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Alice no País das Maravilhas: Uma Crítica à Inglaterra

Vitoriana

Alice’s Adventure in Wonderland: a Criticism to the Victorian


England

Bruna Perrella Brito

Centro de Comunicação e Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie


Rua Piauí, 143 – 01241-001 – São Paulo – SP

hana_sam7@yahoo.com.br

Resumo. Este trabalho estuda o livro de Lewis Carroll, Alice no país das
maravilhas, contrastando-o com a produção literária em geral da
Inglaterra vitoriana, para mostrar que ele pode ser lido como uma crítica
ao período histórico em que Carroll está inserido. Foca-se a produção
literária desse período como um todo para, em seguida, levantar-se
algumas características relevantes da Literatura Vitoriana. ANALISAM-se,
na seqüência, alguns aspectos relevantes da estrutura narrativa da obra de
Lewis Carroll, Alice, com base em fundamentos do percurso gerativo de
sentido NOS TEXTOS, mostrando, a partir dos dados levantados, os
motivos que podem embasar uma possível leitura crítica da obra de
Carroll.

Palavras-Chave: Lewis Carroll. Literatura Vitoriana. Inglaterra.

Abstract. This paper studies Lewis Carroll's book, Alice’s Adventures in


Wonderland, contrasting it with the literary production of Victorian
England, to show that it can be read as a criticism to the historical period in
which Carroll is inserted. It focuses on the literary production of this
period, to list, afterwards, some relevant characteristics of the Victorian
Literature. It analyzes, in the sequence, some relevant aspects of the
narrative structure of Lewis Carroll's work, Alice, based on the generative
course of sense in texts, showing the reasons that make possible to read the
Carroll’s work as a criticism to his historical period.

Word-Key: Lewis Carroll. Victorian Literature. England.

Introdução

O contexto histórico em que está inserido o autor Lewis Carroll é um período de


grandes avanços nos campos científico e tecnológico, bem como do surgimento de
diferentes formas do pensamento filosófico, como o positivismo e o evolucionismo, ao
mesmo tempo em que é uma época de moralidade rígida, puritana, que traçou um
comportamento social marcado pelo radicalismo, no qual as bases eram as “grandes
famílias em que o pai era uma espécie de chefe divino, e a mãe, uma criatura submissa”
(BURGESS, 1996, p.215).
Parte-se do pressuposto de que o momento histórico em que Lewis Carroll está
inserido é, então, uma época de tensão, não só entre o moderno e a tradição, como
também entre a religião e a ciência, e que nele a Literatura passou a ter uma importância
crucial na vida dos indivíduos e da sociedade como um todo, tendo-lhe sido conferida,
além de proporcionar prazer estético ao leitor, também a função moralizante e
pedagógico. Dessa maneira, os ingleses vitorianos

quando precisavam de conselhos, recorriam à literatura; quando


queriam distrair-se, recorriam à literatura; quando queriam até mesmo
reforçar seu dogmatismo peculiar, também recorriam à literatura. Não
há como pensar a Era Vitoriana sem a associarmos aos seus grandes
escritos e escritores, sem vincularmos a esse período uma literatura de
tão extremado valor estético e social (MORAIS, 2004, p.36).

Os autores que não se dedicaram à literatura pedagógica escreveram textos


criticando a sociedade inglesa vitoriana e sua postura de manter as aparências, mas
tendo, em última instância, um caráter moralizante. Mesmo os autores que criticavam a
hipocrisia da sociedade inglesa, faziam tais críticas permeadas por uma ironia refinada,
que tinha em vista purificar a sociedade dos vícios e resolver os problemas sociais que
ela tentava esconder.
Quando se volta o olhar para a obra de Lewis Carroll, percebe-se que ela, pelo
menos aparentemente, não se enquadra em nenhum dos dois tipos de textos produzidos
pela época vitoriana, sendo o autor considerado, em seu tempo, um escritor que escrevia
para o entretenimento das crianças. Contudo, um olhar mais atento e analítico sobre
suas obras, especificamente sobre Alice no país das maravilhas, revela que este livro é,
em sua essência, uma crítica à condição do indivíduo de sua época, sufocado por
inúmeras exigências e regras sociais. Carroll mostra, por meio da fuga da realidade para
um mundo mágico, uma maneira de escapar, ainda que por meio da fantasia, da fixidez
vitoriana e de sua moral rígida. O autor será, portanto, considerado um indivíduo que
faz parte da sociedade e que, ao mesmo tempo em que é influenciado por ela, tenta
influenciá-la por meio de sua obra.

