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METAHISTORY

History questioning History

METAHISTÓRIA
História questionando História

Festschrift in honour of Professor Teotónio R. de Souza


Homenagem ao Professor Doutor Teotónio R. de Souza

Editors / Organização

Charles J. Borges, S. J.
&
Michael N. Pearson

Nova Vega

Lisboa, 2007
38

COMO SERIA A BIBLIOTECA DE MATTEO RICCI?


Rui Manuel Loureiro

O itinerário biográfico de Matteo Ricci no interior da China, até à sua morte em


1610, é suficientemente conhecido para que seja necessário retomá-lo aqui em grande
pormenor.1 Bastará lembrar que o jesuíta italiano, não contando com as tentativas
cedo interrompidas de Michele Ruggieri,2 foi o primeiro europeu que de uma forma
sistemática e continuada desenvolveu estudos de língua e de cultura chinesa, de
início a partir de Zhaoqing, primeira missão jesuíta em território do Celeste Império,
depois em Shaozhou, de seguida em Nanchang, e assim sucessivamente, num lento
caminho ascensional, que em 1601 o conduziria a Pequim, a capital imperial chinesa.
A vida de Ricci, desde o momento em que desembarca em Macau em 1582, está
permanentemente ligada aos livros e à leitura, pois ele é um dos jesuítas destacados
pelo visitador jesuíta Alessandro Valignano para desenvolver em território chinês a
nova estratégia adaptacionista. E este processo implicava, em primeiro lugar, um
afincado estudo da língua escrita chinesa, ou língua mandarim, utilizada por todo o
Celeste Império como forma de comunicação oficial.
Matteo Ricci, evidentemente, recorreu aos serviços de mestres chineses neste
processo de aprendizagem linguística. A tarefa aparecia-lhe verdadeiramente
infinita, pois numa carta escrita de Zhaoqing em 1584 referia, a propósito das
“letras” chinesas, que “para cada cosa tienen la suya y está bien revuelta y enlaçada;
de manera que quantas palabras ay en el mundo, tantas son las letras diferentes unas
de otras”.3 Mas adiantava também que, no “aprender las letras en lengua china”,
estava “tan adelante” que já poderia “predicar y confesar quando ubiese
oportunidad”.4 O adaptacionismo, em segundo lugar, exigia uma imersão quase total
no mundo cultural chinês, quer através de alterações radicais na vida quotidiana,
com uma adopção pelos missionários dos usos e costumes dos chineses, quer através
da frequência continuada da literatura clássica, verdadeira chave para a decifração
da civilização sínica.
Desde meados do século XVI que os missionários jesuítas destacados para a
Ásia haviam começado a recolher dados sobre a realidade cultural chinesa. E desde

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logo se tinham apercebido da extraordinária importância que os letrados detinham
na China, já que praticamente toda a administração imperial lhes estava entregue,
desde os mais insignificantes cargos locais e regionais até aos mais elevados
patamares do poder central, junto do próprio imperador. Embora inicialmente os
religiosos europeus tivessem procurado estabelecer analogias com o budismo, um
conhecimento mais aprofundado da realidade chinesa, obtido ao longo de mais de
uma década de vivência no interior da China, ditou alterações significativas na
estratégia missionária. E a partir de 1595, os padres jesuítas começam a apresentar-se
junto dos chineses como xishi ou letrados oriundos do Ocidente, de uma região que
mais tarde seria conhecida pelos chineses como o ‘grande reino do mar ocidental’
ou Daxiyangguo. Passaram a ser ‘mestres da religião do Senhor do Céu’, numa
tentativa de identificação com a classe dos letrados sínicos, precisamente aquela que
possuía um estatuto mais elevado nos quadros sociais do Celeste Império. E, a partir
de então, tudo o que dizia respeito aos mandarins chineses, e sobretudo ao seu
processo de formação e de selecção, passou a constituir uma área prioritária para os
religiosos europeus estabelecidos na China.
Desde tempos remotos, o Celeste Império possuía um elaborado e centralizado
sistema de funcionalismo público, dirigido a partir da capital imperial.5 Um exército
rigorosamente hierarquizado de burocratas preenchia os sucessivos níveis da
administração civil, sendo cada lugar ocupado por um período de tempo
normalmente limitado a três anos. A mobilidade entre diferentes espaços
geográficos e entre distintas funções administrativas era quase obrigatória, podendo
uma carreira de sucesso conduzir um determinado mandarim desde um posto
relativamente obscuro na administração local até ao círculo mais restrito do poder
central em Pequim. O recrutamento dos funcionários públicos era realizado através
de um sistema global de exames civis, com sucessivos patamares de exigência, que
correspondiam aproximadamente aos graus europeus de licenciado, de mestre e de
doutor. O grau de xiucai, o mais baixo de todos, era obtido em exames locais, ao
nível distrital; seguia-se um exame provincial, onde se podia obter o grau de juren;
finalmente, os exames para acesso ao grau de jinshi, o mais elevado, realizavam-se
na capital imperial. A entrada na função pública, em princípio, assegurava a
qualquer chinês, independentemente das respectivas origens, uma carreira
ininterrupta através da burocracia imperial, com a correspondente elevação de
estatuto social.
Para uma restrita porção da população chinesa, a admissão aos exames civis
constituía um objectivo verdadeiramente prioritário, em função do qual se
organizava toda a vida pessoal e, às vezes, familiar. E o percurso estudantil de
qualquer candidato ao funcionalismo começava muito cedo, com estudos
desenvolvidos em escolas locais ou com o auxílio de tutores. Todo o sistema de
estudos estava orientado para a literatura, pois os exames para admissão aos
diferentes graus académicos constavam quase exclusivamente de questões

