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A GUERRA DO PARAÍSO
Gilberto Dimenstein
Não se tinha medo da morte - muitos jagunços até achavam que ela não
existia. E empunharam armas para que a redenção final chegasse. Viria
um novo mundo, sem pecados e sofrimento. Liderados por um morto, o
"monge" José Maria, enfrentaram quase todo o Exército brasileiro. E pela
primeira vez foram usados aviões com fins militares na América Latina.
Miguel Lucena de Boaventura, o "monge" José Maria, foi morto em setembro de 1912, pelas forças militares
comandadas pelo capitão João Gualberto, no primeiro combate com os revoltosos. Mas quase ninguém ficou
triste com a morte do "monge". Em sua profecia, isto estava previsto. Passado um ano de sua partida, voltaria.
Tanto assim que sobre seu corpo foram colocadas apenas algumas pedras. Até 1916, quando essa guerra
santa acabou, o "monge" não tinha voltado.
Falava-se também que a caixa em que o monge João Maria levava as imagens de santos era pesadíssima para
um adulto, mas qualquer criança inocente poderia carregá-la.
"Fazei penitência", conclamava, enquanto descrevia para milhares de sertanejos como seria o cenário do fim do
mundo: o sol ficaria escuro por três dias, as colheitas seriam arrasadas por nuvens de gafanhotos, muitas
cidades desapareceriam. Era preciso rezar; vivia-se sob intenso pecado. Ainda mais na república, que era,
segundo ele, "um regime pervertido". Em 1910, novamente o sertanejo ficou órfão, com a morte do monge João
Maria.
José Maria reinava absoluto. Dava bênçãos, fazia casamentos até de crianças, ouvia confissões. Tinha a
confiança total do povo. Dormia com três virgens que o assessoravam. Quem duvidasse da pureza desse
relacionamento seria sangrado. E as lendas corriam; histórias fantásticas. Diziam que, certa tarde, o céu ficou
encoberto e não havia proteção para todos contra a chuva. O "monge" chamou o povo: "Vem chuva forte. Quem
não estiver perto de mim vai molhar-se". A chuva veio. E quem não estava de seu lado ficou encharcado.
Falava-se até mesmo que, como Jesus Cristo e João Maria, ele andava sobre as águas. Era, enfim, o salvador,
aquele que iria lutar contra as forças do mal.
Morte ao dragão - A devoção era total; Quando contrariado, o "monge" ameaçava ir para os céus e gritava: "Eu
vou voar". Os crentes imploravam para que permanecesse entre eles, agarravam sua roupa. E José Maria
ficava. Não havia limites para a adoração. Um jovem, por exemplo, que pretendia ser um par da França, pediu
ao "monge" que o aceitasse e recebeu a seguinte missão: "Traga cinqüenta orelhas de peludos". A mãe do
jovem intercedeu, propondo que seu filho matasse o "dragão que aterroriza o sertão". José Maria concordou.
O jovem partiu a cavalo. Durante meses, percorreu o sertão á procura do dragão de fogo. Cansado, faminto,
enfim encontrou o rastro do dragão.
Satisfeito, iniciou a derradeira perseguição. À noite, enfim colocou-se diante do animal. O dragão vinha veloz em
sua direção. Ele preparou a espada, firmou-se na sela e lançou-se no escuro: o trem passou por cima de seu
frágil corpo.
Todas essas histórias de fanatismo preocupavam as autoridades da região e do país. O "monge" e sua gente
foram expulsos de Taquarussu e, em pouco tempo, montaram novamente a monarquia em Irani, que ficava ao
sul do Município de Palmas. O Governo do Paraná, suspeitando que José Maria estava a serviço de Santa
Catarina, mandou um destacamento de quatrocentos homens, comandados pelo capitão João Gualberto,
dispersar os fanáticos ou prendê-los. Foi o primeiro combate. João Gualberto morreu. José Maria também. A
primeira parte da profecia estava cumprida. Em um ano, o "monge" voltaria para liderar o advento do império
santo. A república seria abolida e surgiria em todo o mundo a monarquia, que significa a lei de Deus.
Virgem vidente - Menos de um ano, entretanto, foi o prazo para o "monge" manifestar-se. Uma de suas
virgens, Teodora, teve uma visão: José Maria esperava apenas a reorganização de seu exército. Queria a
reedificação do acampamento de Taquarussu. Todos acharam normal a ordem - afinal, Teodora era a virgem
preferida do "monge".