1. Literatura Vitoriana

A literatura exerceu um papel social extremamente importante na sociedade


inglesa vitoriana. Em um período no qual as bases da sociedade eram erigidas a partir
do meio familiar, no cultivo das virtudes como a retidão, a seriedade e a castidade,
tendo como pilares papéis sociais bem definidos para homens, mulheres e crianças, a
leitura edificante, realizada por e aos familiares, era algo de suma importância.
Nessa época, observa-se o surgimento do que é chamado hoje de literatura
pedagógica, cuja finalidade era ensinar as pessoas quanto aos mais diversos assuntos,
“indo do comportamento das senhoritas diante da sociedade (postura, modo de falar,
hora certa de ruborizar, etc.), até aconselhamento quanto à saúde e educação dos filhos”
(MORAIS, 2004, p.25). Esses textos, em sua maioria, primavam pela ingenuidade
quando faziam parecer que o simples fato de seguir regras de conduta moral,
acreditando ou não nelas, fosse o suficiente para ser virtuoso.Um exemplo desse tipo de
literatura é o de uma das educadoras mais populares do período em questão, Margaret S.
Gatty, que, em 1855, teve a primeira de cinco séries das Parables from nature
publicada. Essa série mostrava a necessidade de manter a ordem social, “tarefa que
somente o enraizamento dos valores morais poderia concluir, segundo o que
acreditavam. Havia a intenção de ensinar que a submissão é algo natural e bom”
(MORAIS, 2004, p.69).
Outra característica fundamental dessa época é que a literatura, tanto em prosa
quanto em poesia, parece ser motivada por um evidente objetivo moral. Na diversão e
no sentimentalismo das obras de Dickens, nos microcosmos sociais e nas críticas de
Thackeray, ou nos estudos psicológicos de George Eliot, é possível encontrar, em
quase todos os casos, um propósito definido de varrer o erro da sociedade, revelando a
verdadeira base da vida humana.

Então o romance procurava fazer pela sociedade dessa época


precisamente o que Lyell e Darwin procuravam fazer pela ciência, isto
é, achar a verdade e mostrar como ele podia ser utilizado para elevar,
espiritual e moralmente, a humanidade (LONG, [c1909], p.455,
tradução nossa).1

Talvez, por essa razão, a Era Vitoriana seja, expressivamente, um período de


realismo; mas não o realismo de Zola, e sim um profundo realismo que se esforçava
para dizer toda a verdade, mostrando as doenças morais e físicas como elas eram, porém
apontando para um caminho que proporcionaria bem-estar e esperança, que eram, para
os escritores dessa época, condições normais da humanidade.

[...] os escritores, literatos do século XIX, eram tidos como profetas,


guias de uma sociedade que se tornava cada vez mais levada por certo
dogmatismo, fruto do medo das novas tendências, do desnorteio que o
novo, de um modo geral, estava criando [...] As novels deviam entreter
seus leitores e, ao mesmo tempo, oferecer ensinamentos de fundo moral
(MORAIS, 2004, p.30).

A partir desse panorama geral e breve, desenha-se a era vitoriana como uma
época que produziu literatura e escritores preocupados, explicitamente, com a educação
e com a moral da sociedade. As obras de Lewis Carroll, mais precisamente Alice no
país das maravilhas, distanciam-se de tal literatura: sua obra não apresenta nem esse
caráter pedagógico nem esse caráter moralizante. Por meio da análise de alguns
aspectos do esquema narrativo principal de Alice e da análise da subversão de um
símbolo da sociedade inglesa vitoriana nesse livro, pretende-se mostrar que Alice pode
ser lido como uma crítica a essa opressão moralizadora e pedagógica da literatura e da
sociedade inglesa vitoriana, que desejava controlar o indivíduo, ditando padrões fixos e
pré-definidos.

1
So the novel sought to do for the society in this age precisely what Lyell and Darwin sought to do for
science, that is, to find the truth, and to show how it might be used to uplift humanity.
2. Uma breve análise do livro Alice no país das maravilhas.