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relacionadas com os clássicos chineses. Um examinando com sucesso deveria conhecer
praticamente de cor os Quatro Livros e os Cinco Clássicos, bem como diversas
outras obras atribuídas a Confúcio ou aos seus seguidores.6 E também deveria ser
um escritor exímio de composições poéticas e de ensaios eruditos. O ensino
baseava-se sobretudo na memória, devendo cada estudante decorar textos que em
conjunto totalizavam mais de 400 mil caracteres, muitos deles repetidos, claro. Para
além de memorizar uma determinada obra, como os Analectos ou o Grande Ensina-
mento, por exemplo, o estudante deveria ainda conhecer muitos dos comentários que
a propósito dessa obra haviam sido elaborados ao longo dos tempos por sucessivas
gerações de eruditos.
Um editor comercial do Fujian publicou em 1591 um catálogo de obras destinadas
aos candidatos aos exames, o qual incluía, para além dos clássicos, livros de história,
antologias poéticas, modelos de ensaios e diversos comentários aos Quatro Livros.7
O grupo mais importante de clássicos chineses, atribuídos à tradição confuciana, englo-
bava, por um lado, os Quatro Livros: Analectos [Lunyu], Grande Ensinamento [Daxue],
Doutrina do Meio [Zhongyong] e Mêncio [Mengzi]; e, por outro lado, os Cinco
Clássicos: Livro das Odes [Shi jing], Livro dos Documentos [Shu jing], Livro das
Mutações [Yijing], Livro dos Ritos [Li ji] e Anais da Primavera e do Outono [Chunqiu].
Para além dos comentários, que ajudavam o estudante a entender o texto nem
sempre claro dos clássicos, especialmente importantes eram os modelos de ensaios,
pois durante os exames os candidatos tinham de redigir textos relativamente extensos
em resposta às questões que lhes eram colocadas. Durante a dinastia Ming, vulgari-
zou-se no sistema de exames o chamado ensaio de oito-pernas, que devia ser estrutu-
rado em outras tantas partes distintas.8 E as compilações publicadas de ensaios
redigidos para anteriores exames constituíam uma preciosa ajuda para os candidatos.
Matteo Ricci e os seus companheiros de missão foram descobrindo este compli-
cado sistema de ensino a pouco e pouco, à medida que também iam entendendo a
fulcral importância do grupo dos letrados na sociedade chinesa. Os religiosos jesuítas
eram normalmente homens de elevada cultura, que possuíam longos anos de prepa-
ração académica e que se dedicavam ao estudo e à meditação. A cultura católica e
humanística baseava-se precisamente num alargado conjunto de textos canónicos,
que depois eram sucessivamente comentados e interpretados. E o ensino europeu de
então também atribuía extrema relevância à memorização de determinados textos.
Nada mais lógico, pois, que, uma vez definidas as premissas do adaptacionismo, os
missionários europeus fossem estabelecendo analogias e realizando aproximações
relativamente ao mundo dos letrados chineses. Os padres jesuítas, no fim de contas,
deveriam sentir-se os letrados da Europa,9 com a radical diferença de que não lhes
competia o exercício directo do poder, ao contrário do que sucedia com os mandarins
chineses. Mas estes últimos apareciam cada vez mais como os interlocutores
privilegiados no processo de conquista espiritual da China que a Companhia de
Jesus queria levar a cabo.

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Em 1593 Matteo Ricci escrevia que ele e um seu confrade tinham estado
ocupados todo o ano “in studiare” um “corso che costumano udire delle cosi morali
i letterati della Cina, che sono Quattro Libri di quatro philosophi assai buoni e di
buoni documenti morali”. Acrescentava ainda que a instâncias de Alessandro
Valignano estava a preparar alguns comentários em latim a esses mesmos livros.
Numa referência humorística aos seus estudos de chinês, concluía que “in senectute
mea mi farò putto di scola”.10 O pessoal em serviço na missão chinesa parece ter
dedicado consideráveis energias à aprendizagem da língua mandarim e ao estudo da
cultura erudita do Celeste Império.11 Um tal processo, parece óbvio, exigia a posse e
o manuseamento de livros chineses, que os jesuítas foram adquirindo a pouco e pouco,
certamente aconselhados pelos seus tutores chineses, à medida que dominavam
melhor a língua dos mandarins ou guanhua.
Evidentemente, os livros abundavam na China, onde a impressão através de
processos xilográficos estava vulgarizada desde há muitos séculos.12 A imprensa
imperial publicava regularmente edições dos clássicos confucianos, textos
canónicos budistas e daoistas, bem como crónicas e corografias, que conheciam
uma ampla distribuição; as administrações provinciais e regionais imprimiam
constantemente obras de carácter oficial, contendo leis, regulamentos e rituais;
mosteiros budistas e daoistas publicavam as suas próprias edições de textos
religiosos e de obras exegéticas; academias privadas de letrados e escolas familiares
ou locais produziam obras didácticas, normalmente sob a forma de comentários dos
clássicos; e editores comerciais difundiam obras do mais diverso teor, desde
almanaques e romances populares, até tratados de adivinhação e de medicina,
passando por monografias regionais e livros de memórias.
Os livros das oficinas imperiais destinavam-se sobretudo a abastecer a densa
rede de bibliotecas que desde finais do século XIV se espalhara por todo o Celeste
Império, associadas às escolas existentes em todas as localidades minimamente
importantes. Uma biblioteca local média poderia possuir mais de três mil juan ou
fascículos. Mas o mercado livreiro também era alimentado por consumidores
privados, sobretudo pela classe dos letrados e pelo grupo ainda maior daqueles que
pretendiam candidatar-se aos exames públicos de acesso à administração imperial.
Grandes bibliotecas chinesas privadas de finais de Quinhentos podiam reunir 40 mil
ou mesmo 50 mil juan. Entretanto, muitos dos que reprovavam nos exames,
encontravam um modo de vida alternativo no ensino e na publicação de obras
didácticas, já que na hierarquia confuciana a profissão de editor vinha logo abaixo
da de letrado em termos de estatuto social. A China de finais do século XVI era, sem
dúvida, um verdadeiro mundo de livros, tal a extraordinária importância atribuída à
cultura escrita, quer na preservação das tradições, quer na gestão do império, quer
na selecção do funcionalismo público. Os chineses, talvez mais do que qualquer
outro povo, reverenciavam sobremaneira o seu vastíssimo património escrito, que
procuravam preservar através de múltiplas estratégias, que passavam nomeadamente

