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Pelas cinco horas duma tarde invernosa de outubro, certo viajante entrou em
Corgos, a pé, depois da árdua jornada que o trouxera da aldeia do Montouro, por
maus caminhos, ao pavimento calcetado e seguro da vila; um homem gordo,
baixo, de passo molengão; samarra com gola de raposa; chapéu escuro, de aba
larga, ao velho uso; a camisa apertada, sem gravata, não desfazia no esmero geral
visível em tudo, das mãos limpas à barba bem escanhoada; é verdade que as botas
vinham de todo enlameadas, mas via-se que não era hábito do viajante andar por
barrocais; preocupava-o a terriça, batia os pés com impaciência no empedrado.
Tinha o seu quê de invulgar, o peso do tronco roliço arqueava-lhe as pernas e
fazia-o bambolear a cada passo. Via-se também que não era grande caminhante, a
respiração alterosa dificultava-lhe a marcha, mas galgara com coragem duas
léguas de barrancos, lama e invernia. Grave assunto trouxera decerto, penando
nos atalhos gandareses, por aquele tempo desabrido.
(Oliveira, 1971, 7-8)
4.1.
Burguesia x Aristocracia: O casal Silvestre e sua colméia de
contrastes
partir desse momento, se coloca à parte. Mesmo onisciente, parece, por vezes, não
mais existir, dando espaço e voz aos pensamentos e diálogos nos capítulos que se
seguem. É uma estratégia do autor para dar verossimilhança ao ambiente de
opressão no qual está submerso o casal de personagens.
Após o casal sair da comarca e se colocar a caminho de casa, é dado início
a interiorização de D. Maria dos prazeres. Aqui, o autor dá vazão ao psicológico
da personagem, são demonstrados os seus pensamentos mais íntimos e, assim, são
elucidadas as relações conflitantes entre ela e o marido, e também seus desejos
pelo cunhado e pelo cocheiro da família, como podemos ilustrar com os exemplos
que se seguem:
momento em que ela fita o cocheiro, dá-se um corte na narrativa e tem-se uma
volta ao passado a partir das rememorações de Maria dos Prazeres. Confusa, num
turbilhão de pensamentos, vêm a lembrança triste da infância, de quando a ruína
chegara à casa de sua família. Foram-se os móveis, as terras, as jóias, o dinheiro,
tudo, até a própria Maria, que se recorda:
A ruína entrou na casa de Alva: dinheiro, terras, móveis, levados pela voragem;
lustres arrancados dos tectos (começou-se a seroar-se à luz de pobres lamparinas);
velhas arcas de madeira olorosa e pesadas de belos linhos, reposteiros,
cadeirinhas graciosas forradas a damasco, armários de talha, guarda-loiças de
cristais finíssimos, camas torneadas, deu o sumiço em tudo; desapareceram os
quadros das paredes, a prata dos talheres; a dona da casa arrancou as jóias do
colo, os anéis dos dedos; venderam-se espingardas de caça, galgos, cavalos,
traquitantas, relíquias de nebulosos tempos como aquele punhal antigo cravejado
de diamantes; e quando ela fez dezoito anos, o pai fidalgo, que era Pessoa, Alva e
Sancho, descendente de um coudel-mor, de um guerreiro das Linhas de Elvas e
primo do Bispo missionário de Cochim, negociou o casamento da filha com os
Silvestres do Montouro, lavradores e comerciantes: sangue por dinheiro (a
fraqueza dum homem sem alternativa); assim seja, concordou o pai de Álvaro
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de zaragata em arruaça, de gorra com uma camponesa hoje ou com a filha dum
armazenista de Corgos amanhã, ouço-o ainda, dum atrevimento a roçar pela
grosseria, quando eu e o Álvaro chegámos da viagem de núpcias: bela coisa,
mano, vê-se pela cara. Perdoava-lhe agora perturbada pela confusa alegria que a
notícia do regresso inesperado lhe dera.
(Oliveira, 1971, 33-34)
[que] temia a natureza, a chuva, o sol, o mar, o vento, ignorava as flores que
irrompem os estrumes, e a própria vida humana, as relações sociais, os pequenos
equívocos da convivência, as conversas mais acaloradas assustavam-na”
(Oliveira, 1971, 59- 60).
A rotina asfixiada de D. Cláudia, minuciosamente relatada pelo narrador,
difere em praticamente todos os aspectos da vida do noivo, o Dr. Neto:
Atacado até o pescoço na vida do Montouro, sabia bem o que custava uma espiga
de milho, aos homens e à terra, conhecia as escuras germinações de um girassol
ou de uma rosa porque ele próprio os plantava para as suas abelhas (cortiços e
colméias enchiam-lhe o quintal), seguia desveladamente o trabalho e o sono dos
bichos sábios comedores de pólen (como ele dizia), simbolizava no doce destilar
dos favos o que a Vida, a Natureza, Deus ou lá o que era, podia arrancar de belo e
saboroso ao tempo, uma filosofia nascida de três ou quatro jeiras de quintal,
assente em realidades vivas, botânicas e animais, porque o Dr. Neto amava a
realidade e só daí é que partia para as abstrações, simbologias camponesas em
que o mel, por exemplo, quase alcançava o teor da suma perfeição.
