Vous êtes sur la page 1sur 4

misticismo

© PHOTOS.COM

V por SÉRGIO CARLOS COVELLO, FRC

A noite escura
da alma
na visão poética de
São João da Cruz

2 O ROSACRUZ | VERÃO 2010


“noite escura da alma” é metáfora de Na teologia mística, a noite foi aos
uma experiência mística que envol- poucos adquirindo o sentido de estado de
ve paradoxo, porque essa experiên- consciência com relação à Divindade, a
cia é iluminativa e, no entanto, eterna Incógnita escondida metaforica-
obscurece a consciência e acarreta sofrimento. mente no manto negro da noite. “Deus
Para extrair sentido dessa contradição, faz-se habita as trevas” – dizem os místicos,
necessário examinar o rico simbolismo da porque nunca ninguém conseguiu ver
noite no imaginário dos povos. Deus, e tudo o que sabemos sobre Ele são
Entre os mitos gregos, Noite é o nome da conceitos humanos. O homem presume
deusa que personifica as trevas superiores e é que existe uma causa inteligente para o
representada por uma figura feminina envolta universo e a chama de Deus, atribuindo-lhe
em manto escuro, a percorrer o céu, enquanto qualidades humanas (como a bondade, a
seu irmão, Érebo, simboliza as trevas infe- justiça e a misericórdia). Cria, assim, Deus
riores. A deusa Noite gerou várias divindades, à sua imagem e semelhança. A teologia
algumas benéficas, outras maléficas, sendo a mística, ao contrário da teologia espe-
mais importante delas o Dia (Hêmera), a culativa (baseada em conceitos e teorias),
divindade que trouxe a luz ao universo. objetiva um conhecimento experimental – a
Também na tradição judaica, a noite apre- posse interior de Deus pela contemplação
senta ora um aspecto negativo, ora um aspecto que implica o despojamento do ego, visan-
positivo. No Gênesis, ela denomina as trevas, do à união da alma com “aquele que está
sendo inferior à luz: “E viu Deus que a luz era além de todo ser e de todo saber”. A esse
boa, e fez separação entre a luz e as trevas. estado de despojamento os místicos ale-
Chamou Deus a Luz, Dia e as trevas, Noite mães do século 14 chamaram de “noite
(1.4-5)”. Em outras passagens, porém, a escura”, expressão que foi consagrada 200
Bíblia ressalta o aspecto positivo da noite. anos mais tarde pelo frade carmelita São
Por exemplo, em Jó 35.10, lê-se que “Deus João da Cruz, num poema lírico de oito
inspira canções de louvor durante a noite”. A estrofes em que o poeta relata a própria
noite é, portanto, o momento da inspiração passagem por essa prova que antecede à
divina. E em Salmos, 19.2, a noite relaciona- plena iluminação. Nos comentários ao
se com a sabedoria: “Uma noite – diz o poema, diz o autor que, mediante a noite
salmista – revela conhecimento à outra escura, a alma se dispõe e encaminha para a
noite”. Não por outra razão a coruja, pássaro divina união de amor. É possível explicar a
notívago, representa, de longa data, a filo- jornada mística como a busca do Eu
sofia, simbolizando o saber e a clarividência. profundo, a dimensão expandida da cons-
Na arte poética, a noite é geralmente evo- ciência, para além do pequeno ego, de
cada como o período propício ao romance, modo que a consciência individual se
pois, cessadas as atividades laborativas do transforme em universal ou cósmica. Mas
dia, o ser humano pode ir livremente em os místicos cristãos (e mesmo os não-
busca do outro. Neste caso, a noite exerce cristãos teístas) consideram a ampliação da
fascínio: “Tudo tem suave encanto quando a consciência como a união da alma com
noite vem”, diz uma canção de amor. Na Deus, por analogia com o casamento
esfera psíquica, a noite significa a face oculta humano, que é uma experiência transfor-
da consciência, o inconsciente, que, durante madora na vida dos nubentes. Nessa etapa
o sono, geralmente à noite, vem à tela mental do desenvolvimento consciencial só entram
através de símbolos que expressam não só os as pessoas espiritualmente adiantadas, isto
desejos, mas também a sabedoria, a criativi- é, as que já se converteram para a sua
dade e as mais belas intuições. dimensão maior e obtiveram algum grau de