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pela impressão xilográfica e pelo desenvolvimento de bibliotecas.13 E, como os padres
jesuítas foram avaliando, à medida que se familiarizavam com as práticas culturais
chinesas, pareciam estar reunidas condições essenciais para difundir o cristianismo
entre os chineses, de forma que a Companhia de Jesus optará pela lenta construção
de um vasto património escrito, através da produção de manuscritos e através da
impressão de livros.
Ciente do contexto cultural onde se pretendia inserir, Matteo Ricci desde cedo
começou a compor obras em chinês, não necessariamente dedicadas a temas
religiosos.14 Em 1595, a instâncias de um dos seus amigos mandarins, preparava um
‘Tratado sobre técnicas mnemónicas’, o Xiguo jifa, que se destinava a auxiliar
candidatos chineses aos exames oficiais. Embora circulasse em manuscrito, a obra
só seria impressa pela primeira vez em Ganzhou, muitos anos mais tarde, em 1625.
Ainda em 1595, Ricci fazia imprimir por métodos xilográficos o Jiaoyou lun ou
‘Tratado sobre a Amizade’, uma antologia de excertos de diferentes obras
ocidentais, que se poderia ter baseado nas Sententiae et exempla do português André
de Resende, impressas em Paris em 1590, mas também poderia ser constituída por
fragmentos conservados na memória, dos seus tempos de estudante em Itália e em
Portugal. O método aculturativo começava a dar os seus frutos, pois a reputação de
Matteo Ricci junto dos chineses como homem de letras não parava de crescer,
enquanto os seus escritos eram amplamente circulados. Ainda em 1595, o jesuíta
italiano escrevia para Macau, narrando ao padre Duarte Sande um curioso episódio
em que estivera envolvido. Tendo sido convidado por “alguns siuçais [xiucai]
letrados do primeiro grao” em Nanchang, e pretendendo “dar mostra do que sabia
das letras chinas”, solicitou aos seus anfitriões “que escrevessem muitas letras
chinas de maneira que quizessem em hum papel sem ter entre si nhuma ordem”.
Uma vez desenhados os carateres chineses, Ricci leu-os uma única vez, para
seguidamente, de cor, os repetir pela ordem exacta em que estavam escritos. Não
satisfeito com esta exibição de memória gráfica, recitou de novo todos os caracteres,
desta vez por ordem inversa. Os chineses presentes “ficarão todos muito mais
pasmados e como fora de si”.15
Eventualmente, graças a esta táctica de aproximação aos letrados, Ricci acabou
por atingir Pequim, uma primeira vez em 1599, para dois anos mais tarde, em 1601,
receber autorização oficial para se estabelecer na capital imperial. Não fora
propriamente a doutrina cristã que trouxera o missionário italiano e os seus
confrades tão longe, mas antes uma metodologia que combinava, em doses variadas,
um enorme domínio da língua mandarim e da cultura letrada chinesa, uma grande
capacidade de debate ideológico no próprio terreno da tradição confuciana, e um
inteligente aproveitamento de determinados aspectos da ciência e da tecnologia
europeias. Poder-se-á notar, de passagem, que os religiosos jesuítas, praticamente
desde os primeiros tempos da missão chinesa, recorreram a uma diversificada gama
de objectos prestigiantes para atraírem as atenções dos chineses, e sobretudo das

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elites letradas. Para além de livros preciosos, como os oito volumes da monumental
Bíblia Poliglota impressa por Christopher Plantin em Antuérpia entre 1568 e 1572,
que chegaram a Pequim em 1604,16 os missionários europeus dispunham de pinturas
a óleo, de prismas de cristal, de relógios de corda, de globos e de mapas.
Todos estes artefactos despertavam a curiosidade dos interlocutores chineses dos
jesuítas, sobretudo os mapas. Quando ainda vivia em Zhaoqing, Matteo Ricci
preparara um planisfério com legendas em chinês, adaptado à visão sínica do mundo,
pois nele o território do Celeste Império figurava em lugar central. Mandado imprimir
pelo governador daquela cidade em 1584, com o título de Kunyu wanguo quantu, ou
‘Carta completa da míriade de países que existem sobre a terra’, o mapa de Ricci
conheceu enorme sucesso, com sucessivas e emendadas edições.17 Os conheci-
mentos geográficos europeus, assim, foram desde logo utilizados no processo de
aproximação aos letrados chineses, o mesmo sucedendo, de resto, com outros saberes
especializados, relacionados nomeadamente com a matemática. Em Pequim, Ricci
viria a preparar diversos textos científicos, tratando tópicos de geometria e de
aritmética. Alguns deles correram manuscritos, enquanto outros foram impressos,
como os seus Jihe yuanben ou ‘Elementos de Euclides’, que saíram dos prelos em
Pequim em 1607, baseados numa obra homónima de Christoph Clavius que fora
impressa em Colónia em 1574. E diversos missionários jesuítas distinguir-se-iam
como matemáticos insignes, sendo amiúde chamados pela corte imperial para
colaborarem em trabalhos relacionados com o calendário e com a astronomia,
sectores verdadeiramente fundamentais do conhecimento na China da época Ming.
Depois de 1601, Matteo Ricci não mais abandonaria Pequim, desenvolvendo
uma estratégia diversificada, que visava, em primeiro lugar, consolidar a posição e
o prestígio dos religiosos europeus junto da corte imperial, para, em segundo lugar,
garantir uma relativa liberdade de manobra às missões jesuítas que se iam
espalhando um pouco por todo o Celeste Império.18 Por entre múltiplos outros
afazeres, Ricci procuraria cultivar a amizade de importantes letrados, alguns dos
quais se chegaram inclusivamente a converter ao cristianismo, como Xu Guangqi,
Yang Tingyun e Li Zhizao, todos eles membros da prestigiada Academia Imperial.19
Os académicos pequinenses mantinham ligações regulares com uma vasta rede de
letrados, que a orgânica do funcionalismo público espalhava por toda a China, de forma
que constituíam um apoio vital para as empresas jesuítas disseminadas pelas
províncias chinesas. Ao mesmo tempo, estes letrados eram colaboradores essenciais
não só no acesso à cultura clássica chinesa, mas também nos projectos jesuítas de
produção e de impressão de obras filosóficas e doutrinárias em língua chinesa.
Foi decerto com a ajuda de Xu Guangqi, mais conhecido como Doutor Paulo,
que Ricci preparou a edição do seu célebre Tianzhu shiyi ou ‘Verdadeiro significado
do Senhor do Céu’, impresso xilograficamente em Pequim em 1604. Escrita em
caracteres sínicos para um público chinês, esta obra, em forma de diálogo entre um
letrado chinês e um cristão ocidental, apresentava de forma sumária a doutrina

