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P S I C O S S O C I O L O G I A - a n á l i s e s o c i a l e i n t e r v e n ç ã o - A n d r é L é v y, A n d r é N i c o l a ï , E u g è n e E n r i q u e z , J e a n D u b o s t

sagrados e certezas, relações de Este livro é de interesse para


poder e de autoridade foram Marília Novais da Mata Machado - Eliana de Moura Castro
os estudiosos das Ciências Hu-
analisados. José Newton Garcia de Araújo - Sonia Roedel (orgs.)
manas e Sociais em geral, tanto
Os autores, organizadores e para os que se dedicam à refle-
colaboradoras estão ligados por xão teórica, quanto para os que
um acordo de cooperação fran- praticam a Psicologia, a Sociolo-
co-brasileiro. Os franceses – gia, a Economia, a Psicanálise, a
Jean Dubost, Eugène Enriquez, “Quais são os problemas realmente essenciais, na atu- Educação, o Direito, a Adminis-
André Lévy e André Nicolaï – tração e a Política. Nele, psicólo-
alidade? Aos olhos do psicossociólogo, os mais impor-
são nomes consagrados em seu gos, sociólogos e um economis-
país. Seus textos foram selecio- tantes entre eles parecem ser o crescimento do indivi- ta interrogam suas áreas especí-
nados, apresentados e comen- dualismo, os ‘intemináveis adolescentes’, o triunfo da ficas e, sobretudo, a "transdisci-
tados por psicossociólogos bra- plina" que os congrega, a Psicos-
sileiros – Marília Novais da Mata racionalidade experimental, a busca desenfreada pelo
sociologia.
Machado, Sonia Roedel, José êxito econômico e financeiro e, finalmente, o recru- É apresentado, no livro, o es-
Newton Garcia de Araújo, Elia- boço de uma teoria original do
na de Moura Castro, Teresa descimento do ‘narcisismo das pequenas diferenças’
socius, da organização e do fun-
Cristina Carreteiro e Regina D. que acarreta as disputas inevitáveis entre as nações, et- cionamento social, feita a partir
B. de Barros. da análise social. Essa construção
nias, grupos religiosos etc. É certo que a Psicossociolo-
teórica foi inspirada e se funda-

análise social e intervenção


gia não tem poder para tratar dessas questões no âm-
Marília Novais da Mata
mentou em práticas sociais rea-
PSICOSSOCIOLOGIA
Machado é doutora em
bito da sociedade global, mas ela pode auxiliar os ato- lizadas em situações concretas,
reais: a "intervenção psicossocio-
Psicologia Social e
res e os autores sociais ou os sujeitos que querem ino-
lógica", dispositivo de consulta e
pesquisadora do LAPIP- var e criar novas modalidades sociais”. pesquisa, cuja história é aqui re-

André Lévy
FUNREI/FAPEMIG. vista e avaliada. A reflexão foi

André Nicolaï
fortemente influenciada pela Psi-
Eliana de Moura Castro canálise, mas também pelo pen-

Eugène Enriquez
samento filosófico que aponta

Jean Dubost
é doutora em Psicanálise e
para as representações imaginá-
professora aposentada da
rias do social e, recentemente,
UFMG.
pela sociologia da ação. Como

José Newton Garcia


conseqüência, aproximou-se do

de Araújo é doutor em
conhecimento da natureza do
vínculo que congrega os indiví-
Psicologia Social e Clínica ISBN 978-85-7526-022-7 duos, de um saber a respeito
e professor da PUC Minas. das mudanças e rupturas da di-

Sonia Roedel é mestre


nâmica social e da descoberta
9 788 575 26 022 7 do processo de criação institucio-
em Psicologia Social e nal; teoria e prática foram estrei-
www.autenticaeditora.com.br
professora da UFMG. tamente unidas; mitos, ideologias,
0800 2831322
Psicossociologia
Análise social e intervenção
André Lévy
André Nicolaï
Eugène Enriquez
Jean Dubost

ORGANIZADORES
Marília Novais da Mata Machado
Eliana de Moura Castro
José Newton Garcia de Araújo
Sonia Roedel

COLABORADORAS:
Regina D.B. de Barros
Teresa Cristina Carreteiro

Psicossociologia
Análise social e intervenção

Belo Horizonte
2001
Copyright © 2001 by Os Organizadores

Primeira edição publicada pela


Editora Vozes (Petrópolis/RJ), em 1994.

Capa
Jairo Alvarenga Lage
Editoração eletrônica
Waldênia Alvarenga Santos Ataide
Revisão de textos
Erick Ramalho
Editora responsável
Rejane Dias

P974 Psicossociologia; análise social e intervenção /


André Lévy et al.; organizado e traduzido por
Marília Novais da Mata Machado et al. – Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.
264p.

ISBN 85-7526-022-7

1.Psicologia social. 2. Levy, André. 3. Machado,


Marília Novais da Mata. I. Título.

CDU 316.6

2001

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.


Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja
por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica,
sem a autorização prévia da editora.

Autêntica Editora
Rua Januária, 437 – Floresta
31110-060 – Belo Horizonte – MG
PABX: (55 31) 3423 3022
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e-mail: autentica@autenticaeditora.com.br
SUMÁRIO

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO


Marília Novais da Mata Machado, Eliana de Moura Castro,
José Newton Garcia de Araújo e Sonia Roedel........................................... 07
PREFÁCIO
Marília Novais da Mata Machado e Sonia Roedel...................................... 09

Parte I – Análise social


ANÁLISE SOCIAL E SUBJETIVIDADE
Eliana de Moura Castro e José Newton Garcia de Araújo............................ 17

O PAPEL DO SUJEITO HUMANO NA DINÂMICA SOCIAL


Eugène Enriquez.......................................................................................... 27

A INTERIORIDADE ESTÁ ACABANDO?


Eugène Enriquez.......................................................................................... 45

O VÍNCULO GRUPAL
Eugène Enriquez.......................................................................................... 61

O FANATISMO RELIGIOSO E POLÍTICO


Eugène Enriquez.......................................................................................... 75

CONJUNÇÃO, NA EMPRESA, DE UM PROJETO PESSOAL E FAMILIAR, COM


A HISTÓRIA DE UMA REGIÃO: O PROCESSO DE CRIAÇÃO INSTITUCIONAL
André Lévy................................................................................................... 91

Parte II – A psicossociologia em exame


PSICOSSOCIOLOGIA EM EXAME
Teresa Cristina Carreteiro............................................................................. 107

A PSICOSSOCIOLOGIA: CRISE OU RENOVAÇÃO?


André Lévy................................................................................................... 109

A MUDANÇA: ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO


André Lévy................................................................................................... 121
Psicossociologia – Análise social e intervenção

RUPTURAS, MUTAÇÕES E COMPLEXIFICAÇÃO EM ECONOMIA


André Nicolaï............................................................................................... 133

IDENTIFICAÇÕES EXPERIMENTAIS E INOVAÇÕES SOCIAIS


André Nicolaï............................................................................................... 143

Parte III – Intervenção psicossociológica


INTERVENÇÃO PSICOSSOCIOLÓGICA
Regina D. Benevides de Barros..................................................................... 165
NOTAS SOBRE A ORIGEM E EVOLUÇÃO DE UMA
PRÁTICA DE INTERVENÇÃO PSICOSSOCIOLÓGICA
Jean Dubost................................................................................................... 171
INTERVENÇÃO COMO PROCESSO
André Lévy................................................................................................... 185
DA FORMAÇÃO E DA INTERVENÇÃO PSICOSSOCIOLÓGICAS
Eugène Enriquez........................................................................................... 211
AS ORIGENS TÉCNICAS DA INTERVENÇÃO
PSICOSSOCIOLÓGICA E ALGUMAS QUESTÕES ATUAIS
Jean Dubost.................................................................................................. 237

6
PREFÁCIOÀSEGUNDAEDIÇÃO

É com grande satisfação que vemos este livro chegar à sua segunda
edição. A coletânea de textos que o compõem interroga e constrói a psi-
cossociologia, esta transdisciplina simultaneamente teórica e prática, hoje,
bem conhecida e divulgada no Brasil.
Desde a primeira edição, o campo da psicossociologia cresceu. A sua
perspectiva clínica ganhou espaço, principalmente em suas vertentes so-
ciológica e psicossocial. A psicanálise seguiu sendo uma das principais
teorias inspiradoras, mas novas e originais elaborações teóricas foram de-
senvolvidas. À metodologia de intervenções/pesquisas, cada vez mais uti-
lizada, juntou-se o levantamento e análise de histórias de vida, esclarece-
doras dos processos de criação do social. O fortalecimento do CIRFIP –
Centro Internacional de Pesquisa, Formação e Intervenção Psicossocioló-
gica – acompanhou todo esse vigor teórico, prático e metodológico.
Por tudo isso, este livro, fruto do trabalho de psicólogos, sociólogos e
um economista, tornou-se ainda mais importante, pois apresenta justa-
mente os fundamentos e a história dessa disciplina que se fortalece: esbo-
ça uma teoria do socius, da organização e do funcionamento social, feita à
partir de análises sociais de práticas realizadas em situações concretas,
reais, por meio da “intervenção psicossociológica”, dispositivo de con-
sulta e pesquisa, cuja história é nele revista e avaliada.
Assim, tal como no momento da primeira edição, o livro continua
sendo de interesse para os estudiosos das ciências humanas e sociais em
geral, tanto para os que se dedicam à reflexão teórica, quanto para os que
praticam a psicologia, a sociologia, a economia, a psicanálise, a educa-
ção, o direito, a administração e a política.

Junho de 2001
Os organizadores

7
Psicossociologia – Análise social e intervenção

8
PREFÁCIO

A Psicossociologia é uma vertente da Psicologia Social. Seu campo é


bem delimitado: é o dos grupos, das organizações e das comunidades,
considerados como conjuntos concretos que mediam a vida pessoal dos
indivíduos e são por esses criados, geridos e transformados. Portanto, as
condutas concretas dos indivíduos, grupos, organizações e comunida-
des, no quadro da vida cotidiana, são o objeto de pesquisa, reflexão e
análise dessa disciplina.
A ênfase à concretitude foi o divisor de águas que estabeleceu a especi-
ficidade da Psicossociologia frente à Psicologia Social e que se refletiu na
diversificação das metodologias inicialmente utilizadas: enquanto a Psico-
logia Social, freqüentemente através de experimentos, dedicou-se ao estudo
de sujeitos abstratos, isto é, dissociados de seu papel social real de sujeitos
concretos, a Psicossociologia interessou-se pelo estudo de sujeitos em situ-
ações cotidianas, em seus grupos, organizações e comunidades, empre-
gando para tanto, inicialmente, a metodologia de pesquisa-ação.
A partir dos anos 50, os psicossociólogos criaram a intervenção psicos-
sociológica, relação de colaboração na qual os problemas são prioritários
com relação aos métodos. Em conseqüência, abandonaram totalmente
uma certa prática de pesquisa-ação que estudava grupos artificiais e,
igualmente, excluíram os métodos nos quais as decisões eram tomadas
de maneira unilateral pelo pesquisador. Passaram a se preocupar, em
especial, com as instâncias de mudança, nas quais o psicossociólogo
tinha o papel de um pesquisador-interventor, respondendo a uma de-
manda e adotando uma posição de analista. Por meio dessa abordagem,
o pesquisador-prático, por sua presença, fez aparecerem certos proble-
mas, permitiu que um novo tipo de discurso fosse enunciado, que condu-
tas, até então desconhecidas, se revelassem. Atuando diretamente na vida
dos grupos, ele teve acesso aos processos conscientes e inconscientes que
aí atuavam e às condutas lingüísticas que as pessoas realizavam.

9
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Entretanto, se foi esse vínculo estreito entre pesquisa e ação que ca-
racterizou a Psicossociologia dos anos 50, 60 e 70, hoje ela se renova,
adquire um sabor de novidade, retirando sua originalidade sobretudo de
sua construção teórica. A partir da análise social instaurada com a inter-
venção psicossociológica, é formulada uma teoria, sempre inacabada, do
socius, da organização e do funcionamento social. Paulatinamente, che-
ga-se ao conhecimento e à explicação da natureza do vínculo que congre-
ga os indivíduos, de onde e como surge a dinâmica social, com suas
mudanças e rupturas, e do processo de criação institucional. Teoria e
prática se confundem nessa tarefa, pois a teorização é fruto da reflexão
que, a partir de eventos da vida cotidiana e de intervenções psicossocioló-
gicas, torna visível a presença do sujeito social.
Ora, contra esse pano de fundo, pouco a pouco tecido, a Psicosso-
ciologia redescobre sujeitos pulsionais, fortemente movidos por sentimen-
tos ambivalentes de amor e ódio, mobilizados por ilusões e crenças, dis-
putando tanto mais com seu semelhante quanto mais iguais figurem ser,
idealizando e buscando destruir seus chefes, irmãos apenas no complô
contra os que são representados como diferentes. Reencontra indivíduos
que caem facilmente no fanatismo, no “narcisismo das pequenas dife-
renças” (FREUD), na crença exacerbada em valores estimados como
transcendentes, buscando certezas através das quais vão abrandar seus
sentimentos de desamparo e impotência. Porém, encontra também su-
jeitos capazes de saírem desse “imaginário enganoso”, nos termos de E.
ENRIQUEZ, e serem criadores da história, aptos a um “imaginário
motor”, sujeitos que, por um ato de decisão, que é também um ato de
palavra, são capazes de realizar “esse obscuro objeto do desejo”, a
mudança social (A. LÉVY), sujeitos que são verdadeiros autores e ato-
res, mesmo que involuntariamente, de transformações nos sistemas
sociais (A. NICOLAÏ), sujeitos capazes de serem autônomos, podendo
se tornar os principais agentes de suas próprias evoluções e das de
seus grupos e organizações (J. DUBOST).
Ao lado do reconhecimento de uma ordem social marcada pela luta
de todos contra todos, do trabalho da pulsão de morte, dos desejos de
onipotência e dominação, foi possível também constatar o trabalho da
pulsão de vida, da sublimação e de um imaginário que facilitariam a
solidariedade entre os homens.
É essa trajetória teórica que se pretende apresentar neste livro, no
qual um convite à análise e à reflexão é repetido em cada texto, já sendo
a priori evidente que a opacidade do social não será eliminada, que a
análise talvez pouco abale uma instituição que se imagina estável, que

10
Prefácio

o exame minucioso de todo grupo, toda organização e toda comunida-


de pode ser indefinidamente continuado. Mas nada impede a reflexão
e a análise a respeito dos valores, normas e formas de pensar o mundo
que orientam os diversos atores sociais, a respeito das suas representa-
ções historicamente constituídas, de seus desejos de afirmação narcísi-
ca e de reconhecimento, de suas fantasias de onipotência, de suas de-
mandas de amor e proteção. Assim, nestas páginas, são analisados mitos
tão diferentes como o da sociedade transparente, o da qualidade total e
o do corpo passível de ser eternamente jovem; são analisadas novas
ideologias, assim como novos sagrados e certezas, relações de poder e
autoridade, práticas de intervenção mitificadas; é analisada, enfim, a
condição de construção da vida social, o desenvolvimento de um pro-
cesso organizacional.
Para essa reflexão “desmistificadora e desmitificadora” (E. ENRI-
QUEZ) não se lança mão apenas da Psicanálise, mas também de outras
referências. Assim, o pensamento filosófico de C. CASTORIADIS, apon-
tando para as representações imaginárias do social e para questões refe-
rentes à autonomia e à heteronomia, está presente em quase todos os
textos, assim como, aqui e ali, os conceitos recentemente formulados nas
ciências “duras”, como sistemas dinâmicos, autopoieses, estruturas dissi-
pativas, auto-organização e complexificação a partir do ruído. Os textos
são permeados pela Sociologia da Ação de A. TOURAINE que, conside-
rando a sociedade como um conjunto hierarquizado de sistemas de ação,
convida a nomear e a analisar novas práticas sociais e novas formas de
ação coletiva, formadoras das sociedades atuais e futuras, e ressalta as
mudanças preparadas por grupos pertencentes a movimentos sociais.
Essa teoria fundamenta inclusive a crítica a uma Sociologia abstrata, que
pensa em termos de sistemas e de modos de produção, formuladora de
grandes quadros teóricos mas, entretanto, distanciada das situações con-
cretas reais onde se dão os fatos sociais.
Os autores – Jean DUBOST, Eugène ENRIQUEZ, André LÉVY e André
NICOLAÏ –, nomes consagrados na França mas ainda pouco conhecidos
dos leitores brasileiros, são apresentados nesse livro por Marília N. da
MATA-MACHADO, Sonia ROEDEL, José Newton G. de ARAÚJO, Eliana
de Moura CASTRO, Teresa Cristina CARRETEIRO e Regina D. B. de
BARROS. O que reúne essa equipe é seu interesse pela área das Ciências
Humanas e a perspectiva transdisciplinar com a qual abordam não
apenas suas disciplinas específicas – Psicologia Social (R. BARROS, T.
CARRETEIRO, J. DUBOST, A. LÉVY, M. MATA-MACHADO), Psicolo-
gia Clínica (J. ARAÚJO, E. CASTRO, S. ROEDEL), Sociologia, Política,

11
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Direito (E. ENRIQUEZ) e Economia (A. NICOLAÏ) – mas, especialmente,


a disciplina que os congrega, a Psicossociologia. Além desse território de
pesquisa, todos esses intelectuais têm em comum o fato de trabalharem
em universidades – Universidade de Paris VII (E. ENRIQUEZ), Paris X
(J. DUBOST, A. NICOLAÏ), Paris XIII (A. LÉVY), FUNREI – Fundação de
Ensino Superior de São João del Rei (S. ROEDEL), UFF – Universidade
Federal Fluminense (R. BARROS, T. CARRETEIRO), UFMG – Universi-
dade Federal de Minas Gerais (J. ARAÚJO, E. CASTRO, M. MATA-
MACHADO); a maior parte dos brasileiros tem o título de doutor por
universidades francesas (Paris VII: J. ARAÚJO, T. CARRETEIRO – Psi-
cologia Clínica – e E. CASTRO – Psicanálise; Paris XIII: M. MATA-MA-
CHADO – Psicologia Social). Os membros dessa equipe estão formal-
mente ligados através de convênio de intercâmbio científico patrocinado,
no Brasil, pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Ensino Superior) e, na França, pelo COFECUB ( Comité Français
d’Evaluation de la Coopération Universitaire avec le Brésil).
Inicialmente, a seleção dos artigos aqui apresentados foi feita por
M. MATA-MACHADO e S. ROEDEL, a partir do exame de uma centena
de textos, muitos dos quais trazidos pela equipe francesa, em função do
mencionado convênio. Foi feita uma primeira escolha de 14 artigos que
seriam distribuídos em quatro partes. Essa primeira proposta, estudada
tanto pela equipe francesa quanto pela brasileira (que compreende outros
membros além dos organizadores e colaboradores), sofreu modificações,
resultando em treze textos, distribuídos em três partes, mantidos entre-
tanto os critérios da primeira seleção, feita em novembro de 1991:
- Foram escolhidos, primeiramente, textos recentes, cobrindo questões
atuais, mostrando a situação da evolução do pensamento teórico dos auto-
res. Assim, mais da metade dos artigos apresentados neste livro foi publi-
cada depois de 1989: “O papel do sujeito humano na dinâmica social” – E.
ENRIQUEZ, 1991; “A interioridade está acabando? – E. ENRIQUEZ, 1989;
“O fanatismo religioso e político” – E. ENRIQUEZ, 1990-1; “A Psicossoci-
ologia: crise ou renovação? – A. LÉVY, 1990; “identificações experimentais
e inovações sociais” – A. NICOLAÏ, 1990-1. Dois deles eram inéditos no
momento da seleção: “Conjunção, na empresa, de um projeto pessoal e
familiar, com a história de uma região: o processo de criação institucional”
– A. LÉVY (mimeogr.); “Rupturas, mutações e complexificação em econo-
mia” – A. NICOLAÏ (mimeogr.).
- Em segundo lugar, julgou-se indispensável incluir dois textos – “O
vínculo grupal” (E. ENRIQUEZ) e “A mudança: esse obscuro objeto do

12
Prefácio

desejo” (A. LÉVY) – uma vez que marcam um ponto de transição teórica na
forma de conceber, respectivamente, o grupo e a questão da mudança.
- Em terceiro lugar, optou-se por uma seqüência de textos de caráter
histórico, alguns mostrando a evolução do pensamento psicossociológico
(“A respeito da formação e da intervenção psicossociológicas” – E. EN-
RIQUEZ, 1976; “Notas sobre a origem e evolução de uma prática de
intervenção psicossociológica” – J. DUBOST, 1980; “Intervenção como
processo” – A. LÉVY, 1980) e um texto que faz uma retrospectiva desse
pensamento, contrapondo as origens a temas recentes (“As origens
técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais” –
J. DUBOST, 1987).
Esses artigos foram organizados em três grupos que correspondem
às três partes do livro. A primeira – Análise Social – apresenta a constru-
ção teórica feita na disciplina. A segunda – Psicossociologia em Exame –
é uma avaliação crítica da evolução da área e, finalmente, a terceira –
Intervenção Psicossociológica –, além de ser uma parte de retrospectiva
histórica, apresenta a intervenção, esse dispositivo de consulta e pesquisa
que fundamentou e inspirou a construção teórica.
Todas as traduções foram feitas por professores universitários ou
por estudiosos ligados, em maior ou menor grau, à Psicossociologia e
à Psicanálise. Seus nomes aparecem, em cada texto, na primeira nota
de rodapé. As traduções foram revistas por J. ARAÚJO, E. CASTRO e
M. MATA-MACHADO.
Buscou-se uma certa uniformização. Por exemplo, o termo lien social
foi traduzido por “vínculo social”, mantendo-se a tradução utilizada
por T. CARRETEIRO e J. NASCIUTTI para o livro de E. ENRIQUEZ: Da
horda ao Estado. Psicanálise do vínculo social, editado por Jorge Zahar.
Mais de uma dificuldade de tradução, certamente refletindo postu-
ras teóricas diferentes, foi objeto de discussão e comparação. Por exem-
plo, a palavra forclusion tem aparecido em português como “foraclusão”,
“forclusão” ou “preclusão”; a última tradução foi preferida, por estar
dicionarizada (Novo Dicionário Aurélio) e por permitir, através da análi-
se etimológica, a apreensão de seu sentido original. Outro exemplo: para
a palavra fantasme (fantasia ou fantasma, de acordo com a tradução por-
tuguesa do Vocabulário de Psicanálise de LAPLANCHE e PONTALIS),
preferiu-se “fantasia”; a possível confusão com a fantasia carnavalesca só
auxilia a aproximação com esse mundo imaginário, de atividades e produ-
ções criadoras, algumas aterrorizantes; contudo, mantiveram-se termos
como “fantasmático”. Utilizou-se a palavra “narcíseo”, para designar

13
“relativo a narciso”, seguindo o Novo Dicionário Aurélio ou “narcísico” e
“narcisista”, seguindo o fluxo corrente das traduções de textos psicanalíti-
cos, a critério do tradutor. Finalmente, para a palavra enquête, não se utili-
zou uma tradução uniforme: empregou-se “pesquisa” na maior parte das
vezes; quando a referência era obviamente a um “levantamento de dados”,
expressão bastante usada em português, essa foi a escolha; entretanto, a
palavra investigation, na expressão méthodes d’investigation, foi igualmente
traduzida por “pesquisa”.
Agradecemos a colaboração de José Walter Albinati SILVA, nosso
primeiro leitor, que procedeu a uma cuidadosa revisão final.

Marília Novais da Mata Machado


Sonia Roedel
Parte I
Análise social
Psicossociologia – Análise social e intervenção

16
ANÁLISESOCIALESUBJETIVIDADE
Eliana de Moura Castro
José Newton Garcia de Araújo

A leitura dos artigos que compõem a primeira parte deste livro nos
coloca em contato com alguns temas de rara atualidade. Cabe, no entan-
to, a cada leitor se deter naquelas questões que lhe parecerem mais in-
quietantes, seja porque elas demandam um exercício novo de reflexão,
seja porque elas põem a nu alguns ranços de nossas posições teóricas
ou da “visão de mundo” que inspira o conjunto de nossas práticas
cotidianas.
Ao apresentar tais artigos, corremos o risco de enfatizar arbitraria-
mente apenas alguns de seus conteúdos. Mas não poderia ser diferente,
visto que todo leitor recebe, preenche ou interpreta, à sua maneira, aquilo
que lhe cai nas mãos.1 Pois bem, vamos selecionar três questões para as
quais dirigimos nossos comentários. A primeira delas diz respeito a uma
discussão sobre o sujeito, no enfoque psicossociológico. A segunda dis-
cute alguns fenômenos (a intolerância, por exemplo) situados na gênese
da violência que permeia a “afetividade coletiva”. A terceira se volta so-
bre o esquecido e fascinante tema da interioridade, marcando suas espe-
cificidades na articulação entre o psicológico e o social..2

O sujeito que não “morreu”


A. LÉVY e E. ENRIQUEZ abordam o tema do sujeito sob um ponto de
vista que nos ajuda a compreender melhor o lugar onde eles situam a
Psicossociologia. Eles descartam, desde o início, a idéia de um “eu”, visto
como uma unidade da consciência ou do psiquismo, funcionando inde-
pendentemente dos sistemas ideológicos ou de outras “sobredetermina-
ções” que falam por aquele que fala.
No entanto, não se trata também de simplesmente “matar” o sujeito,
como quiseram algumas correntes das ciências humanas. ENRIQUEZ con-
fessa sua antiga “irritação” com o sucesso das teses sustentadas princi-
palmente pelos discípulos de FOUCAULT (sobre a morte do sujeito) e

17
Psicossociologia – Análise social e intervenção

ALTHUSSER (sobre a história como um processo sem sujeito). A esse


respeito, convém observar que, mesmo na França, a polêmica suscitada
por tais teses estaria há muito “esfriada”. E, já na virada dos anos setenta,
a chamada “sociologia do cotidiano”, por exemplo, se interrogava direta-
mente sobre “o sujeito individual, suas relações próximas e regulares, e não
mais sobre os grandes dispositivos sociais...”.3 Seria incorreto dizer que
esse “reaparecimento” do sujeito se deu mais lenta ou tardiamente, entre
nós, principalmente em algumas vanguardas intelectuais e políticas? Há
algum tempo, um sociólogo ligado à formação de lideranças sindicais em
Minas Gerais, nos disse que os anos mais recentes dessa formação (ele se
referia já aos anos noventa) poderiam se caracterizar, entre outras coi-
sas, como um período de redescoberta do indivíduo ou da subjetivida-
de.4 Então: até que ponto essas “vanguardas” só permitiam que se no-
meassem as “estruturas” ou o “determinismo absoluto dos processos
sociais”, situando todo o resto – especialmente o sujeito – apenas na
esteira de seus efeitos? E até que ponto – valho-me de outra observação
de ENRIQUEZ – seria privilégio do pensamento “de direita” encarar a
história sob o ângulo da ação individual, notadamente aquela dos “gran-
des homens”? Em outras palavras: como explicar o incontestável “culto
da personalidade”, em relação a homens como LENIN ou MAO? Como
explicar a exaltação “individual” de alguns heróis marxistas, no desenro-
lar da história da revolução?5
Já num outro campo, o da Psicanálise, as discussões sobre o descen-
tramento ou a “subversão” do sujeito, notadamente através da teoria la-
caniana, não estariam restritas, nas décadas anteriores, apenas a uma
outra elite? Não seria apenas recentemente, no momento da grande divul-
gação da Psicanálise no Brasil, que distinções do tipo “sujeito falado” e
“sujeito falante” foram “popularizadas” no ensino universitário ou no
interior das instituições de formação psicanalítica, só então deixando de
lado toda uma tradição discursiva, ligada a uma prática clínica, mais
próxima de uma self-psychology?
Pois bem, nos artigos aqui apresentados, os autores caminham numa
direção que, no conjunto das discussões sobre o sujeito, nos parece em
parte negligenciada. Não se trata nem de matá-lo nem de ressuscitá-lo
como uma entidade absolutamente autônoma.6 Isso é claro para os auto-
res. No texto de A. LÉVY, por exemplo, vemos que o “indivíduo” é, antes
de tudo, um ponto de passagem, um átomo talvez, dentro de uma histó-
ria regional e de um sistema complexo que envolve a terra, a família, o
ofício ou o produto. Assim, a empresa-família é anterior ao sujeito, ela é

18
Análise social e subjetividade

um projeto de seus antepassados, do qual alguém como o dirigente é


apenas um prolongamento. ENRIQUEZ retoma essa posição, através da
noção (via CASTORIADIS) de heteronomia: todo indivíduo só existe ou
funciona “no interior de um contexto social dado, de uma cultura parti-
cular que desenvolve suas ‘significações imaginárias específicas e que
dita em parte sua conduta’”. Ele destaca ainda, através de FREUD, a
questão das identificações múltiplas: não sabemos, “no momento em
que falamos, quem está falando e por que falamos dessa maneira”, já que
“somos uma pluralidade de pessoas psíquicas” ou que o eu é um terreno
por onde transitam múltiplos “visitantes”. Daí também o estilhaçamento
da “bela unidade do indivíduo”, daí a ilusão da identidade pessoal.
Mas qual seria a contribuição maior desses autores? De um lado,
aquela de afirmar que o indivíduo só é parcialmente heterônomo, pois
ele tem sempre uma “parcela de originalidade e autonomia”, além de
desempenhar, “às vezes sem sabê-lo, um papel essencial nas transfor-
mações sociais”. Desse modo, os processos sociais “nunca regulam
completamente a conduta individual, sempre imprevisível.” De outro
lado, os autores colocam em destaque um aspecto específico da cons-
tituição do sujeito, isto é, sua constituição “plural” ou coletiva. Essa
dimensão “grupal” da subjetividade merece atenção especial. Ela é
aqui veiculada através de expressões como “narcisismo das pequenas
diferenças”, narcisismo grupal, narcisismo social, identidade coleti-
va, espírito de empresa, fanatismo de empresa etc. A. LÉVY nos lem-
bra, por exemplo, que a história de uma empresa revela um trabalho
psíquico individual mas sobretudo coletivo, ele alude tanto a um ima-
ginário cultural quanto a um “projeto de família” ou a um narcisismo
“regional” das pequenas diferenças.
Importante ainda, segundo os autores, é sabermos distinguir os
fenômenos ligados a essa concepção de sujeito coletivo e os fenômenos
oriundos da onda de individualismo – um fenômeno sem dúvida coleti-
vo –, mas que reenvia, antes de mais nada, a um processo de massifica-
ção que acaba justamente por ameaçar o sujeito. ENRIQUEZ aponta
aqui a diferença entre as noções de indivíduo e sujeito. O primeiro é aque-
le que se agarra, num crescente alienar-se, a identificações coletivas
rígidas ou a um coletivo totalitário, só sabendo repetir ou reproduzir o
funcionamento social. Assim sendo, a onda do individualismo acaba-
ria por suprimir o sujeito, pois este, “mesmo aceitando as determinações que
o fizeram tal como ele é”, tenta introduzir uma mudança de si mesmo,
tenta transformar “o mundo, as relações sociais, as significações das
ações”; enfim, é alguém capaz de produzir uma certa “anormalidade”7
em relação aos padrões sociais.