A partir da análise de alguns aspectos do programa narrativo principal do livro


Alice no país das maravilhas, confronta-se esse livro, no que diz respeito
principalmente ao conteúdo, com as características principais da literatura vitoriana,
para mostrar que Alice pode ser lido como uma crítica à Inglaterra vitoriana do século
XIX, que tinha como uma de suas características principais a repressão da vontade
individual. Essa análise será feita a partir do percurso gerativo de sentido, conforme ele
é proposto pela semiótica discursiva, A qual estuda o plano de conteúdo do texto
separadamente do plano de expressão.O percurso gerativo de sentido é dividido em três
níveis distintos, que vão do mais simples e abstrato até o mais complexo e concreto. Os
três patamares são nomeados da seguinte forma: nível fundamental, nível narrativo e
nível discursivo, sendo o nível fundamental o mais abstrato e o nível discursivo o mais
concreto. O foco deste trabalho é o nível narrativo.
O nível narrativo é o patamar intermediário do percurso gerativo de sentido.
Nele, sujeitos entram em estado de posse ou de privação com objetos que representam
valores. O que caracteriza o nível narrativo é exatamente a transformação de um estado
A para um estado B (da posse para a privação ou da privação para a posse). Quando há
uma transformação entre um estado inicial e um estado final, tem-se o que Fiorin (2005)
chama de “narrativa mínima”. Um texto, geralmente, é composto por mais de uma
“narrativa mínima”, e, quando assim acontece, sempre haverá uma narrativa mínima
principal em um texto.
Na sintaxe narrativa, existem dois tipos distintos de enunciados elementares:
enunciados de estado e enunciados de fazer. Segundo Fiorin (2005), os primeiros são
OS que estabelecem uma relação de junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito e
um objeto; os segundos são os que mostram, efetivamente, as transformações de um
enunciado de estado a outro. Como já foi mencionado, os textos não são narrativas
mínimas. Na realidade, quando há mais de uma narrativa mínima, há o que se chama de
narrativas complexas, com enunciados de fazer e de estado organizados
hierarquicamente. “Uma narrativa complexa estrutura-se numa seqüência canônica, que
compreende quatro fases: a manipulação, a competência, a performance e a sanção”
(FIORIN, 2005, p.29).
Na manipulação, um sujeito-manipulador age sobre o sujeito do fazer para levá-
lo a querer e/ou dever fazer alguma coisa. Se o sujeito do fazer aceita a manipulação,
para realizar a transformação principal da narrativa ele precisa, então, de meios para
alcançar o objeto-valor. Essa é a fase da competência, quando o sujeito do fazer recebe
o poder e/ou o saber fazer. Dotado da competência, o sujeito do fazer parte para a ação;
essa é a fase da performance, na qual acontece a transformação principal da narrativa,
quando há, de fato, a mudança de um estado para outro. A última fase é a sanção, na
qual um sujeito-julgador confere se a performance realmente se realizou, podendo ou
não acontecer a distribuição de prêmios ou castigos.
A partir do que foi visto até aqui, será analisado, então, o livro de Lewis Carroll,
Alice no país das maravilhas, no que diz respeito a alguns aspectos da seqüência
narrativa principal desse livro, fazendo, ao mesmo tempo, o contraste com as
características principais da literatura vitoriana. Na seqüência narrativa principal de
Alice, há um estado inicial, um estado final e um processo de transformação entre eles.
O estado inicial do sujeito Alice é o de enfado. Pode-se ver isso no início do capítulo 1:

Alice começava a enfadar-se [grifo nosso] de estar sentada junto à irmã


e não ter nada o que fazer: uma ou duas vezes espiara furtivamente o
livro que ela estava lendo, mas não tinha figuras nem diálogos, “e de
que serve um livro” – pensou Alice – “sem figuras nem diálogos?”
Assim meditava, ponderando (tanto quanto podia, pois o calor a deixava
sonolenta e entorpecida) e o prazer de tecer uma grinalda da margaridas
valeria o esforço de levantar-se e colher as flores, quando de súbito um
Coelho Branco de olhos róseos passou perto dela [...] quando o Coelho
tirou um relógio de bolso do colete e deu uma espiada, apressando-se
em seguida, Alice levantou-se sem demora, pois assaltou-a a idéia de
que jamais vira na sua vida um coelho de colete e bolso, e muito menos
com um relógio dentro (CARROLL, 1985, p.41).