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cristã, recorrendo a métodos de exposição tipicamente chineses para rebater ou
aproveitar determinados conteúdos das filosofias chinesas.20 Matteo Ricci, baseado
em anos de estudo da cultura do Celeste Império e dos seus principais textos clássicos,
ensaiava uma aproximação entre a religião do Senhor do Céu e determinados aspectos
e conceitos do pensamento filosófico chinês. A obra conheceu um significativo
sucesso, sendo posteriormente reimpressa numerosas vezes. O grande catecismo
ricciano, parece evidente, pressupunha a existência ou a utilização de uma impor-
tante biblioteca de textos europeus e chineses. Os Exercícios Espirituais de Inácio
de Loyola e as Constituições da Companhia de Jesus, textos jesuítas fundacionais,
assim com a Bíblia, sobretudo o Novo Testamento, fariam obrigatoriamente parte
desse fundo bibliográfico. Mas ao longo das páginas do Tianzhu shiyi encontram-se
muitas outras referências livrescas, algumas implícitas, muitas delas explícitas.
Entre os autores ocidentais, destacam-se sobretudo Aristóteles, Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino, cujos ensinamentos são regularmente convocados nos escritos
jesuítas. E entre outros filósofos gregos, Pitágoras é repetidamente utilizado, no
contexto da discussão da doutrina budista que surge no capítulo “Refutação dos
falsos ensinamentos acerca da reencarnação nas seis direcções”.21
As principais fontes utilizadas por Ricci, contudo, são de origem chinesa, reve-
lando o religioso jesuíta uma admirável familiaridade com um importante conjunto
de textos clássicos chineses, que deveria ter à sua disposição. Os Quatro Livros,
claro, haviam sido cuidadosamente estudados, pois passagens, argumentos ou
conceitos dos Analectos, do Grande Ensinamento, da Doutrina do Meio e do Mêncio
são referidos em numerosas ocasiões, às vezes implicitamente, outras vezes de
forma explícita.22 O mesmo sucede com os Cinco Clássicos, que Matteo Ricci
utiliza em variadíssimas oportunidades, citando o Livro das Odes, o Livro dos
Documentos, o Livro das Mutações, o Livro dos Ritos e os Anais da Primavera e do
Outono.23 Outras obras do pensamento chinês são citadas ao longo das páginas do
catecismo ricciano, como a Sutra do Lótus e o Daode jing, ou ‘Livro das Mutações’,
textos fundamentais dos cânones budista e daoista, respectivamente. E os nomes de
Confúcio, de Laozi e de Buda são repetidamente mencionados, numa demonstração
clara de que por 1604 Matteo Ricci, com o indispensável apoio de amigos chineses
como Xu Guangqi, havia cumprido um vasto programa de leituras dos clássicos do
pensamento confuciano e das doutrinas daoista e budista. Pormenor curioso, o padre
jesuíta cita a determinada altura o seu planisfério com legendas em chinês que corria
impresso em diversas edições.24
E no entanto Matteo Ricci queixava-se em 1605, nas suas cartas para a Europa,
da falta premente de livros, pedindo nomeadamente que lhe enviassem um exemplar
do “libro delle Imagini del p. Natale”, referência ao Evangelicae Historiae ex ordine
Evangeliorum, com mais de 150 ilustrações, que o jesuíta Jerónimo Nadal publicara
em Antuérpia em 1593.25 Este pedido era justificado pelo facto de, na sua opinião,
os chineses ficarem normalmente “stupiti dei libri d’imagini”, não podendo crer

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“che siano dipinte”.26 Ricci estaria a referir-se sobretudo à escassez de livros de
origem europeia, pois em Pequim não tinha decerto qualquer problema em adquirir
obras chinesas. E estava atento às novidades do mercado livreiro sínico, pois em
1605 falava dos “molti libri novamente stampati” na capital imperial, referindo que
lia “ogni giorno ai nostri che qui stanno qualche libro cina”.27
Nos anos imediatos, Matteo Ricci continuou a desenvolver em Pequim os seus
estudos sinológicos, ao mesmo tempo que redigia múltiplos escritos em português,
em italiano, e em chinês. Publicou nomeadamente, em impressão xilográfica, textos
que procuravam aproveitar temáticas caras aos letrados chineses, para maior difusão
de determinados aspectos da doutrina cristã, como Xizi qiji ou ‘Milagre dos caracteres
ocidentais’ [1605], Ershi wuyan ou ‘Vinte e cinco sentenças’ [1605], e Jiren shipian
ou ‘Dez paradoxos’ [1607]. Continuou também a dirigir uma correspondência regular
em direcção à Europa, sendo algumas das suas missivas utilizadas em diversos
impressos jesuítas. Prosseguiu ainda a redacção em italiano dos seus volumosos
Commentarj della Cina, nos quais fazia a crónica detalhada da génese e da evolução
das missões jesuítas no Celeste Império.28 Entretanto, Matteo Ricci, na sua corres-
pondência, repete insistentemente, para Macau, para Lisboa, para Roma, pedidos de
envio de livros para a missão chinesa, sobretudo obras de carácter científico,
relacionadas com as matemáticas, a astronomia e a cosmografia. Pois entendera que
um dos grandes argumentos que os jesuítas podiam exibir perante os letrados
chineses, e mesmo perante a corte imperial, eram os seus conhecimentos científicos
e os impressivos volumes saídos das tipografias europeias. Em 1608 escrevia para
Roma a Claudio Acquaviva, então responsável supremo da Companhia de Jesus, que
“per mezzo delle nostre scientie si ha da far molto alla christianità”, adiantando
mesmo que “più si fa nella cina con libri che con parole”.29 A mensagem sobre a
extraordinária importância dos livros em contexto chinês não podia ser mais clara.
Através dos escritos de Ricci é possível detectar algumas das obras que fariam
parte da sua biblioteca, ou antes, da biblioteca da residência jesuíta em Pequim, que
depois de 1605 se localizava em Nantang. A jóia mais preciosa desse espólio
livresco seria decerto a grande Bíblia Poliglota, que, segundo o missionário jesuíta,
servia não só para uso dos religiosos europeus, mas também “per fare stupire a tutta
la Cina de sì bello libro”.30 Igualmente muito admiradas pelos chineses, eram as
duas edições do magnífico atlas de Abraham Ortelius, Theatrum orbis terrae, ambas
impressas em Antuérpia, uma em 1570 e outra em 1595.31 Nelas se baseara Ricci
para desenhar a sua própria ‘Carta completa da míriade de países que existem sobre
a terra’. Outros títulos disponíveis em Pequim, todos eles essenciais numa biblioteca
científica, seriam o Almagestum de Cláudio Ptolomeu [Veneza, 1515], o Cosmogra-
phicus liber de Petrus Apianus [Antuérpia, 1529], as Opera mathematica de Johann
Schöner [Nuremberga, 1551], e o De Principiis Astronomiae & Cosmographiae de
Gemma Frisius [Antuérpia, 1553].32 Pelo menos um outro livro da antiga biblioteca
dos jesuítas de Pequim continha uma dedicatória a Ricci, o Astrolabivm do seu