19
Psicossociologia – Análise social e intervenção

As “referências duras” ou
as sementes da violência grupal
Passemos agora à segunda questão, que se refere a um núcleo de
fenômenos essencialmente coletivos, presentes ora nos grupos nascentes
e minoritários, ora nos grupos que já se impuseram em uma dada cultura
ou sociedade, mas que tentam ainda se expandir. Falamos da ocorrência
cada vez maior – inclusive no Brasil – de episódios de intolerância, xenofo-
bia, fanatismo e outras manifestações daquilo que ENRIQUEZ denomina
“referências duras e estabilizadas”. E aí o vínculo grupal se exterioriza em
forma de violência: ódio ao exterior, amor (ou cumplicidade?) mútuo,
sentimento de “sermos portadores” da verdade etc. A isso se ajunta a
observação – importante e oportuna – de que o estofo da afetividade gru-
pal não é a racionalidade (afinal, estamos falando de mecanismos in-
conscientes), mas sim os processos de idealização, ilusão e crença. Assim, o
grupo se atribui uma aura de excepcionalidade, além de poupar toda
interrogação sobre o valor ou o sentido de seu projeto (seja esse projeto
político, religioso, esportivo, científico ou outro qualquer). O que os seus
membros fazem é incontestável para eles mesmos, pois sua ação – presu-
mem – tem a marca do sagrado. Conseqüências imediatas: toda alterida-
de (outros grupos, outras idéias, outras propostas políticas, religiosas,
científicas etc.) deve ser eliminada, pois ela se torna uma ameaça. O grupo
não suporta nenhuma outra verdade, além da sua. E aí florescem as con-
dutas totalitárias e massificadas, como a intolerância e o fanatismo.
A essa altura, cabem algumas observações. A primeira: é importan-
te considerarmos que o recrudescimento das ideologias nazistas e de
um racismo generalizado não são um privilégio da Europa Central, como
se tinha notícia até pouco tempo.8 Essas “ideologias petrificadas” são
também assunto de fartos noticiários na mídia brasileira. Basta lembrar,
como um fenômeno “periférico”, mas exemplar, que os skinheads já têm
seus representantes no Brasil. Esses musculosos jovens de cabeça ras-
pada já se tornaram, em diversos momentos, objeto do noticiário nacio-
nal: querem garantir um “futuro glorioso” para o nosso país, tentando
eliminar dele os negros, os judeus e... árida novidade, os nordestinos.
Mas as ideologias petrificadas acabam gerando suas réplicas ou o seu
avesso. Assim, algum tempo após as notícias, no início de 1993, sobre os
skinheads verde-amarelos a imprensa também informou sobre a existên-
cia de um grupo denominado Nação Islã,9 composto por militantes islâmi-
cos negros que, “céticos quanto à eficiência do Estado”10 se armam contra
“as violências cometidas pelos carecas e pela polícia contra negros...”

20
Análise social e subjetividade

Aliás, é também no bojo da xenofobia que vemos aparecer um movimen-


to separatista, no Sul do Brasil. Enfim, o espectro do Integralismo está
nos revisitando e o racismo reaparece com suas múltiplas caras, sejam
elas brancas ou negras.
Muitos outros exemplos poderiam ser levantados. Vale lembrar as
investidas do fanatismo religioso, tão presente nas igrejas evangélicas e
católicas (o movimento “carismático” arremeda, às vezes, os rituais “emo-
cionais” dos programas de auditório das tevês brasileiras, infantilizando
os “fiéis”, num clima onde toda crítica está ausente, onde o ritual é bana-
lizado e seu simbolismo empobrecido). Dessa mesma linha “fanático-
religiosa”, não escapam setores conhecidos de nossos partidos políticos,
principalmente aqueles que se atribuem uma identidade ideológica. E,
em níveis talvez menos contundentes, poderíamos nos referir também a
narcisismos e intolerâncias em diversas outras “cenas coletivas”, onde a evo-
cação dos termos “nós” ou “nosso(a)” teria efeitos de um regulador social
e de um redutor das angústias individuais:11 nossa saga familiar, nosso
time de futebol, nossa igrejinha teórica e/ou acadêmica, nossa “seita” de
comedores vegetarianos, nosso grupo body-building, nosso partido de di-
reita ou de esquerda etc.
Gostaríamos de lembrar, rapidamente, uma questão mencionada
mais de uma vez tanto por LÉVY quanto por ENRIQUEZ: em todo projeto
grupal, seja num grupo intolerante, seja num grupo democrático, cada
sujeito está perseguindo, isolada e coletivamente, a eterna questão do
sentido. Em outras palavras, a ação grupal deve cobrir um vazio, ela deve
ser doadora de sentido, livrando o indivíduo e o grupo de um “desespero”
impossível de suportar. Digamos isso de outra maneira: se o inconsciente
“desconhece” o tempo e a morte, ele desconhece também, por analogia, o
vazio do sentido de qualquer projeto e de qualquer ação. Não são portan-
to de modo nenhum insensatas as teorias que assimilam a vida grupal à
idéia de um sonho12 (ANZIEU) ou à idéia de um círculo fechado (FONTA-
NA)13 onde não haja “brecha” alguma, onde se perenizem as vivências de
eternidade e de totalidade. O que se torna problemático, nesse movimento
de fechar-se em si mesmo, é que o grupo passa a não suportar a alteridade
e sua “busca de sentido”; resvala necessariamente para a intolerância.

Interioridade – metáfora espacial


A terceira questão que nos propomos a comentar aqui diz respeito à
interioridade, noção de origem literária e filosófica, mas empregada fre-
qüentemente no campo da Psicologia. Poderíamos, já de início, contrapor
as noções de sujeito e interioridade, a fim de refletir sobre o sentido e o estatuto

21
Psicossociologia – Análise social e intervenção

dessa última. Escapando às problemáticas da morte do sujeito e da sua divi-


são, a interioridade possibilita uma outra abordagem da inserção do singu-
lar no social e do choque das forças em conflito, na esfera psicossocial.
ENRIQUEZ define a interioridade como sendo “o sentimento que uma
pessoa experimenta de ter uma vida interior, íntima, onde ninguém tem o
direito de penetrar, a não ser por arrombamento, o sentimento de possuir
um dentro que carrega sofrimento, alegria, questionamentos, interroga-
ções e que, para ela, é ‘uma terra estrangeira’”. Se esse sentimento nem
sempre existiu, ele existe atualmente e está, segundo o autor, ameaçado
de extinção, vítima de ataques, tanto por parte dos empresários quanto
dos fanáticos religiosos.
A interioridade remete, quase que imediatamente, à alternativa inte-
rior x exterior. E embora não possa ser tomada como sinônimo de interior,
é numa relação espacial que ela se inscreve. Toda representação da inte-
rioridade se desenvolve numa especialização. Aliás, parece haver uma
tendência, que não é recente, em se pensar espacialmente, o que nos per-
mitiria mesmo aludir a uma hegemonia do espaço.
A questão do espaço, na Filosofia antiga, foi discutida em termos do
cheio, em oposição ao vazio: trata-se, num certo sentido, de uma discussão
paralela àquela entre ser e não-ser. PARMÓNIDES não admite que se
possa falar do não-ser, da mesma forma como nega que se possa falar do
vazio. Só o ser existe e ele é cheio. Talvez seja, pois, interessante lembrar
que a interioridade é muitas vezes dolorosamente percebida como uma
sensação de vazio interior.
A interioridade, por ser da ordem da especialização, parece trans-
cender o tempo ou estar menos sujeita à dimensão temporal. Por outro
lado, ela seria mais facilmente sentida e intuída do que tematizada. Mas
cabe principalmente destacar que ela não se afigura como um conceito
que inclua o inconsciente.
BERGSON, filósofo que centra sua reflexão na dimensão temporal,
mostra que a apreensão de nós mesmos é condicionada por uma organi-
zação onde domina a especialização. Para ele, os dados imediatos da
consciência são pura qualidade, mas a inteligência tende a espacializar o
que é fluxo qualitativo, o que é pura duração.14 O espaço da percepção é o
conjunto de movimentos virtuais, sendo que a intuição do homem é sem-
pre virtualidade motora ou apreensão espacial. A compreensão da interi-
oridade é, pois, condicionada pela especialização (e aqui a crítica ber-
gsoniana procede, pois o que é essencialmente da ordem do qualitativo é
dificilmente apreendido como tal).

22
Análise social e subjetividade

A grande dificuldade na apreensão da interioridade é a passagem do


interior para o exterior, e essa questão tem a ver necessariamente com o
corpo. ENRIQUEZ aborda o processo de idealização do corpo. O dina-
mismo e a eficiência profissional são buscados através do treinamento
corporal. Um corpo dinâmico (isto é, bonito, enérgico e jovem) é garantia
de sucesso individual. Dito de outro modo, o que se vê por fora é um
reflexo do interior. O culto exagerado do corpo, que pode ser descrito como
um narcisismo de morte, aponta para uma relação direta entre dentro e fora
(narcisismo de morte, porque especular, refletindo a si mesmo).
Nessa relação de passagem do exterior para o interior, temos de falar
nos órgãos dos sentidos. A percepção do espaço remete à visão, meio de
se situar no mundo, diferenciando o interno do externo. O aparelho per-
ceptivo se situa no limite dentro-fora; capta os estímulos exteriores e tam-
bém os internos, sendo os orifícios os lugares privilegiados de troca com
o exterior. O conceito de eu-pele de ANZIEU15 chama a atenção para essa
superfície – a pele – que faz a demarcação do dentro e do fora, sendo ao
mesmo tempo o container e o meio de comunicação com o outro. Limite e
superfície privilegiada de estimulações, a pele se liga à formação do eu.
Pode-se dizer que o sentido de interioridade reside sobretudo na noção de
receptáculo de riquezas ou monstruosidades que a pessoa percebe de
forma mais ou menos clara.
Existe, diz FREUD,16 um escudo protetor que defende o organismo
contra estímulos externos, só permitindo a percepção de pequenas quanti-
dades. Já os estímulos provindos do interior chegam sem redução, pois o
organismo não dispõe de proteção nesse sentido. A conseqüência dessa
situação é uma tendência a tratar o que vem de dentro como se se originasse
do exterior. Assim, o recalque nada mais é do que a fuga de uma ameaça
interna, segundo o modelo adotado em relação ao perigo externo.
Há, na época atual, saturada de comunicação, quase que uma obses-
são em relação ao próprio território, ao que marca a diferença, isto é, a
identidade própria, separada.
É interessante notar que a criança exprime a relação com o objeto
primeiramente por identificação: eu sou o objeto. O ter é ulterior; depois
da perda do objeto, ela é capaz de dizer: eu tenho, isto é, eu não sou.
As idéias de permanência, unidade e similaridade, denotadas pelo
termo identidade, foram abaladas pela Psicanálise, pois o conceito de in-
consciente vem perturbar profundamente o caráter unitário do psiquismo.
A interioridade define o sujeito de um ponto de vista espacial: o interior é
diferente do exterior. Já a identidade marca a diferença, considerando o

23
Psicossociologia – Análise social e intervenção

conteúdo que constitui o sujeito, naquilo em que ele é diferente do outro. Por
isso, a interioridade é mais palpável (quase que literalmente).
É por seu cunho espacial que a interioridade comporta um caráter
estável e estático. E o mais importante, já dissemos, é que ela remete à vida
consciente e não ao inconsciente. O espaço de dentro é o lugar ao mesmo
tempo da certeza de si próprio e do seu lado desconhecido, do outro que
eu sou. Essa dimensão do inatingível e do secreto constitui a interiorida-
de. O oculto, isto é, o profundo – e aqui a referência espacial é clara –
marca a individualidade.
Assim, por ser essencialmente espacial, a interioridade considerada,
quer como sentimento pessoal, quer como conceito psicológico, é certa-
mente desprovida de energia ou, em outros termos, é passiva, só poden-
do, pois, oferecer uma resistência passiva. Dessa passividade podemos
inferir o caráter estático da interioridade e isso faz ressaltar o papel das
forças sociais que a agridem. Uma tal instância parece estar realmente à
mercê dos ataques perpetrados por uma sociedade cruel; e como bem
captou ENRIQUEZ, é no cenário da espacialidade que essa ameaça se
realiza. As propostas absolutizantes, feitas pela religião, pela empresa ou
pela sociedade, se tornam assim mais claras, porque confrontadas à inte-
rioridade (e não à identidade, ao eu e muito menos ao sujeito). A imposi-
ção de um padrão idealizante de comportamento e de pensamento impli-
ca uma “profunda” agressão à intimidade da pessoa. Em outras palavras,
a imagem do dentro carnal corresponde a uma imagem do dentro espiri-
tual, isto é, à concepção de uma interioridade psíquica que está sujeita a
todas as investidas externas.
Finalmente, pelo fato de que ela aparece sobretudo como uma região
espacial metafórica, resta-nos reafirmar que a noção de interioridade com-
porta certa ambivalência teórica: de uma lado, o fato de ser uma noção
construída a partir da espacialidade faz dela uma metáfora limitada do
psiquismo; de outro lado, o seu manejo “espacial” apresenta vantagens de
apreensibilidade, no campo da argumentação psicossociológica.

Notas
1
Humberto ECO, em sua obra Lector in Fabula (trad. francesa Grasset, 1985) nos
aponta essa singularidade do lugar do leitor. Ele diz, entre outras coisas, que todo
texto é um tecido de espaços em branco, com interstícios a serem preenchidos pelo
leitor. Afinal, nenhuma leitura é um ato neutro.
2
Esta última questão foi elaborada por Eliana de Moura CASTRO, enquanto as duas
primeiras ficaram a cargo de José Newton G. ARAÚJO.

24
Análise social e subjetividade

3
Cf. BALANDIER, G. “Essai d’identification du quotidien”. In: Cahiers Internationaux de
Sociologie, 1983, vol. LXXIV, p. 5-12. BALANDIER comenta (e esse artigo é de 1983)
que o mais importante da multiplicidade de pesquisas sobre a vida cotidiana é que
esse “movimento recente... fez reaparecer o sujeito, face às estruturas e aos sistemas”.
4
Conseqüentemente, nessa mudança, concedeu-se também lugar à vida privada e
não apenas às “grandes causas” trabalhista e revolucionária.
5
P. SELLIER (cf: Le mythe du héros. Paris: Bordas, 1970, p. 29-31) afirma que, na Biblio-
teca Nacional de Paris, uma boa metade dos livros consagrados a heróis são livros
russos e posteriores à Revolução de 1917. Lembremos, mais perto de nós, o culto à
figura de GUEVARA, que incontestavelmente “sustentou a fé” de várias gerações,
na América Latina e mesmo na Europa.
6
Alain RENAUT (cf: L’ère de l’individu. Paris: Gallimard, 1989) chama nossa atenção
para uma simplificação das discussões sobre a idéia de sujeito, “como se todo uso da
noção de subjetividade devesse inevitavelmente aludir a um sujeito inteiramente
transparente a si mesmo, soberano, senhor de si e do universo e como se, por isso
mesmo, a incontestável condenação desta figura do sujeito devesse se traduzir pelo
abandono puro e simples de qualquer referência à subjetividade” (op. cit., p. 13).
7
O autor evoca J. McDOUGALL (cf: Plaidoyer pour une certaine anormalité. Paris:
Gallimard, 1978) para quem a normalidade seria “uma carência que atinge a vida
fantasmática e que afasta o sujeito dele mesmo”.
8
Não vem ao caso evocar aqui a ameaça do racismo na Europa do Leste, principal-
mente após as recentes eleições da Rússia, nas quais o Sr. JIRINOWSKI saiu vito-
rioso. De outro lado, não esqueçamos também a intolerância no interior das
sociedades muçulmanas, empenhadas numa guerra dita religiosa e que leva aos
extremos o endurecimento ideológico grupal.
9
Cf. reportagem da revista Isto É, de 28/04/93, p. 50-53.
10
Essa mesma revista, em seu número de 1º/12/93, publica uma reportagem intitu-
lada “Quarto Reich – nazismo no ar”. A matéria se refere a uma empresa gaúcha,
uma editora de propaganda nazista, vendendo livros e vídeos pelo Brasil afora. Seu
objetivo é uma “revisão” da história do nazismo, visando negar os massacres
cometidos pelo Terceiro Reich (entre outras coisas, o dono dessa editora diz que
o massacre dos judeus teria sido uma “montagem da mídia”). Observação
semelhante já fora feita, alguns anos atrás, por Jean-Marie LE PEN, líder da
extrema-direita francesa. Para ele, a questão dos fornos crematórios nos campos
de concentração, além de serem historicamente contestáveis, não passavam de
“mero detalhe”.
11
P. ANSART vê a ideologia como um sistema simbólico que favorece a regulação
social, à medida em que estrutura as economias psíquicas e funciona como um
aparelho redutor de angústia, como um instrumento terapêutico, em nível
individual. A adesão a uma ideologia leva o indivíduo a um mundo de trocas com o
outro, encontrando aí as condições de gratificação narcísica. (Cf: ANSART, P. “Dis-
cours politique et réduction de l’angoisse”. In: Bulletin de Psychologie. Paris, n. 322, tomo
XXIX, 1975-1976, p. 445-449).
12
Cf: ANZIEU, D. Le groupe et l’inconscient: l’imaginaire groupal. Paris: Dunod, 1984.
13
Esse autor comenta que os termos nó e círculo, inferidos da etimologia do termo e da
elucidação do conceito de grupo, desembocam na idéia central de uma conexo fecha-
da. Assim, em seus níveis mais profundos, a vida grupal seria experimentada como

25
Psicossociologia – Análise social e intervenção

infinita e atemporal, semelhante à vivência intra-uterina. (Cf: FONTANA (A) et al.


El tiempo y los grupos. Buenos Aires: Editorial Vancu, 1977, p. 68, ss.)
14
Cf: BERGSON, H. Essai sur les données immédiates de la conscience. 120 ed. Paris: PUF,
1967.
15
ANZIEU, D. Le moi-peau. Paris: Dunod, 1985.
16
Entre outras alusões a essa questão, ver: FREUD, S. Além do princípio do prazer
(1920). Rio de Janeiro: Imago, 1976, XVIII vol. da edição Standard das Obras
Completas de Sigmund Freud, p. 42.

26
OPAPELDOSUJEITOHUMANONADINÂMICASOCIAL1
Eugène Enriquez

O tema que abordarei tem retido minha atenção há vários anos.2 A


razão é simples: como muitos outros autores, fiquei irritado com o suces-
so das teses sobre a morte do sujeito (desenvolvidas por discípulos dog-
máticos de Michel FOUCAULT) e com as teses sobre a história como pro-
cesso sem sujeito (L. ALTHUSSER). De minha parte, pareceu-me sempre
aberrante fazer desaparecer o indivíduo humano do movimento da histó-
ria, pois, em maior ou menor grau, ele participa da dinâmica de uma
determinada sociedade, como psique, como lugar de condutas significa-
tivas e como ser em interação contínua com outros, em grupos e organiza-
ções. Fazer desaparecer o indivíduo ou o sujeito (voltarei mais tarde à
distinção que é possível fazer entre esses dois termos), sob o pretexto de
que o pensamento “de direita” só tinha encarado a história sob o ângulo da
ação dos grandes homens, pareceu-me o sinal do triunfo de teorias que
enaltecem, mesmo sem dizê-lo, um determinismo absoluto dos processos
sociais. Seguindo essas abordagens, o indivíduo só pode endossar con-
dutas enunciadas como legítimas por sua nação, sua classe ou sua raça.
O indivíduo torna-se, assim, um ser falado, um ser agido; ele nunca é um
ser falante nem um autor de seus atos.
É contra essa tendência reducionista, que nega a interrogação de D.
LAGACHE, segundo a qual “o papel das personalidades individuais na
história não pode ser descartado a priori”, que decidi me manifestar.
No momento atual, meu propósito é susceptível de ser considerado
como modismo. As grandes determinações sociais estão enterradas (sem
dúvida um pouco precipitadamente demais) e, ao invés, só se fala do
indivíduo, do sujeito, do aumento do individualismo. No entanto, não é
porque esse tema voltou violentamente que vou abandoná-lo. Com efeito,
por um lado, fui um dos primeiros a abordá-lo e não tenho nenhuma
razão para me desdizer; por outro lado, a argumentação que proponho se
afasta da que tem sido habitualmente apresentada.

27
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Para ir diretamente ao cerne do assunto, gostaria de partir de uma


consideração trivial: todo indivíduo nasce em uma sociedade que ins-
taurou, em parte voluntariamente, em parte inconscientemente, uma
cultura. Em outras palavras, é impossível analisar a conduta de um
indivíduo sem referi-la à conduta dos outros para com ele, conduta es-
truturada social e culturalmente. Nessas condições, para retomar a ter-
minologia de C. CASTORIADIS, todo indivíduo é fundamentalmente
heterônomo, isto é, ele só existe e só pode funcionar no interior de um
social dado, de uma cultura particular que desenvolve suas “significa-
ções imaginárias” (CASTORIADIS)3 específicas e que lhe dita, em parte,
sua conduta. Nessas condições, é preciso pressupor, logicamente, a an-
terioridade dos processos sociais, já que nascemos sempre em um gru-
po, em uma etnia, em uma classe, em uma nação etc.
Essa emergência acontece, além disso, numa sociedade que é, ela
própria, heterônima, já que ela não se pensa como sendo o produto da
ação histórica e da atividade psíquica de seus membros, mas como estan-
do submetida a um Sagrado Transcendente, que pode tomar a forma de
totens, de antepassados e de Deuses, ou de um Deus único, que lhe deu
direito à existência. Uma tal sociedade heterônima tem, portanto, tendên-
cia a só produzir indivíduos heterônimos, conformados a seus votos e a
seus ideais. Não é necessário, no entanto, ir muito longe nesse sentido, ou
seríamos constrangidos a nos alinhar à tese que quero combater: a do
determinismo social que traz, ao mesmo tempo, o esvaziamento da histó-
ria (já que a história tem um sentido predeterminado, quer seja por Deus
– BOSSUET, BURKE, DE MAISTRE –, quer pelo desenvolvimento das
forças produtivas – MARX, LENIN) e o do papel do indivíduo em um
processo que se desenvolve segundo uma lógica implacável. De fato, as
sociedades nunca são totalmente heterônimas. Elas crêem em seus Deu-
ses e em seus mitos, mas só até certo ponto (Paul VEYNE4 teve razão ao
perguntar se os gregos acreditavam em seus mitos). Freqüentemente, elas
souberam mantê-los “à maior distância possível”,5 a fim de que eles de-
sempenhassem seu papel de garantia das vidas psíquica e social, mas
deixassem também, a cada homem, “a possibilidade de saber que alhures,
num lugar-tela, se projetam os desejos mais insatisfeitos e ficar seguro de
que esse alhures não virá invadir o aqui da vida cotidiana”.6
Só quando os religiosos cedem ao desejo de instaurar um Estado
teocrático, que pode exigir o sacrifício de seus membros pela causa que
encarna, é que a distância não pode mais ser mantida e que é possível
situar a sociedade completamente (ou quase completamente, porque toda
sociedade comporta falhas, zonas inexploradas, portadoras de

28
O papel do sujeito humano na dinâmica social

mudanças possíveis) do lado da heteronomia. Notemos que as socieda-


des modernas, desde a Renascença e, sobretudo, desde a Revolução
Francesa, souberam deixar sua parte ao religioso sem lhe atribuir uma
autoridade essencial sobre as consciências nem um papel central na
organização. Elas se tornaram, mesmo sem percebê-lo, cada vez mais
fundadoras delas mesmas e afastaram um pouco seu aspecto heterôni-
mo e, em certos casos, fanático.7
Quanto ao indivíduo humano, ele também só é parcialmente heterô-
nimo. Embora exista, em toda sociedade, um discurso dominante, esse
discurso é modulado diferentemente pelos diversos grupos e classes que
compõem essa sociedade e, às vezes, até mesmo se choca, não a um con-
tra-discurso organizado mas, como dizem FRITSCH e PASSERON, cho-
ca-se a condutas que se referem a outros valores e hábitos, ignorando
soberanamente a ideologia dominante. Além disso, não se pode esquecer
que o discurso, por mais totalitário que seja, não reina totalmente sobre as
consciências e os inconscientes e que ele provoca fenômenos de rejeição,
a médio ou a longo prazo. É claro que conseqüências danosas podem
decorrer de tal discurso. Mas, como FREUD aponta:

não parece que se possa levar o homem, seja lá por que modo, a
trocar sua natureza pela de um térmita; ele sempre estará incli-
nado a defender seu direito à liberdade individual, contra a von-
tade da massa.8

Enfim, devemos nos lembrar que cada indivíduo é um desvio em


relação a todos os outros, na medida em que sua psique se estrutura
progressivamente, apoiando-se nas funções corporais, em pessoas e gru-
pos sempre diferentes. Deve-se, portanto, concluir que o indivíduo mais
heterônimo (mais conformado aos imperativos sociais) está sempre em
condições de demonstrar, como evocava FREUD, uma “parcela de origi-
nalidade e de autonomia”.
Acrescentarei ainda que o indivíduo desempenha sempre, de maneira
invisível, pelo menos de imediato e, às vezes, sem sabê-lo, um papel essen-
cial nas transformações sociais. O que escreve CASTORIADIS a respeito
do nascimento do capitalismo esclarece esse ponto:

Centenas de burgueses, visitados ou não pelo espírito de Calvi-


no e pela idéia de ascese intramundana, se põem a acumular
riquezas. Milhares de artesãos arruinados e de camponeses esfa-
imados encontram-se disponíveis para entrar nas fábricas. Al-
guém inventa uma máquina a vapor, outro um novo tear. Fi-
lósofos e físicos tentam pensar o universo como uma grande
máquina e buscam encontrar suas leis. Reis continuam a se

29
Psicossociologia – Análise social e intervenção

subordinar e a debilitar a nobreza e criam instituições nacionais.