Vê-se no trecho acima que Alice estava sentada juntamente com sua irmã e que
começava a enfadar-se por não ter nada (de interessante) para fazer. O enfado está
presente no estado inicial de Alice. Convém refletir um pouco sobre o significado da
palavra “enfado”. Segundo o Dicionário Aurélio, “enfado” possui dois sentidos: 1.
impressão desagradável, mal-estar, incomodo; 2. zanga, aborrecimento. Por essa
definição, pode-se dizer que Alice estava ou incomodada pela sua situação ou
aborrecida por causa dela ou as duas coisas. O estado inicial de Alice é o resultado do
contexto no qual ela está inserida, é um estado fixo, de monotonia. Se Alice for
considerada como um indivíduo pertencente à sociedade inglesa vitoriana, sendo, então,
representante dessa sociedade, o seu estado de tédio, cansaço, aborrecimento, na
realidade, pode ser considerado como sendo causado pela sociedade vitoriana que era
opressora.
Esse estado de tédio é quebrado pelo elemento mágico, introduzido pelo Coelho
Branco, que desperta em Alice a curiosidade e a vontade de ir atrás do novo, do
diferente, da aventura, isto é, ela sai de um estado de tédio, para o movimento, para a
mudança. Assim, ao ir atrás do Coelho Branco, quer entrar em disjunção com o seu
estado de tédio, para entrar em conjunção com um novo estado, emocionante e
empolgante. Alice é manipulada pelo querer entrar na toca do Coelho. Essa
manipulação, entretanto, é impulsionada pelo contexto, ou seja, a sociedade vitoriana
acaba impulsionando Alice a ir atrás de aventura. Ela entra na toca sem pensar como
sairia dali ou quais seriam as conseqüências de seus atos. Ela simplesmente age,
seguindo os seus impulsos:

Ardendo de curiosidade, correu atrás do Coelho campo afora, chegando


justamente a tempo de vê-lo enfiar-se numa grande toca sob a cerca.
Logo depois Alice entrou atrás dele, sem pensar sequer em como sairia
dali outra vez (CARROLL, 1985, p.41).