Os pares da França foram novamente ativados e elegeram Manuel, um rapaz de dezoito anos, para comandar o
acampamento, onde milhares de pessoas das redondezas se reuniam, deixando as cidades vizinhas
praticamente vazias. Mas Teodora não convencia como vidente - aliás, mais tarde, ela confessaria que tudo não
passava de uma farsa. Em seu lugar assumiu Manuel, que, diariamente, "se encontrava" com José Maria, a fim
de receber suas ordens. Esperava-se a batalha final. Pelo acampamento, anunciava-se: "Os velhos vão ficar
jovens. Todos vão ser felizes".
Manuel não ficou muito tempo na liderança porque, certa vez, voltou de seu encontro com José Maria trazendo
a seguinte ordem: também deveria dormir com três virgens,' como o "monge", a fim de receber através delas a
mensagem divina. Seriam apenas trinta dias. O povo aceitou. No fim, um escândalo: as jovens haviam sido
seduzidas.
Um garoto de onze anos, Joaquim, assumiu o lugar de Manuel, em quem deu uma surra de marmelo para tirar-
lhe de vez a santidade. Mandou bater em sua avó e pôs o avô de castigo por quinze dias, deitado de bruços.
Disse: "São ordens de José Maria".
O Governo de Santa Catarina ficava cada vez mais preocupado com o crescimento do que já chamavam "vila
santa". Falava-se em subversão contra a república. Foram então enviados duzentos soldados no dia 29 de
dezembro de 1913. Joaquim, que nesse dia ganhara o apelido de "Menino de Deus", comandou pessoalmente a
expulsão dos soldados, que fugiram em pânico. Meses depois, houve novo ataque. E, desta vez, Taquarussu foi
exterminado. Mas tudo havia sido previsto. Joaquim profetizara: "A cidade santa será destruída". E, antes que
os soldados do Governo chegassem, houve uma debandada para outro lugar, Caraguatá, onde foi construído
novo acampamento. Em Taquarussu ficaram oitocentas pessoas, seiscentas das quais eram mulheres e
crianças.
Começa a guerra santa - A partir daí, os jagunços decidiram usar a violência. Em Caraguatá, por exemplo, a
líder espiritual era a virgem Maria Rosa, também chefe militar. Montada em seu cavalo, ia á frente dos jagunços.
Trazia uma espada na cinta e uma espingarda na sela. Muitas flores nos cabelos, um longo vestido branco, até
os pés. Seu cavalo era branco, com arreios de veludo. Tinha apenas quinze anos. Ela liderou as tropas contra
os soldados de Santa Catarina. Causou pavor. Seus homens, ágeis na mata, eram imbatíveis. A essa época já
existiam no Contestado trinta redutos com 6 mil homens armados. As tropas federais entraram em ação. Foi
enviado o general Setembrino de Carvalho à frente de 7 mil homens, o que significava 80% do Exército
brasileiro. Recorreram até mesmo a aviões, chamados pelos jagunços de "gaviões voadores". A violência
explodiu no Contestado. A virgem Maria Rosa mandou "limpar" as cidades vizinhas a fim de purificar o ambiente
para a volta do "monge". Então os jagunços passaram a saquear e matar sertanejos pacíficos. Os soldados
davam cabo do que sobrava: violavam mulheres, atacavam casas. Outro líder, Deodato, também conhecido por
"São Joaquim das Palmas", era o mais cruel: chegava a desenterrar os corpos dos inimigos, pois acreditava que
assim sua alma não iria para o céu. Diziam que matava o marido e, se a esposa chorava, matava também a
mulher.
Mesmo enfrentando
dificuldades, o Governo foi
acabando com os redutos.
Sobrou um, o de Santa Maria,
que, depois de alguns meses,
também não resistiu. Havia um
adversário mais forte que as
armas: a falta de comida, além
das doenças. Deodato eliminava
muitos companheiros, para
diminuir o número de bocas a
alimentar. Certo dia, conta-se,
uma menina pediu-lhe um
pedaço de carne. Deodato deu,
mas disse-lhe que não contasse
a ninguém. Ela trouxe uma amiga para pedir um pouco de comida. Deodato mandou que ficassem de costas e
juntas, para ver qual era a mais alta. Com um tiro só, matou as duas.
Em meio ao tifo, os homens disputavam qualquer alimento. Brigavam por um pedaço de tripa. Disputavam até o
couro dos arreios que, assado, devoravam com prazer. Nas ruas, mulheres, velhos e crianças morriam com
febre. Nos campos de batalha, os homens eram mortos a facadas, a tiros e na explosão de bombas. Eles talvez
não se surpreendessem com a tragédia - todos esperavam o fim do mundo. O momento havia chegado. O final,
porém, deveria ser outro: os anjos não vieram socorrê-los e as "forças do mal" venceram.