Todos os indivíduos e grupos em questão perseguem fins que
lhes são próprios. Ninguém visa à totalidade social enquanto
tal. No entanto, o resultado – o capitalismo – é de uma ordem
completamente diferente.9

Assim, se os processos psicogenéticos pressupõem, então, os proces-


sos sociais, como sublinha CASTORIADIS, estes últimos nunca regulam
completamente a conduta individual, sempre imprevisível, ainda mais
porque não são desprovidos de ambigüidade, de ambivalência e de con-
tradição (salvo no caso da “horda primitiva” ou de uma sociedade que
erigiu um Estado total, dominando os homens pelo terror e pela opressão
interiorizados).
Tendo argumentado que a heteronomia completa não pode existir,
fico mais à vontade para me distinguir de uma certa tendência do pensa-
mento contemporâneo, relativa ao papel do indivíduo e do primado do
individualismo. Poderei também precisar as diferenças que estabeleço
entre indivíduo e sujeito (mesmo observando que essas diferenças podem
ser de natureza ou simplesmente de grau).
De fato, a individualização, objeto de tantas preocupações, é, mais
freqüentemente, apenas um elemento do processo de massificação. Se
cada um deve manifestar sua singularidade, deve fazê-lo porque todos os
outros estão submetidos à mesma injunção. Um diretor de pessoal de
uma grande empresa dizia recentemente a seus gerentes: “Todos vocês
devem se tornar criativos”. Assim, cada um deve ser criativo à sua manei-
ra, mas a criatividade torna-se uma norma irrefutável. E esse diretor con-
tinuava: “Quero ver vocês todos como uma única cabeça”. O conformis-
mo está diretamente implicado em uma tal concepção do individualismo.
Assim, em nossa época, não é bom fazer parte dos que não são combaten-
tes, “matadores frios”, vencedores que querem ir até o fim, que gostam de
tomar iniciativa e gostam do risco, que estão prontos a se “exaurir” pelo
triunfo da equipe, do seu serviço, da sua organização. Uma nova ética
puritana se organiza: o vencedor deve experimentar uma ascese, deve se
sacrificar (sacrificar sua vida, seu tempo, sua família) pela organização
da qual ele veste a camisa. Ele deve gozar com essa renúncia, pois não há
tarefa mais elevada do que desempenhar a missão que lhe foi confiada.
Nessa ética, o elemento esportivo predomina, porque o homem de suces-
so não é o homem nobre nem o virtuoso, mas é o homem da performance
mensurável, performance sempre a recomeçar, a vitória nunca sendo defini-
tiva. Ao contrário, ela pode ser bem efêmera. O winner sempre pode se
tornar o looser. Max WEBER não se enganava quando escrevia: “Quando

30
O papel do sujeito humano na dinâmica social

o exercício do dever profissional não pode ser ligado a valores espirituais


e culturais mais elevados, o indivíduo renuncia, em geral, a justificá-lo”.
Nos Estados Unidos, onde seu paroxismo predomina, a busca da rique-
za, desvestida de seu sentido ético-religioso, tende, hoje em dia, a se asso-
ciar a paixões puramente agonísticas, o que lhe confere, na maioria das
vezes, características de um esporte.10
Assim, quando se fala do indivíduo, tem-se no pensamento um in-
divíduo conformado, que deve funcionar segundo comportamentos que
agradem à sociedade. Esse movimento de conformismo não fascina so-
mente os indivíduos que trabalham na indústria e no comércio. Tem re-
percussões e impacto profundo em todos os membros da sociedade, pelo
próprio fato da empresa ter conseguido vender sua paixão pela eficácia
ao conjunto do corpo social e, assim, ter exportado seus valores para fora
de seu campo restrito. Todos os indivíduos devem ter agora o espírito de
empresa, quer se trate de pessoas que trabalhem na empresa, nas univer-
sidades, nos hospitais. A adesão à “cultura da empresa” torna-se dogma;
o “culto da empresa”, um novo ritual.
É particularmente perturbador o fato de que esse movimento não
apenas invade todos os campos da vida social, mas que, além disso, não
se restringe a pessoas susceptíveis de obter satisfações tangíveis, finan-
ceiras ou de prestígio, ou ainda, posições de poder. Ele atinge, igualmen-
te, os que W. REICH, naquele tempo, designava por “zé-ninguém”,11 os
que tendem a se tornar transmissores dos ideais da sociedade. REICH
mostrava que o “zé-ninguém” admirava tanto os que ele acreditava se-
rem grandes, aqueles a quem chamamos vencedores, que ele se desfazia
de sua capacidade de liberdade e de produção de idéias, para depositar
seu destino nas mãos dos outros, algumas vezes mostrando-se mais “re-
alista que o rei”. O “zé-ninguém” está sempre, igualmente, na primeira
fila para aplaudir os grandes e dar consistência a todos os movimentos
autoritários de tipo mais ou menos fascistizante. Como escreve REICH:

O grande homem sabe quando e em quê ele é “zé-ninguém”. O “zé-


ninguém” ignora que ele é “zé-ninguém” e tem medo de ter cons-
ciência disso. Ele dissimula sua pequenez e sua estreiteza de espíri-
to por trás de sonhos de força e de grandeza, atrás da força e da
grandeza de outros homens. Orgulha-se dos grandes chefes de guer-
ra, mas não se orgulha de si mesmo. Admira o pensamento que ele
não concebeu, em vez de admirar o que ele concebeu.12

Por isso é que ele pode propagar a “peste” emocional, a renúncia ao


pensamento como prazer de representação ininterrupta e processo desti-
nado a todos os homens.

31
Psicossociologia – Análise social e intervenção

O processo de individualização, favorecendo a singularidade na


massificação buscada e aceita por grandes, médios ou pequenos homens,
é, então, a condição de produção e de representação de indivíduos que se
situam mais na heteronomia do que na autonomia.
Resta-me, depois de descrever esse fenômeno, agora bem conhecido,
tentar interpretá-lo e demarcar sua abrangência. Só com essa condição
será possível refletir sobre o que constitui o surgimento do sujeito.
Esses indivíduos heterônimos (levando-se em conta que a heterono-
mia total não existe nesse mundo) precisam, para existirem, idealizar a
sociedade e os ideais que ela propõe. Em outras palavras, eles funcionam
(mais do que vivem) sob a égide da doença do ideal. Quanto mais os ideais
são necessários à constituição do sujeito, pois lhe fornecem uma base e o
poder de escolher entre ações legitimadas pela sociedade – ou por suas
próprias exigências pessoais –, tanto mais a doença do ideal (a idealiza-
ção) desempenha um papel fundamental na edificação de uma sociedade
e de indivíduos heterônimos. Por que a idealização desempenha um pa-
pel tão importante?
Porque ela nos tranqüiliza profundamente: uma sociedade idealiza-
da, apresentando-se como objeto maravilhoso, é a melhor garantia de
nossa estabilidade psíquica. Ela transmite uma mensagem de serenida-
de: a ordem social existe e nos preserva de toda interrogação fundamental
a seu respeito (especialmente sobre o caos originário, sempre ameaçador);
o mundo criado não é contestável, a sociedade dá um sentido preestabe-
lecido a nossas diversas ações e nos indica, portanto, o que devemos fazer
e como seremos recompensados. A idealização permite a cada um sentir-
se parte interessada no devir social e ser liberto de seu desamparo origi-
nal, evocado por FREUD no Futuro de uma Ilusão, angústia de estar sem
proteção e ser abandonado, rejeitado pelas autoridades tutelares que as-
sumem o papel de pais benevolentes. Além disso, ela lisonjeia nosso pró-
prio narcisismo. Se adoramos chefes que encarnam ideais fortes ou so-
ciedades aparelhadas de virtudes admiráveis, nós próprios nos tornamos
admiráveis. Miramo-nos no espelho que nos é estendido pelo próprio
objeto de nossa admiração.
A idealização é, assim, o mecanismo central que permite a toda socie-
dade instaurar-se e manter-se e a todo indivíduo viver como um membro
essencial desse conjunto, correndo um mínimo possível de riscos. É por
isso que o indivíduo pode aceitar recalcar seus desejos, reprimir suas pul-
sões, aderir profundamente às injunções sociais e, às vezes, ser um agente
ativo desses processos de recalque, de repressão e de adesão. Ele troca sua
liberdade pela segurança de manter seu narcisismo individual, apoiado

32
O papel do sujeito humano na dinâmica social

pelo narcisismo grupal ou social (pois cada grupo ou cada sociedade


quer formar um “nós” indissociável).
É necessário precisar esse último ponto. Vivemos em sociedades
nas quais, de fato, os ideais são múltiplos, contraditórios, nas quais,
dificilmente, eles suscitam a aceitação ou a identificação. Vivemos um
déficit de ideais transcendentes, enquanto o século XIX nos tinha dado
como ideal o progresso infinito do espírito humano em sua vontade de
domínio científico do mundo. De fato, estamos divididos e angustiados.
Perdemos progressivamente nossos marcos identificatórios. É o momen-
to em que as identidades pessoais começam a deteriorar e as sociedades
tentam redefinir identidades coletivas fortes, mesmo se os ideais que elas
têm a nos propor são, freqüentemente, ideais vazios e desprovidos de
sentido. (Com efeito, que sentido pode ter ganhar por ganhar, produzir
por produzir, consumir por consumir?)
Ora, a tentativa de refazer identidades coletivas fortes, provocando
a idealização (quando as causas a defender e os projetos a realizar não
são evidentes), está cheia de perigos. A identidade coletiva, o narcisis-
mo social, tem como futuro possível a xenofobia, o racismo, o fanatismo.
G. DEVEREUX expressa-o muito bem:

O ato de formular e de assumir uma identidade coletiva maciça


e dominante – e isso, qualquer que seja essa identidade – consti-
tui o primeiro passo para a renúncia ‘definitiva’ à identidade
real. Se somos apenas um espartano, um capitalista, um proletá-
rio, um budista, estamos perto de não ser absolutamente nada e,
portanto, de simplesmente não ser.13

Reencontrar a coesão, graças a identidades coletivas fortes, é se voltar


ao grupo de pertinência, ao nosso “nós”, é imputar os problemas ao outro,
sem se dar conta de que, através desse processo, nós próprios nos dissolve-
mos enquanto portadores de uma identidade irredutível à dos outros. É
recusar (como já apontei anteriormente) o fato de que somos o produto de
identificações múltiplas, de que podemos ter marcos identificatórios mutá-
veis ao longo de nossa vida e de que, graças a esse jogo identificatório,
podemos escapar à pré-formação desejada pela sociedade e não nos tornar
indivíduos totalmente heterônimos.
A identidade coletiva favorece ainda, como mostrou FREUD,14 o “nar-
cisismo das pequenas diferenças”, que tem como efeito “unir uns aos
outros, pelos vínculos do amor [e eu mencionaria os da fascinação, da
sedução ou da obrigação], uma massa maior de homens, com a única
condição de restarem ainda outros de fora para serem alvos de ataques”.

33
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Esse “narcisismo” permite “uma satisfação cômoda do instinto agressi-


vo e através dela a coesão da comunidade se torna mais fácil para seus
membros”. Não podemos, no entanto, esquecer que esse “narcisismo gru-
pal” pode até chegar ao racismo exacerbado e, daí, ao fanatismo religioso
e político que permite a indivíduos de uma cultura não suportarem o
menor desvio da parte de outros que compartilham a mesma cultura.
Com efeito, quanto mais uma cultura se quer unificada, mais intolerante
ela se torna e mais ela deseja a morte dos outros ou, ao menos, a sua
conversão. Ela é animada pelo ódio e por uma alucinação coletiva, na
qual se forja uma imagem dos estrangeiros (ou dos desviantes) como per-
seguidores onipotentes e, portanto, seres a eliminar. O indivíduo que ade-
re sem falha a esse tipo de cultura só pode se sacrificar por ela e compor-
tar-se de forma heterônima. Vê-se, portanto, que, quanto mais a identidade
coletiva existe, menos o questionamento é possível e menos os indivíduos
podem tentar aceder à autonomia.
O indivíduo individualizado (e não individuado, a individuação estan-
do do lado da constituição do sujeito), o indivíduo singular, preso na
massificação obtida pelo apego às identidades coletivas, não pode ser
considerado como sujeito humano. Tal indivíduo só sabe repetir, repro-
duzir, recriar o funcionamento social tal como ele é (salvo a reserva já feita
– mas sobre a qual faço questão de insistir – de que um tal indivíduo,
totalmente pré-formado e definido pela sociedade, sempre tem em si mes-
mo os recursos para se libertar das malhas do social).
A essa figura do indivíduo individualizado opõe-se seu inverso: a
figura do sujeito. O sujeito humano é aquele que tenta sair tanto da clausura
social quanto da clausura psíquica, bem como da tranqüilização narcísica,
para se abrir ao mundo e para tentar transformá-lo. Quando digo que o
sujeito transforma o mundo, as relações sociais, as significações das ações,
não quero identificá-lo ao grande homem que tem uma visão globalizan-
te, que visa à transformação da totalidade enquanto tal. Quero simples-
mente dizer que cada um, aceitando as determinações que o fizeram tal
como é, tem como projeto voluntário, nos lugares da vida cotidiana, em
sua vida de trabalho, em suas relações sociais de todos os dias, tentar
introduzir uma mudança em si mesmo e nos outros, por mínima que seja,
a respeito de qualquer tipo de problema.
O sujeito é um ser criativo. Para definir criatividade, o melhor é citar
WINNICOTT:15

A pulsão criativa pode ser vista em si mesma; bem entendido,


ela é indispensável ao artista que deve fazer obra de arte, mas
ela está igualmente presente em cada um de nós – bebê, criança,

34
O papel do sujeito humano na dinâmica social

adolescente, adulto ou velho – que pousa um olhar surpreso


em tudo o que vê; ela está presente em quem faz, voluntaria-
mente, qualquer coisa – seja uma lambuzada com seus excre-
mentos, seja um choro intencionalmente prolongado para sabo-
rear sua musicalidade. Essa pulsão criativa aparece tanto na vida
cotidiana da criança retardada, que sente prazer em respirar,
quanto na inspiração do arquiteto que, de repente, sabe o que
quer construir e pensa então nos materiais que poderá utilizar, a
fim de que sua pulsão criativa tome forma e figura, e que o
mundo possa testemunhá-la.

A referência a WINNICOTT significa que não me interesso particu-


larmente pela vontade que os grandes homens têm de transformar todas
as variáveis do mundo (uma tal preocupação é a de um espírito “elitis-
ta”); levo a sério, em compensação, a vontade de cada um de fazer mudar
as coisas (pequenas e grandes) e o desejo de criar, aqui e agora, uma novida-
de irredutível. Os artistas não se enganaram a esse respeito.
HUNDERTWASSER declara a seus alunos:

Se vieram para aprender, é ainda pior, porque vão aprender


coisas que não lhes são próprias, que não correspondem a vocês
e que estragarão suas vidas. A única maneira de se encontrarem
enquanto artistas é através de sua própria ação criadora16 e isso
pode ser feito somente em suas casas, não na escola!.

Paul KLEE escreve:

O que quero ensinar a meus alunos não é a forma fechada, imo-


bilizada; é a formação, a gestação, o nascimento, o primeiro
movimento indistinto da matéria, antes que ela se fixe em natu-
reza morta... Quanto mais longe mergulha o olhar do artista,
mais seu horizonte se alarga do presente ao passado. E mais se
imprime, em lugar de uma imagem da natureza, aquela única
que conta – a criação enquanto gênese.

Marcel DESCHAMP exclama: “Alarguei a maneira de respirar” e o poeta


Victor SEGALEN, em seus Conselhos a um viajante, assim se expressa:

Evita escolher um lugar de asilo... chegarás, meu amigo, não ao


charco das alegrias imortais, mas aos remansos cheios de em-
briaguez do grande rio diversidade.

O sujeito é, portanto, um ser capaz, ao mesmo tempo sapiens, demens


(objeto da hybris), ludens e viator, homem portanto de sabedoria e loucura,
do jogo e da vagabundagem, respirando a plenos pulmões um ar salubre,
dando “um sentido mais puro às palavras da tribo” (MALLARMÉ), inte-
ressando-se mais pela germinação das coisas do que pelos resultados

35
Psicossociologia – Análise social e intervenção

tangíveis, inebriado pela diversidade da vida e capaz de percebê-la; por-


tanto, homem que sabe desposar suas contradições e fazer de seus confli-
tos, de seus medos, de suas metamorfoses a própria condição de sua vida,
sem dominar o caminho que toma nem as conseqüências exatas de seus
atos; homem apto a recolocar em jogo sua vida e a correr riscos.
Foi por isso que chamei esse sujeito de criador da história.17 Porém, é
preciso parar um momento, porque uma armadilha nos espera aqui: o
criador de história, em particular o grande homem, freqüentemente é ape-
nas um “indivíduo individualizado”, preso na ganga dos ideais, mesmo
se tem a aparência de um sujeito que teve uma influência primordial na
dinâmica social.
Os grandes homens correspondem efetivamente à definição de pesso-
as que querem criar coisas voluntariamente. No entanto, estão presos à fanta-
sia do dominação total que os leva a negar a alteridade do outro (e, aliás, a
sua própria alteridade). Michel SERRES, a esse respeito, propõe uma visão
totalmente negativa:

Não digo: há loucos perigosos no poder e um só bastaria. Mas


digo: no poder só há loucos perigosos. Todos jogam o mesmo
jogo e escondem da humanidade que eles preparam sua morte
sem acasos, cientificamente.18

Essa visão é radical e não posso compartilhar inteiramente dela. O


que não impede que ela tenha uma parte de verdade. Com efeito, entre os
grandes homens, pode-se identificar os megalômanos ocupando uma
posição paranóica, os manipuladores ocupando uma posição perversa,
os sedutores ocupando uma posição histérica. Caracterizemos rapida-
mente esses três tipos. O megalômano, um pouco paranóico, sente-se elei-
to por Deus, pela natureza, para realizar uma missão salvadora, para
lavar o mundo de sua sujeira, fazendo-o tomar consciência de sua culpa-
bilidade, assegurando-lhe a redenção, recriando-o apenas pela palavra e
instalando-se num imaginário enganoso (no qual tudo se torna possível).
Assim, há o exemplo – estudado por FREUD19 – do presidente Woodrow
WILSON, identificado a seu pai, pastor presbiteriano que lhe havia reser-
vado o papel de salvador do mundo. WILSON acreditava-se eleito por
Deus (seu pai encarnando a palavra divina) para propor, depois da guer-
ra de 1914-1918, os fundamentos de uma paz geral e definitiva entre as
diferentes nações em guerra. Sabe-se o que aconteceu com esse projeto
grandioso: o desmembramento do império austro-húngaro deu à Alema-
nha a hegemonia da Europa Central e foi um dos fatores da segunda guerra
mundial. Essa desagregação da Europa Central tem ainda, atualmente,

36
O papel do sujeito humano na dinâmica social

efeitos devastadores (aumento dos nacionalismos e do anti-semitismo).


“Eis as conseqüências dos atos ‘virtuosos’ daquele que se tomava como
o Jeová dos Hebreus”, segundo FREUD e BULLITT,20 do homem que
declarava, durante a campanha para a sua eleição à presidência dos
Estados Unidos, a um de seus detratores:

Lembre-se de que Deus quis que eu fosse presidente dos Estados


Unidos e que nem você nem nenhum mortal pode impedi-lo.21

Assim também HITLER, caso bem conhecido e, ao mesmo tempo,


complexo demais para ser evocado em poucas linhas, quis fazer do ale-
mão o povo eleito e, para isso, deveria fazer desaparecer o outro povo que
se considerava objeto da eleição divina, o povo judeu. Poder-se-iam citar
muitos outros nomes; basta o de STALIN, obcecado com a força pela for-
ça, inventando complôs, incapaz de viver sem inimigos e fazendo seu
povo pagar pelo fruto de seu delírio paranóico.
Quanto ao manipulador perverso, esse está, por sua vez, possuído
pela fantasia do domínio total dos seres e das coisas, crê falar a lingua-
gem da verdade, reduz as relações humanas a relações de objetos, só
considera o mundo sob o ângulo econômico. LENIN, que não tinha inte-
resse algum pelos outros, que queria dobrar o mundo à sua vontade, que
tomou o poder contra os mencheviques, graças a um golpe de força (por-
que o perverso não ama o real e, ao contrário, denega a realidade), que
estava pronto a utilizar qualquer meio para chegar a seus fins, é um bom
exemplo desses chefes perversos; a um nível mais irrisório, os tecnocra-
tas, recém-saídos das grandes escolas, quiseram dobrar o mundo a seus
modelos e a suas equações.
O sedutor histérico é o novo tipo de grande homem em voga. Ele vê o
mundo como um grande teatro e tem o papel de escrever a peça mais
persuasiva, de assegurar a mise-en-scène mais ao gosto da mídia e de ser o
ator com melhor desempenho. O teatro é também para ele um terreno de
esportes, como já indiquei anteriormente. Ele é histérico na medida em
que erotiza o conjunto das relações sociais, onde gosta da performance por
ela mesma (ela dá satisfação a seu eu grandioso, que toma a si mesmo por
ideal), só pensa em termos de estratégia, tem gosto pelo instantâneo, pelo
acontecimento (Bernard TAPIE declara: sou um ser dos acontecimentos).
O surpreendente é que esse homem não se reivindique capacidades ca-
rismáticas excepcionais, como WILSON ou HITLER, ou capacidades ma-
nipulatórias, nem uma força de pensamento e de ação, como LENIN: ao
contrário, ele se proíbe de ser excepcional. Sua mensagem é simples: “Sou
admirável porque o quis e qualquer um de vocês pode se tornar admirável,

37
Psicossociologia – Análise social e intervenção

se fizer como eu, se tiver tanta coragem quanto eu”. O grande patrão
italiano C. de BENEDETTI exprime muito bem essa posição:

Na Itália, meus aliados (...) são as pessoas comuns, porque sou, a


seus olhos, uma demonstração do possível (...). Se elas tomarem
um grande patrão italiano, AGNELLI por exemplo, não podem
sonhar em se tornar AGNELLI. AGNELLI a gente nasce, não se
torna. Em contrapartida, é possível tornar-se DE BENEDETTI, há
milhares de empresários na Itália que podem querer isso e espe-
rá-lo. Partem de uma situação similar à minha e o tempo neces-
sário para isso não parece uma duração mítica, mas uma duração
realista.

Pode-se compreender o sucesso de um tal modelo, pois ele prome-


te a qualquer um, com a condição de ser corajoso, poder ser um verda-
deiro chefe de empresa (e o que é mais glorioso atualmente que chegar
a esse lugar?).
Poderia acrescentar à minha panóplia de “caracteres” os antigos bu-
rocratas obsessivos que fizeram sua carreira à sombra de grandes homens
(os apparatchiki) e que um dia se tornam uma mistura de manipuladores-
perversos e de sedutores-histéricos, como GORBATCHEV. Mas uma tal
evolução e uma tal mistura de estilo é ainda muito nova para ser descrita e
explicada de maneira rigorosa. Tentarei em outra ocasião.
Em todo caso, se os megalômanos-paranóicos podem parecer mais
ou menos “doidos” segundo a concepção de Michel SERRES, os outros
escapam a essa denominação. Eles se apresentam, ao contrário, como
indivíduos perfeitamente normais. Mas, talvez, de uma normalidade es-
magadora. M. CHIRAC declarou um dia: “Eu não sonho, não tenho dúvi-
das morais”. Podemos nos perguntar se essa falta de fantasia não é um
pouco perigosa para quem fala e para aqueles a quem ele se dirige. A
psicanalista Joyce McDOUGALL22 caracteriza essas pessoas como “ca-
racteriais de tipo normal”. Ela descreve a seu respeito:

O caracterial de tipo normal criou para si uma carapaça que o


protege de todo despertar de seus conflitos neuróticos e psicó-
ticos. Ele respeita as idéias recebidas como respeita as regras
da sociedade e não as transgride jamais, nem mesmo na imagi-
nação. O sabor da madeleine não desencadeia nada nele e ele não
perderá seu tempo em busca do tempo perdido. Mesmo assim,
ele perdeu alguma coisa. Essa normalidade é uma carência que
atinge a vida fantasmática e que afasta o sujeito dele mesmo.

Em outras palavras, um indivíduo sem fantasias, sem interrogação,


sem dúvida, um sujeito encarapaçado (segundo o termo de McDOUGALL)

38
O papel do sujeito humano na dinâmica social

ou encouraçado (segundo a terminologia de REICH) está afastado dele


mesmo e, mais ainda, dos outros. Pode-se então perguntar se essa hiper-
normalidade lhe permite ser sensível à surpresa, ao inusitado, a perceber
as coisas e os seres sob outro ângulo, criar seja lá que novidade for.
Teríamos, assim, nas duas extremidades: os loucos de poder e os
hiper-normais. Eles têm uma influência social inegável, pois exprimem
em voz alta o pensamento banalizado e dão satisfação aos desejos recal-
cados. São mesmo os mais numerosos entre as pessoas que ocupam postos de
responsabilidade. Mas não são verdadeiros criadores de história, no sentido
que dou a esse termo, pois falta a ambos, conforme McDOUGALL, “uma
certa anormalidade” (uns pecam pelo excesso, outros pela falta) que lhes
permitiria “manter os olhos ávidos da infância” (McDOUGALL) e ter
vontade “de tudo questionar, de tudo desarrumar, de tudo realizar”
(McDOUGALL). São desprovidos da aptidão à transgressão. Não confiam
na “imaginação radical” (CASTORIADIS) que jaz em todo ser humano. E,
assim, só sabem repetir, reproduzir. São portadores da pulsão de morte,
tanto em sua forma violenta como em sua forma sedutora.
A noção de sujeito torna-se precisa: não é apenas alguém que traz um
projeto voluntário, é também um ser que atinge “um certo grau de anor-
malidade” e que está em condições de interrogá-lo, de se lançar no desco-
nhecido, de ter – segundo o termo de FREUD – “uma alma de conquista-
dor”, mesmo se nada descobre, mesmo se não provoca mais que um leve
impacto sobre o movimento do mundo. É também um homem que de-
monstra consistência. S. MOSCOVICI, a partir de trabalhos de Psicologia
Social Experimental que desenvolveu com C. FAUCHEUX, insiste sobre
essa noção, “que significa, por um lado, o caráter irrevogável de sua esco-
lha e, por outro, a recusa de compromisso sobre o essencial.23 Em certo
sentido, o sujeito é um homem movido por uma idéia fixa, como FREUD
quando enunciava: “A Psicanálise é a minha causa”. Vê-se bem aqui a
diferença entre consistência e coerência. Um ser coerente tem uma perso-
nalidade compacta, sem falhas. Corre pela vida como em uma auto-estra-
da. Ele não tem projeto, a não ser o de continuar a fazer funcionar a
sociedade tal como ela é. Um ser consistente pode ter dúvidas, tomar
caminhos transversais, recolocar em questão algumas de suas idéias (como
FREUD ou MARX, remanejando continuamente suas análises e suas teo-
rias). Mas ele conserva o mesmo projeto, que é um verdadeiro projeto exis-
tencial: permitir a tomada de consciência, fazer advir o sujeito individual,
em FREUD; favorecer a tomada de consciência de situações reais, fazer ad-
vir o sujeito coletivo, em MARX. Se o sujeito evolui, ele o faz em sua linha,
em sua linhagem, na tradição da qual é herdeiro e que enriquece e deforma.

39
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Mas essa consistência deve ser perceptível e deve poder provocar rea-
ções e discussões. MOSCOVICI, igualmente, acrescenta que um tal sujeito
deve “optar por uma posição clara, visível e, em seguida, criar e sustentar
um conflito com a maioria, lá onde a maioria é tentada a evitá-lo.”
O sujeito não é homem de comprometimentos. Ao mesmo tempo, é
uma pessoa capaz de criar redes de alianças, pois sabe que se ele se
encontrar sozinho, se outros não podem se identificar a ele e com sua
causa, só poderá fracassar (não é à toa que a criação da Associação Inter-
nacional de Psicanálise pode tranqüilizar FREUD e que a criação da 1a
Internacional era ardentemente desejada por MARX). A idéia fixa não
impede a astúcia (no sentido da Mètis dos gregos) e o aproveitamento da
oportunidade, quando ela se apresenta. ARISTÓTELES dizia que o ho-
mem de gênio deveria saber utilizar o Kairos, a ocasião. Aqui não se trata
de manipulação, porque o sujeito deve estar cheio de furor (de hybris),
deve ser capaz de sair dele mesmo (ek-stase), para fazer triunfar suas
idéias. ARISTÓTELES já o sabia e o mostra muito bem no “problema
trinta”, recentemente republicado. Consistência e furor, consistência e
astúcia andam juntas. Nem MARX nem FREUD foram pessoas boazi-
nhas; no entanto, souberam conciliar furor, consistência e astúcia, o que
não é nada fácil.
Uma outra característica do sujeito é a de viver como um “exota”,
segundo a expressão de V. SEGALEN. Para SEGALEN, o exota é aquele
que tem a percepção do diverso e o poder de conceber outro, sendo assim
aquele que olha o mundo como se o visse pela primeira vez. Ele é, portanto,
o homem pronto a ser tomado pela surpresa e pelo inusitado, como também
a provocá-los. Está muito próximo do que BLANCHOT evoca a respeito do
homem votado ao exílio, à dispersão. BLANCHOT escreve:

há uma verdade do exílio, há uma vocação do exílio” e essa


vocação “é a dispersão, porque a dispersão, da mesma forma
que apela para uma estadia sem lugar, da mesma forma que
renega toda relação fixa entre a força e um indivíduo, um grupo
ou um Estado, delimita também, diante da exigência do todo,
uma outra exigência e, finalmente, interdita a tentação da Uni-
dade-Identidade.24

O “exota”, o exilado, não pode jamais estar colado a uma organiza-


ção, a um Estado, a uma identidade coletiva. É possível ser um “exota” na
sua própria sociedade, sentir-se à margem mesmo se a sociedade deseja
sua integração. O que é interessante, no momento atual, é que, em vista
dos movimentos de migração que se intensificam, serão vistos cada vez
mais “exotas” reais, isto é, pessoas vindas de outros países, provenientes

40
O papel do sujeito humano na dinâmica social

de outras culturas, pessoas que, assim, necessariamente, pousarão um


olhar novo e surpreso sobre a sociedade que os acolhe e que, quer queiram
ou não, questioná-la-ão e a influenciarão, do mesmo modo que serão in-
fluenciados por ela.
Os “exotas”, entretanto, não ficarão presos no processo de idealiza-
ção. Estarão, ao contrário, presos na necessidade de sublimação, como os
“exotas” indígenas que teriam escolhido esse destino.
Serei breve sobre o processo de sublimação, sobre o qual discorri
várias vezes em textos recentes.25 Deixarei de lado o aspecto indispensá-
vel da atividade de sublimação na formação do vínculo social, na medida
em que é evidente, agora, que nenhuma sociedade poderia ter sido funda-
da se os homens não pudessem ter passado do prazer sexual direto ao
prazer da representação e da imaginação, se eles não pudessem ter passa-
do da satisfação das pulsões egoístas àquelas obtidas pelo agenciamento
de pulsões altruístas, valorizadas socialmente.
Parece-me mais importante observar que a sublimação implica no
reconhecimento, por cada um, de sua própria estranheza, da estranhe-
za dos outros e no desejo de propor, sem vontade de dominação, ao
conjunto dos indivíduos com os quais se vive, uma investigação con-
junta e partilhada. Sublimar é aceitar sua parte de estranheza, de con-
tradição, de remorsos, de metamorfose ou de êxtase. O fato de poder se
interrogar sobre si mesmo, de se descobrir estrangeiro para consigo
mesmo (porque o ser humano se constitui na clivagem), permite consi-
derar o outro como menos estranho e mais semelhante a si mesmo.
Assim, o outro (ou a coisa) não é mais um ser a dominar, a domar, por
nossa atividade intelectual ou física, mas alguém com quem se pode
tentar manter relações de reciprocidade, relações que podem se mos-
trar difíceis, conflituosas se necessário, mas que tendem a ser as mais
simétricas possíveis.
A sublimação não impede o ideal, mas ela luta contra a doença do
ideal. O sujeito é então aquele que aceita se recolocar em questão, ser
questionado, ele não tem necessidade de ligações que lhe sirvam
simplesmente de apoio para existir. De fato, sublimar é difícil, porque é
viver ao mesmo tempo como ser completo (homo sapiens, homo demens,
susceptível de ser atravessado por afetos que não controla, que o põem em
estado de desordem, sem saber se poderá aceder a uma nova ordem, homo
ludens e homo viator, como evoquei precedentemente) e como ser clivado,
dividido, mantendo-se em pé diante da angústia provocada pela ausên-
cia dos Deuses e pela possibilidade de que o outro não seja um apoio, mas
se revele adversário implacável. A sublimação implica, igualmente, na