(Oliveira, 1971, 60-61)
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Talvez as palavras se fizessem ouvir mais tempo do que o necessário. Tanto pior.
Abrira-se nele um cachoar de coisas recalcadas e entregou-se à força da corrente:
– Para saberes que me fartei de nobrezas, de brasões, de parvoíces.
Vendo-se espedaçado no meiple, endireitou o corpo, procurou uma posição mais
digna:
– Muito conde, muita léria, mas há vinte anos que me comes as sopas. Quando
houve fome no palácio, foi aqui que a vieste matar, com a família atrás. E vinham
todos mais humildes, vinham humildes, vinham quase de rastos. Nesse tempo o
que a prosápia queria era broa.
Tornou a passar-lhe o amoníaco pelo nariz e declarou na sua voz um pouco
velada:
– Havia em Alva um cocheiro que falava mais ou menos assim e certo dia o meu
pai não teve outro remédio senão chicoteá-lo.
O rosto dela, espantosamente pálido, abria um fulgor ácido na penumbra da sala:
– Mas não tenhas medo, Silvestre, podes insultar-me à vontade. Os mortos não
empunham chicotes.
Não? Os retratos dos nobres Pessoas pendem solenes das paredes do escritório.
Olhe para eles, D. Maria dos Prazeres. Os mortos estão dentro desta sala e com
um chicote implacável. O orgulho dos velhos senhores, as carrancas severas, o pó
das calendas, as tretas do costume. O seu marido tem de destruir os mortos. De
tentar, pelo menos. Que outra coisa pode ele fazer? Deixe-o experimentar. Ou eu
me engano muito ou vai sair-se mal. Ora repare.
Ergueu-se com dificuldade e apanhando pela sala tudo o que lhe veio à mão
procurou dar cabo dos retratos, numa fúria trêmula de bêbado. Pois ali tinham os
Alvas, os Pessoas, os Sanchos, livros e garrafas nas trombas, copos e tinteiros nas
fuças, jarras, cinzeiros, lixaria nas ventas. Vidros estilhaçados acordavam um som
agudo pela sombra, coisas pesadas tombavam surdamente no tapete.
– Os cocheiros estão fartos, caramba.
Um arremesso mais violento fê-lo perder o equilíbrio. Rodou ser si mesmo, deu
alguns passos desastrados, e afundou-se de cabeça no meiple.
De cabeça, D. Maria dos Prazeres. Que lhe dizia eu?
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O diálogo supracitado demonstra que não é só Maria dos Prazeres que vive
a infelicidade de um casamento de conveniência, o marido compartilha do mesmo
sentimento. As discussões entre ambos são sempre grandiosas, por mais que
retruque a fala da mulher, Silvestre, bêbado ou não vive num constante estado de
entorpecimento. “Destituído de passado (histórico) e incapaz de perspectivar outro
futuro que não seja a morte obsidiante, Álvaro desliza naturalmente para a
alienação (que também é uma forma social e histórica de esterilidade)” (Reis,
1983, 596).
A esterilidade da qual fala Reis, não corresponde somente à ausência de
filhos na vida do casal, mas, principalmente ao vazio dessa relação, à falta de
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perspectivas entre ambos, e ao ambiente sufocante no qual estão inseridos. Por ser
D. Maria dos Prazeres quem, na maioria das vezes, toma as rédeas das situações,
temos a noção de que nesse núcleo a “luta de classes” não se dá entre pobres x
ricos, mas entre aristocracia x burguesia. De acordo com Maria Alzira Seixo,
ouve uma conversa que parece lhe despertar do torpor em que se encontrava.
Assim, outro tipo de opressão terá lugar nessa segunda parte do enredo.
O casal de namorados faz planos de casamento, pois a moça engravidara.
No meio do diálogo Silvestre e surpreendido pela fala de Jacinto (o cocheiro) que
menciona as “olhadelas” de D. Maria dos Prazeres:
Por ter ido embora, Silvestre não ouve a continuação do diálogo, Jacinto,
certa hora, menciona a vida dos patrões: “O lavrador Silvestre, que não chega para
a mulher, que nem um filho se lhe atreveu a fazer. Nem um filho, caramba”
(Oliveira, 1971, 103).
4.2.
Fel x mel: A opressão que atinge a colméia produtiva
– Eu bem o preveni que o golpe ia doer. A vida dá-nos grandes pares de coices.
Agora é arribar. E lembre-se que dívidas destas importam muito mais que meia
dúzia de patacos fiados na mercearia. Os patacos podem esperar. Dívidas destas é
que não. A mim, pagavam-mas depressa e com língua de palmo.
(Oliveira, 1971, 126)
Mas agora, que o moço emergia do letargo em que viera, meio cobiçoso, meio
atormentado, a insistência do cego batia-lhe no coração como a chuva no mar,
inútilmente, por que o sentimento de ter vendido a alma, que o lacerara toda a
viagem, começava a desvanecer-se com a certeza de que o ruivo ainda vivia: não
e não, mestre António, estou farto de aguentar essa loucura cheia de água, a
escuridão, o moer da consciência.