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antigo mestre Christoph Clavius [Roma, 1593]. Mas mais alguns títulos da biblioteca
ricciana se poderiam identificar, através de referências intertextuais encontradas nos
seus próprios escritos, como por exemplo as já citadas Sententiae et exempla de
André de Resende [Paris, 1590]; ou as Opera de Santo Agostinho, na edição de
Paris, 1586;33 ou o Epitome Arithmeticae Practicae e a Horologium nova descriptio,
ambas do padre Clavius, impressas em Roma em 1585 e 1599, respectivamente;34
ou alguma das muitas edições quinhentistas de obras de Aristóteles.
À data da morte de Matteo Ricci, em 1610, a missão jesuíta parecia estar firme-
mente implantada na capital do Celeste Império e em várias residências espalhadas
pelas províncias chinesas. Tanto mais que, num extraordinário privilégio, o imperador
Wanli concedera um terreno em Zhalan para sepultura de Li Madou, nome chinês
do falecido padre italiano, significando que a partir de então os seus confrades
teriam de permanecer em Pequim para lhe prestarem os tradicionais ritos funerários.
A direcção da missão chinesa cabia agora a Niccolò Longobardi, um outro italiano,
que, com o auxílio dos seus colaboradores chineses, e talvez seguindo instruções de
Ricci, traçou um ambicioso plano de reforma do calendário chinês e de tradução
para a língua chinesa de todo um conjunto de obras científicas complementares. E
foi então decidido que um procurador viajaria para a Europa, a fim de obter apoios
suplementares para a empresa chinesa dos jesuítas, que por esses anos aparecia algo
marginalizada no contexto da estratégia asiática da Companhia de Jesus.
O homem escolhido para a missão foi Nicolas Trigault, um jovem jesuíta originário
da Flandres, que estava na China desde 1610. A missão que lhe foi confiada pelos
seus confrades, entretanto, desdobrava-se em diversas componentes.35 Em primeiro
lugar, o flamengo deveria tentar conseguir em Roma a autonomização da missão
chinesa, assegurando ao mesmo tempo fontes de rendimento seguras. Depois,
Trigault deveria obter junto das autoridades eclesiásticas aprovação explícita para a
política adaptacionista que estava a ser seguida pelos jesuítas na China. Em terceiro
lugar, havia que assegurar o regular abastecimento da empresa chinesa em termos de
pessoal missionário e em termos de recursos materiais. Em quarto lugar, a viagem à
Europa devia ser aproveitada para se adquirirem livros suficientes para que todas as
residências chinesas dos jesuítas possuíssem “una honesta libreria”.36 Enfim, em
quinto lugar, Nicolas Trigault era portador de diversos manuscritos, que deveria
tentar publicar na Europa, de forma a dar maior visibilidade pública à missão chinesa
da Companhia, que em termos editoriais permanecia ofuscada pelas temáticas
japonesas. Um desses manuscritos continha os Commentarj della Cina do padre
Matteo Ricci, uma volumosa “historia di questa missione”, que o jesuíta italiano
compusera nos seus últimos anos de vida.37 A obra ricciana máxima, aparentemente,
encontrou boa recepção nos meios romanos da Companhia de Jesus, pois seria
impressa logo em 1615, em Augsburg, sob o título De Christiana Expeditione apud
Sinas sucepta ab Societate Iesu. Os apontamentos originais de Ricci foram reorga-
nizados por Nicolas Trigault durante a viagem entre Macau e Roma (curiosamente