41
Psicossociologia – Análise social e intervenção

aceitação da tradição, da filiação, da dívida que temos para com os que


nos precederam e para com as gerações futuras. Se a dívida não é reco-
nhecida, se o homem cede à tentação de auto-engendramento, estará tal-
vez em condições de se tornar um grande homem. Ele deixará apenas
ruínas atrás de si. Para engendrar novidades e a vida, é preciso admitir
ainda a violência mortífera que atua na fantasia de auto-engendramento.
Sublimar é, portanto, estar consigo mesmo, com os outros, com seus pais
e com seus filhos, em uma relação na qual a vida palpita, vida cheia de
angústia e de alegria, de possível morte e de transfiguração.
Essas pessoas que não cedem às ilusões, que vivem com os outros,
não numa interrogação permanente, mas numa interrogação suficiente,
colocam-se então numa história coletiva, sabendo que seu lugar nunca
estará totalmente assegurado, sentindo-se e querendo-se, em parte, inte-
gradas, em parte, exiladas. São talvez elas que provocam as rupturas
mais fundamentais, a possibilidade de um caminho para a instauração
de sociedades de sujeitos mais autônomos, mesmo quando elas não o
sabem e mesmo quando pensam que são apenas “zé-ninguém”, sem pro-
jeto voluntário verdadeiramente constituído (em tal caso, é a realização
de uma vida guiada por suas próprias exigências e pelo reconhecimento
do vínculo social que forma o projeto).
Essas pessoas, definitivamente, comportam-se como verdadeiros he-
róis. Utilizo o termo no sentido que lhe deu FREUD: o herói, aquele que
teve a coragem “de sair da formação coletiva”. Essas pessoas souberam
colocar seus ideais, reconhecer a alteridade do outro, reconhecer-se a si
mesmas. (O caminho para o outro passa pelo caminho para si). Esse hero-
ísmo é um heroísmo partilhável. Basta que cada um queira tentar ser ele
mesmo com os outros. Então, o mundo será composto mais por sujeitos
autônomos do que por indivíduos “individualizados” e a dinâmica social
será o produto do confronto de homens livres e responsáveis.
Para concluir meu intento, é evidente que as condições colocadas
para atingir a plena autonomia indicam que sua ocorrência é fraca. É
mais fácil deixar-se guiar que conduzir sua própria vida, mais fácil imitar
que inventar, mais fácil idealizar que sublimar. Mas uma outra constata-
ção é necessária: da mesma maneira que o indivíduo totalmente heterôni-
mo não existe, como mostrei na primeira parte de minha exposição, o
sujeito inteiramente autônomo também não existe. Simplesmente porque
o homem é clivado, contraditório, mistura inextricável de pulsão de vida
e de morte, capaz do melhor e do pior, freqüentemente obcecado pelo
poder, pelo prestígio e sentindo um desejo de segurança narcísica e, tam-
bém, porque as sociedades precisam, para se manter, de um mínimo de

42
O papel do sujeito humano na dinâmica social

ilusões e de crenças, de disfarces e de hipocrisia. Cada um de nós é, de


fato, em certos momentos, mais um indivíduo pronto a aderir, incapaz de
se colocar questões, pedindo amarras fortes, cedendo à idealização (dos
Deuses, do Estado ou de um outro ser humano – caso contrário, a paixão
não seria desse mundo) e, em outros, um sujeito mais autônomo, em con-
dições de questionar o mundo e a si mesmo e de procurar, tateando, seu
próprio caminho. Portanto, a idéia de uma sociedade e de um sujeito
tendo acedido à autonomia se dilui. O que permanece, em compensação,
é a possibilidade de cada sociedade e de cada pessoa entrever a dificulda-
de do caminho e de, às vezes, arriscar-se por ele. Tanto quanto é impossí-
vel chegar à verdade, é impossível atingir a autonomia. Nem por isso a
busca da verdade e da autonomia devem terminar. Saber que persegui-
mos um fim impossível nos chama, simplesmente, para um pouco de
modéstia, de humor e de ironia, em relação a nós mesmos e a nossas
possibilidades de influência. Talvez seja ao atingir a consciência de nos-
sas impossibilidades que cheguemos, mais freqüentemente, a nos condu-
zir de maneira autônoma e a não nos deixar prender nas ilusões que o
social difunde e das quais o ser humano é particularmente ávido. Se, às
vezes, os heróis ficam cansados, em outros momentos, podem se reerguer
e nos surpreender. Aceitemos o augúrio e trabalhemos cotidianamente
para fazer da “vida imediata” (ELUARD) mais um lugar de surpresas do
que um lugar de repetição morna.

Notas
1
Traduzido de ENRIQUEZ, Eugène. “Le rôle du sujet humain dans la dynamique sociale”.
Revue Européenne des Sciences Sociales. Tomo XXIX, 89, 1991, p. 75-89, por Sonia
Roedel.
2
Cf. meu texto “Individu, création et histoire”. In: Connexions, n. 44, E.P.I., 1984, e o
capítulo de minha tese Pouvoir et lien social, Paris: Gallimard, 1980, intitulado “O
papel da conduta do indivíduo”.
3
CASTORIADIS, C. L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil, 1975.
4
VEYNE, P. Les Grecs ont-ils cru a leurs mythes? Paris: Seuil, 1975.
5
ENRIQUEZ, E. “Le mythe ou la communauté inchangée”. L’esprit du temps, n. 11, Ed.
de Minuit, 1986.
6
Ibidem.
7
Esse ponto será retomado mais adiante neste texto.
8
FREUD, S. Malaise dans la civilisation (1929). Paris: PUF., 1970.
9
CASTORIADIS, C., op. cit.
10
WEBER, M. L’éthique protestante et l’esprit du capitalisme. Paris: Plon, 1964.

43
Psicossociologia – Análise social e intervenção

11
REICH, W. Écoute, petit homme.(1948). Trad. franc. Paris: Payot, 1973.
12
REICH, W. op. cit.
13
DEVEREUX, G. Ethnopsychanalyse complémentariste. Paris: Flammarion, 1975.
14
FREUD, S., op. cit.
15
WINNICOTT, D. W. Jeu et réalité. Paris: Gallimard, 1975.
16
Sublinhado por mim.
17
ENRIQUEZ, E. Individu, création et histoire, op. cit.
18
SERRES, M. “La thanatocracie”. Critique, março 1973.
19
FREUD, S. e BULLITT, W. Le président T. W. WILSON. Nova trad. Paris: Payot,
1990.
20
FREUD, S. e BULLITT, W., op. cit.
21
FREUD, S. e BULLITT, W., op cit.
22
McDOUGALL, J. Plaidoyer pour une certaine anormalité. Paris: Gallimard, 1978.
23
MOSCOVICI, S. Psychologie des minorités actives. Paris: PUF., 1979.
24
BLANCHOT, M. L’entretien infini. Paris: Gallimard, 1970.
25
Citemos simplesmente o último texto publicado: Idéalisation et sublimation. Psycho-
logie Clinique, n. 3, 1990.

44
AINTERIORIDADEESTÁACABANDO?1
Eugène Enriquez

O sentimento que uma pessoa experimenta de ter uma vida interior,


íntima, onde ninguém tem o direito de penetrar, a não ser por arromba-
mento, o sentimento de possuir um dentro que carrega sofrimento, ale-
gria, questionamentos, interrogações e que, para ela, é “uma terra estran-
geira”, nem sempre existiu. J. P. VERNANT, particularmente, sublinhou
até que ponto um homem grego podia se conceber como um indivíduo,
um sujeito, mas não como um eu autônomo que pudesse “esconder uma
coisa em suas entranhas”, segundo a palavra de Aquiles.
A vida interior obteve o direito à existência durante os séculos III e IV,
quando o homem começou a tecer relações especiais com o divino e, por
isso, teve de viver uma experiência de si e não apenas uma “preocupação
consigo” (M. FOUCAULT, 1984). No século XVIII, século das luzes, quan-
do foi dito que cada homem possui em si próprio os princípios da razão, foi
enunciado, simultaneamente, que o homem é também um ser de paixões e
de afetos, atravessado por ventos tumultuosos (“Venez, orages désirés!”), um
ser que deve fazer seu exame de consciência, escrever confissões como
ROUSSEAU ou manter um diário íntimo como AMIEL. Nem todos se sujei-
tam a essa tarefa, mas isso não impede que nasçam, simultaneamente, o
homem plenamente racional e o homem totalmente emocional. Antes de
mais nada, todo homem possui, ao mesmo tempo, um cérebro e um coração
que ele deve sondar para se compreender e, assim, melhor guiar sua condu-
ta. Nunca se insistirá bastante sobre a ligação íntima entre “paixões e inte-
resses”, entre Aufklärung e o Sturm und Drang. É porque cada homem tem
“dúvidas morais” e persegue a conquista de si mesmo que pode se tornar,
também, um conquistador do mundo.2
Parece que essa centralização em uma interioridade (que favorece
igualmente a exteriorização) está se tornando objeto de numerosas inves-
tidas por parte dos empresários, por um lado, e por parte dos fanáticos
religiosos, por outro.

45
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Posso apenas indicar uma pista que mereceria ser explorada mais
sistematicamente. Minha contribuição será, então, escrita num estilo la-
pidar que poderá chocar, mas que deveria também ter a vantagem de
provocar vivas discussões.
A proposição é a seguinte:

A renovação do individualismo tem


por fim suprimir o sujeito e a vida interior..

O que é o indivíduo de quem todo mundo fala, senão uma pessoa


(ouso utilizar somente esse termo) “de geometria variável” (J. L. SER-
VAN-SCHREIBER), capaz de se adaptar a todas as situações, de fazer
calar em si suas “dúvidas morais”, de considerar os problemas em sua
frieza, dando, assim, no sentido sadiano do termo, mostras de “apatia”?
Quem é dado como exemplo é o guerreiro ou o esportista, o homem capaz
de ultrapassar seus limites, de ter modos de “comunicação afirmativa”,
de ficar obcecado apenas pela “excelência” e que deve, portanto, para
fazê-lo, conformar-se à nova ideologia do “matador frio”, do vencedor, do
combatente, desembaraçado de compromissos, de sonhos e de interroga-
ções. Os indivíduos com um “falso self” (WINNICOTT) ou, sobretudo,
com personalidades “as if” (H. DEUTSCH) serão particularmente apreci-
ados. Os outros serão suspeitos de se colocar problemas demais e, sobre-
tudo, de colocá-los, em demasia, aos outros.

Para obter tais resultados, é necessário


que essas pessoas sejam movidas
por um processo de idealização.

A cultura de empresa ou de organização, ao propor, aos que dela


participam, seus valores e seu processo de socialização, seu imaginário
enganoso – que tem como objetivo englobar todos na fantasmagoria co-
mum proposta pelos dirigentes da organização – e seu sistema de símbo-
los – que fornece um sentido prévio a cada ação dos indivíduos –, tem
como finalidade prendê-los totalmente nas malhas que ela tece. Se o indi-
víduo se identifica com a organização, se só pensa através dela, se a
idealiza a ponto de sacrificar sua vida privada às metas que ela perse-
gue, sejam quais forem, ele entrará, então, sem o saber (e de consciência
tranqüila), num sistema totalitário que se tornou para ele o Sagrado

46
A interioridade está acabando?

transcendente legitimador de sua existência. Sabe-se muito bem, desde


DURKHEIM e FREUD, que uma sociedade não pode existir sem religião,
pois essa fornece a cada ser a garantia de não viver no puro arbitrário,
concedendo-lhe um sistema de significações que o tranqüiliza e o faz
agir. A empresa (ou qualquer outra organização) quer, atualmente, en-
carnar a “instituição divina”. O sagrado laicizado dá ao indivíduo o
sentimento de se transcender, através de um projeto a concretizar, um
ideal a realizar, uma causa a defender. Promete-lhe alcançar um estado
não conflitante da psique, uma plenitude que o protege de qualquer
trabalho de luto, de perda e de sofrimento. Então, o indivíduo pode se
considerar como um herói dos tempos modernos, inscrevendo-se no
mito coletivo da organização. As empresas americanas e japonesas de
melhor desempenho funcionam dessa maneira e é sob esse regime que
começam a viver as empresas européias, presas na miragem do além-
Atlântico ou do além-Pacífico.
Mas os valores gerenciais podem não ser suficientes para responder
ao déficit de identificações característico de nosso sistema social e ao mal-
estar dele resultante. O “fanatismo de empresa” pode parecer relativa-
mente irrisório para alguns. É por isso que as antigas religiões voltam sob
os seus aspectos mais extremos, mais próximos do integrismo. Basta ter
em mente: a renovação do Islã, triunfante em sua versão “chiita” (e não
nos esqueçamos que, no mundo medieval, a famosa seita dos “Assassi-
nos” era a forma mais aguda do ismaelismo, esse último sendo apenas
um avatar do chiismo3); o renovar de uma igreja dogmática, segura de
estar em seus direitos, pronta a punir os blasfemadores, a voltar aos valo-
res da família patriarcal e a se pronunciar contra a contracepção e o abor-
to (disso são testemunhos exemplares o sucesso de Monsenhor Lefèbvre
na França, a importância dos movimentos Communione e Liberazione na
Itália, o papel central desempenhado pelo Opus Dei na Itália e na Espa-
nha); o despertar de um integrismo judeu que se traduz pela multiplica-
ção das yeshiva (escolas judaicas) na França e pelo papel dos partidos
religiosos em Israel. Essa volta do religioso não visa a nenhuma sublima-
ção, mas, ao contrário, exige a idealização. Ela nos força a admitir que
muitos indivíduos precisam de “referências duras e estabilizadas” para
solidificar sua psique e ter o sentimento de fazer parte do povo eleito,
injustamente martirizado, que parte à conquista do mundo (ou de uma
parte do mundo), em nome da verdadeira fé.
E, quando as igrejas não são suficientemente atraentes, gurus, xa-
mãs, pais-de-santo estão prontos a substitui-las. Eles também exigem a
crença e anunciam a proibição de pensar livremente.

47
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Certamente, todas as religiões, em seus aspectos “idealizados” (no


bom sentido do termo), proferem a necessidade de cada qual descobrir a
divindade em seu “foro íntimo”, de ser capaz de penitência e de viver
tanto o sofrimento como a alegria. Mas as religiões, em seu lado excessivo
– as seitas – não se preocupam de forma alguma com a vida interior
específica dos diversos sujeitos. Elas querem proceder à intrusão na psi-
que para destruí-la ou, pelo menos, submetê-la a ídolos não contestáveis.
“Perinde ac cadaver”4 continua sendo a palavra de ordem, cuja meta é a
homogeneização do “interior”. O fanatismo bane o pensamento e a pa-
lavra criadora. Reserva para si mesmo seu uso e monopólio. Voltarei
adiante aos métodos empregados. Mas basta saber que o indivíduo que
não se dá conta desse controle sobre sua interioridade pode estar pronto
a todos os atos, mesmo os mais repreensíveis, porque são vividos por ele
como atos socialmente valorizados pela organização à qual ele adere e,
portanto, como a expressão da graça que lhe cabe. O fanatismo político,
que aqui apenas menciono, persegue as mesmas metas e comporta os
mesmos efeitos.

Quando esse processo de idealização não


pode se ligar a um objeto maravilhoso exterior,
pode encontrar seu ponto de ancoragem num objeto
maravilhoso interior: o corpo do indivíduo.

É nesse sentido que é preciso compreender a nova ênfase ao corpo,


desenvolvida pela publicidade e por certos “psicólogos” nesses últimos
anos. As técnicas de body-building, a aeróbica, o jogging, as diversas técni-
cas que têm por objetivo dar a cada qual um corpo flexível, esbelto, conti-
nuamente desejável, as medicinas naturais, as ginásticas suaves, a ex-
pressão corporal, o “grito primal”, o desenvolvimento do esporte de massa,
competitivo ou não (por exemplo, as maratonas de Paris ou de Nova
York), os estágios off limits, os seminários de sobrevivência têm todos
por meta nos dizer que o corpo real (e não o corpo fantasmático, falado
e falante, sofredor, animado) é o nosso bem mais precioso. “Estar bem
em sua pele”, “tornar-se saudável”, afastar a dor, provar a si mesmo e
aos outros que o cuidado do corpo é um cuidado vital testemunham
nossas capacidades, nossa juventude e nos fazem acreditar em nossa
imortalidade. Resulta daí uma equação simples: corpo dinâmico = ener-
gia física = energia psíquica = aptidão ao sucesso individual = aptidão à
utilidade social.

48
A interioridade está acabando?

Essa equação é mais atraente ainda porque está ao alcance de qual-


quer um. Basta querer. Quer se tenha nascido rico ou pobre, quer se tenha
atingido um status social elevado ou subalterno, cada um pode ser capaz
de atingir o gozo mais absoluto. Basta que seja capaz de amar suficiente-
mente a si próprio. O narcisismo mais total está na ordem do dia. Aconte-
ce que esse narcisismo só pode ser um “narcisismo de morte” (A. GREEN,
1983), porque o “narcisismo de vida” é busca de verdade, confronto com
o sofrimento, interrogação do ser, processo de ligação com os outros. No
narcisismo de morte, cada qual se mira em seu próprio espelho, que lhe
devolve uma imagem idealizada de si mesmo, na qual fatalmente se perderá.

Os métodos para conseguir sacralizar ou


re-sacralizar a organização, a esfera religiosa ou
política e o corpo são “irracionais”em sua essência,
na medida em que não se trata, de fato, de criar
uma cultura, mas de edificar novos cultos.

É no momento mesmo em que no mundo se enaltece a eficácia, “a


paixão pela excelência”, a “qualidade total”, a busca do “erro zero”, si-
nais de uma fantasia de domínio total, de uma vontade infantil raivosa de
onipotência, que se desenvolvem as técnicas mais aberrantes. A explica-
ção é simples: todos os métodos de formação, de evolução pessoal ou
grupal, de intervenção psicossociológica ou institucional, nas organiza-
ções sociais, reconhecem que o indivíduo é um ator preso numa história
coletiva, na qual ele tem que desempenhar um papel social, membro de
um conjunto que tem suas coerções, suas regras de jogo e seu espaço de
liberdade. Por outro lado, reconhecem que a mudança é o produto de
mudanças ao mesmo tempo individual, grupal e coletiva, mudança sem-
pre difícil pois traz, necessariamente, novos questionamentos e transfor-
mações nas relações de poder ou, ao menos, de autoridade. Elas anunci-
am, assim, que o indivíduo, para se tornar um sujeito falante e atuante,
deve poder se interrogar sobre si mesmo e sobre as estruturas de trabalho
nas quais se encontra.
Ora, o paradigma individualista não quer nem mudança social
nem mudança individual profunda. Os próprios indivíduos, únicos
responsáveis (se eles fracassam, o erro não cabe à organização nem ao
tipo de direção), embora alienados no mais profundo de sua psique, a
ponto de “correrem” atrás de sua alienação e a buscarem sempre mais,
devem encontrar as melhores soluções para os problemas que lhes são

49
Psicossociologia – Análise social e intervenção

colocados, no quadro de normas extremamente fortes (quando não de


dogmas), perfeitamente interiorizadas. É por essa razão que a seleção e a
promoção de tais indivíduos serão particularmente severas. Por isso, é
impossível recorrer a métodos minimamente científicos, pois esses só
dariam resultados aproximados como a própria vida. Assim, para a sele-
ção de dirigentes, faz-se apelo a leitores de tarô, a astrólogos, a “numeró-
logos” ou a provas como “andar sobre brasas”. Pede-se a “gurus” ou a
“xamãs” que “reenergizem” a empresa, instalam-se os diretores em “gran-
des caixas” para lhes insuflar uma nova energia, pede-se a eles que sal-
tem de grandes alturas, com os pés amarrados a um elástico, a fim de
desenvolverem sua autoconfiança, faz-se com que pratiquem artes marci-
ais para que se sintam como samurais. Não é preciso continuar essa enu-
meração de “técnicas” (recorre-se mesmo ao vodu) para compreender que
a vontade de eficácia a qualquer preço (essa podendo emanar das empre-
sas ou de outras organizações – os fanáticos religiosos também têm seus
métodos para provocar o torpor e o entusiasmo) está acompanhada, ne-
cessariamente, não do desenvolvimento da racionalidade, como a sim-
ples lógica o exigiria, mas, ao contrário, do aumento dos métodos mais
bizarros, únicos a prometerem resultados tangíveis. A finalidade desses
métodos é evidente: a adesão, a implicação, a mobilização total de todos,
quer dizer, uma psique sem conflitos, uma psique a serviço da organiza-
ção; sejamos claros: a uniformização da psique (isto é, a possibilidade de
todos enfrentarem uma certa complexidade e de demonstrarem capacida-
des criadoras não previstas e não programáveis). O reconhecimento da
psique como força operante tem, portanto, como resultado a sua destrui-
ção ou, pelo menos, a sua submissão, freqüentemente com seu consenti-
mento e com sua satisfação.

A conseqüência desses métodos e


a criação de uma identidade compacta.

O mal-estar existente nas identificações (e que se expressa pelo


desenvolvimento da toxicomania, pela multiplicação de indivíduos “em
crise de identidade”, de pessoas que não se sentem bem consigo mes-
mas, pessoas sem rumo ou submetidas a estresses contraditórios) pro-
voca, em reação, na sociedade, nas organizações e nos indivíduos, a
edificação de processos identificatórios que têm como meta favorecer a
segurança narcísica e fornecer certezas e orientações precisas de vida.
Cada “conjunto humano”, para viver e se desenvolver, tem por certo
necessidade de sentir que não é um simples aglomerado mais ou menos

50
A interioridade está acabando?

feliz de vários fluxos de intensidades e de entroncamentos diversos e


que, através dessas diversas experiências, em diferentes lugares e com
múltiplas pessoas, ele é capaz de ser um “Si”, quer dizer, de ser um sujeito
que tem uma história, que se liga a uma tradição, que participa de uma
memória coletiva, que constrói e reconstrói seu passado à luz dessa me-
mória e que está apto a elaborar projetos para o futuro. Cada um sente,
portanto, a necessidade de ter uma certa identidade.
Mas, se examinarmos mais de perto essa noção, ela revela caracterís-
ticas um pouco suspeitas. Caso se retome a análise de A. GREEN (1985),
constata-se que a identidade remete a três idéias essenciais: (a) idéia de
permanência através do tempo, de referências seguras, em uma palavra, de
constância: (b) idéia de objeto separado, animado por uma coesão totalizan-
te tendo, portanto, uma unidade; (c) idéia de similaridade (toda identidade
permite identificar o outro, isto é, permite que se possa situá-lo em uma
classe, em um gênero, em uma espécie).
Ora, essas três idéias são abaladas pela investigação psicanalítica:
a- A constância não existe. Os indivíduos evoluem, transformam-se de
acordo com a maneira pela qual são capazes de negociar suas contra-
dições e seus conflitos. Além disso, de acordo com a idade e responsa-
bilidades que têm de assumir, ou o status social a que chegaram, eles
são solicitados por situações sociais diferentes ou confrontados a elas.
Cada um de nós teve oportunidade (com a condição de aceitar sua
“interioridade”) de se perguntar: mas qual é a relação entre o que sou
e essa pessoa que tem o mesmo nome que eu e que teve oito anos, ou
vinte anos? BARTHES, em Barthes par lui même (1975) e em La chambre
claire (1980), escreveu belíssimas páginas, nas quais mostrou esse es-
tranhamento: sou eu mesmo aquele que essa velha foto me devolve? E,
evocando o decorrer do tempo: não penso mais, não vivo mais, não
creio mais como esse ser que leva meu nome.
Tal experiência é comum e não mereceria que nela me detivesse,
por minha vez, caso ela não permitisse colocar em termos tempo-
rais a questão das identificações múltiplas instantâneas, tal como
foi colocada por FREUD em “Psicologia de grupo e análise do
ego”. FREUD escreveu:

cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos,


acha-se ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos
e construiu seu ideal de eu segundo os modelos mais variados.
Cada indivíduo, portanto, partilha de numerosas mentes gru-
pais – as de sua raça, classe, credo, nacionalidade etc. – podendo

51
Psicossociologia – Análise social e intervenção

também elevar-se sobre elas, na medida em que possui um frag-


mento de independência e originalidade.5

Certamente, FREUD não deixa de lado a dimensão temporal nes-


sa frase, em particular quando enuncia que o indivíduo “cons-
truiu seu ideal de eu segundo os modelos mais variados”, pois
toda construção, por definição, necessita do trabalho do tempo.
Mas ele insiste, no entanto, mais na divisão ou mesmo na ruptura
às quais todos estão submetidos a cada instante de sua vida. Se
não esquecermos que o processo identificatório está em ação du-
rante toda a vida e que ele é o único que permite ao indivíduo
continuar vivo, portanto capaz de se afirmar diferentemente de
como o fez no passado, então é possível questionar, em sua pure-
za, a idéia de permanência e de constância. Nunca sabemos de
maneira precisa, no momento em que falamos, quem está falando
e por que falamos dessa maneira.
b- A idéia de unidade parece ainda menos sólida. Sabemos: que somos
compostos de uma “pluralidade de pessoas psíquicas” (o isso, o eu
etc.) que visam, cada uma, a sua própria finalidade; que processos de
clivagem, de preclusão e de denegação estão operando em nós; que o
inconsciente tem um papel enorme em nossa maneira de viver e que
ele não está submetido aos mesmos processos do nosso eu consciente,
o qual não pode ser considerado como o sujeito da enunciação e da
ação. Eu é um outro, já dizia RIMBAUD. Se, além disso, admitimos
que pode haver em nós “visitantes do eu” (A. de MIJOLLA, 1982),
“criptas” tanto mais incrustadas quanto mais são o fruto de um silên-
cio (N. ABRAHAM e M. TOROK, 1976), então, a esperança de uma
bela unidade do indivíduo se estilhaça.
c- Quanto ao reconhecimento do mesmo, implica que eu seja capaz
de responder à questão “quem sou eu?”, de reconhecer em mim
minha parte conhecida e minha parte estranha (“os caminhos mis-
teriosos vão para o interior”, escrevia ARNIM) e de decidir quem
posso reconhecer como um outro eu-mesmo, quando sei tão pouco
o que sou.
Assim, a identidade pessoal (não evoco aqui os enormes proble-
mas colocados pela identidade cultural) é, sob certos aspectos, ilu-
sória. No entanto, não podemos abandonar essa idéia, a menos que
acreditemos sermos apenas uma série de máscaras e, assim, cairmos
na irresponsabilidade. Precisamos, então, admitir, com WINNICOTT
(1966), que, a partir de um estado não integrado, tentamos continua-
mente criar um “si” que evolui, mas que mantém um certo grau de

52
A interioridade está acabando?

coerência. Porém, a sociedade contemporânea não precisa de uma


tal concepção que implica, para o indivíduo, a interrogação, a dúvi-
da, o remorso, o trabalho sobre si, a aceitação dos processos de cliva-
gem, da “inquietante estranheza” e, sobretudo, a possibilidade de
tomada de consciência de suas falhas, de suas faltas, de seus dese-
jos. Os duros golpes da Psicanálise contra a noção de identidade
coerente e unificada e a favor de uma reflexão sobre as identificações
só podem irritá-la profundamente. O que nossa sociedade reclama,
assim como as instituições e organizações que a compõem, é a exis-
tência de indivíduos que saibam estabelecer uma distinção nítida
entre eles mesmos e os outros, que sejam capazes de adaptar o mun-
do à sua vontade, escolhendo as máscaras sociais que precisam,
segundo as circunstâncias (como o Zellig de Woody ALLEN) e que,
adotando estratégias flexíveis e sabendo utilizar os atalhos, estejam
em condições de chegar aonde sua ambição (ou a ambição de sua
organização) os impele a ir. São, portanto, indivíduos com uma “iden-
tidade compacta” (forjo esse termo a partir da fórmula de IBSEN, tão
apreciada por FREUD, de “maioria compacta”, contra a qual os que
querem ser sujeitos de sua história só podem se opor), mesmo se são
aptos a demonstrar “teatralidade histérica”, portanto sedução, e a
adotar as estratégias racionais que se mostrem as mais lucrativas
(identidade compacta e possibilidade de utilizar identidades múlti-
plas não são, portanto, contraditórias, muito pelo contrário).

O ódio inconsciente de si é projetado


sobre os outros, donde um
desenvolvimento da xenofobia e do racismo.