(Oliveira, 1971, 136)
Mas Marcelo volta e, acreditando que ainda teria a mão de Clara, desfere o
golpe final:
da comarca.
Nesse romance, a imagem da chuva surge como a identificação dos pontos
em que a ação da narrativa chega ao ápice da opressão, pois “a água feita chuva
insere-se num cenário atmosférico eminentemente agressivo; é a tempestade (e
com ela a chuva) que acompanha os episódios marcados por uma conflituosidade
mais notória” (Reis, 1983, 627).
No caso específico do crime, ela também provoca o sentimento de aflição
no leitor, pois, apesar de o plano parecer impraticável, não é possível prever se
eles conseguirão alcançar o objetivo em meio à tempestade. Assim, a angústia só
termina no momento em que se tem conhecimento de que os esforços do oleiro e
de Marcelo para se livrarem do corpo, de nada adiantaram. Ambos foram presos, e
uma multidão seguiu com o regedor até a casa dos Silvestres para dar-lhes a
notícia.
O ambiente de opressão que Silvestre criara pareceu ter acabado, mas,
outras situações ainda advêm como conseqüências da morte do cocheiro. Uma
delas é o fato de parte do núcleo harmônico da narrativa – o de Jacinto e Clara,
que apesar de desprovidos de recursos financeiros, representam a fecundidade e a
harmonia, uma colméia produtiva que contrasta diretamente com a dos Silvestres
– começar a ruir após o assassinato.
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4.3.
A rainha que destila fel
– Não te matam, descansa, posso lá ter tamanha sorte; hei-de aturar-te até ao fim
da vida, até que Deus me leve deste inferno que é a tua casa. Tenho nojo de ti,
nojo, entendeste bem? Que te admiras tu que eu sonhe?, sonhos sobre sonhos,
sempre, para esquecer a tua cama e o pão da tua mesa. O que nunca supus foi tê-
lo dado a perceber e agora, mesmo depois de morto, odeio esse maldito ruivo,
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talvez te sirva de consolo, odeio-o, por ter dado conta do que era só comigo, tão
íntimo, que o esconderia a mim própria se pudesse.
(Oliveira, 1971, 145)
Maria dos Prazeres caracteriza-se pela vontade firme (é ela quem dá ordens, é ela
quem, nas seqüências da crise – a viagem a Corgos, o reconhecimento do seu
amor por Jacinto, o tumulto popular no seguimento do crime –, promove a função
terminal nos termos da estabilização [...]), mas não consegue a satisfação do
desejo.
(Seixo, 1986, 95)
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padre muito mais encovados, a cana do nariz mais torta e luzidia; as bochechas da
D. Violante inchadas como se tivesse a boca cheia de ar; uma recôndita
sensualidade nos lábios de D. Maria dos Prazeres; a palidez de Álvaro Silvestre a
resvalar num amarelo de cidra e idiotia. A D. Cláudia, não: incorruptível, pura, a
mesma; não lhe toca o lume (nem a sombra) que os deforma e se ela, alma de mel
translúcido, escapa ao sortilégio é que a alma dos outros não tem a mesma
transparência.
(Oliveira, 1971, 181)
A única das abelhas que participam dos serões na casa dos Silvestres e que
foge ao estigma da colméia apodrecida é D. Cláudia. Essa personagem aparece
desde o primeiro serão como reclusa em si, alheia ao mundo a sua volta por medo
e insegurança. De acordo com Maria Alzira Seixo:
Antes de mais, convém notar, afinal, que D. Cláudia nunca intervém: senhora
reclusa, canalizada para os bordados de paisagens idealistas, não olha a realidade
exterior; está preservada. Está presente mas não participa nas conversas de serão;
é uma ausência que não se nota pois ocupa o seu lugar. Dela só sabemos o q o
Dr. Neto nos diz. O Dr. Neto, o cientista, o homem eu criava abelhas que lhe
davam mel, e flores que alimentavam as abelhas. Este plano de criação, para ele
perfeito, temia vê-lo corrompido por outro tipo de criação – a união com D.
Cláudia, sujeita a descendência degenerada. [...] O mel é, portanto, pare ele, no
afã da criação representado pelas abelhas, a suma perfeição. Ora no segundo
serão do romance entretém-se a observar as personagens que o cercam à luz da
deformação que o fogo provoca nas respectivas fisionomias e vai-lhes
descobrindo os tiques específicos que farão compreender o processo de criação a
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4.4.
Uma rainha levada pela chuva
A citação acima pode ser relacionada com a última reflexão do Dr. Neto:
Por hábito, lançou os olhos às colméias, que lhe ficavam mesmo em frente, dez
ou doze metros, se tanto, e viu uma abelha voar da Cidade Verde. Baptizava as
colméias conforme a cor de que as pintara, Cidade Verde, Cidade Azul, Cidade
Roxa. A abelha foi apanhada pela chuva: vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro
a enredá-la, golpes de vento a ferirem-lhe o vôo. Deu com as asas em terra e uma
bátega mais forte espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a
voragem acabou por levá-la com as folhas mortas.”
(Oliveira, 1971, 192)