VERÃO 2010 | O ROSACRUZ 3


misticismo

luz. Não se trata de período agradável, visto 3. Em noite tão ditosa,


que é de provação. Segundo São João da E num segredo em que ninguém me via,
Cruz, a noite escura consiste na mortifica- Nem eu olhava coisa,
ção dos sentidos e do espírito, por isso que Sem outra luz nem guia (5)
produz abatimento, esgotamento mental e Além da que no coração me ardia.
fadiga. Mas esse transe é altamente desejá-
vel, porque faz surgir o homem novo, de 4. Essa luz me guiava,
consciência totalmente renovada. Com mais clareza que a do meio-dia,
A passagem pela noite escura da alma Aonde me esperava
encontra apoio nas escrituras bíblicas. Tanto Quem eu bem conhecia, (6)
no Antigo, como no Novo Testamento, há Em sítio onde ninguém aparecia. (7)
vários exemplos de pessoas santificadas que
sofrem provação antes de receberem um 5. Oh, noite que me guiaste!
grande benefício. A noite do Cristo teve Oh, noite mais amável que a alvorada!
início no Getsêmane, pouco antes de o Oh, noite que juntaste
Divino Mestre ser preso, e terminou na cruz Amado com amada,
com a sensação de abandono: “Eli, Eli, lamá Amada já no Amado transformada! (8)
sabactâni” (MT 27.46). Graças, porém, à
tormenta física e mental, Jesus de Nazaré 6. Em meu peito florido
ressurgiu como o Cristo Cósmico Eterno, Que, inteiro para ele só guardava,
dando ensejo a uma das mais influentes Quedou-se adormecido,
tradições religiosas do mundo. E eu, terna, o regalava,
Na expressão Noite Escura, que dá nome à E dos cedros o leque o refrescava.
obra joanina, estão implícitos os vários
sentidos figurados da noite: o mitológico 7. Da ameia a brisa amena, (9)
(geratriz da luz), o sapiencial (momento da Quando eu os seus cabelos afagava,
sabedoria e da inspiração divina), o poético Com sua mão serena
(instante doce do amor) e o psicológico Em meu colo soprava,
(centro de consciência transcendente). E meus sentidos todos transportava.
A análise, ainda que sumária, dos belos
versos escritos em 1578 (*) permitirá a 8. Esquecida, quedei-me,
melhor compreensão dessa fase do desenvol- O rosto reclinado sobre o Amado; (10)
vimento da consciência, na visão poética do Tudo cessou. Deixei-me,
monge que fez da busca do Absoluto seu Largando meu cuidado
ideal de vida: Por entre as açucenas olvidado. (11)

1. Em uma noite escura, (1) O poeta fala por sua alma caracterizada
De amor em vivas ânsias inflamada, (1) como uma jovem em busca de seu amado.
Oh, ditosa ventura! Alma (do gr. Psykhé, através do latim anima)
Saí sem ser notada, (2) é, na maioria das línguas modernas, palavra
Já minha casa estando sossegada. (3) feminina. Na mitologia grega, Psiqué era o
nome de uma jovem sumamente bela que,
2. Na escuridão, segura, desposada pelo deus Eros (o Amor), passou a
Pela secreta escada, disfarçada, (4) conviver com os deuses no Olimpo. A
Oh, ditosa ventura! metáfora deixa entrever que a alma humana
Na escuridão, velada, ao amar, se diviniza.
Já minha casa estando sossegada. A alma, que no poema joanino, relata sua