Em cada indivíduo existe um ódio inconsciente de si, como também


um amor consciente por si. Esse ódio contra partes de si mesmo mal inte-
gradas, problemáticas, trazendo “temor e tremor”, é mais facilmente pro-
jetado sobre os outros quando o indivíduo deve dar provas de seu caráter
inteiriço, de um narcisismo a toda prova, de suas capacidades de comuni-
cação e de persuasão, de sua centralização no sucesso de seu trabalho. Os
outros, quaisquer que sejam, e tanto mais porque se parecem conosco,
podem ser o objeto no qual nos livramos do que nos assombra e nos divi-
de. Apenas um exemplo: numa grande empresa, os diretores participam
de um grupo. Um deles explicita suas dúvidas, é ouvido um momento, o
que o leva a evocar elementos de sua vida pessoal que nunca tinha

53
Psicossociologia – Análise social e intervenção

revelado. Nesse momento, é interrompido por um de seus colegas, filho


de um grande industrial, que lhe diz, em substância: “Não continue,
não quero saber nada de seus problemas porque, se você continua, serei
obrigado a falar disso a meu pai e, diante dessas revelações, não somente
você não poderá pretender ficar na empresa dele, mas ele dará um jeito de
lhe fechar todas as portas. Domine-se, seja de novo como nós; esquecerei
o que você disse e você poderá ter o lugar que sua competência merece”.
O “homem com problemas” aprendeu a lição. Ele se tornaria o fraco, aquele
de quem se debocha e que seria eliminado brutalmente. Pediu desculpas
por seu momento de fraqueza e, desde então, comportou-se como o seu
próprio grupo de “pares” desejava. Pôde obter o posto desejado. Nunca
mais abriu seu “foro íntimo” a ninguém, nem mesmo à sua esposa, vinda
da boa burguesia. Apenas, ele tem úlceras constantes.
Esse exemplo (que, naturalmente, não se compara à intensidade das
formas extremas de xenofobia ou de racismo) testemunha a capacidade
dos indivíduos de utilizar as falhas dos outros para preenchê-las com suas
próprias faltas, que detestam. Esse ódio inconsciente de si vai ser tão forte
que os indivíduos não poderão se representar como causa de si próprios
(eles são apenas os porta-vozes de normas fortemente interiorizadas que
foram edificadas pela “maioria compacta”). Ora, quando os indivíduos
estão nessa situação, como mostrou Micheline ENRIQUEZ (1984), por um
processo de contra-investimento, são aprisionados em fantasias de “renas-
cimento e de auto-engendramento de tonalidade megalomaníaca”. Além
disso, experimentam um “ódio visceral de tudo que pode se apresentar
como causa de si” (M. ENRIQUEZ, 1984, p. 270). Um indivíduo que refle-
te sobre si mesmo e, em termos mais gerais, um grupo que tem uma cultura
própria, comportamentos dinâmicos mas não conformistas, serão sus-
ceptíveis de levar os indivíduos com identidade compacta a transforma-
rem o ódio de si no ódio do outro. Com efeito, o indivíduo que demonstra
reflexividade ou um grupo minoritário são causas de si mesmos. Escolhe-
ram ser o que tinham vontade de ser e o mostram de forma visível. Transfor-
mam o mundo no qual estão, simplesmente por se comportarem como “exo-
tas” (V. SEGALEN), quer dizer, como seres que percebem o diverso e que
têm “o poder de conceber o outro” (SEGALEN, reedição de 1986, p. 36).
Nessas condições, eles insultam o narcisismo individual e grupal de todos
os que, tendo uma identidade compacta, formam uma nova maioria com-
pacta; eles questionam sua identidade, seu simbólico, seu imaginário
enganoso. Eles lhes mostram até que ponto estão enclausurados, até que
ponto evitam-se a si mesmos, até que ponto estão presos na apatia (SADE).

54
A interioridade está acabando?

Lembremo-nos de que, para SADE, o verdadeiro libertino deve conhe-


cer “o repouso das paixões”, “o embotamento da sensibilidade” que o
levará a cometer com “fleuma” todos os atos os mais criminosos, sem
emoção, “com essa apatia que permite às paixões se encobrirem”. “Apa-
gar, destruir toda possibilidade de ser tocado” (M. ENRIQUEZ), tal é o
ser apático que é movido não somente pelo processo de contra-investi-
mento anteriormente assinalado, como igualmente por um processo
de desinvestimento letal que visa, como escreve P. AULAIGNER, “à des-
truição da atividade de ligação e de articulação de sentido”. Compre-
ende-se, então, que todos aqueles que buscam articular sentidos, todas
as “minorias ativas”, todos os “exotas”, todos os “marginais”, todos os
“estrangeiros” que devem conseguir se situar, por si próprios, num
mundo a priori hostil ou indiferente, possam se tornar objeto de ódio
ou, pelo menos, de desprezo por parte de todos os que vivem na certe-
za e não na “perturbação de pensar” (TOCQUEVILLE, 1835, reedição
de 1961, p. 103-104). O “matador frio”, o homem dinâmico, guerreiro e
sedutor, pode se transformar tranqüilamente em verdadeiro matador.
Quem não se amolda deve ser liquidado. Como dizia um chefe de em-
presa, a propósito de “cortar gorduras”: não se deve temer “cortar ao
vivo”, “fazer correr sangue”. Sente-se sempre mais puro quando foi
possível fazer correr sangue impuro. Sente-se tanto mais admirável
quanto mais foi possível fazer desaparecer tudo o que não pode ser
incluído no ideal e que se encontra, assim, “em demasia”. De um lado
estão os vencedores; do outro, os “parasitas” (mãos-de-obra excedentes,
norte-africanos que “roubam o trabalho dos outros”, no dizer dos racis-
tas, pessoas que se comprazem em refletir sobre sua ação etc... só podem
ser consideradas como “parasitas” que a sociedade deve excluir ou, pelo
menos, colocar em lugares criados especialmente para eles).
É interessante constatar que qualquer um pode se tornar um pa-
rasita, um piolho a ser eliminado. Basta ouvir certos discursos ou no-
tar certos atos referentes a toxicômanos, soropositivos e, ainda mais,
doentes de AIDS, para nos darmos conta da violência da possibilidade
de exclusão que pode atingir todos os que não são “sadios”, quer di-
zer, os que não se assemelham aos indivíduos que, em seu corpo como
em seu espírito, se evitam a si próprios, dando a impressão de só se
ocuparem de si mesmos.

Assiste-se a passagem de uma civilização da


culpabilidade a uma civilização da vergonha.

55
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Ruth BENEDICT, em O crisântemo e a espada (1946), um estudo so-


bre a sociedade japonesa, chamou a atenção para uma diferença essen-
cial entre as sociedades ocidentais e a sociedade japonesa. Essa última
seria uma cultura da vergonha, enquanto aquelas seriam uma cultura
da culpabilidade. Essa distinção é, sem dúvida, demarcada demais e a
culpabilidade da criança japonesa com relação à sua mãe foi evidencia-
da por outros autores. Da mesma forma, seria exagerado dizer que nos-
sas sociedades não são mais guiadas pelo sentimento de culpa, mas pela
vergonha. No entanto, é mesmo a uma tal passagem (certamente inaca-
bada) que estamos assistindo. Uma civilização da culpabilidade só é
possível se existe um sentimento de culpa, quer o ato culpável tenha
sido perpetrado ou não. Ela supõe, portanto, a luta, no interior de si, da
agressividade, da inveja e do amor, além do reconhecimento dessa luta;
ela só pode se desenvolver “no universo da falta”. Ora, falta e sentimen-
to de culpa requerem um interesse pelos vínculos que nos ligam a nós
mesmos, aos outros, ao cosmos e ao infinito (que esse último seja cha-
mado de Deus ou outro nome) além de uma aceitação da articulação do
desejo e da proibição.
Uma civilização da vergonha é completamente diferente. Todo ato re-
preensível, seja ele qual for, pode ser perpetrado. Basta que não seja desco-
berto. Se ele for conhecido, a vergonha se abate sobre o autor da ação. Tudo
está no ato e em sua visibilidade. Se um ato corajoso – ou, simplesmente, um
ato que atesta o dinamismo do indivíduo – é realizado, é preciso que seja
conhecido por todos, a fim de que o indivíduo possa ser recompensado
segundo seu mérito. Insiste-se também na necessidade de “volta da co-
ragem” (J. L. SERVAN-SCHREIBER, 1988), na demonstração das capa-
cidades de ascese e de enfrentar riscos (andar sobre brasas, escalar um
paredão com as mãos nuas, voar em asa delta etc.). Mas, infeliz de quem
trapacear, fracassar, tiver medo diante de todo mundo (pois essas con-
dutas acontecem em grupo ou sob o olhar das mídias). Ele será perse-
guido pela vergonha de não ter conseguido, em condições normais, ir
além de seus limites. A vergonha não toca o indivíduo em sua intimida-
de, mas o toca em seu ser social, em sua aparência.
Assim, vemos proliferar, em nível esportivo (mas tudo não está sendo
cada vez mais medido pelo padrão esportivo?), as práticas que permi-
tem ganhar, utilizando-se produtos proibidos. O esportista que vence
nessas condições não se sente de forma alguma culpado, ele se tornará
objeto de vergonha (por exemplo, Ben JOHNSON nos Jogos Olímpicos)
quando provas esmagadoras caírem sobre ele. Se não for descoberto, a
honra e o dinheiro serão seus sem que, por isso, se sinta culpável.

56
A interioridade está acabando?

Só dei exemplos esportivos. Mas o estudo do mundo dos “negócios”


(por exemplo, a lavagem dos narco-dólares, as notas frias, o desenvolvimen-
to da corrupção nas esferas da sociedade que haviam sido preservadas até
agora) mostraria ainda melhor a que ponto se pode tramar, nas sombras, atos
dos mais contrários à moral comum, sem culpabilidade. Quanto mais viver-
mos no mundo do fazer e da aparência, mais a civilização da vergonha se
imporá e a culpabilidade ligada à interioridade desaparecerá.

Esse movimento de desaparecimento


da interioridade não é inelutável.

Não se deveria pensar, lendo as reflexões precedentes, que o jogo está


feito. Porém, um outro artigo seria necessário para mostrar como a interiori-
dade resiste e porque penso que a nossa época, privilegiando a aparência,
acabará como todas as que tentaram suprimir o sujeito humano.
Direi simplesmente: (a) que o corpo resiste e que as mais variadas
somatizações expressam até que ponto, quando não é possível falar-se a
si mesmo, o corpo se encarrega de fazê-lo; (b) que os fracos ideais propos-
tos à identificação já provocaram formas de rejeição; (c) que os ideais
fortes, necessários à vida humana, podem ser criados sem que daí de-
corra, necessariamente, o fanatismo, uma vez que se pode negociar idea-
lização e sublimação (movimentos pelos direitos humanos, contra o ra-
cismo, contra a pobreza etc. nascem a cada dia sob nossos olhos e, apesar
de suas imperfeições – normais, felizmente -, podem mobilizar grupos a
serviço de uma ética); (d) que o pensamento mágico prevalecente hoje
em dia (estamos à beira da “onipotência das idéias”, semelhantes nisso
aos povos mais arcaicos), enunciando que é possível tornar os indiví-
duos mais performáticos, os seres mais unidos e as organizações mais
dinâmicas, com um único passe de mágica, já começa a ser profunda-
mente criticado; (e) que a psicologização exagerada dos problemas (o
sucesso depende apenas da vontade do indivíduo de superar os obstá-
culos) tende a fazer desaparecer tanto o sujeito humano quanto o grupo
e a organização nos quais ele atua. Essa psicologização (ligada ao cres-
cimento da civilização da vergonha) que tende a tornar impossível uma
Psicossociologia Clínica encontra seus limites no número de excluídos
que ela produz.
Com efeito, são suspeitos, postos de lado, senão mesmo “margina-
lizados” todos os sujeitos que não são obcecados pelo sucesso social,
pelo jogo de aparências, que não têm o gosto pelo efêmero ou por uma

57
Psicossociologia – Análise social e intervenção

cultura de relações sociais valorizadas e mutantes, que resistem à ade-


são maciça a uma organização ou a uma instituição “fanatizadas”, que
desejam uma vida regida por uma ética e que buscam um ideal sem cair,
por isso, na doença da idealidade. Mais ainda, encontram-se na mesma
situação todos os que, aceitando as regras do novo jogo, são esquecidos
ou eliminados por responderem insatisfatoriamente (ou por não mais
respondem) aos critérios de “excelência”, à obrigação da performance
sempre a ser renovada (diretores que tiveram aposentaria antecipada
ou que foram demitidos, trabalhadores incapazes de se readaptar, jo-
vens sem qualificação e que têm como horizonte o desemprego, a delin-
qüência, a droga, assim como as pessoas às quais se pede uma qualifica-
ção maior, sem lhes dar uma retribuição mais adequada (como as
enfermeiras, os ferroviários, os animadores socioculturais etc.).
Esses “excluídos”, esses “esquecidos” da sociedade, começam a se fa-
zer perguntas. Sem dúvida, eles ainda as fazem “na exterioridade”, em ter-
mos de necessidades a serem satisfeitas imediatamente (demanda de criação
de empregos, de indústrias, de espaços, de crédito, além das reivindicações
relativas ao reajuste do salário ou à valorização digna de seus esforços). Eles
não se dão conta, necessariamente, da força de seus desejos reprimidos ou
recalcados nem da própria realidade de seus desejos. Podem pensar que
esses serão satisfeitos se a sociedade ou a organização cederem à sua deman-
da explícita. Na realidade, sentem freqüentemente que suas exigências são
de uma outra ordem (desejo de reconhecimento, de afirmação ou de identifi-
cação, busca de identidade, reconforto narcísico) e que o caminho para obtê-
lo passa obrigatoriamente pela interrogação, pelo sofrimento, pela alegria,
assim como pela capacidade de sublimação.
Mas eles não podem ainda ter uma representação clara do que, velada-
mente, governa seus discursos e seus atos. Entretanto, apenas o fato de
fazerem perguntas “na exterioridade” e de começarem a experimentar a
angústia permite-nos esperar que eles possam um dia se por à prova, se
indagar sobre a necessidade de dar ao psíquico (esse “inquebrantável nú-
cleo da noite”, para retomar a expressão de BRETON) a parte que lhe é
devida em todos os processos de transformação. Nesse momento, as per-
guntas, com sua carga enigmática, poderão, sem dúvida, ser tratadas “na
interioridade”. Esses sujeitos, entretanto, deverão se precaver, evitando o
Charybde da exterioridade, para não caírem na Scylla de uma interiorida-
de tal como foi definida por Thomas MANN – qualidade suprema do ho-
mem alemão que leva ao abandono do mundo objetivo e político6 –, pois
sabem bem a que aberrações tal concepção pode levar. Sendo assim, mesmo
se a interioridade, tal como tentei delineá-la, não desapareceu e não está

58
A interioridade está acabando?

perto de desaparecer (como atestam a volta dos registros íntimos, as auto-


biografias, os “diários de bordo”, com suas difusões amplas), é necessário
ter consciência de que a sociedade atual criou relações sociais suficientes
para permitir aos homens evitarem a si mesmos e aos outros e, assim, não
se confrontarem com o problema crucial da existência: o da alteridade dos
outros e o da sua própria alteridade.

Notas
1
Traduzido de ENRIQUEZ, Eugène. “Vers la fin de l’intériorité?” Psychologie Clinique,
1989-2, p. 61-76, por Sonia Roedel.
2
Grandes escritores alemães, tão diversos quanto GOETHE, NOVALIS e KLEIST
testemunham esse movimento de ligação entre razão e paixão. GOETHE, espírito
racional e humanista por excelência, descreve “os sofrimentos do jovem Werther” e
inicia, assim, involuntariamente, o romantismo, o gosto pelo mórbido, pela emoção,
contribuindo para a onda de suicídios que pontua o princípio do século XIX. NOVA-
LIS, seu oposto, o homem dos Hinos à noite, da poetização do universo, do culto do
inconsciente e dos instintos, deseja escrever (e redige em parte) uma Enciclopédia.
Quanto a KLEIST, sem dúvida o mais apaixonado dos românticos e que sanciona
sua vida por um suicídio, nunca se contenta de por ordem na vida e de dizer que é
impossível viver sem “um projeto de existência”. Cf. sobre KLEIST: E. ENRIQUEZ.
Entre la marionnette et Dieu.Topique, 34, 1985, p. 89-112.
3
Cf. ENRIQUEZ, E. “Immuable et changeante illusion: l’illusion nécessaire”. Topique, 37,
1962, p. 135.
4
Como um cadáver (em latim no original). Segundo o Larousse, “expressão pela qual Sto.
Inácio de Loyola, em suas constituições, prescreve aos jesuítas a disciplina e a obediência
a seus superiores, reserva feita dos casos nos quais a consciência proíbe”. (N. da T.).
5
FREUD, S. “Psicologia de Grupo e Análise do Ego” (1921). Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XVIII, p. 163. (N. da T.).
6
Thomas MANN escreveu: “A interioridade, a Bildung do homem alemão, é a absor-
ção em si ou introspeção; é uma consciência cultural individualista; é a inquietação
com o cuidado, com a formação, com o aprofundamento do eu puro ou, em termos
religiosos, da salvação e da justificação da vida pura; é, então, um subjetivismo
espiritual apreciador da autobiografia e da confissão, na qual o mundo objetivo, o
mundo político, é sentido como profano e abandonado com indiferença pois, como
diz Lutero, ‘essa ordem exterior não tem importância’”. Considérations d’un apoliti-
que, citado por L. DUMONT. Individualisme apolitique. In: Sur l’individu. Paris:
Seuil, 1987, p. 38-53.

Referências
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1976.
ABRAHAM, N. L’écorce et le noyau. Paris: Aubier, 1976.

59
Psicossociologia – Análise social e intervenção

AULAIGNER, P. “Condamné à investir”. Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 25,


1982, p. 309-330.
BARTHES, R. R. Barthes par lui-même. Paris: Seuil, 1975.
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BENEDICT, R. Le sabre et le chrysanthème, 1946. Trad. franc. Picquier, 1987.
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ENRIQUEZ, E. “Immuable et changeante illusion: l’illusion nécessaire”. Topique, 37,
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ENRIQUEZ, E. “Heinrich von Kleist: entre la marionnette et Dieu”. Topique, 34: 89-
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ENRIQUEZ, M. Aux carrefours de la haine. EPI, 1984.
FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité 3: Le souci de soi. Paris: Gallimard, 1984.
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GREEN, A. Narcissisme de vie, narcissisme de mort. Paris: Ed. de Minuit, 1983.
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SEGALEN, V. Notes sur l’exotisme (1908). Biblio-Essais, reedição, 1986.
SERVAN-SCHREIBER, J. L. Le retour du courage. Paris: Gallimard, 1961. Tomo I.
VERNANT, J. P. “L’Individu dans la cité”. In: Sur l’Individu. Paris: Seuil, 1987,
ps. 20-37.
WINNICOT, D. W. “Ego distorsion in terms of true and false self (1966)”. Trad.
francesa In: Processus de maturation chez l’enfant. Paris: Payot, 1970.

60
OVÍNCULOGRUPAL1
Eugène Enriquez

São numerosos os estudos sobre os mecanismos ou processos de gru-


pos já constituídos, que têm uma história (mesmo que limitada a algumas
horas, como os grupos de seminários ditos de dinâmica de grupo) e que
tentam formar para si um futuro. São mais raras, no entanto, as análises
dos grupos em estado nascente. Ora, esse problema é capital, pois pode-se,
sem dúvida, fazer constatações e descrições finas da vida dos grupos, mas
não se está à altura de compreender, enquanto não for possível responder
às questões que se seguem, a base sobre a qual são elaborados os princípios
que presidem à instauração de todo grupo e que permanecem decisivos ao
longo de sua história: O que favorece o vínculo grupal? Por que indivíduos
se reúnem e chegam a funcionar como uma comunidade? O que permite
diferençar um simples amontoado de sujeitos de um grupo consciente de
sua existência e de seus valores?
Eu gostaria, então, neste texto, de levantar algumas hipóteses referentes
aos elementos em jogo na formação dos grupos e na perenidade de sua ação.
O primeiro ponto que vou salientar – e que apresenta, à primeira
vista, um caráter de evidência – é a necessidade de um projeto comum.

O projeto comum
Um grupo só se constitui em torno de uma ação a realizar, de um projeto
ou de uma tarefa a cumprir. Todos sabem e reconhecem isso. O que parece, no
entanto, menos evidente são as implicações e as conseqüências de tal axioma.
Um projeto comum significa, de início, que o grupo possui um siste-
ma de valores suficientemente interiorizado pelo conjunto de seus mem-
bros, o que permite dar ao projeto suas características dinâmicas (fazê-lo
passar do estágio de simples plano ao estágio da realização).
Vamos um pouco adiante. Tal sistema de valores, para existir, deve
se apoiar em alguma (ou mais de uma) representação coletiva, em um
imaginário social comum. Por imaginário social entendo que só podemos

61
Psicossociologia – Análise social e intervenção

agir quando temos uma certa maneira de nos representar aquilo que
somos, aquilo que queremos vir a ser, aquilo que queremos fazer e
em que tipo de sociedade ou organização desejamos intervir. Para
serem operantes, tais representações devem não só ser intelectual-
mente pensadas, mas afetivamente sentidas. Não se trata unicamen-
te de querer coletivamente; trata-se de sentir coletivamente, de expe-
rimentar a mesma necessidade de transformar um sonho ou uma
fantasia em realidade cotidiana e de se munir dos meios adequados para
conseguir isso.
Mas esse sentimento, motor de nossa conduta, só pode emergir e
ter força de lei quando ligado a um sistema de idealização de nós mes-
mos e de nossa ação. Somente um projeto tido como objeto ideal e so-
mente nós mesmos tidos como seres idealizados (mais puros, mais belos
que os outros) podem ser elementos suficientemente mobilizadores para
fazer-nos sair da apatia ou da simples expressão de nossa boa vontade.
Todo grupo funciona à base da idealização, da ilusão e da crença. A
idealização está presente na elaboração de um projeto comum, pois ela
é o elemento que dá consistência, vigor e “aura” excepcional, tanto ao
projeto quanto a nós mesmos que, a nossos próprios olhos, nos fortifi-
camos (reforçando simultaneamente o eu ideal e o ideal do eu), cor-
rendo esse risco intelectual e social, tentando nos situar a uma altura
que nos parecia antes inatingível. A ilusão deixa igualmente sua marca.
Ela é um dispositivo simbólico que permite a canalização de nossos
desejos, que nos poupa toda interrogação sobre o valor desses desejos
e que fornece uma solução pronta para os possíveis conflitos entre es-
ses.2 Se FREUD criticou tanto a ilusão religiosa é porque, nela, ele via o
protótipo de uma Weltanschauung que tinha a pretensão de dizer a ver-
dade sobre a verdade e de incluir o indivíduo, com uma força particu-
larmente viva, em um sistema de pensamento e em um sistema social
que lhe tiravam toda possibilidade de pensar por si mesmo e de “tra-
balhar” as Condições e as conseqüências de seus comportamentos. Ora,
para que um projeto comum possa verdadeiramente nos mobilizar, cons-
ciente e inconscientemente, é necessário que, num grau maior ou menor,
ele se apresente sob um aspecto religioso, sagrado, inatacável: assim, ele
pode nos atrair, nos inspirar, nos fazer sair de nossa cotidianidade e nos
unir aos outros que partilham da mesma ilusão. Da ilusão à crença, a pas-
sagem é rápida. Um dispositivo simbólico que funciona encobrindo toda
dúvida, todo trabalho de interrogação sobre si, transforma-se logo em um
sistema de crença. Pois o ato de crer permite a certeza e elimina a questão
da verdade. Um grupo que queira fazer alguma coisa deve acreditar nela

62
O vínculo grupal

(deve, pois, eliminar toda inquietação relativa aos fundamentos do que


quer realizar), a fim de poder arregimentar toda a sua energia para o
sucesso de seu projeto.
É verdade que algumas distinções finas se impõem aqui. Assim, ide-
alização, ilusão e crença não funcionam de maneira maciça. A crença de
um militante político revolucionário não é assimilável à crença de um
pesquisador no objeto de sua ciência, pois esse não pode escamotear a
questão da verdade. Mas isso não impede que esses três elementos este-
jam presentes, de maneira mais ou menos forte, na formação de todo gru-
po. Embora um grupo, existente há muito tempo, possa perder parte de
suas ilusões, deixando de considerar o que faz como visando ao ideal
mais elevado ao qual pode aspirar e deve se referir, o mesmo não se passa
com um grupo no momento de se instituir, pois esse não pode se estrutu-
rar se algum desses três elementos vier a faltar. Idealização, ilusão e cren-
ça levam-nos à noção de causa a defender. FREUD já pensava que a Psica-
nálise, para se desenvolver, deveria ser defendida como uma causa, à
qual se agarraria com todas as fibras de seu ser (certos psicanalistas atuais
não hesitaram em chamar sua escola de Escola da Causa Freudiana, assi-
milando, abusivamente sem dúvida, suas práticas à da Psicanálise como
um todo). Todo militante político pensa do mesmo jeito. Crê que deve ser
capaz de se sacrificar pela causa que o motiva (a nação, a revolução etc.).
Todo membro de um grupo é, em certa medida, o porta-voz e o guardião
de “alguma coisa” que o ultrapassa e que legitima sua ação e sua vida (os
primeiros psicossociólogos na França diziam, bem à vontade, que eles
exerciam o militantismo psicossociológico). Todo membro de um grupo
sente-se investido de uma missão (mesmo se ele mesmo se designou essa
missão) à qual deve consagrar seu tempo e sua vitalidade. Causa a defen-
der, missão a cumprir, sacrifício da própria vida (às vezes no sentido preci-
so do termo: em certos países, o militante político arrisca, verdadeiramen-
te, sua vida), todos esses termos têm uma ressonância religiosa. E isso não
acontece gratuitamente. Eles assinalam que o projeto pertence a um mun-
do transcendental e sagrado que assegura a seu portador a certeza de
estar com a verdade e de ser tanto mais admirável quanto mais brilhante
for o projeto. Para que um grupo se cristalize e crie seus meios de ação, é
preciso que se refira a um grande propósito que lhe garanta sua onipotên-
cia e que encubra, consequentemente, toda a dúvida sobre os limites de
seu poder, sobre a possibilidade de sua impotência. A causa pode ser
sublime ou irrisória, grandiosa ou pueril, esse não é o problema. Sua
presença é indispensável e as modalidades de seu aparecimento são con-
tingentes e arbitrárias.

63
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Um grupo minoritário
Se o grupo tem uma causa a defender e a promover, isso significa
que ele se pensa, se representa e quer se definir como uma minoria atuante.
A maioria não tem jamais uma causa a defender; a causa que ela repre-
senta já triunfou anteriormente, faz parte do bem comum ou se tornou
mesmo um lugar comum. (Pensemos na afirmação da liberdade de todo
cidadão no momento do sobressalto revolucionário de 1789 e no empo-
brecimento desse termo, utilizado nos dias de hoje por todos os partidos
políticos, sem exceção, mesmo pelos mais sedentos de combatê-la). A
maioria tem por objetivo o de bem gerir o patrimônio coletivo e manter
uma ideologia favorável à ordem social que ela instituiu. A maioria não
tem jamais um grande propósito; ela só tem interesses a conservar e uma
organização a consolidar.
Só um grupo minoritário (como os psicanalistas – e FREUD em pri-
meiro lugar –, os primeiros psicossociólogos e numerosos outros exem-
plos), isto é, um grupo que tem a comunicar uma mensagem nova, a procla-
mar uma visão nova do mundo (ou, mais modestamente, de uma profissão
ou de uma disciplina), a manifestar uma conduta desviante em relação às
normas da instituição ou da sociedade, pode ser capaz de se arriscar para
fazer triunfar o que presidiu sua fundação. As idéias novas, nós o sabe-
mos, são o feito de um número muito pequeno de pessoas, algumas vezes
de uma só3 , lutando contra o que IBSEN já denominara “a maioria com-
pacta”, encarnação da ordem estabelecida e das idéias esclerosadas e
enrijecidas. Essas pessoas sabem que, geralmente, têm poucas chances de
serem bem sucedidas e as mais conscientes pressentem que, no caso de
sucesso, são sobretudo os seus discípulos e seguidores que ganharão
com esse avanço. Pouco importa. “A dissidência de um só” (retomando
a bela expressão de MOSCOVICI4 sobre SOLZHENITSYN) pode, pro-
gressivamente, se tornar a dissidência de muitos, propagar-se como uma
mancha de óleo e, talvez mesmo, triunfar. IBSEN acreditava nos que diziam
que “é a minoria que tem sempre razão”. Eu serei menos afirmativo, mas
direi que, caso uma minoria, um dia, queira triunfar, ela deve, imperativa-
mente, acreditar que está com a razão. Do contrário, sua luta não terá
alma nem razão de ser.
Toda minoria tem, pois, vocação majoritária: mas, antes de chegar a
seus fins, ela deve primeiro, para se reforçar, atingir o grau de adesão que
permite aos indivíduos se sentirem, antes de tudo e contra tudo, membros
do grupo. Para isso, só existe um caminho: o do complô contra os valores
instituídos, o da conjuração tramada no segredo e assegurada pela fé

64
O vínculo grupal

jurada (juramento que faz de todos os membros do grupo ao mesmo


tempo cúmplices e irmãos), visando não à contestação da ordem exis-
tente, mas à sua transgressão. A contestação, com efeito, tem por objeti-
vo questionar o sistema vigente, desmistificando-o e desmitificando-o,
explicitando o implícito dos comportamentos, tornando claro o “não-
dito” e o “não-pensado” da ordem social. Ela não visa a propor outra
coisa, novas maneiras de ser ou de se conduzir. A transgressão, ao
contrário, não somente interroga de maneira virulenta as instituições
e as condutas estabelecidas, mas propõe novas idéias, maneiras ino-
vadoras de ser. A Psicanálise, por exemplo, não tentou apenas desar-
ticular a antiga ordem psiquiátrica e a visão organicista da doença
mental, mas enunciou uma nova teoria da psique e uma concepção da
cura que coloca os fenômenos transferenciais e contratransferenciais
entre o psicanalista e seu paciente no próprio centro da cura. Assim
fazendo, a transgressão diz não apenas que o saber antigo é obsoleto,
mas que um novo saber apareceu, que as práticas sociais e as repre-
sentações coletivas não apenas não têm mais eficácia, mas também
que práticas sociais novas são possíveis e que representações coleti-
vas renovadas devem guiar a ação.
Tal transgressão só pode ocorrer pela expressão de uma certa violên-
cia. Não se ataca a antiga ordem com um debate cortês, mas pela luta. Luta
empreendida em nome da verdade e da pureza, contra um exterior percebi-
do como tão obscuro, tirânico e conservador que se quer derrubá-lo. Pouco
importa que o ambiente seja menos repressivo do que se pensa, que as
idéias tradicionais tenham um fundo de verdade. Para que a vitória seja
possível, é preciso se definir pela intransigência e pela intolerância, ser
claro como a neve e se sentir irmão dos outros transgressores.
Todo o dispositivo contra o qual se luta é percebido como fortemente
hierarquizado. E na maior parte das vezes ele o é, pois se funda em insti-
tuições sólidas, na cristalização de desejos passados e de poderes estabe-
lecidos. Toda instituição, enquanto elemento da regulação social, visan-
do à repetição, ao idêntico e à reprodução das relações sociais é, sob
certos aspectos, sintoma do trabalho da pulsão de morte (compulsão à
repetição, vista como pulsão agressiva). Ela é o que impede a tomada de
consciência das relações sociais reais e das relações humanas autênticas;
ela é, enfim, a sedimentação das relações de poder e das estratégias que,
no passado, deram certo.
Assim, o grupo vai tentar destruir as instituições. Como essas repre-
sentam a ordem paterna, o falo triunfante ou a mãe arcaica devoradora, o
grupo só pode lhes opor a ordem fraterna e igualitária.