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efectuada em parte por via terrestre, através da Pérsia e do império otomano), que
os completou com outros documentos jesuítas, nomeadamente diversas cartas ânuas,
traduzindo o texto final para latim. A obra conjunta de Ricci e de Trigault conheceu
um imenso sucesso através de toda a Europa, sendo a versão latina repetidamente
reimpressa e logo traduzida em diversas línguas europeias. Estas sucessivas edições
de um texto que se baseava em testemunhos vivenciais contribuíram para prestigiar
entre os europeus a missão jesuíta da China. E este tipo de propaganda revelou-se
essencial para que diversos objectivos da missão de Nicolas Trigault fossem efectiva-
mente atingidos.
Uma obra tão volumosa como De Christiana Expeditione, evidentemente, teve
de recorrer a uma multiplicidade de fontes, e nomeadamente às experiências em
primeira-mão de Ricci e de Trigault, que amiúde fazem uso de lembranças pessoais.
Mas os dois autores utilizaram também um assinalável conjunto de textos europeus
e chineses, cuja presença se pode detectar nas entrelinhas da obra.38 Em primeiro
lugar, é bem visível a frequência regular da correspondência jesuíta, oriunda não só
de Pequim, como das residências existentes em outras cidades chinesas, sendo
alguns dos relatórios sectoriais transcritos na íntegra. Em segundo lugar, aparecem
com frequência, ao correr dos sucessivos capítulos, transcrições ou paráfrases de
documentos chineses relacionados com as missões jesuítas, nomeadamente memoriais
de mandarins. Depois, surgem numerosas menções a autores antigos e modernos da
cultura ocidental, como Demócrito, Euclides, Ptolomeu, Santo Agostinho, Girolamo
Ruscelli, Jerónimo Nadal, Christoph Clavius, Abraham Ortelius. Uma curiosíssima
citação respeita a Pedro Nunes, reportando-se talvez às Opera do célebre matemá-
tico português, editadas em Basileia em 1566.39
Enfim, por último, como em outros textos de Ricci, abundam as referências a
obras chinesas. Por um lado, surgem com especial destaque os livros atribuídos a
Confúcio, “príncipe dos filosofos chineses”, quer os Quatro Livros, designados como
“Tétrabiblion”, quer os Cinco Clássicos, ou “cinco doutrinas”. Estes nove volumes,
segundo Ricci e Trigault, “eram os mais antigos das bibliotecas chinesas, dos quais
derivam quase todos os outros”.40 São também várias vezes mencionados na De
Christiana Expeditione os escritos em chinês dos missionários jesuítas, e nomea-
damente os diversos tratados impressos de Matteo Ricci, que merecem mesmo um
capítulo próprio.41 Uma interessante referência negativa respeita aos livros de Xu
Guangqi, o letrado chinês que em 1603 se converteu ao cristianismo. O Doutor
Paulo, como lhe chamavam os jesuítas, “tinha uma bela e ampla biblioteca”, recheada
dos títulos essenciais da cultura chinesa, mas depois da conversão decidiu purgar o
seu espólio livresco com a ajuda dos religiosos europeus: “todos os livros interditos
pelos estatutos eclesiásticos foram queimados”. Durante três dias, no pátio da casa
do converso chinês, os jesuítas lançaram à fogueira todas as obras que tratavam “da
arte da adivinhação e dos seus preceitos”.42

530
Poucos anos após o desaparecimento de Matteo Ricci, a missão jesuíta da China
conheceria, ao menos temporariamente, tempos difíceis, pois em 1616 altos
funcionários imperiais de Nanquim e de Pequim haviam desencadeado uma violenta
campanha contra os missionários europeus.43 Diversos memoriais enviados ao impe-
rador Wanli acusavam os religiosos jesuítas de variados crimes, e nomeadamente de
hostilizarem as crenças sínicas tradicionais e de conspirarem para desestabilizar a
ordem social chinesa, através da difusão de doutrinas subversivas. O padre Álvaro
Semedo, que então se encontrava em Nanquim, viria mais tarde a resumir todas
essas acusações na sua Relatione della Grande Monarchia della Cina, impressa em
Roma em 1643: “a entrada furtiva no reino, a propagação de uma lei contrária aos
ídolos e aos seus antepassados, a concorrência dos títulos sublimes do nosso Deus
com o rei e do nosso Ocidente com o seu Oriente, a corrupção dos amigos, a
destruição da astrologia chinesa por falsa e errónea, motivada pelo dano da Europa
e coisas semelhantes”.44 Os cristãos, em suma, eram equiparados a uma sociedade
secreta, que, através de reuniões regulares onde se praticavam estranhos ritos e
através da intensa difusão de escritos heterodoxos, visavam a conquista do poder.
Visão esta, que, de certa maneira, fazia todo o sentido do ponto de vista do
pensamento chinês tradicional.
A hipótese, aparentemente, nunca foi levantada, mas não é impossível que Shen
Que e Fang Congzhe, os dois mandarins mais activos na campanha anti-cristã,
tivessem sido inspirados por notícias recebidas do Japão, onde por esses anos as
autoridades centrais nipónicas estavam a desencadear violentíssimas perseguições
contra os jesuítas, sob acusações absolutamente idênticas.45 Apesar dos missio-
nários terem esboçado uma defesa consistente, através de uma série de memoriais
dirigidos à corte imperial, redigidos por letrados chineses cristianizados ou simpati-
zantes dos jesuítas, o imperador Wanli assinou em princípios de 1617 um édito
decretando a expulsão dos padres europeus da China. Quase todos os jesuítas se
retiraram então para Macau, mantendo a Companhia apenas um pequeno núcleo de
missionários em Hangzhou, graças à protecção de Yang Tingyun, um importante
letrado chinês cristianizado, conhecido nas fontes jesuítas como Doutor Miguel.
Nada se sabe do que sucedeu então à biblioteca do estabelecimento jesuíta de
Pequim, que fora incessantemente utilizada por Matteo Ricci, e que talvez tenha sido
guardada em casas de letrados chineses simpatizantes dos padres. Mas alguns documen-
tos coetâneos revelam o que se passou em Nanquim, onde existia também uma
importante casa da Companhia de Jesus. Todo o espólio jesuíta foi cuidadosamente
arrolado pelas autoridades chinesas encarregadas de executar o édito imperial de
expulsão dos padres.46 A importante biblioteca jesuíta, que não seria muito diferente
da que até então existira em Pequim, mereceu especial atenção aos diligentes funcio-
nários imperiais, que em Agosto de 1617 organizaram a queima dos livros chineses
relacionados com a doutrina cristã e, presumivelmente, de todos os livros ocidentais,
já que dificilmente distinguiriam aqueles que se ocupavam de assuntos religiosos.