Essa atitude de Alice, na realidade, é uma transgressão em relação ao que se


esperava do comportamento infantil da época, bem como em relação aos modelos
infantis que apareciam na literatura vitoriana, principalmente na pedagógica. De acordo
com Flávia Costa Morais (2004), na Inglaterra vitoriana, o papel da educação nos lares
era extremamente valorizado. Nessa época, as crianças eram educadas para que se
comportassem como adultos, esperando-se delas, então, atitudes adultas. A sociedade
acreditava que, para se desenvolverem as virtudes no comportamento infantil, era
necessário que as crianças tivessem a plena consciência da inevitabilidade de dois
sentimentos opostos: culpa e aprovação. “O universo infantil era povoado por esses dois
conceitos que, ao final, eram regidos por um único: medo. Medo da punição – uma das
poucas certezas que aquele mundo apresentava” (MORAIS, 2004, p.68). A pressão que
os adultos recebiam da sociedade era, então, repassada para as crianças, que, logo no
início da vida, já eram expostas a um dogmatismo moral e a um maniqueísmo
extremista.
Percebe-se que das crianças era esperada uma conduta adulta de comportamento,
guiado pelos pais, que representavam as exigências morais da sociedade. O indivíduo
inglês, então, se acostumava com a idéia de culpa e de punição como conseqüência de
“más ações”, procurando, portanto, levar uma vida exemplar, tentando ser virtuoso –
pelo menos na aparência. A idéia do prazer estava associada à idéia de pecado, e as
mudanças estavam associadas à idéia do perigo do novo e da revolução. O melhor era
ter uma vida regrada e fixa, regida por princípios religiosos.
A personagem Alice foge desse padrão infantil e do padrão de comportamento
vitoriano. Ela se aventura, vai atrás da diversão, do diferente, do prazer que essa
experiência poderia trazer para ela, sem pensar nas conseqüências ou na punição. Ela
não é uma personagem infantil que segue e/ou prega um específico modelo – ela é, ao
contrário, para os padrões vitorianos, ousada, porque não se preocupa com as
conseqüências de seus atos. Ela subverte, portanto, o paradigma de comportamento
esperado pela sociedade inglesa vitoriana das crianças e dos adultos, na medida em que
as crianças eram vistas como “mini adultos”.
Voltando-se à seqüência narrativa principal, Alice, em seu percurso para entrar
em conjunção com o objeto-valor aventura, se depara com muitos obstáculos que
aparecem em seu caminho. Esses obstáculos são resolvidos magicamente. Quando o
sujeito Alice tem que transpor uma barreira, isto é, precisa de um saber e de um poder
fazer para transpor o obstáculo, o saber e o poder são dados a ela magicamente, por
meio de objetos modais mágicos, que lhe conferem competência para dar continuidade a
sua performance principal. Isso acontece diversas vezes durante a narrativa. Esses
elementos mágicos, que viabilizam a continuidade do percurso de Alice, podem ser
vistos como uma crítica ao pensamento lógico e racional que estava muito presente no
século XIX. Ao colocar o elemento mágico como única possibilidade de resolver os
problemas de Alice, subverte-se uma visão de mundo vitoriana baseada no pensamento
lógico e rígido, bem como no trabalho árduo para se alcançar um objetivo. Duas
posturas rígidas e opressoras são contestadas, portanto, pelo livro de Carroll, de modo
implícito: a moralidade religiosa e dogmática, bem como a racionalidade que acreditava
poder resolver todos os problemas da sociedade.
Quando o mundo mágico deixa de ser divertido, no capítulo final, no momento
em que Alice está em um tribunal sem regras e enfrenta a Rainha de Copas, ela acorda:
o seu percurso acaba no momento em que a aventura acaba. Ela desperta de seu sonho,
voltando para a realidade. Tem-se, então, o estado final de Alice, pós-aventura. Ela
alcança o seu objetivo, entra em conjunção com o objeto-valor emoção, entrando em
disjunção, conseqüentemente, com o enfado e alcançando uma liberdade momentânea
da realidade opressora.Essa liberdade momentânea é livre de censura, pois acontece no
mundo do sonho, do inconsciente, ao qual apenas Alice tem acesso.Alice alcança o seu
objeto-valor que é a aventura e a diversão, quebrando padrões instituídos pela sociedade
vitoriana, mas não é punida por isso. A punição e a culpa estão ausentes do livro de
Carroll, bem como o medo. O estado final de Alice é de ânimo.
Aparentemente, a narrativa é apenas um conjunto de peripécias, permeadas pela
irracionalidade, mas, na realidade, essas aventuras contêm em si uma possível leitura
paralela e crítica, por meio da qual se pode ver no País das maravilhas um refúgio
mágico no qual um indivíduo pode-se libertar da opressão, das regras, da fixidez, e
viver aventuras, experimentando o diferente e o proibido, sem medo das conseqüências.
Do analisado até aqui, percebe-se que o livro de Carroll Alice no país das
maravilhas foge do padrão de literatura que era recorrente na Inglaterra vitoriana.
Podem-se listar alguns pontos gerais que baseiam essa afirmação: primeiro, porque
Alice não é um livro que reflete as exigências da sociedade em relação à religião e à
moral; segundo, porque não é um livro nem pedagógico e nem moralizante, ou seja, não
tem o objetivo primordial nem de educar nem de varrer os vícios da sociedade, já que,
numa primeira leitura, Alice parece voltado unicamente ao entretenimento; terceiro,
porque caracteriza a realidade da Inglaterra vitoriana como enfadonha, à qual está
associada à idéia de opressão; quarto, não há punição para a transgressão de Alice, que
rompe um padrão pré-estabelecido socialmente para o indivíduo inglês vitoriano, já que
a punição era um elemento presente tanto na literatura quanto na vida real.
Resumidamente, vê-se que Alice não é uma obra escrita com o propósito de moralizar e
manipular o leitor, levando-o a acreditar que certo padrão é correto e aceitável, ou que
certas atitudes devem ser realizadas. É no desvio do modelo, no estranhamento que
causa no leitor uma nova possibilidade de mundo, que o livro de Carroll é um convite à
reflexão.
Há também no livro algumas subversões de símbolos importantes para a
sociedade inglesa. Essas subversões podem ser vistas como um reforço ao caráter crítico
que o conteúdo do livro de Carroll pode assumir. Uma das subversões mais
significativas do livro é a da figura da Rainha. Na época em que Lewis Carroll publicou
o seu livro Alice no país das maravilhas, estava no trono a Rainha Vitória, importante
figura, tanto social quanto economicamente, para a Inglaterra do século XIX. O regime
político da Inglaterra desse período era a monarquia parlamentarista, regime no qual se
adota o sistema parlamentar de governo, no qual o monarca não mais governa,
assumindo a função Chefe de Estado, que é um cargo representativo. O governo é
exercido pelo Ministro de Estado, mais conhecido como primeiro ministro, e pelo
parlamento, que escolhe o primeiro ministro e tem o poder de tirá-lo do cargo também.
A Rainha Vitória, embora fosse uma importante figura para a sociedade inglesa, tinha o
poder político limitado.
A Rainha de Copas, na realidade, dentro do sistema maluco que é o País das
Maravilhas, quase não tem poder de decisão, como a Rainha Vitória dentro da
monarquia parlamentarista. Os seres mágicos a temem, é verdade, mas as suas ordens de
decapitação nunca são cumpridas, como o personagem Grifo diz para Alice:

O grifo sentou-se e esfregou os olhos. Contemplou depois a Rainha até


que ela sumisse de vista. Riu então a socapa. – É muito engraçado! –
murmurou, meio para si mesmo meio para Alice.
– Qual é a graça? – perguntou Alice.
– Ora, ela é que é engraçada – disse o Grifo. – Você sabe, isso tudo é
fantasia dela: nunca executam ninguém (CARROLL, 1985, p.107).

Ao lado disso, nota-se que a Rainha de Copas é caracterizada como uma pessoa
irritadiça e autoritária, que vê nas decapitações a solução para todos os problemas: “A
Rainha só tinha um meio de remover todas as dificuldades. – Cortem-lhe a cabeça! –
gritou, sem voltar-se sequer na direção apontada” (CARROLL, 1985, p.99). Nessa
parte, quem fala é o narrador, que ironiza o método de resolução de dificuldades da
Rainha de Copas. Quando se considera o mundo do País das Maravilhas como uma
possível crítica à Inglaterra vitoriana (posição adotada por esse trabalho), pode-se
estender, então, tanto a fala do Grifo quanto a do narrador, à própria Rainha Vitória. É
interessante notar que, nos dois trechos citados, tanto o Grifo quanto o narrador se
referem à Rainha de Copas como apenas “Rainha”, reforçando a possibilidade de
interpretação desse “Rainha” como se referindo também à Rainha Vitória. No caso, a
Rainha Vitória está sendo caracterizada não só como sem autoridade, mas também
como possuidora de um julgamento duvidoso e simplista, crítica que não poderia ter
sido feita abertamente em uma época na qual a Rainha Vitória, embora não tivesse
poder político, tinha poder social e moral.
Um último aspecto que deve ser mencionado em relação à Rainha de Copas diz
respeito à posição que Alice assume diante de tal figura. Alice enfrenta a autoridade da
Rainha do País das Maravilhas, abertamente, pelo menos duas vezes, quando ela
encontra a Rainha pela primeira vez e no tribunal:

– E quem são esses aí? – indagou a Rainha, apontado para os três


jardineiros, prostrados em volta da roseira. Pois deitados como estavam
de rosto para o chão, e sendo o desenho das costas o mesmo do resto do
baralho, ela não podia saber se eram jardineiros, soldados, cortesãos ou
até mesmo três dos infantes reais.
– Como é que eu vou saber? Respondeu Alice surpreendida com a sua
própria coragem – Isso não é de minha conta.
A Rainha ficou vermelha de raiva, e, depois de olhar para ela um
momento como uma fera selvagem, urrou com voz esganiçada: –
Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a...
– Bobagem! – disse Alice em voz alta e decidida, e a Rainha ficou
calada (CARROLL, 1985, p.95).

– Não, não! – gritou a Rainha. – Primeiro a sentença, o veredicto


depois.
– Mas que bobagem! disse Alice em voz alta. – Quem já viu sentença
antes de veredicto?
– Dobre essa língua! disse a Rainha, com o rosto vermelho de raiva.
– Não, nunca! respondeu Alice (CARROLL, 1985, p.129).
Enfrentar a Rainha é uma maneira de se opor ao sistema, uma vez que a rainha é
a representante dele, ou seja, esse ato é a concretização da busca da libertação de uma
rigidez, que diz o que deve ser feito. Alice, uma criança, enfrenta a Rainha e põe “em
xeque” o seu poder, no primeiro trecho, e o seu julgamento, no segundo. Em uma obra
que pode ser lida como a representação da fuga da realidade para um mundo de fantasia
livre das regras vitorianas, um mundo que critica tal realidade, enfrentar o poder real e
não ser punido é o ápice da libertação da rigidez e da opressão. E Alice é a representante
de tal desejo, concretizando-o no mundo da fantasia, livre da punição que esse
desrespeito com a autoridade da rainha traria como conseqüência.