65
Psicossociologia – Análise social e intervenção

FREUD compreendeu isso bem. Não há complô verdadeiro, a não


ser entre irmãos. FREUD, aliás, viu mais longe: ele se deu conta de que é
o complô que torna os indivíduos, a priori estranhos ou rivais entre si,
irmãos uns dos outros.
Se nem todo grupo tem que matar o pai da horda, todo grupo, não
obstante, deve criar um acontecimento irreversível, mediado por uma vi-
olência que substituirá a violência instituída e insuportável aos novos
irmãos, violência fundadora de um novo mundo, permitindo-lhes formar
entre si uma verdadeira comunidade.
É o ódio ao exterior que vai favorecer o amor fraterno e fazer circular o
fluxo libidinal que permite a passagem dos sentimentos egoístas aos senti-
mentos altruístas. Sem essa vontade de destruição, sem esses sentimentos
de serem perseguidos pelos detentores da ordem antiga, seria impossível
aos indivíduos reunidos trabalharem juntos ou se amarem, isto é, mante-
rem essa confiança recíproca que não apenas os transforma em membros
de um grupo, identificados uns aos outros (tendo trocado sua diferença e
sua provável rivalidade por um amor mútuo e maior semelhança), mas
também favorece a emergência de um narcisismo grupal e evita todo confli-
to interno. Ódio ao exterior, amor mútuo, amor ao grupo enquanto grupo,
sentimento de serem irmãos e de formarem uma comunidade de iguais,
sentimento de serem minoritários e portadores da verdade, são essas as
condições de constituição do vínculo grupal.

O desejo e a identificação
O grupo assim formado vai se encontrar diante de um problema estru-
tural que tentará tratar continuamente, porém sem sucesso. Esse problema
é o do conflito entre o desejo e a identificação ou, em outras palavras, entre
o reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento.

O reconhecimento do desejo
Em um grupo, cada sujeito procura exprimir seus desejos e fazer
com que os outros os considerem. Ele quer se fazer amado pelo que é ou,
ao menos, não ser rejeitado, conquistar prestígio ou uma certa posição
social e quer realizar o que sente como se fosse a própria essência de
seu ser. Se ele faz parte do grupo, não é só porque quer realizar um
projeto coletivo, mas sobretudo porque pensa que é com essas pessoas
e não com outras, graças a esse imaginário comum e não a outro, que
pode chegar a tornar seu desejo reconhecido em sua originalidade e
em sua especificidade, tornar seus sonhos reais, fazer-se aceito em sua

66
O vínculo grupal

diferença irredutível, em seu ser insubstituível. Cada sujeito tentará


então amealhar os outros nas redes de seus próprios desejos, manifestar
no real suas fantasias de onipotência e denegar a castração que é vivida,
nesse caso, como ameaça real e não como elemento da ordem simbólica.

O desejo de reconhecimento ou a identificação


Mas, em um grupo, o sujeito não quer apenas expressar seu próprio
desejo; quer, igualmente, ser reconhecido como um de seus membros.
Aliás, se não o desejasse, não poderia ter sido aceito por seus semelhan-
tes, não teria podido fazer parte da conjuração, estar a par do “segredo”
(um grupo em estado nascente é sempre, em maior ou menor grau, uma
sociedade secreta com seu ritual e seu código). Para que os diversos
membros do grupo se reconheçam entre si, para que possam se amar,
não devem ser muito diferentes uns dos outros. Mais ainda – e aqui
também FREUD nos abre o caminho –, eles devem se identificar uns aos
outros, colocando um mesmo objeto de amor (a causa) no lugar de seu
ideal do eu. Assim, eles se tornarão semelhantes, formarão um verdadeiro
corpo social e não um aglomerado de indivíduos. Essa semelhança bus-
cada, essa igualdade insensata (mesmo quando um sujeito se destaca, ele
apenas é o irmão mais velho e mais experiente) pode resultar na formação
de indivíduos uniformes, homogêneos, inventores de normas rígidas e
profundamente interiorizadas, às quais cada um deverá se submeter. Para
se dar conta de até que ponto uma ideologia vivida conjuntamente pode
dar lugar a uma linguagem hermética e a condutas normalizadas, basta
pensar no aspecto estereotipado das atitudes de certos psicossociólogos
não diretivos ou de psicanalistas “lacanianos”.
De todo jeito, cada sujeito (e cada grupo) será enredado nesse conflito
estrutural entre o reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento.
Assim sendo, cada grupo terá a tendência a resolver o problema esco-
lhendo uma dessas duas direções.
O grupo, querendo formar uma comunidade, um corpo social com-
pleto, pode caminhar ou na direção de se tornar massa ou na direção da
diferenciação
diferenciação.

A MASSA

Num tal caso, é o desejo de reconhecimento que predomina.


O grupo não tolera a diversidade de condutas e de pensamentos. O
único problema é a mais estrita identificação. Tal perspectiva comporta
cinco séries de conseqüências:

67
Psicossociologia – Análise social e intervenção

1- A falta de diferenças provoca, progressivamente, a degradação


da reflexão e da inventividade, a falta de inovação e, sem que se
perceba, o emprego de uma linguagem de clichês e de uma “ideo-
logia de granito” (Cl. LEFORT).5
2- O grupo completo vai progressivamente se autonomizar e suplantar
seus membros. Assim como, a partir de MARX, sabemos que as mer-
cadorias criadas pelo homem acabam por revestir o aspecto de “se-
res independentes em comunicação com os homens e entre si” e por
tomar a “forma fantástica de uma relação de coisas entre si”, sabe-
mos agora que toda criação humana acaba por se desligar de seus
criadores, tomando as características de um corpo todo-poderoso,
capaz de nos devorar ou de nos englobar totalmente e ao qual deve-
mos necessariamente obediência e submissão. Estamos, então, face
a um grupo “sorvedouro, abismo, sem-fundo”,6 de um grupo onde
dominarão as imagens arcaicas e no qual os comportamentos serão
de tipo pré-edipiano.
3- A compacidade do corpo formado vai, com efeito, despertar as
fantasias mais arcaicas – medos de fragmentação, angústias de
explosão, de devoração e de destruição – que são apanágio de
todo grupo, mas que, em tal caso (como no do indivíduo perfeita-
mente couraçado que vive uma angústia insuportável de brechas),
tomam um vigor particular. Ocorrerão comportamentos regressi-
vos, de tipo defensivo: suspeita mútua, delação, sentimento de
um meio hostil, tentativa de destruição do outro ou de autodes-
truição do grupo, crédito a rumores e às palavras mais aberran-
tes, influência, no grupo, de indivíduos os mais emocionais, se-
não os mais perturbados, predomínio de fenômenos afetivos nas
tomadas de decisão.
4- A semelhança pode, igualmente, desenvolver condutas que, à pri-
meira vista, não parecem defensivas. Ao contrário, o grupo tem o
sentimento de euforia por se constituir como massa, por ser o mais
forte e o mais belo. Aliás, foi antecipando a emergência desse sen-
timento que a comunidade se dirigiu para essa via. Cada qual se
perde na construção do eu ideal do grupo, pensando dar satisfa-
ção ao seu próprio eu ideal. O grupo se torna objeto de todos os
investimentos, narcisismo individual e narcisismo de grupo coin-
cidem. Nenhum conflito intra-individual ou inter-individual pa-
rece possível. O grupo, portador da “verdade” (!), avança cego,
coberto de certezas. Que ele se guarde da desilusão, que será parti-
cularmente dura de suportar.

68
O vínculo grupal

5- Se, por acaso, alguns membros do grupo suportam mal essa


situação de massa, chegando ao abandono de toda identidade
pessoal, serão excluídos do grupo, como frouxos ou traidores. Se
aceitaram durante longo tempo o processo de uniformização, en-
contrarão as maiores dificuldades para se reinventar uma nova
identidade e para não reagirem simplesmente como “homens de
ressentimento”.

A DIFERENCIAÇÃO
Certos grupos admitem, em seu interior, uma diferenciação dos in-
divíduos e uma variedade dos desejos expressos. Se não se trata de ques-
tionar o projeto comum, a concepção que tais grupos têm desse projeto
não apresenta nenhum aspecto monolítico. Todo mundo, ao contrário,
acreditará que um projeto tem tanto mais chance de ser pertinente, eficaz
e de suscitar adesão ou mesmo entusiasmos, quanto mais ele se apresen-
tar como o resultado de discussões finas, de negociações rigorosas, de
argumentações contraditórias. Os membros do grupo são, então, irmãos
em sua capacidade própria de pensar e de agir, cada qual reconhece a
competência do outro (ou de um outro subgrupo) em domínios específi-
cos que utilizam abordagens e técnicas adequadas (assim, em um centro
de jovens inadaptados, a administração, os educadores, o psicólogo e o
psiquiatra poderão trabalhar em conjunto e não um contra o outro). A
tolerância existe, mesmo se as posições de cada um são defendidas com
clareza e determinação.
No entanto, como a cooperação idílica não existe mas, ao contrário,
todo mundo concorda com a idéia de que a cooperação nasce da expres-
são e do tratamento de conflitos, é possível e mesmo provável que o grupo
viva momentos de desacordos e tensões que podem mesmo atingir, em
certos momentos, “níveis insuportáveis” (FREUD). Teme-se mesmo que o
grupo se desagregue em subgrupos ou em partidos, cada qual acreditando
deter a verdade, orgulhoso de suas prerrogativas e seguro de estar no bom
caminho. A aceitação do conflito institucional como modo normal de regu-
lação do grupo pode acarretar, então, uma maximização das contradições
e pode orientar a maior parte da energia do grupo para a resolução desses
conflitos. Em tal caso, o grupo acabará por esquecer o seu projeto e passa-
rá a maior parte de seu tempo tentando analisar e compreender o que se
passa. A vontade operatória desaparecerá para dar lugar a uma expres-
são afetiva superabundante. O grupo se centrará em si mesmo. No limite,
ele esquecerá os objetivos que deve perseguir. (Assim, em um seminário
para diretores de um centro de jovens inadaptados, tive a surpresa de

69
Psicossociologia – Análise social e intervenção

constatar que esses diretores tratavam apenas de problemas da orga-


nização de seus centros, de suas relações com o conselho de adminis-
tração e da amplitude de seus poderes. Nesse caso, as grandes ausen-
tes de seus discursos eram as crianças de quem se encarregavam.
Entretanto, enquanto professor, eu deveria ter ficado menos surpreso.
É raro ouvir professores falarem de estudantes; é freqüente, ao contrá-
rio, vê-los reclamar da perda de tempo ocasionada por eles). Quando o
grupo não consegue resolver seus problemas, será tentado a achar um
bode expiatório. Essa vítima pode ser alguém que não é de modo al-
gum responsável pela situação atual ou a pessoa que se revela mais
frágil e, por isso, a única que o grupo pode sacrificar levianamente no
altar de seus problemas, pois ninguém tem medo de fazê-lo e cada
qual pode exteriorizar sua agressividade, com toda impunidade e sem
temer medidas de retaliação.
Para não chegar a esse ponto, os grupos que admitem a diferenciação
e que querem se gerir de maneira democrática, acabam por reconhecer em
um de seus membros um poder que vem de sua experiência, uma influên-
cia que vem do domínio das idéias, investindo-o então como chefe capaz
de encarnar a vontade e os desejos do grupo. Esse, assim transformado, se
torna um grupo edipiano, no qual a referência ao novo pai e a seus ideais
se tornará o elemento essencial que permite a identificação mútua e a
coesão do conjunto. Um super-eu coletivo surgirá e o chefe será seu porta-
voz e seu guardião. O que em política se chamou “culto da personalida-
de” ou, nos países ocidentais, “personalização do poder”, e no domínio
da Psicossociologia conhecemos como liderança, encontra aqui sua ra-
zão de ser e seu campo de aplicação. Em qualquer caso, os processos de
grupo girarão em torno da pessoa central, aquela que é considerada como
tendo e sendo o falo.
Fenômenos regressivos do tipo submissão, repetição da palavra do
mestre, crença cega no caráter de verdade daquilo que ele disse, rivalida-
de entre os discípulos para serem o eleito do mestre, tentativas escusas de
fazê-lo cair de seu pedestal, novos complôs para tentar tomar o seu lugar
ou para ridicularizar seus atos, tudo isso corre o risco de aflorar e de
monopolizar uma grande parte das capacidades do grupo.

A paranóia nos grupos


De acordo com cada caso, os grupos serão então do tipo pré-edipiano
ou do tipo edipiano, insistirão na uniformidade ou na diferenciação (o
momento final dessa consistindo na restauração de um líder, mestre do
pensamento e da ação).

70
O vínculo grupal

Mas, de todo modo, sendo bem sucedidos ou não, os grupos não


podem se esquivar, como já constatamos, dos processos paranóicos que
os atravessam constantemente.
Com efeito, o grupo minoritário que, para existir, impôs a seus mem-
bros que investissem libidinalmente nele e também uns nos outros, tende
a desenvolver relações fortemente erotizadas entre seus membros e a fazer
emergir um discurso passional. A situação minoritária obriga os indiví-
duos a se sentirem solidários e a se amarem, mas também a se defenderem
contra o exterior e a se entre-devorarem.
Uma tal paixão tem pesadas conseqüências. Os membros do grupo
podem indagar se alguns dentre eles jogam bem o jogo do amor, rendem-
se ao discurso de amor proferido pelo chefe ou ao discurso de amor co-
mum; podem, igualmente, querer estabelecer vínculos privilegiados com
outros membros, para afirmar a primazia de sua posição fálica. Correntes
de amor e de ódio percorrem o grupo. O problema não é mais saber o que
devemos fazer juntos, mas quem são os amados e os rejeitados, os discí-
pulos eleitos e os indivíduos excluídos, as pessoas conformistas e os
traidores potenciais; é o de saber se nos amamos bastante (se amamos
bastante o grupo), se somos suficientemente amados, se nós nos damos
muito ou nem tanto ao grupo, se alguns se aproveitam da situação refre-
ando seu amor.
Essas questões não podem ser elucidadas, pois um grupo minoritá-
rio, em sua vontade de mudar a ordem na qual intervém, só pode ter
sucesso em sua tarefa se estiver possuído por uma fantasia de onipotên-
cia. Ora, se os indivíduos não se entregam ao jogo ou o revertem a seu
favor, o grupo corre o risco do fracasso. Assim, do mesmo modo que estão
condenados à crença, os membros do grupo estão condenados ao amor.
Correlativamente, eles estão também condenados à suspeita contínua e
aberta. O amor desemboca no ódio, a fantasia de onipotência desemboca
no sentimento de ser perseguido por inimigos exteriores (pela maioria
compacta) e também por inimigos internos que utilizam o fluxo de amor
em função de sua grande glória. A tentação paranóica está pois sempre
presente e acompanha o processo libidinal, transformado muitas vezes
em processo de erotização. Se o grupo é bem sucedido, isto é, se conse-
gue impor os seus ideais ou transformar, em maior ou menor grau, o
campo social, tornar-se majoritário, inscrever seu sonho na realidade,
ele não pode mais duvidar de estar com a verdade. Os raros inimigos que
lhe restam serão perseguidos tanto mais duramente quanto mais tive-
rem se recusado a se submeter à nova lei, a única digna de ser respeitada.
E não serão só os inimigos que serão perseguidos, mas também os fracos,

71
Psicossociologia – Análise social e intervenção

os indiferentes, os marginais, assim como todos aqueles que dão testemu-


nho de outra possível verdade ou de um sentido que não é o sentido do
grupo triunfante, mas outro que está ainda para ser encontrado.
Muitos observadores se espantam, por exemplo, com o fato de uma
revolução devorar seus próprios filhos. Com efeito, é o contrário que
seria de espantar, pois o triunfo revolucionário deverá ser sustentado,
havendo sempre os frouxos e os traidores em potencial (se esses não
existirem, serão inventados segundo as necessidades e, além disso, qual-
quer um é sempre o frouxo ou o traidor para alguém ou para alguma
facção). Quem não se enquadra no discurso de amor comum deve se
submeter ou desaparecer.
Se, de outro lado, o grupo fracassa, isto é, se ele não provoca impacto
social, se seu ideal parece ridículo e sem interesse para os outros, ele vai
procurar as causas de seu fracasso. E elas não são difíceis de encontrar:
são os inimigos exteriores que fecharam as portas para a vitória e são os
inimigos internos que sabotaram os esforços comuns. O grupo é incapaz
de se interrogar sobre as verdadeiras raízes de seu fracasso. Para ele só
existem os perseguidores ativos ou potenciais. Ele os acossará interna-
mente e agirá ruidosamente no exterior, para dizer que ele ainda subsiste.
De fato, esse canto de morte nada mais é que um canto de cisne e sintoma
de sua decomposição lenta e inevitável.
É preciso, no entanto, deixar claro: A paranóia é constitutiva de todo
grupo, mas ela não atua com a mesma intensidade em todos eles. Ela
representa uma tentação constante, mas não é um resultado inelutável.
Para tratar esse elemento constitutivo e desativar sua estrutura mor-
tífera, psicanalistas e psicólogos pregam habitualmente a necessidade de
uma análise aprofundada e de uma regulação do grupo, em sessões con-
duzidas por um analista interno ou externo.
Eu não quereria desacreditar o interesse de tal trabalho, mas gostaria
de sublinhar que ele não é uma panacéia, particularmente quando o gru-
po é composto por pessoas (psicólogos, psiquiatras, educadores, traba-
lhadores sociais) habituadas a se interrogar sobre suas motivações e que
acreditam ter uma certa proximidade com seu inconsciente. Com efeito,
em um processo de análise:
1- Confia-se na linguagem (como na cura analítica) para esclarecer
os problemas.
Ora, o organizador do grupo, isto é, o elemento em torno do qual o
grupo se constitui, é a ação (o projeto comum) e não a linguagem.

72
O vínculo grupal

Nessas sessões trabalha-se com a hipótese de que a linguagem e


a ação são forçosamente complementares e que, assim, a lingua-
gem (a análise) pode e deve acompanhar a ação. De fato, isso
seria amenizar as funções e o alcance de uma análise. A análise
pode dar um sentido mas pode também desarticular. Na própria
medida em que ela interpela os processos de idealização, de cren-
ça e de ilusão, ela pode atacar o fundamento mesmo do grupo e
abalar as certezas mais enraizadas. Ela pode levar à dissolução
do grupo, quando esse perde os motivos para se apegar a um
projeto que não reforça mais o narcisismo individual e coletivo.
Além disso, em muitas circunstâncias, serão feitas análises su-
perficiais, os problemas serão evocados sem serem tratados a fun-
do, as pessoas se entregarão a descargas emocionais. Ficar-se-á
perplexo ao constatar que, de maneira recorrente, o grupo levan-
tará as mesmas questões durante anos, sem jamais chegar ao me-
nor esboço de solução. Deveríamos, no entanto, ter em conta que
o grupo não se suicida facilmente e que retira benefícios conside-
ráveis do mal que pensa sofrer. Viver na angústia e na violência é
se sentir viver, tendo a possibilidade de exprimir seu poder e
seus sentimentos, arriscar-se a ser amado. Isso não é sem impor-
tância e os grupos freqüentemente preferem viver dolorosamente,
às custas do mal que nutrem com gosto, ao invés de tentarem o
inferno de uma elucidação radical, que se traduziria em uma
erradicação ainda mais radical.
2- A tomada de consciência é tida como um elemento central da regu-
lação e da capacidade de mudança do grupo.
Aí também há muita ilusão. Muitos atos e condutas só ganharão
sentido muito tempo depois, quando não mais for possível fazer o
que quer que seja para evitar suas conseqüências. Outras vezes,
não será possível tomar consciência do todo (o sentido permanece-
rá para sempre velado), pois a tomada de consciência levaria a
tamanhos perigos que tudo concorre para impedi-la.
Se, em certos casos, a tomada de consciência se produz, ela pode
agir como função de desconhecimento e obscurecer os problemas,
em vez de favorecer o seu esclarecimento. FREUD disse isso, há
muito tempo atrás, e o disse muito bem. É importante não nos es-
quecermos.
O grupo corre pois o risco de fazer a análise pelo prazer da análise,
para adquirir uma competência interpretativa ou para se atribuir
uma consciência boa.

73
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Nada resta então a fazer? Há ainda algo a se fazer, mas é preciso


não querer ir muito longe; um grupo deve reconhecer e trabalhar
suas clivagens, seus antagonismos, suas relações de poder, suas
angústias e, ao mesmo tempo, se dar conta de que tal tarefa é limi-
tada, pois aquilo que ele trabalha é a própria razão de sua existên-
cia. A elucidação do grupo por ele mesmo é uma exigência que não
pode ser, em caso algum, uma solução. Acreditar nela é ir em dire-
ção a novas decepções e ressuscitar a ilusão, lá mesmo onde se
havia pensado vê-la desaparecer.

Notas
1
Traduzido de: ENRIQUEZ, Eugène. “Le lien groupal”. Bulletin de Psychologie. Tomo
XXXVI, no 360, p. 631-637, 1983, por José Newton Garcia de Araújo.
2
Cf. J. B. PONTALIS. “L’illusion mantenue”. Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 4.
3
FREUD podia escrever com orgulho: “A Psicanálise é minha criação. Por dez anos,
fui o único a me ocupar dela e, por dez anos, foi sobre minha cabeça que se
abateram as críticas pelas quais os contemporâneos expressaram seu descontenta-
mento e seu mau humor em relação à Psicanálise.” (FREUD, S. Ma vie et la psycha-
nalyse. Gallimard).
4
MOSCOVICI, S. Psychologie des minorités actives. P.U.F.
5
LEFORT, C. Um homme en trop. Seuil.
6
Segundo os termos de C. CASTORIADIS.

74
OFANATISMORELIGIOSOEPOLÍTICO1
Eugène Enriquez

Mas nós, na verdade, quem somos nós?


(Plotino)

O século XXI será religioso ou ele não existirá.


(Malraux)

As dificuldades relativas às referências de identificação, experimen-


tadas por um número cada vez maior de nossos contemporâneos, consti-
tuem um fenômeno bastante forte para terem me levado, por ocasião de
um colóquio organizado por Yves BAREL, em Grenoble, 1983, a fazer
uma exposição intitulada “Mal-estar nas identificações”. Essa exposição
se encontra na obra coletiva dirigida por BAREL (1985).
Creio não ser o caso de retomar aqui os argumentos desenvolvidos
ou evocados naquela ocasião, mas simplesmente de assinalar que citei a
tendência a reencontrar certas “referências duras” entre as condutas de-
senvolvidas pelos indivíduos e pelos grupos para sair de uma situação
“onde tanto a perda das referências quanto a multiplicação dessas nos
fazem penetrar em um universo no qual as potencialidades persecutórias
são inumeráveis” (ENRIQUEZ, 1985).
O texto que proponho aqui tem a finalidade de explicar o que entendo
por “referências duras”. Ele não pretende eliminar as outras vias de solu-
ção nem designar a solução que ora apresento como a mais freqüente.
Entretanto, se me detive a explicitar tal proposição, é porque me pare-
ce que essa tendência, atualmente, não deve, de modo algum, passar des-
percebida (ela provoca mais impacto que a tentativa de “reinventar a
democracia”) e porque ela tende a ser reforçada nos próximos anos. Espe-
ro, então, que meu discurso seja recebido como suficientemente coerente,
convincente e inquietante.
Devo acrescentar, mesmo que essas considerações preliminares pos-
sam parecer um pouco longas, que o presente estudo é muito diferente
(apesar de não o contradizer) de um primeiro texto meu respondido por
Jean-Léon BEAUVOIS.
Com efeito, os acontecimentos que se produzem atualmente, tanto no
Leste da Europa, quanto nos países do Norte da África e no Oriente-Próximo,

75
Psicossociologia – Análise social e intervenção

trazem argumentos complementares à minha tese e tendem a torná-la


ainda mais radical do que era em sua primeira versão.
A referência dura se exprime para mim, de maneira privilegiada, no
renascimento do (ou, mais exatamente dos) fanatismo religioso e político
(cf. igualmente ENRIQUEZ, 1989).