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Os inventários oficiais referem a existência na biblioteca jesuíta de Nanquim de
mais de 200 fanzi shu, ‘livros em caracteres estrangeiros’, de diversas dimensões,
para além de várias estantes cheias de yishu, ‘livros bárbaros’. Tratar-se-ia da parte
do espólio livresco dos jesuítas que comportava livros europeus versando temas
religiosos, filosóficos e científicos. Todos terão sido queimados. Outra secção da
biblioteca incluía fanshu, edições impressas de ‘livros estrangeiros’ traduzidos para
chinês, algumas delas em vários exemplares. Este conjunto dizia respeito às traduções
e às adaptações de obras ocidentais de carácter científico e técnico produzidas pelos
jesuítas desde os primeiros tempos da sua presença na China, como os Jihe yuanben
[‘Elementos de Euclides’], de que são arrolados 12 exemplares. O inventário
identifica estes títulos como “livros sobre cálculos astronómicos” e refere que serão
oportunamente enviados para Pequim.47 Uma distinta secção das listas oficiais
incluía 7 títulos de obras de doutrina cristã impressas em chinês, num total de 248
volumes. O Tianzhu shiyi de Matteo Ricci, com 57 exemplares, encabeçava a lista,
a qual englobava também Ershi wuyan [‘Vinte e cinco sentenças’] e Jiren shipian
[‘Dez paradoxos’], ambos de Ricci, respectivamente com 37 e 2 exemplares. Toda
esta secção de “livros que servem para iludir o povo” foi queimada.48
Uma outra parte do inventário de Nanquim respeita aos livros chineses existentes
na biblioteca da missão jesuíta estabelecida naquela cidade. São arrolados 63 títulos
de obras chinesas, que totalizavam mais de 300 volumes.49 Aqui, pela primeira vez,
aparecem listados os títulos mais manuseados pelos jesuítas na aprendizagem da
língua chinesa e na familiarização com a cultura clássica da China. Curiosamente,
quase todas as obras incluídas na listagem eram de leitura obrigatória para os candi-
datos aos exames civis. O que significa que os jesuítas estavam a tentar compreender
e dominar o conjunto mínimo de conhecimentos literários que eram exigidos aos
letrados chineses, com o evidente objectivo de com eles poderem estabelecer um
frutuoso diálogo. Os clássicos confucianos ocupavam cerca de um terço desta secção
da biblioteca jesuíta, que incorporava edições dos Quatro Livros e dos Cinco Clássicos,
num total de 129 volumes. Faziam também parte do espólio diversos clássicos
daoistas, e nomeadamente uma edição do Daode jing. A biblioteca jesuíta incluía
ainda, para além comentários dos clássicos, de dicionários e de enciclopédias,
diversas obras relacionadas com a história, a literatura, a medicina, a música e a arte
da guerra. Todas as obras em conjunto, enfim, parecem configurar a biblioteca de
um estudante que se quisesse preparar para os exames chineses, o que deverá querer
dizer que as escolhas livrescas dos jesuítas seriam ditadas pelos mestres chineses
com quem aprendiam a língua mandarim.
Eventualmente, os jesuítas haveriam de readquirir o favor das autoridades
imperiais, graças a uma insistente campanha levada a cabo a partir de Hangzhou e
de Macau, que envolveu também importantes mandarins chineses.50 Em 1621 os
religiosos inacianos estavam de regresso a Pequim, começando de imediato a
reconstituir o seu fundo livresco, que em breve se enriqueceria extraordinariamente

532
com a chegada, enfim, do espólio bibliográfica trazido da Europa por Nicholas
Trigault. Entretanto, parece evidente que as actividades multidisciplinares de Matteo
Ricci, entre 1583 e 1610, foram fundamentais para a constituição em Pequim de uma
relevante e inovadora biblioteca, que promovia a confluência entre dois mundos
livrescos, o europeu e o chinês, que até então se tinham basicamente ignorado um ao
outro. A biblioteca ricciana, tal como pode hoje ser reconstituída a partir de indícios
contidos nos seus principais escritos, reuniria um alargadíssimo conjunto de manus-
critos e de impressos, tanto ocidentais como orientais, que permitiriam estabelecer
pontes textuais entre a cultura religiosa e científica da Europa quinhentista e o mundo
da literatura clássica chinesa. Enfim, uma biblioteca muito própria, traçada à medida
das imensas aspirações intelectuais do jesuíta italiano, que configura um singular
paradigma de encontro cultural nos alvores da modernidade.

NOTAS

1 Vd., de entre uma vasta bibliografia, Jonathan Spence, The Memory Palace of Matteo Ricci,
Nova Iorque, Penguin Books, 1985; George L. Harris, “The Mission of Matteo Ricci, S. J.: A Case
Study of an Effort at Guided Culture Change in China in the Sixteenth Century”, Monumenta Serica,
Los Angeles, 25 (1966), pp.1-168; e Liam M. Brockey, The Harvest of the Vine: The Jesuit Missionary
Enterprise in China, 1579-1710 [dissertação de doutoramento policopiada], Providence, Rhode Island,
Brown University, 2002, pp. 19-57.
2 Rui Manuel Loureiro, “Primórdios da sinologia europeia entre Macau e Manila em finais do
século XVI”, Revista de Cultura, Macau, 2 (2002), pp. 6-23.
3 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche del P. Matteo Ricci S. I., 2 vols, Macerata, Premiato
Stabilimento Tipografico, 1911-1913, vol. 2, p. 45.
4 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 49.
5 Sobre o funcionalismo público chinês e o respectivo sistema de exames, vd. Ichisada Miyazaki,
China’s Examination Hell – The Civil Service Examinations of Imperial China, New Haven, Yale
University Press, 1981; e sobretudo o monumental estudo de Benjamin A. Elman, A Cultural History
of Civil Examinations in Late Imperial China, Berkeley, University of California Press, 2000.
6 Sobre os clássicos chineses, vd. a exposição de Claude Larre, Les Chinois, Paris, Editions Lidis,
1981, pp. 148-173.
7 Kai-wing Chow, “Writing for Success: Printing, Examinations, and Intellectual Change in Late
Ming China”, Late Imperial China, Baltimore, 17, 1 (1996), pp. 120-157.
8 Benjamin A. Elman, A Cultural History, pp. 391-399. 39p1B
o39-m
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1pr9-m
ut.neH
sE
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E
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yC
a,luanr,A
A
luB
itjn.uel.
9 Chinese Traditions and Universal Civilization, Durham, Duke University Press, 1997.37p15-.,
10 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, pp.117-118.
11 A respeito dos estudos linguísticos dos missionários, vd. Liam M. Brockey, The Harvest of the
Vine, pp. 313-374.
12 Sobre a produção e circulação de livros na China, vd. Kai-wing Chow, “Writing for Success”,
pp. 120-157; e Timothy Brook, The Confusions of Pleasure - Commerce and Culture in Ming China,
Berkeley, University of California Press, 1999.
13 Roger Chartier, “Gutenberg Revisited from the East”, Late Imperial China, Baltimore, 17, 1
(1996), pp.1-9.