4 O ROSACRUZ | VERÃO 2010


aventura amorosa, é adiantada em espiritua- centro da própria alma, ou o espírito, sua
lidade, pois está incendiada do amor de Deus. parte mais elevada, na qual se dá o encontro
com a Divindade. Na antiguidade tardia,
(2) Sair sem ser notada significa que a alma saiu Plotino enfatizou a consciência como
sem ser impedida pelos sentidos que compõem aspecto privilegiado do ser humano, porque
o ego e geram o apego às coisas externas. é onde se manifestam as verdades mais altas
que o homem pode alcançar. “O sábio – diz
(3) Como os castelos e as fortalezas, a casa – tira de si próprio aquilo que revela aos
representa o ser interior. Seus pavimentos são outros e olha para si próprio, dado que não
os vários estados mentais. O porão correspon- somente tende a unificar-se e a isolar-se das
dente ao inconsciente inferior, enquanto o coisas externas, mas se dirige a si próprio e
sótão, a superconsciência. Casa sossegada é a encontra todas as coisas”.
vida interior com pleno domínio das pulsões
inferiores e das paixões menores. (8) Pela união com a Luz, a alma se transfor-
ma na Luz. Trata-se da identificação da
(4) A escada mística da ascese rumo à consciência ordinária com a Consciência
Divindade. Note-se que para ir ao encontro Cósmica.
do amado, a alma tem de elevar-se. A escada
simboliza, de longa data, a iluminação (9) Chama-se ameia cada um dos arremates
gradual e a comunicação entre a terra e o salientes separados por intervalos regulares,
céu, como em Gênesis, 28,11. No cristianis- construídos na parte superior dos castelos,
mo primitivo, não se conseguia imaginar o das torres e das muralhas que protegiam as
acesso ao Reino dos céus senão em forma de cidades antigas. Vê-se que a alma chegou ao
subida. No decorrer dos tempos, cada doutri- ponto mais elevado de si mesma. Por sua vez,
nador imaginou um número de degraus para brisa amena é vento, símbolo do influxo
a escada mística, correspondentes aos vários espiritual de origem celeste. Como mensa-
graus de perfeição espiritual. A de São João geiro divino, o vento afasta as trevas. Assim
da Cruz tem 10 degraus, enquanto a de como na tradição bíblica, o “sopro de Deus”
Santa Teresa de Ávila, sete. Todas, no entan- animou o primeiro homem, faz surgir, na
to, são desdobramentos das três vias clássicas noite escura, o ser iluminado, o novo homem
da jornada mística – a purificação, a ilumi- produzido pela experiência mística.
nação e a vida unitiva.
(10) Esquecida de si quer dizer que a protago-
(5) É unicamente a luz do amor que conduz nista está com a atenção concentrada somen-
a alma, em meio à escuridão, pois ela não te no Amado que encontrou nas profundezas
dispõe de nada que lhe possa indicar o do seu ser.
caminho em direção ao Amado. Como a
consciência está obscurecida, não há apoiar- (11) Com a consciência expandida, a alma já
se na luz da razão ou de alguma evidência . não tem inquietação alguma, pois tornou-se
Conforme S. João da Cruz, é o amor que faz iluminada e a sabedoria adquirida afasta as
a alma “voar para seu Deus pelo caminho da preocupações do ego. Z
solidão, sem ela saber como e de que maneira”.

(6) Em sendo adiantada, a alma já conhece a * Texto em Português extraído das “Obras
Completas de São João da Cruz”, trad.
Divindade para a qual é atraída. Carmelitas Descalças de Fátima (Portugal) e
do Convento de Santa Teresa (Rio de Janeiro),
2ª Ed., 1988, Petrópolis, Editora Vozes.
(7) Em sítio onde ninguém aparecia, ou seja, o

VERÃO 2010 | O ROSACRUZ 5

Vous aimerez peut-être aussi