***
Tratar conjuntamente do fanatismo religioso e político significa que
a religião, como o pensavam DURKHEIM e FREUD, está na própria base
da instauração da comunidade (e mais tarde da sociedade) e de seus
modos de gestão política. Não existe corpo social nem orientação norma-
tiva desse corpo sem religião (sem culto dos ancestrais, sem totens, sem
deuses ou sem Deus único). A religião nos institui como seres heterôni-
mos (segundo a expressão de CASTORIADIS), como indivíduos que de-
pendem da existência de um Sagrado transcendente e obrigados, sob pena
de exclusão da comunidade, a lhe render uma homenagem constante
pelos dons recebidos, além de nos sentir para sempre em dívida, com
relação a ele. A religião produz então o “ser-junto”, ela nos religa uns aos
outros, ela nos protege da angústia do caos primordial e de uma interro-
gação que poderia apontar o aspecto arbitrário de nossa presença no
mundo (seja como ser individual, seja como ser coletivo). Pois bem, dizer
que a religião é consubstancial a todo corpo social e a toda forma de
governar esse corpo, isso não a obriga, necessariamente, a se apresentar
sob a máscara do fanatismo.
Ao contrário, pode-se dizer que, enquanto as sociedades (desde a
Revolução Francesa, ou seja, desde a entrada na modernidade) souberam
deixar um espaço ao religioso, sem lhe outorgar, no entanto, um domínio
completo sobre as consciências e um papel central na organização políti-
ca (esse foi o caso tanto nas sociedades arcaicas como nas sociedades do
antigo regime, apesar de todas as diferenças possíveis de se observar em
seus modos de existência social), o fanatismo religioso – isto é, a crença
exacerbada em um mito, um dogma, um ritual compartilhado que é pre-
ciso defender, às custas da própria vida – encontrou pouco sustento
para crescer. No conjunto, as religiões no mundo moderno ocidental
desempenharam, às vezes com reticência, o papel que lhes estava desti-
nado, deixando ao Estado e ao seu aparelho educativo o cuidado de
completar ou de contradizer seus próprios ensinamentos. A César o que
era de César, a Deus o que era de Deus. Assim, as grandes religiões
monoteístas foram, ao longo do tempo, se depurando, elas não coloca-
vam mais problemas particulares. As crenças, sustentadas por rituais

76
O fanatismo religioso e político

pouco numerosos e pouco restritivos, se resumiam em uma ordem moral


geral bastante branda. Elas continuavam a assegurar um papel de estabiliza-
ção das relações sociais, mas foram se laicizando, sem se dar conta disso na
maior parte do tempo. O episódio, na França, dos padres operários, que se
assumiam cada vez mais como operários e cada vez menos como padres, é
um bom exemplo desse desvio tranqüilo que não incomodava a ninguém,
salvo ao aparelho da Igreja que começava a se dar conta das conseqüências,
a longo prazo, do declínio de uma fé sincera e manifesta, transformada ape-
nas em uma religião enfeitada com seus últimos esplendores.
Entretanto, quando as religiões estabelecidas passaram a não ter mais
a mesma força de convicção e se tornaram assuntos privados (o homem
dotado de razão, tornando-se mestre de si mesmo e de seu destino, aspiran-
do assim, como desejava DURKHEIM, a tornar-se um Deus para os outros
homens – homo homini DEUS), quando o reino de um Sagrado transcenden-
te foi se acabando, não assistimos, como acreditaram grandes autores (em
particular Max WEBER), ao “desencantamento do mundo”, mas à cria-
ção de religiões substitutas. Novos Sagrados vão aparecer: o Dinheiro,
como medida de todas as coisas; o Estado como aparelho separado, regu-
lando e freqüentemente dominando a Sociedade civil, “introduzindo a
unidade na diversidade” (HEGEL); o Trabalho como grande integrador
(segundo a ótica de Yves BAREL); o Proletariado como Salvador messiâ-
nico da humanidade, tendo por missão engendrar uma sociedade sem
classes, uma sociedade da transparência e da reciprocidade; a Sociedade
ela mesma se admirando na sua capacidade de se transformar e de desen-
volver a ciência e a tecnologia, além de assumir o progresso indefinido do
espírito humano (segundo a fórmula de CONDORCET).
Algumas religiões, baseadas mais ou menos nesses diversos Sagra-
dos, que alguns autores vão denominar religiões seculares (R. ARON, J.
STOETZEL), profanas (MOSCOVICI), laicas (E. ENRIQUEZ), passam a se
desenvolver, tendo como papel levar os indivíduos a idealizarem a socie-
dade atual (ou futura) e seus mestres (presentes ou futuros), colocando-os
num lugar de submissão a um imperativo de conduta que, a longo prazo,
venha a lhes aliviar “a angústia de pensar” (TOCQUEVILLE) e lhes asse-
gure, a qualquer preço, um estado psíquico onde o conflito não aparece.
Essas religiões substitutas nada mais são que as ideologias. É necessário
precisar o significado que dou a esse termo. As ideologias que me interes-
sam não são os sistemas mais ou menos formalizados de idéias que bus-
cam uma coerência e que orientam a ação dos homens, permitindo-lhes se
situar e dar razão à sua existência e às suas condutas. Todos os homens,
em todas as sociedades (modernas) seriam então ideólogos, porque é

77
Psicossociologia – Análise social e intervenção

impossível viver sem ser regido, conscientemente ou não, por um conjun-


to de idéias nas quais acreditamos, mais ou menos fortemente, e que favo-
recem a unidade do eu ou do corpo social. O termo designa então um
modo de funcionamento tão comum da psique individual e coletiva que
não apresenta nenhuma qualidade particular.
Quando falo de religiões substitutas, eu falo de Weltanschauung (de
uma concepção de mundo), de ideologias totais (LYPSET, 1963), da ideo-
logia de granito (LEFORT, 1976), eu falo então de um conjunto de valores
que têm força de lei, porque ele se designa a si mesmo como expressão de
uma verdade científica que não seria posta em dúvida e que fornece aos
indivíduos e aos grupos a resposta única e definitiva às questões que a
vida leva-os a se colocar. A ideologia capitalista-liberal é então uma ide-
ologia, na medida em que ela se funda sobre uma representação do ho-
mem (homo oeconomicus), racional e calculador dos custos ou vantagens
que ele pode esperar de seus comportamentos, um homem agindo em um
mundo transformado num imenso mercado (de bens, de serviços, de vo-
tos etc.), governado por uma lei fundamental: a lei da oferta e da procura.
A ideologia pode, então, (mesmo se, de fato, apóia-se sempre em um siste-
ma articulado de crenças) ser discutida cientificamente e se apresentar,
pois, não como uma ideologia (quer dizer, como um conjunto de idéias e
de valores ao qual também podem ser opostos outras idéias e outros valo-
res, de modo que a escolha a ser feita dependa unicamente das preferên-
cias individuais ou coletivas), mas como um corpus científico do qual se
pretende que só podemos escapar por má fé.
É, pois, plenamente possível dizer o mesmo da ideologia marxista (tal
como ela foi recolocada, após a morte de MARX, por ENGELS e, depois, por
LENIN) que recusa levar o nome de ideologia, mas que atribui a si o ajuste
definitivo de leis objetivas da natureza e do social, permitindo compreen-
der o funcionamento e a evolução da humanidade. Os sucessores de
LENIN levarão tal proposta muito mais longe: um bom comunista deve
conhecer as obras de STALIN ou o pequeno livro vermelho de MAO, para
conduzir sua vida cotidiana de maneira justa e científica.
Mesmo quando a ideologia se apresenta sob aspectos menos tota-
lizantes, tal como a ideologia republicana, na França, sob a IIIa Repú-
blica, ou mesmo quando ela pode admitir certas contradições trazidas
pelas instituições específicas que dividem entre si as funções de regu-
lação da sociedade, isso não impede que ela tente dar uma boa forma
aos indivíduos, a boa forma da obediência aos que detêm o saber, quer
sejam os pais, os mestres, os chefes de guerra ou os chefes de Estado, saber
que é indispensável exportar aos países que ainda vivem na barbárie

78
O fanatismo religioso e político

(colonização). As ideologias que eu evoco são, então, ideologias “com-


pactas” que, como as religiões, têm por função fundar “uma comuni-
dade de crentes”, que produzem uma cultura própria, cheia de calor
para com seus adeptos e cheia de ódio contra os indivíduos livres-
pensadores, heréticos ou descrentes.
Essa concepção da ideologia me obriga a retomar a questão religiosa.
Eu havia dito acima que religião não significava fanatismo e que as reli-
giões, na época moderna, representaram um papel menor na dinâmica
social. Mas é preciso observar que, quando as religiões se enfraque-
cem, as ideologias (que pretendem ser a encarnação da cientificidade)
asseguram sua continuidade porque, no cerne mesmo da sociedade, as
religiões tinham uma face muito diferente daquela – boazinha –, que já
mencionei.
Uma religião é uma mensagem sobre a transcendência e sobre as
Relações íntimas que os seres humanos, reunidos em comunidade, de-
vem estabelecer com o Sagrado, sob pena de desaparecerem ou de serem
predestinados às piores torturas. Essa mensagem é sempre anunciada
por um indivíduo cercado de discípulos e que forma uma seita. Uma
religião, estabelecida e difundida (eu me refiro aqui somente às religiões
nascidas no Oriente-Próximo), constituindo-se, em maior ou menor grau,
como uma Igreja com seus templos, indica que a seita, a “minoria ativa”
(MOSCOVICI, 1979), conseguiu se desenvolver. Um tal sucesso só torna-
se possível se ela souber, por sua força de convicção, por seu caráter
absolutista, pelo sacrifício de seus mártires, pelo ferro e pelo fogo, impor
sua intolerante visão de mundo sobre as outras visões, elegendo dogmas
e rituais violentos que são o sinal de sua força conquistadora, provocan-
do a submissão e a admiração de povos inteiros. Um grupo minoritário,
desejando continuar minoritário e sendo tolerante com outros grupos,
não pode estar na origem de nenhuma religião. Uma religião só existe
quando “a comunidade de crentes” (e não é por acaso que eu utilizo as
mesmas palavras, quando evoco a religião e a ideologia) soube recalcar
certos desejos e certas fantasias, substituindo-os por outros que, sozi-
nhos, vão se impor como lei, e foi capaz de se designar os inimigos
“ideais” a excluir, a negar, a converter ou a destruir. Toda religião se
alimenta da idealização e do ódio contra o outro. É assim que ela pode
formar uma cultura, que ela assegura sua identidade, que ela pode li-
vrar os homens do ódio inconsciente de si, jacente em todo ser humano,
projetando-o nos outros, é assim que ela fornece a seus adeptos o senti-
mento de formar um “nós”. Ela então regula essa questão central da
alteridade, antes mesmo que seja colocada.

79
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Uma tal descrição da religião chocará os “crentes” que insistirão, de


seu lado, no “sentimento oceânico” (R. ROLLAND) que a mensagem reli-
giosa provoca neles, discurso de amor que induz a uma união entre os
seres humanos (“amai-vos uns aos outros”) e entre esses e o cosmos. Eles
insistirão na possibilidade de transcendência que a religião oferece ao
indivíduo, apto assim a se desembaraçar de seu narcisismo protetor e de
suas mesquinharias cotidianas, além de ver a vida sob a forma de uma
ascese e de uma interrogação permanente. É verdade que os grandes mís-
ticos, os eremitas e os santos se mostram a nós como “sábios”, “poetas”,
seres ao mesmo tempo humildes e gigantescos, como heróis (no sentido
freudiano do termo), porque eles correram o risco de se desviar da forma-
ção coletiva dominante e de fazer do amor de Deus o único amor que vale
a pena. Eles não vivem sua crença como uma ilusão, mas como a única
via de abertura do mundo terrestre ao reino de Deus.
Não é meu propósito dizer que esses indivíduos estão errados e que
é pouco provável que a crença religiosa seja vivida desse modo. Isso seria
dar prova de uma arrogância insuportável. A única tese que eu defendo é
que essa maneira de viver a religião acontece com um pequeno número de
pessoas e que, ao contrário, a multidão só pode viver ou aderir a uma
religião (principalmente quando ela está se formando e pretende se esta-
belecer duradouramente) quando essa é intolerante e apela ao sacrifício e
à destruição. Em outras palavras, as religiões monoteístas (as religiões
politeístas sabiam fazer composições entre si e trocar seus deuses) só
puderam se impor por sua capacidade de desenvolver sentimentos fa-
náticos. É de fato mais belo morrer sem sentir dúvidas do que viver com
interrogações, porque a morte santifica e promete o paraíso, enquanto
que a vida sem certezas só permite a infelicidade. A pulsão de morte tem
então um imenso campo social à sua disposição: que os impuros desa-
pareçam e com eles a impureza que eles espalham. A religião católica
não teria podido se impor sem a caça aos heréticos (basta mencionar a
maneira como foram subjugadas a heresia dos albigenses e as práticas
da Inquisição), assim como a religião muçulmana não triunfaria sem a
destruição do paganismo e sem a guerra santa conquistadora. Se a reli-
gião judia pôde não se revestir desse aspecto destruidor (isso dito com
bastante reservas, já que as informações sobre esses tempos longínquos
são raras), é porque os judeus, tendo contraído com Deus uma aliança
privilegiada que os instituía como povo eleito, não tinham razão alguma
para ampliar o número de seus adeptos. (Entretanto, em certos casos –
como no Norte da África – a religião judia, apesar de tudo, desenvolveu
uma política de conversão).

80
O fanatismo religioso e político

Concluindo, embora religião e fanatismo religioso não devam ser


confundidos e embora a passagem da religião ao fanatismo não seja ime-
diata nem constante, mas somente possível e previsível, se certas condi-
ções são preenchidas, eles não podem, entretanto, ser totalmente dis-
sociados, pelo menos no que diz respeito às religiões monoteístas, que
são religiões da revelação.
Foi a ruína progressiva das religiões de caráter absolutista que per-
mitiu a progressão das ideologias “compactas” e, por conseguinte, a
invenção de novas transcendências com seu cortejo de dogmas e de ícones.
(Não existe, na verdade, ideologia sem porta-voz, sem emblemas, sem toda
uma iconografia – um Marxismo sem retratos de MARX, de ENGELS ou de
LENIN é impensável – representando os santos e os heróis).
Ora, nossas sociedades ocidentais contemporâneas, as liberais e as
“socialistas”, viram o declínio progressivo tanto das ideologias duras (o
desmoronamento atual dos regimes políticos dos países da Europa do
Leste nada mais faz que levar ao seu apogeu esse declínio que toma um ar
de derrocada), quanto de certas ideologias mais leves e menos dogmáti-
cas, que admitem certas contradições ou elementos de incoerência, como
a ideologia republicana. Não é o caso aqui de traçar um diagnóstico desse
declínio (cf. o texto de J. PALMADE). Entretanto, é conveniente fazer algu-
mas observações.
1- As sociedades ocidentais continuaram o trabalho começado no
século XIX e o levaram a um ponto de incandescência: priorida-
de total do econômico (“tudo se compra, tudo se vende”, segun-
do o axioma de WALRAS), obsessão da modernização que tem
por corolário uma alienação e uma exploração mais sutil e tam-
bém mais severa, idealização da técnica e da tecnologia que
pode dar um senso preestabelecido a todas as condutas huma-
nas, substituição das questões por quê? pelas questões como?
(ou seja, substituição da racionalidade de fins pela racionalida-
de instrumental, segundo a terminologia weberiana), intensifi-
cação da produção não somente de objetos úteis, mas de afetos
que podem entrar no circuito de troca e de distribuição. (O sexual
torna-se então uma mercadoria como uma outra qualquer –
KLOSSOWSKI, 1971).
2- Elas se enriquecem, além disso, de novas características. São so-
ciedades:
a- que não são mais organizadas em torno da diferença primordi-
al dos sexos e das gerações, levando a uma opacidade nas iden-
tificações e na eclosão de um universo onde tudo se mistura,

81
Psicossociologia – Análise social e intervenção

onde a indiferenciação reina absoluta. Sociedades sem pais e,


assim, sem possibilidade do assassinato simbólico do pai, o que
favoreceria tanto a metaforização quanto o acesso progressivo a
um certo grau de autonomia e de reconciliação com o pai, a partir
do momento em que o pai e os filhos passassem pelos caminhos
da castração. Restam apenas algumas fantasias de onipotência,
de imortalidade, ligadas a certas imagens de mãe arcaica devora-
dora, “mãe das cloacas e dos brejos, mãe das estepes e grande
portadora de morte” (DELEUZE, 1967), da qual é necessário, para
os homens e para as mulheres, se desembaraçar. HEGEL escre-
via: “As crianças vivem a morte dos pais”. Se não há mais pais
ou se só existem pais terrificantes, as crianças não se tornarão
jamais seres autônomos;
b- sociedades que, por isso mesmo, não propõem mais interdições
estruturantes mas apenas interdições repressivas (para que
cada um não tente realizar seu desejo de onipotência, não pense
e não aja como se tudo fosse possível no imediato) que são
vividas como fruto do mais puro arbitrário – a vontade de
coerção – e que acabam parecendo tanto mais irrisórias quan-
to mais se multiplicam ao infinito (J. LAPLANCHE, 1967, já
havia observado isso);
c- sociedades que não mais propõem ideais elevados (salvo ideais
satânicos: destruir o outro, concebê-lo como um inimigo ideal,
pensar e querer o apocalipse) e, ao mesmo tempo, realizáveis.
(Assim, o capitalismo tinha uma certa legitimidade, enquanto
criação e distribuição das riquezas. A partir do momento em
que apenas a especulação permite fazer dinheiro sem produção
de mercadoria, sua legitimidade desaparece. Assim também,
quando o socialismo real não implica senão privações e o
açambarcamento de magras riquezas pelos potentados nacio-
nais ou locais, seu valor se corrói, já que ele compreendia a
privação como uma etapa indispensável à construção de um
futuro radioso). Nesse momento, os valores são intercambiá-
veis ou desaparecem, o trabalho perde seu significado. O que
resta nada mais é que a necessidade de consumo e de gozo
imediato, além do furor de não poder satisfazê-los;
d- sociedades que, no fim das contas, caem num desinvestimento
letal e encorajam os comportamentos perversos (o sucesso da
noção de estratégias no mundo dos negócios é um testemunho
evidente disso) e histéricos (ENRIQUEZ, 1989).

82
O fanatismo religioso e político

Diante dessa perda de sentido, do desaparecimento de referência


a toda transcendência, da ausência de um fundamento, em um univer-
so laicizado que não se preocupa com a salvação do homem, tragado
pela espiral do desenvolvimento e dos excessos da guerra econômica,
nutrido por uma atmosfera individualista ou coletivista (sem se preo-
cupar com os custos humanos: aumento dos suicídios, da loucura, da
exclusão, da miséria, da apatia, da corrupção), os indivíduos nada
mais fazem senão tentar se retirar desse mundo instável onde a angús-
tia se torna o destino comum.
Com a falência das ideologias e supondo-se que elas ajudaram a
gerar esse “pesadelo climatizado”, é normal que muitas pessoas e gru-
pos tentem reencontrar seu equilíbrio e se assegurarem uma identidade
estável recorrendo àquilo que foi o próprio fundamento de todo corpo
social: a religião. Mas as religiões, tendo se enfraquecido no conjunto do
mundo e, em particular, no Ocidente, não oferecem mais interesse. O
que desejam os deserdados, os “desgarrados”, os excluídos, os esqueci-
dos, “os humilhados e ofendidos” (DOSTOIEVSKY) é um sistema que
lhes dê um ideal a realizar, uma causa a defender, um projeto a susten-
tar. Eles querem se tornar um “Nós”, formar uma cultura, permanecer
na certeza e, no limite, se sacrificar. Contra o mundo perverso, só há
salvação na paranóia partilhada. A religião reclamada é a religião ab-
solutista, aquela que designa claramente os aliados, os irmãos e os ad-
versários, aquela que cria uma identidade coletiva, construindo uma soci-
edade que se deixa levar pelo equívoco da Unidade-Identidade. Daí se
seguem três conseqüências.

O indivíduo desaparece.

Como explica admiravelmente DEVEREUX (1973): “O ato de for-


mular e de assumir uma identidade coletiva maciça e dominante – qual-
quer que seja essa identidade – constitui o primeiro passo à renúncia
‘definitiva’ da identidade real. Se não somos nada além de um esparta-
no, de um capitalista, de um proletário, de um budista, nós estamos bem
próximos de não ser nada ou então de não ser de jeito nenhum”. Essa
citação dispensa comentário.

O aparecimento do “narcisismo”
das pequenas diferenças. (FREUD, 1930)

83
Psicossociologia – Análise social e intervenção

FREUD mostrou que era sempre possível “unir uns aos outros, pe-
los vínculos do amor” (e nós acrescentaremos: pelos vínculos da fasci-
nação, da sedução ou da coerção), uma imensa massa de homens, com a
única condição de “que alguns outros fiquem de fora para serem alvo
dos ataques”. É por isso que “grupos étnicos estreitamente aparentados
se repelem reciprocamente: a Alemanha do Sul não pode suportar a Ale-
manha do Norte, o inglês fala tudo de ruim do escocês, o espanhol des-
preza o português”. Esse “narcisismo das pequenas diferenças” permite
uma “satisfação cômoda do instinto agressivo e é através dela que a
coesão da comunidade se torna mais fácil aos seus membros”. Não es-
queçamos, além disso, que esse “narcisismo grupal” pode levar à xeno-
fobia exacerbada e ao racismo.

O desenvolvimento do fanatismo.

CASTORIADIS (1987) escreve: “Como uma cultura poderia admitir


que existem outras que lhe são comparáveis e para as quais, no entanto, o
que é um alimento, para ela é uma impureza?”. Quanto mais uma cultura
quer se unificar, tanto mais ela se torna intolerante e mais deseja a morte
das outras ou, pelo menos, sua conversão. Ela é impelida pelo ódio e por
uma alucinação coletiva que aponta a imagem dos estrangeiros (ou dos
desviantes) como perseguidores todo-poderosos, ou seja, como seres a eli-
minar. Os outros tornam-se “piolhos” a destruir. O fanatismo visa, então, a
criar um mundo novo, livre do mal. Ele é possuído por uma fantasia de
redenção e de ressurreição do social.
Esse desaparecimento do indivíduo em um grande todo que não su-
porta a diferença faz ressurgir as condutas religiosas fanáticas, tais como
as descrevi acima. Eu acrescentarei apenas que elas vão assumir a função
de “dissimular as fraquezas do eu ideal e do ideal do eu, além de permitir
atenuar as feridas narcísicas” (M. ENRIQUEZ, 1984); para isso, elas exi-
gem a super-identificação à causa, o super-investimento no projeto, o blo-
queio ou o desaparecimento progressivo da interioridade; a vontade de
salvar o mundo se situa deliberadamente em um imaginário enganoso,
anunciador de um mundo novo, liberado finalmente do mal, dos “grandes
e dos pequenos Satãs”.
É certo que, nos diversos países, as diferentes religiões não se com-
portam todas da mesma maneira e não buscam os mesmos objetivos. É
certo também que o fanatismo é apenas uma das respostas possíveis para

84
O fanatismo religioso e político

o mal-estar da identificação; ele é a resposta daqueles que têm necessida-


de de “referências duras” para viver e que são “inaptos” para reinventar
a democracia e se confrontar com a sua solidão; é a resposta de indivíduos
levados pela onda da história e não de indivíduos criadores da história.
Uma tal explicação não pode entretanto ser suficiente. Ela poderia
fazer crer: 1) que se trata apenas dos problemas de indivíduos ou de grupos
sociais excluídos e que tentam resolver seus problemas dessa maneira; 2)
que a religião tem sempre necessidade de se apresentar de maneira inte-
grista, fundamentalista, para unificar os corações e os espíritos. Retome-
mos esses dois pontos:
1- Se é mais fácil recrutar fanáticos entre os “esquecidos” que entre os
combatentes e os vencedores de um sistema, é preciso lembrar que,
para que o fanatismo se fortaleça, não basta que existam tais indiví-
duos (e grupos) em nossa sociedade perversa e histérica, simultane-
amente (a histeria sendo uma característica essencial de toda socie-
dade “teatral”, onde a mídia desempenha um papel considerável e
onde todas as ações devem ser vistas em seu esplendor, o que é a base
do “barroco degenerado” no qual nós vivemos). É preciso, ainda, que
essa renovação fanática traga proveito a alguns, em seu objetivo de
controle ou de direção da sociedade ou do mundo.
E nós tocamos, assim, o essencial: a dimensão política. Ou seja, o
retorno de um religioso absolutista não é o sinal de uma renovação
religiosa verdadeira, mas, sem dúvida, o sinal de seu enfraqueci-
mento. São Estados, regiões ou grupos sociais bem definidos que
utilizam a fé para exercer seu poder ou seu terror. O fanatismo reli-
gioso é, primeiro e antes de tudo, na hora atual, um instrumento a
serviço do fanatismo político. Não foi isso que aconteceu quando se
constituíram as grandes religiões monoteístas. É por essa razão que
meu texto tem esse título. O fanatismo religioso, sozinho, resulta, no
máximo, em pequenas seitas fechadas sobre si mesmas, certas de
seu direito e partes do folclore de toda nação.
O fanatismo se aplica aos Estados outrora dominados que aspi-
ram, por sua vez, a se tornar dominantes (por exemplo, o Irã),
Estados que utilizam o fanatismo para assegurarem o domínio
sobre outros países (Iraque, Síria), Regiões de um império que
emprega a religião para humilhar e deixar famintas outras Regiões
tão submissas quanto elas (por exemplo, o Azerbadjão, em rela-
ção à Armênia) ou para tentar chegar à sua independência, gru-
pos sociais minoritários e outrora desprezados, que desejam ter
um dia o domínio sobre os destinos de um Estado do qual eles

85
Psicossociologia – Análise social e intervenção

são membros (por exemplo, certos grupos religiosos em Israel),


grupos racistas minoritários que esperam um dia tomar o poder
em nome de uma raça regenerada (neonazistas, lepenistas, dife-
rentes “igrejas” americanas) ou que se iludem na possível con-
quista de um poder, do qual eles não saberiam o que fazer, seitas
que conseguiram se implantar e têm o desejo de exercer uma in-
fluência política, conseguindo-o freqüentemente (Opus Dei, Com-
munione e Liberazione, Loja P2, Eglise de Scientologie). O fanatismo
religioso tem então uma relação direta com o problema da toma-
da de poder.
2- A religião não se apresenta, forçosamente, em nossos dias, sob
uma forma fanática. Nesse caso, ela pode ter como papel:
a- fortalecer a ação de indivíduos e de grupos contra as ideologias
(as religiões leigas) às quais eles estão sujeitos e que só lhes
trouxeram miséria, destruição cultural, interdição de pensar (Po-
lônia, Alemanha do Leste, Irlanda do Norte, Países Bálticos,
Armênia – não importa quão diferentes sejam os exemplos), a
fim de re-instaurar territórios nacionais e de repensar a questão
das nacionalidades que as ideologias marxistas e liberais ten-
deram a esquecer ou a tratar de maneira uniforme;
b- manifestar as diferenças irredutíveis de cada comunidade (o
indivíduo só existindo em relação à comunidade), coabitando
umas com as outras dentro de uma grande tolerância ou senão
de uma grande conivência, antes talvez de desaparecerem um
dia num enfrentamento direto (é o caso, na França, das comuni-
dades islâmicas, cristãs, judias). Se a aliança persiste, ela per-
mitirá aos diversos cleros se apoiarem; se ela se extingue, ela
designará os vencedores e os vencidos;
c- redourar o brasão das religiões tradicionais, que querem fazer
valer sua palavra, na regulação dos Estados modernos, nos
quais não existe senão um fraco consenso. Basta constatar o
papel cada dia mais importante que desempenham as autori-
dades religiosas (católica, judia, protestante, muçulmana) na
vida cotidiana da França. Alguns exemplos heterogêneos – a
reação fraca e ambivalente de Monsenhor LUSTINGER ao
incêndio que arrasou o cinema que projetava o filme ligeira-
mente iconoclasta de SCORCESE2 ; o convite a alguns líderes
protestantes, na retomada das negociações na Nova-Caledô-
nia; a ação empreendida por certas instituições judias para o

86
O fanatismo religioso e político

desenvolvimento das escolas religiosas na França; a interven-


ção da Grande Mesquita para tentar resolver o “famoso” pro-
blema do uso do véu (tchador) – nos mostram que as Igrejas não
são mais separadas do Estado, mas que, ao contrário, o Estado
leigo faz apelo, cada vez mais freqüentemente, às suas compe-
tências ou se mostra sensível aos seus pontos de vista.
O retorno do religioso se mostra então mais ambíguo do que apa-
rentava ser. De fato, o religioso, tomado como regresso à origem cultural
ou nacional e o religioso fanático são, antes de tudo, um sinal da trans-
formação da vida política e dos modos de dominação política, em vez de
afirmação da necessidade de transcendência. Talvez seja isso que qua-
se sempre vem acontecendo, desde o início dos tempos modernos. Mas,
qualquer que seja sua intenção profunda – um mundo onde o reino de
Deus (qual Deus?) existiria sobre a Terra ou um mundo onde uma
nova classe política tomaria o poder, com a ajuda de seu Deus –, o
religioso sempre visa a identificar o indivíduo com seu grupo e inseri-
lo totalmente nele (algumas vezes absorvendo-o no potentado que en-
carna o poder político e espiritual em sua pessoa, como no exemplo de
KHOMEINY); ele visa também a desenvolver ainda mais os processos
de idealização, cujo objetivo é constituir “comunidades de denegação”,
ao invés de processos de sublimação; ele tenta, finalmente, paralisar a
atividade de mentalização, de reflexão e de reflexividade, fazendo desa-
parecer ou tornando silenciosa a vida interior com suas emoções, suas
dúvidas, seus conflitos (embora proclamando o contrário de tudo isso)
e impedindo a criação de sujeitos individuais e coletivos que buscam
não apenas sua autonomia – criadores de história, prontos a afrontar o
absurdo, a falta de sentido, o caos e o abismo, sem recorrer a referências
seguras –, mas também construir com outros uma ação que possa ter
sentido para a coletividade.
Os homens aprenderiam, nesse caso, que são eles que criam a histó-
ria a cada momento e que é pela tomada de consciência, nascida desse
trabalho árduo, laborioso, sem fim, que surge um processo de desaliena-
ção e uma vida democrática.
Eu gostaria, para terminar, de precisar meu objetivo.
1- Se a ameaça do fanatismo religioso e político é real, não é o caso de
superestimá-la. O fanatismo se alimenta dos descaminhos e da
corrupção de nossas sociedades. Se essas são capazes de inventar
novos projetos, a tendência ao superinvestimento religioso e nacio-
nal será barrada.

87
Psicossociologia – Análise social e intervenção

2- No mundo não existe ninguém que seja não-crente. Todos nós cre-
mos em certos valores e é impossível decidir racionalmente que va-
lores são preferíveis a outros. Os valores religiosos, na medida em
que favorecem uma relação com um sagrado transcendente não
colocado a serviço de uma vontade política de dominação, devem
ser levados em consideração, tanto quanto outros tipos de valores.
3- O que me parece crucial é que não se interrompa a reflexão filosófica
sobre o homem e sobre as sociedades. Se, em certos casos (eu penso
na Teologia da Libertação, na América do Sul), a religião pode levar
os grupos sociais a se darem conta da situação de dominação na
qual eles vivem, ela lhes permite tomar iniciativas, ter uma outra
visão do mundo e conceber Ações coletivas. Ela assume então o
papel de desalienação, habitualmente reservado à Filosofia ou à
Sociologia. O que eu quis enfatizar em meu texto são os aspectos
mais negativos do fato religioso, do fato ideológico, do fato nacional.
Eu não quis dizer, em nenhum momento, que a religião, a ideologia,
a política da cidade ou da nação nada mais são do que perversões
do espírito, uma vez que elas são, efetivamente, o fundamento mes-
mo da instauração de toda vida social. Por outro lado, o que eu quis
sublinhar – e isso com bastante ênfase – é que, quando o religioso se
põe a serviço do político, quando a ideologia dura impede o livre
pensar, quando uma cidade ou uma nação desenvolvem uma cultu-
ra na qual elas se fecham e fecham seus membros, então a reflexão
desaparece, a perversão ou a paranóia triunfam, Thanatos ocupa
todo o campo espiritual e social. Ora, a tentação totalitária está con-
tinuamente presente nos processos religiosos, ideológicos e nacio-
nais. Ela lhes é consubstancial. Também o papel de todo intelectual
e de todo homem prático é dar caça a esse desejo de homogeneiza-
ção e de morte do pensamento, nos fenômenos sociais, nos seus
interlocutores e, naturalmente, antes de tudo, em si mesmo, sob
pena de cair, se ele não faz esse trabalho, na armadilha que denun-
cia, tão fácil e prazerosamente, no outro.

Notas
1
Traduzido de: ENRIQUEZ, Eugène. “Le fanatisme religieux et politique”. Connexions,
n. 55, p. 137-149, 1990-1, por Leila de Melo Franco S. Araújo.
2
“A última tentação de Cristo”. (N. T.)