Conclusão
A literatura do período vitoriano perde a característica da “arte pela arte”,
ganhando uma nova função: a moral. Por meio dos romances e dos manuais de uma
forma geral, espalham-se pela Inglaterra vitoriana exemplos e modelos que deviam ser
seguidos pelos “verdadeiros cidadãos do Império Britânico”. Os escritores são elevados
ao patamar de profetas e guias morais, que sabem o que deve ser feito e o que não deve.
Eles enchem os romances com personagens bons e maus, reafirmando um modelo social
já existente: o mundo dividido em dois pólos, o “bom” vs. o “mau”. Para ser um
cidadão exemplar, era necessário somente seguir um determinado modelo, repetido
incansavelmente pela literatura. Difundi-se, então, a idéia de que os escritores sabem
mais, são mais experientes e podem decidir melhor sobre os problemas da vida, cabendo
aos cidadãos obedecer (MACHADO, 1999). É uma literatura que reafirma a autoridade
do social sobre a vontade individual.
Entretanto, “a obra de arte tende a ser subversiva e a afirmar a rebeldia
individual frente à autoridade. Por sua própria natureza, a criação artística procura
caminhos de inconformidade e ruptura” (MACHADO, 1999, p. 45). Nem todos os
artistas seguem o mesmo modelo. Sempre surge uma voz que vai contra as convenções
sociais. Essa voz pode não falar explicitamente, mas ela está lá, ela existe. Este é o caso
de Lewis Carroll e de seu livro Alice no país das maravilhas, que parece, à primeira
vista, mais um caso pertencente ao fenômeno de evasão literária.
Pode-se fazer uma leitura ingênua da obra de Lewis Carroll, pois o caráter
plurissignificativo da obra de arte assim o permite. Entretanto, de igual modo, é possível
uma leitura crítica, que vê na fuga de Alice para o mundo mágico uma forma de
censurar a sociedade inglesa vitoriana opressora. A própria personagem Alice foge do
padrão de cidadão vitoriano modelo: ela é ousada e busca a sua satisfação pessoal em
uma sociedade que condena esse tipo de satisfação. E mais: ela quebra as convenções e
não é punida por causa disso, pois não há punição no país das maravilhas, nem o medo
da punição, dois conceitos marcadamente presentes na literatura vitoriana. Ao lado
disso, ressalta-se a subversão de símbolos sociais importantes, para os ingleses
vitorianos, dentro da obra de Lewis Carroll. Essa subversão ridiculariza, por exemplo, o
símbolo máximo da monarquia no período vitoriano: a rainha. A subversão em si já traz
um caráter crítico, pois rebaixa um elemento considerado elevado.
Conclui-se, dessa maneira, que Alice no país da maravilhas pode ser lido como
uma obra que critica o período histórico em que está inserida, por questionar os padrões
sociais estabelecidos pela sociedade vitoriana e por se afastar do modelo recorrente de
literatura moralizante e pedagógica. Partindo-se da afirmação de que “o uso de
determinado discurso é, de certa forma, uma ação no mundo” (FIORIN, 2003, p.75),
Lewis Carroll, então, ao ser um escritor que utiliza um discurso diferente do corrente em
seu tempo, mostra uma certa insatisfação com o mundo que o cerca, bem como uma
vontade de agir, modificando esse mundo, ainda que esta ação permaneça no plano do
sonho e da literatura.

Referências

BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. São Paulo: Ática, 1996.

CARROLL, Lewis. As aventuras de Alice: No país das maravilhas. – Através do


espelho e o que Alice encontrou lá. – Outros textos. 3 ed. São Paulo: Summus, 1985.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 13. ed. São Paulo: Contexto,
2005.

LONG, William Joseph. English literature: its history and its significance for the life of
the English-speaking world. United States of America: Ginn and Company, [c1909].

MORAIS, Flávia Costa. Literatura vitoriana e educação moralizante. São Paulo:


Alínea, 2004.

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