrer, por exemplo, que,
para chamar a atenção sobre determinados aspectos da vida,
um escritor crie uma história em que aconteça algo absurdo
ou fantástico, que dá ao texto uma dimensão simbólica que
provoca o leitor e o faz refletir sobre o significado daquela
transfiguração da realidade. Para exemplificar a situação
vamos ler este conto de Marina Colasanti:
Apartamento 605
Sempre chegando em casa à noite, ela o desafiava com
sua força, centro de atenção e de todo afeto, televisão-fulcro
da família adorante. Ninguém o olhava, ninguém
reverenciava sua chegada de chefe, lutador do sustento. Mal
viravam a cabeça em sua direção, petrificados por prefixos e
jingles. E não havia alternativa que não se agregar ou ser
desprezado.
Uma noite, cansado do repúdio, ergueu a espada e entre
gritos e prantos, zapt, cortou a televisão ao meio. Soluços
cercaram as duas partes inertes no tapete, sem que alma
piedosa arrancasse a tomada inutilmente cravada na parede.
Foi dormir aliviado, dono do reconquistado silêncio. Não
haveria, porém, de receber em paz o novo dia. Antes do
amanhecer vozes o arrancaram do sono e do pijama. Correu
abotoando compostura. Na sala, loquazes e uníssonas,
desabrochavam duas televisões. Que no gume e na ponta
estilhaçou, respingado de súbitas centelhas.
Um dia de paz. Não mais lhe concederam os destroços.
Nem mais necessitavam para em silêncio recriar suas forças
e, múltiplas, erguer novas cabeças. Agora, quando chega
perdedor sete televisões falam e cantam no centro da
família. Ele se aproxima de cabeça baixa, puxa a cadeira e
senta-se de costas. O espelho da parede lhe devolve a
novela. Que ele acompanha sem coragem de perder o
capítulo, sem forças para olhá-las nos olhos.
Marina Colasanti, A morada do ser, Francisco Alves.