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14 Sobre as obras de Ricci em chinês, vd. Henri Bernard, “Les adaptations chinoises d’ouvrages
européens”, Monumenta Serica, Pequim, 10 (1945), pp. 1-55 & pp. 309-388 (cf. pp. 313-333);
Jonathan D. Spence, The Memory Palace, passim; e Yu Dong, Catalogo delle Opere Cinesi Missionarie
della Biblioteca Apostolica Vaticana [XVI-XVIII sec.], Vaticano, Biblioteca Apostolica Vaticana, 1996,
pp. 76-79.
15 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p.155. Vd. Jonathan D. Spence, The Memory
Palace, pp. 138-139.
16 Jonathan D. Spence, The Memory Palace, pp. 87-89.
17 Richard J. Smith, Chinese Maps - Images of ‘All Under Heaven’, Hong Kong, Oxford
University Press, 1996, pp.42-49; e Yu Dong, Catalogo, pp. 76-77.
18 Sobre os primeiros jesuítas em Pequim, vd. Andrew C. Ross, A Vision Betrayed – The Jesuits
in Japan and China, 1542-1742, Edimburgo, Edinburgh University Press, 1994, pp.118-154; e Liam
M. Brockey, The Harvest of the Vine, pp. 19-89.
19 Willard J. Peterson, “Why Did They Become Christians? Yang T’ing-yün, Li Chih-tsao, and Hsü
Kuang-ch’i”, in Charles E. Ronan & Bonnie B.C. Oh, eds, East Meets West – The Jesuits in China,
1582-1773, Chicago, Loyola University Press, 1988, pp. 129-152.
20 Matteo Ricci, The True Meaning of the Lord of Heaven [T’ien-chu Shih-i], eds Douglas
Lancashire, Peter Hu Kuo-chen & Edward J. Malatesta, Taipé, Ricci Institute, 1985, pp. 10-38.
21 Cf. Matteo Ricci, The True Meaning, pp. 239-283 [original em inglês].
22 Cf. Matteo Ricci, The True Meaning, pp. 53, 65, 105, 111, 119, 123, 171, 179, 189, 231, 285,
287, 303, 307, 375 e 429.
23 Cf. Matteo Ricci, The True Meaning, pp. 57, 99, 123, 125, 177, 185, 301, 303, 307, 329, 337,
375, 387 e 429.
24 Matteo Ricci, The True Meaning, p. 243.
25 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 260.
26 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 272.
27 Opere Storiche, vol.2, pp. 256 e 258.
2vo
p5e,
O
ch
ep8c.6re
h2oieS
r,pt.erlO
p
28 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.1, pp. 1-610.
29 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 343.
30 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 282.
31 H. Verhaeren, ed., Catalogue de la Bibliothèque du Pé-T’ang, Paris, Société d’Edition Les
Belles Lettres, 1969, ns. 2355-2356.
32 H. Verhaeren, ed., Catalogue de la Bibliothèque, ns. 819, 1672, 2518 e 2711.
33 H. Verhaeren, ed., Catalogue de la Bibliothèque, ns. 798, 898.
34 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol. 2, p. 363.
35 Edmond Lamalle, “La Propagande du P. Nicolas Trigault en faveur des missions de Chine
[1616]”, Archivum Historicum Societatis Iesu, Roma, 9 (1940), pp. 50-90.
36 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 491.
37 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 492.
38 Cf. Matteo Ricci & Nicolas Trigault, Histoire de l’expédition de l’expédition chrétienne au
royaume de la Chine, 1582-1610, ed. Joseph Shih, Georges Bessiere & Joseph Dehergne, Paris,
Desclée de Brower, 1978, passim.
39 Cf. H. Verhaeren, ed., Catalogue de la Bibliothèque, pp. 683-684.
40 Matteo Ricci & Nicolas Trigault, Histoire de l’expédition, p. 97 [original em francês].
41 Matteo Ricci & Nicolas Trigault, Histoire de l’expédition, pp. 536-541.
42 Matteo Ricci & Nicolas Trigault, Histoire de l’expédition, p. 524 [original em francês].
43 Edward T. Kelly, The Anti-Christian Persecution of 1616-1617 in Nanking [dissertação de
doutoramento policopiada], Nova Iorque, Columbia University, 1971.

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44 Álvaro Semedo, Relação da Grande Monarquia da China, trans. Luís Gonzaga Gomes, ed.
António Carmo, Macau, Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, 199435p01-.,
45 Valdemar Coutinho, O Fim da Presença Portuguesa no Japão, Lisboa, Sociedade Histórica da
Independência de Portugal, 1999.
46 Adrian Dudink, “The inventories of the Jesuit house at Nanking made up during the persecu-
tion of 1616-1617 [Shen Que, Nangong Shudu, 1620]”, in Federico Masini, ed., Western Humanistic
Culture Presented to China by Jesuit Missionaries, Roma, Institutum Historicum Societatis Iesu, 1996,
119-157.
47 Adrian Dudink, “The inventories”, p. 137 [original em inglês].
48 Adrian Dudink, “The inventories”, p. 140 [original em inglês].
49 Cf. Adrian Dudink, “The inventories”, pp. 143-156.
50 Sobre o posterior desenvolvimento das missões jesuítas na China, vd. Liam M. Brockey, The
Harvest of the Vine, pp. 90-216, que cita a bibliografia fundamental.

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