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O fanatismo religioso e político

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MOSCOVICI, S. Psychologie des minorités atives. PUF, 1979.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

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CONJUNÇÃO, NA EMPRESA, DE UM
PROJETO PESSOAL E FAMILIAR, COM A
HISTÓRIA DE UMA REGIÃO: O PROCESSO DE
CRIAÇÃO INSTITUCIONAL1
André Lévy

Descrever um fato psicossocial – tendo como referência o fato social


total de Marcel MAUSS – é compreender como estão imbricados, uns nos
outros, os diferentes níveis de realidade e de experiência de uma institui-
ção concreta.
Esse texto trata das instituições – como elas se criam, como elas se
desenvolvem, como elas podem morrer.
Ele se apoia em reflexões suscitadas por um estudo realizado em algu-
mas Pequenas e Médias Empresas (PME) situadas na região de Cholet, em
plena Vendée.2 Tais reflexões mostram, sobretudo, como uma empresa é o
produto de uma criação coletiva envolvendo não apenas o dirigente que a
fundou e seus sucessores, mas também sua família e as comunidades lo-
cais no seio das quais ela existe e encontra sua razão de ser.
A escolha da região do Cholet, para nela desenvolver esse estudo
sobres as PMEs, se impôs por ser ela bem conhecida como uma micro-
cultura que tem suas raízes na história da Vendée. Caracterizando-se por
um notável dinamismo industrial, em domínios tão variados quanto o
têxtil e os da madeira, alimentação, vestuário, calçados etc., seus produ-
tos, de uma tecnologia freqüentemente muito sofisticada, são exportados
para todo o mundo (iates, por exemplo). O contraste existente entre esse
dinamismo industrial e comercial, de um lado, e o conservadorismo soci-
al e cultural da região, de outro lado, já havia sido notado por vários
pesquisadores.
A história das empresas que estudamos a partir do que nos disseram
seus dirigentes, por ocasião de entrevistas exaustivas e sucessivas, reve-
la claramente o modo como elas nascem e vivem em função do apareci-
mento, do exame e de uma resolução relativa de tensões permanentes,
vividas pelos dirigentes, assim como revela as Contradições que se ma-
nifestam em todos os níveis de funcionamento da empresa. Resumindo:
a história revela um trabalho psíquico, individual e coletivo, incessante, que

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

consiste em passar de identificações imaginárias a um “real” mítico, o


qual é vivido como o fundamento da empresa, mas permanecendo fiel às
representações das quais ele é a metáfora. Em outras palavras, um traba-
lho que consiste em passar de um “real” mítico universal a uma espécie
de realidade mais abstrata – a empresa moderna –, feito às custas de
rupturas e da intervenção de mediações que provocam divisões, diferen-
ciações, clivagens.
Uma tal aventura, que envolve todos os grupos ligados ao futuro
da empresa, é, entretanto, sobretudo aquela que seus sucessivos diri-
gentes vivem e se confunde em grande parte com a história pessoal
desses dirigentes.
Não se trata, para nós, com efeito, de estudar a empresa como obje-
to sociológico – tal como poderia ocorrer pela combinação dos discursos
e dos pontos de vista de todos os seus atores –, mas a empresa como
objeto psicossocial, isto é, enquanto existindo e tendo sentido para seus
dirigentes, que são ao mesmo tempo seu principal tema; ou ainda, como
objeto no discurso dos dirigentes, convidados a falar a respeito, a partir
de suas lembranças, de seus projetos, de suas dúvidas.
Se as entrevistas e a maneira como foram conduzidas respondiam
sobretudo a exigências de ordem metodológica definidas em relação a
nossos objetivos de pesquisa, era, entretanto, indispensável – para que
elas tivessem um sentido – que fossem também para os dirigentes uma
ocasião de refletirem em voz alta, para si próprios, sobre aquilo que a
empresa, suas dificuldades, sua história, seu futuro, evocava neles, em
presença de interlocutores supostamente neutros e atentos. Ou seja, que
tais entrevistas, ainda que solicitadas por nós, respondessem a um autên-
tico desejo de rememoração e de melhor compreensão.
Assim, pudemos recolher o depoimento detalhado descrevendo
a história de uma dezena de empresas diferentes quanto à dimensão,
à antigüidade, ao produto, desde sua origem até o momento atual, e
também fazer um levantamento de questões relativas ao presente e
ao futuro próximo.
Cada um desses depoimentos cobria o espaço de várias gerações su-
cessivas de dirigentes, geralmente pertencentes à mesma família ou a famí-
lias aparentadas. Tendo analisado esses depoimentos, caso a caso (empre-
sa a empresa), num primeiro momento e, depois, segundo um método
comparativo, pudemos pôr em evidência certas constantes, em função das
quais os depoimentos estavam estruturados – constantes definindo o pro-
cesso de desenvolvimento das empresas, a partir de sua criação.

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Conjunção, na empresa, de um projeto pessoal e familiar,
com a história de uma região: o processo de criação institucional

Assim, nota-se que, embora todas tenham dependido, na origem,


da ação de um indivíduo (o fundador) possuidor de um ofício e de um
projeto, sua realização efetiva e seu desenvolvimento apoiaram-se sobre
um conjunto de solidariedades ativas familiares e, também, locais e re-
gionais. Todos os casos ilustram perfeitamente a conjunção entre um
projeto e uma competência individual, histórias de famílias (nucleares
ou ampliadas, com freqüência até mesmo joint families, quer dizer, famí-
lias reunidas por relações de alianças ou de parentesco, conjugadas a
relações econômicas) e de estratégias de sobrevivência ou de desenvol-
vimento de comunidades locais.
De maneira mais geral, parece-nos ser possível afirmar que as em-
presas são fundadas sobre a base de três entidades imaginárias de im-
portância variável, cuja combinação constitui o sistema de sustentação,
a partir do qual elas podem se desenvolver.
Essas três entidades, que correspondem ao mesmo tempo a realida-
des materiais, sociais (ou mesmo econômicas) e a valores (ou a represen-
tações simbólicas), podem ser resumidas da seguinte maneira:
- a terra ou a região, quer dizer, aquilo que é ligado aos locais físicos,
geográficos;
- a família, quer dizer, aquilo que se relaciona aos vínculos de consan-
güinidade e de parentesco por aliança;
- o ofício ou o produto, quer dizer, o que tem relação com o trabalho e
com seu objeto.
É importante sublinhar o fato de que essas três realidades se tradu-
zem por expressões faladas, conceitos verbais, cujas diferentes significa-
ções e modalidades se desdobram à medida em que evolui a história das
empresas e o discurso dos dirigentes.

A terra
Essa referência é onipresente, quer se exprima pela relação com o
solo, com a propriedade do camponês que fornece diretamente as matéri-
as primas (fibras, argila, grão etc.) que se trabalha ou, de maneira mais
abstrata, com o território (nome das cidades, ruas ou áreas) que define o
campo de atividade onde a empresa está implantada; ou ainda, de manei-
ra mais extensa, com a região (no caso, a regiões de Mauges, de Bocage, ou
então o Oeste) que constitui uma unidade geográfica, histórica e socioló-
gica, no seio da qual e para a qual a empresa se desenvolve.
Nesse último sentido, a terra ou a região, designa não apenas um lugar
geográfico mas também seus habitantes, sua cultura, suas tradições e a

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

consciência de compartilhar um passado comum e aquilo que é sentido


como uma mesma “mentalidade” – caracterizada aqui por valores de
ajuda mútua, de seriedade e de fidelidade (“palavra é palavra”), inde-
pendência (“as pessoas daqui mandam no lugar”) e perseverança (“ir até
o fim com o que começamos”). Desse ponto de vista, a região de Cholet é
vivida como uma espécie de cidadela cercada de estranhos dos quais
devemos desconfiar (“entre as pessoas de Cholet há uma certa moralida-
de; assim que ultrapassamos a fronteira, vira tudo uma máfia”).
A identificação com a “região” inscreve-se concretamente no funci-
onamento da empresa, nas relações e atitudes: assim, as relações co-
merciais privilegiam os clientes “fiéis”, em nome de uma certa ética; as
relações com os empregados pressupõem vínculos recíprocos de solidari-
edade comunitária que transcendem as relações de poder e as diferenças
de status social; a política industrial tende a favorecer o desenvolvimento
de uma produção local beneficiando as “pessoas da gema”, contribuin-
do para o renome da cidade ou da região, em nome de um patriotismo
regional que cria obrigações; o próprio modo de gestão pode também ser
orientado pelos valores comuns, como traduzem diferentes fórmulas
como: “temos quer ir fundo”; “é preciso revirar a terra com vontade
antes da colheita; não se pode fingir”, “não ficar falando abobrinhas,
eis nosso jeito fazendeirão”.
A “região”, “a terra”, no sentido concreto, mas também no metafóri-
co, constituem então, simultaneamente, um conjunto de obrigações e de
restrições, de dependências múltiplas que limitam as margens de mano-
bra e as capacidades de iniciativa e de inovação, bem como uma fonte de
riquezas, físicas e morais.
A identificação do dirigente a esse imaginário cultural alimenta com
efeito não apenas um sentimento de orgulho (“orgulho de ser dirigente
chalotês”), mas também um sentimento de segurança, a certeza de poder
contar com uma rede de solidariedades ativas extremamente eficazes, em
caso de dificuldade.

A família
Tratando-se, na maior parte dos casos, de empresas familiares, o
lugar dessa é aí dominante, tanto no imaginário quanto no real.
Antes de ser um projeto pessoal, a empresa é um projeto de família.
Essa é aqui entendida como um nome próprio – com freqüência o mesmo
que empresa, mas também e sobretudo como a história de gerações suces-
sivas cujas relações, atividades e lucros organizam-se em torno dela.

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Conjunção, na empresa, de um projeto pessoal e familiar,
com a história de uma região: o processo de criação institucional

Ela é, então, designada como “negócio de família”, “sociedade de


família”, “sociedade familiar” ou, ainda, “empresa familiar”. Como se
pode notar, se essas diferentes expressões marcam um deslocamento pro-
gressivo da “família” do centro para a periferia (a preposição “de” po-
dendo ser interpretada como designando o pertencimento ou a origem),
elas traduzem a idéia de que a empresa é um lugar “de trabalho em famí-
lia” e um bem privado (um patrimônio).
Compreende-se, então, que para o dirigente ela seja concebida como
um “prolongamento de si próprio e de suas raízes”, como “a realização
de seus antepassados”, como uma herança da qual ele nada mais é do
que um depositário transitório e da qual deverá prestar contas a seus
próprios descendentes.
Afora alguns poucos casos acidentais (ligados a falências ou a con-
flitos graves), a transmissão da herança é sempre assegurada em linha
direta, seja pelos homens (os filhos), seja pelas mulheres (as filhas e seus
maridos), sendo um dos dois sexos, geralmente, descartado.
A presença da família e de seu passado se traduz, é certo, nas repre-
sentações e valores que dão sentido à empresa e ao papel do dirigente,
mas também nos fatos reais.
Assim, na sua origem, a empresa é freqüentemente alojada na “casa
familiar”, onde empregados e patrões podem comer juntos, até o dia em
que a extensão das atividades torna necessária a mudança para locais
mais apropriados, inclusive para outras aglomerações.
Da mesma maneira, no início, o capital da empresa se confunde com
o patrimônio familiar (“os bens da família”), até a introdução de uma
contabilidade que estabelece uma distinção formal, ainda que apenas
para atender a exigências do fisco, entre os bens e os dividendos pesso-
ais, por um lado, e o capital e os salários, de outro. Naturalmente, essa
distinção é acompanhada por uma modificação no estatuto jurídico
(LTDA, SA, COOP) que estabelece uma distinção entre a posição de
patrão e a de acionista e acarreta a instauração de regras, de papéis e de
procedimentos formais, substituindo as regras informais que reprodu-
zem as relações intra-familiares.
As estruturas e as relações de poder são, de fato, num primeiro tempo,
uma reprodução bem fiel das estruturas da família, os postos-chaves sen-
do ocupados por membros dela, de acordo com a posição que ocupam no
seu seio (a não ser por incompetência notória ou situação de conflito), as
relações de autoridade, inclusive com empregados, sendo também ima-
gem das relações de parentesco, quer dizer, fortemente personalizadas.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Assim, um conflito com membros do pessoal é facilmente sentido como


uma insuportável falta de respeito em relação à pessoa do dirigente e
àquilo que ela representa. Nessas condições, os sindicatos independen-
tes são mal tolerados, porque são percebidos como estrangeiros introme-
tendo-se no que é considerado negócio privado.
A história da empresa é assim, freqüentemente, confundida com a
história familiar e as etapas de seu desenvolvimento coincidem, a maior
parte das vezes, com os acontecimentos familiares – mortes, casamen-
tos, rupturas.
Assim como para a referência à região, a identificação à família é ao
mesmo tempo uma fonte de força, uma inspiração, um elemento de coesão
e também uma limitação, uma fonte de problemas e de conflitos. Todos os
dirigentes têm consciência disso e multiplicam as precauções destinadas a
reduzir e a prevenir as repercussões sobre a vida da empresa das proble-
máticas familiares – rivalidades etc., principalmente por ocasião de mu-
danças de direção e na repartição de tarefas e poder. O resultado é que se
torna difícil para o dirigente definir perspectivas futuras para a empresa
que se distingam das finalidades concebidas em termos de fidelidade com
o passado e manutenção de vínculos e bens da família.

O ofício, o produto
Em função de sua origem artesanal, numerosas PMEs definem-se em
relação ao ofício de seu fundador. Esse empresta um valor emblemático
ao produto que é a sua razão social.
Um ofício é uma maneira de trabalhar uma matéria – madeira, couro
etc. – e de lhe imprimir uma marca pessoal. Está diretamente associado às
mãos do artesão, no seu corpo-a-corpo com uma terra e seus produtos.
Apalpar essa matéria, evocar sua origem terrena ou seu significado
cultural e mítico – receita caseira, lenços da região do Cholet, frangos que
a gente destrincha de maneira especial etc. –, tudo isso é sempre ocasião
de um prazer intenso, pois esse restitui a ancoragem do homem na natu-
reza e a transformação que ele nela provoca.
Mais do que um produto com valor de troca num lugar qualquer ou
para cliente qualquer, o ofício exprime o orgulho do trabalho cumprido e
sua utilidade social para seus próximos, seus vizinhos. Ele exprime tam-
bém o reconhecimento da herança recebida, da receita ou do jeitinho de
fazer, transmitidos de geração em geração.
Produzir e vender (até mesmo exportar) um lenço de Cholet ou uma
rosca da região de Vendée é tornar conhecido e apreciado um objeto

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Conjunção, na empresa, de um projeto pessoal e familiar,
com a história de uma região: o processo de criação institucional

impregnado de história e tradições, é se inscrever nelas e não apenas pôr


em circulação no mercado uma produção anônima.
No que concerne àquilo que constitui a empresa em sua origem, vê-
se então que, para o dirigente, trata-se de um conjunto extremamente
coerente, cujas partes, que remetem cada qual a uma realidade física
(terra, sangue ou mãos), encarnada na pessoa do fundador, estão imbri-
cadas umas nas outras; essas três bases – ou instituições primárias –,
constatou-se, não são entidades independentes; elas são ligadas entre
si – a família às comunidades locais e à região, o ofício, transmitido de
geração em geração, à terra. Juntos, eles formam então como um bloco
compacto, no qual a empresa e seus dirigentes estão solidamente anco-
rados e cuja solidez reside na potência do imaginário cultural do qual é
a expressão manifesta.
Entretanto, nós constatamos também que essa solidez aparente
mascara contradições que fragilizam o conjunto: as dependências e as
restrições podem se traduzir em rigidez que ameaça gravemente a empre-
sa de esclerose e de imobilismo. O dirigente que percebe bem esses riscos
fica dividido entre a necessidade de permanecer fiel a esses objetos de
identificação, que asseguram sua identidade e a base da empresa, e a
convicção de que deve se desembaraçar deles, pelo menos em parte, para
garantir as evoluções indispensáveis.
De fato, a maior parte das empresas estudadas dão testemunho do
dinamismo que habitualmente se atribui ao meio industrial da região de
Cholet. Elas integram de maneira notável as tecnologias mais recentes – a
informática, o marketing etc. –, elas desenvolvem um dinamismo comercial
na França e no estrangeiro, elas não hesitam em estabelecer vínculos nu-
merosos com os meios financeiros, profissionais, políticos e em utili-
zar os serviços de especialistas de todo tipo.
Sua história, tal como aparece no discurso de seus dirigentes, permi-
te de maneira precisa compreender: como elas conseguiram efetuar essa
passagem do arcaísmo de suas origens àquilo que caracteriza uma em-
presa moderna; como elas conseguiram fazer coexistir um passado sem-
pre presente e as complexidades da organização socioeconômica atual;
como os dirigentes puderam ultrapassar as contradições com as quais
eles se confrontaram.
Esse processo não se realiza sem problemas; ele supõe a adoção de
atos concretos, de decisões dolorosas implicando escolhas difíceis que o
dirigente deve assumir pessoalmente. Consiste, com efeito, não em negar,
mas em reduzir a influência desses objetos imaginários, em desligar aqui-
lo que estava ligado, em introduzir distâncias e divisões ali onde havia

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

uma unidade mítica e em decompô-la e recompô-la a partir de seus ele-


mentos liberados e capazes de se unir de uma outra maneira.
O ponto de chegada de tal processo, seu objetivo, é a criação de uma
instituição tendo sua organização e suas finalidades auto-referidas. Nos
termos de T. PARSONS, consiste em passar de um sistema social a um
outro; quer se trate de papéis ou de expectativas de papéis, de estruturas
de necessidades e de motivações, de produções, de valores ou modos e
redes relacionais, a evolução pode ser descrita em função dos cinco gru-
pos de variáveis definidas por T. PARSONS: do particular ao universal,
do pessoal ao impessoal, da afetividade à separação, da proximidade ao
distanciamento, do herdado (ou do dado) ao adquirido.
De maneira mais precisa, podemos descrever esse processo desen-
volvendo-se em três direções distintas:
a- a industrialização, isto é, a substituição do ofício pelo produto e
meios de produção;
b- a passagem do negócio de família à sociedade anônima;
c- o deslocamento, isto é, a transferência física da empresa para
outros locais.
Esses três movimentos resumem, com efeito, as principais dificulda-
des que os sucessivos dirigentes têm a enfrentar, ao longo de toda a histó-
ria da empresa; é realizando-os que as tensões anteriormente evocadas
são deslocadas ou tratadas de maneira indireta.
Cada um deles está presente nas três instituições primárias que
mencionamos no início; mas a evolução que eles traduzem não modifica
apenas as significações particulares que cada uma delas tem; ela tem
também por efeito torná-las mais autônomas entre si, à medida que a
empresa adquire os atributos de uma identidade própria.

A industrialização: do ofício ao produto


A passagem do artesanato à indústria consiste, essencialmente, num
deslocamento das finalidades da empresa em direção à produção e à
venda de objetos que têm um valor de troca universal, independente da
pessoa que os fabricou ou do lugar onde foi produzido.
Isso influencia todos os planos da empresa: racionalização das
técnicas de fabricação, exigindo, principalmente, investimentos em
máquinas e em locais especializados, assim como a aprendizagem e
a utilização de técnicas transmissíveis; elaboração de uma organiza-
ção e, portanto, de estatutos e tarefas diferenciadas e hierarquizadas,

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Conjunção, na empresa, de um projeto pessoal e familiar,
com a história de uma região: o processo de criação institucional

traduzindo diferentes níveis de competência, bem como uma administra-


ção capaz de a gerenciar.
O próprio dirigente vê seu papel se transformar profundamente, não
somente porque seu ofício não está mais no centro da empresa, sua princi-
pal razão de ser – ele deve, em contrapartida, adquirir as competências
ligadas à gestão –, mas também porque a estrutura de pessoal se transfor-
mou, tendo como conseqüência relações de autoridade mais formalizadas
e mais impessoais, regidas segundo técnicas e métodos importados.
Enfim, as relações mais diversificadas com a clientela são estrutura-
das segundo a problemática da oferta e da procura; elas implicam no
estabelecimento de uma organização e de uma política comercial orienta-
das para um mercado, segundo técnicas menos automáticas e mais agres-
sivas, além de requerer especialistas suscetíveis de aplicá-las.
Mesmo quando o dirigente conserva o monopólio de uma ou de ou-
tra dessas responsabilidades, ele não pode assumi-las todas e é, então,
obrigado a repartir o poder com outros.

Do negócio de família à sociedade anônima


Um dos primeiros indícios da institucionalização da empresa é, fre-
qüentemente, a entrada em cena de um contador, que põe as contas em
ordem, de acordo com regras precisas que excluem, a partir de então, toda
confusão entre ganhos e bens de família e entre o capital ou os salários.
A implantação de um estatuto jurídico preciso é um corolário
dessa reforma.
Esse fato ilustra perfeitamente a relação paradoxal que existe entre
a família e a empresa e confirma a observação de LÉVI-STRAUSS segun-
do a qual

a sociedade não pode existir a não ser se opondo à família, ao


mesmo tempo em que respeita suas obrigações”; ou ainda: “das
famílias na sociedade, pode-se dizer (...) que elas são ao mesmo
tempo sua condição e sua negação.

Um outro índice de evolução da empresa diz respeito às transforma-


ções que ocorrem na composição do grupo de acionistas, bem como na
composição do Conselho de Administração. O envolvimento da família é,
com efeito, máximo, quando essas instâncias reagrupam apenas mem-
bros da família restrita, unida por vínculos de consangüinidade com os
ancestrais fundadores que ocupam igualmente todos os postos de res-
ponsabilidade. Já mencionamos antes os perigos dessa situação que, se

99
Psicossociologia – Análise social e intervenção

não forem evitados, podem se traduzir em dificuldades muito grandes,


podendo implicar até em falência.
A ampliação do Conselho de Administração e/ou do grupo de acio-
nistas, quer a um conjunto de famílias aliadas (joint families), quer sobre-
tudo a terceiros não tendo nenhuma ligação familiar – quadros ou repre-
sentantes dos empregados (no caso de cooperativas), sócios etc. –,
mostra-se assim sempre indispensável.
Aqui também isso se traduz por estruturas e procedimentos formaliza-
dos, pela instauração de regras explícitas e, portanto, pela definição de
papéis e critérios decisórios, garantindo o distanciamento de pressões afe-
tivas de origem familiar e traduzindo, segundo os termos de LÉVI-STRAUSS,
“a recusa de reconhecer na família uma realidade exclusiva”.
Progressivamente, o centro de gravidade da empresa encontra-se
deslocado para fora do círculo familiar, transformando as relações de
poder e os modos de pensar, a estrutura de pessoal (mais jovens, melhor
formados) e a da clientela.
Esse processo não se realiza de uma só vez, mas, freqüentemente, em
várias gerações e sempre por decisões – das quais uma das mais signifi-
cativas é o deslocamento concreto da empresa para um lugar apropriado
– onde o peso dos modos de vida e dos hábitos de pensar das relações
antigas é menos forte, o que permite, principalmente entre os (jovens)
dirigentes, separar de maneira mais efetiva sua vida pessoal privada da
profissional.
Esses estão, com efeito, no centro do processo que os afeta mais do que
a qualquer outro membro da empresa. Sua legitimidade enquanto dirigen-
tes não se baseia mais sobre o direito que seu lugar no seio da família lhes
atribui nem na lenta iniciação sob a condução e o olhar de um idoso; como
para qualquer chefe de empresa, ela se baseia em competências que eles
adquiriram, geralmente fora da empresa, e que lhes permitem mais facil-
mente romper com modos de fazer e de pensar herdados e, portanto, de
ajudar a empresa a percorrer esse mesmo caminho.
Eles são, por conseguinte, colocados numa situação extremamente
conflitiva. Na medida em que seus conhecimentos e suas convicções os
encaminham a posições radicalmente opostas àquelas que os inspiram à
fidelidade e ao respeito que devem a seus mais velhos, eles devem encarar
tensões e mesmos conflitos agudos.
É, pois, muito raro que essas evoluções possam ter lugar durante uma
só geração. É mais freqüente que caiba aos sucessores a tarefa de operar as
rupturas necessárias, mesmo que essas já tenham sido delineadas há muito

100
Conjunção, na empresa, de um projeto pessoal e familiar,
com a história de uma região: o processo de criação institucional

tempo. É no momento da passagem progressiva do poder que o filho ou o


genro é levado a negociar as mudanças, evitando ao máximo que isso leve
a rupturas irreversíveis.

O deslocamento
O deslocamento está carregado de conotações essencialmente ne-
gativas, na medida em que ele traduz de maneira mais direta a ruptura
com o local de origem, o solo no qual a empresa se situa. E, no entanto,
uma estratégia de desenvolvimento e de crescimento implica sempre,
necessariamente, uma tomada de distância em relação à terra natal.
Trata-se, pois, de um problema nevrálgico para as empresas e para seus
dirigentes.
Mesmo tratando-se de uma simples mudança (mas elas não são jamais
“simples”) da unidade fabril, ela se traduzirá por obrigações novas face a
outras populações com outros estilos de vida, outras aspirações, outras exi-
gências. Se o deslocamento para outra região, ou mesmo para o estrangeiro,
é importante para reduzir, por exemplo, o custo de mão-de-obra e encarar
uma certa concorrência, isso será vivido como algo em detrimento da prefe-
rência pelo local e, portanto, como uma espécie de traição.
Mas o deslocamento pode também significar a inserção numa rede
industrial e comercial mais ampla, o estabelecimento de vínculos mais ou
menos institucionais com outros parceiros – industriais, bancos etc. – e o
questionamento de vínculos anteriores. Se, além disso, a empresa adotar
uma estratégia de exportação, ser-lhe-á necessário adaptar-se a um mer-
cado regido por outras normas, outros modos de relação.
Em todos os casos, o deslocamento é conotado por um sentimento de
infidelidade face àquilo que constitui a especificidade da empresa e a
identidade de seus dirigentes.
Para essa questão, encontramos respostas extremamente diversas.
Alguns escolhem deliberadamente reivindicar e reforçar suas raízes lo-
cais, renunciando a uma expansão possível, mas permitindo a sobrevi-
vência da empresa, graças a constantes esforços no plano da inovação:
“permanecer pequeno”, manter uma qualidade de vida e de trabalho,
para si próprio como para o ambiente é, nesse caso, considerado preferí-
vel a uma expansão sem significado.
Outros se orientam para soluções, permitindo administrar as con-
tradições, isto é, preservar uma base local, mas evitando que essa se
torne uma limitação ou obstáculo à criação de novos vínculos abertos a
outras perspectivas.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Essas soluções podem, por exemplo, consistir em dividir a empresa


em várias unidades relativamente autônomas, algumas das quais poden-
do se situar alhures; ou ainda, estabelecer vínculos com outras empresas
e participar de uma rede industrial, cobrindo um ciclo completo de fabri-
cação e distribuição sobre toda uma região (o Oeste, por exemplo); ou
ainda, desenvolver uma rede de sub-contratantes, situadas em regiões
economicamente mais propícias, evitando, no entanto, criar vínculos de
dependência com eles.
Os três movimentos que constituem o processo de institucionalização
são, portanto nitidamente diferenciados e interligados, ao mesmo tempo.
São diferentes no sentido de que eles não se implicam mutuamente
de maneira total.
São interligados no sentido de que apresentam efeitos, uns sobre os
outros, mais ou menos importantes.
Todas as empresas, no entanto, que manifestam um crescimento sen-
sível, traduzem uma participação em pelo menos dois desses três movi-
mentos.
Quanto mais eles se ampliam, mais eles se autonomizam, uns em
relação aos outros, e mais a unidade mítica do tríptico terra-ofício-família
tende a se quebrar, a rachar.
Como conseqüência de decisões, conscientemente tomadas ou im-
postas pelas circunstâncias, e de rupturas que essas provocam com o
lugar, as pessoas ou os hábitos de pensar, emerge assim uma organiza-
ção, no sentido pleno do termo, admitindo divisões e separações, onde as
relações são mediatizadas pelos saberes, por regras ou por técnicas.
As relações diretas, face a face, são substituídas por relações secun-
dárias, indiretas, que supõem prazos e contatos (redes etc.); as identifica-
ções a objetos são substituídas por identificações a símbolos (faturamen-
to, taxa de crescimento, produtividade, margem de lucro, mercados, etc);
as relações de poder pessoal são substituídas por regras e estatutos.
Um tal processo pode ser, então, assimilado a um trabalho de luto.
Esse trabalho deverá ser essencialmente assumido pelo dirigente; é ele,
com efeito, quem encarna por mais tempo as três bases sobre as quais a
empresa se funda; é SUA família, SUA terra, SEU ofício que dá corpo a ele;
é pois, na SUA cabeça que elas se ligam e tomam sentido; e é igualmente
nele e por ele que elas podem se desligar.
Seria, entretanto, ilusório acreditar que esse processo de criação ins-
titucional possa ser terminado, que a instituição possa se reduzir a essa

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Conjunção, na empresa, de um projeto pessoal e familiar,
com a história de uma região: o processo de criação institucional

ordem preestabelecida, existindo para e por si mesma. O social nunca é


estabelecido de uma vez por todas; ele deve sempre compor com o nível
primário, do clã, que é o seu fundamento, sua fonte energética, sua anco-
ragem biológica.
A instituição é um processo, uma tensão permanente. Se, para in-
gressar na linguagem e na ordem simbólica que se abre à história e ao
futuro, é necessário desligar-se das identificações a “objetos” imaginaria-
mente reais, é impossível, no entanto, desprender-se inteiramente, des-
pregar-se, sob pena de perder o contato com o real biológico, de negar
aquilo que é, ficando na ilusão de sua existência.
Uma instituição está viva apenas na medida em que essa tensão é
mantida, apenas se o trabalho de luto está sempre ocorrendo e se a angús-
tia que o acompanha está sempre presente.
Essa angústia é mais difícil de ser suportada quando, além de tradu-
zir o risco de perder os objetos de identificação primária, traduz também
a ameaça de destruição do núcleo do real, constitutivo do sujeito, de sua
consistência, de sua unidade.

Notas
1
Traduzido de: LÉVY, André. “Conjonction dans l’entreprise d’un projet personnel et
familial, et de l’histoire d’une région: le procès de création institutionnelle”. Paris, 1991.(mi-
meogr.), por Júlio M. Mourão. (Publicado também em “Actes du Colloque de l’Invention
Freudienne”, Toulouse, 1990, com o título Inconscient, organisation sociale, collectif).
2
Região situada no oeste da França. (N.T.)

103
Parte II
A psicossociologia em exame
Psicossociologia – Análise social e intervenção

106
PSICOSSOCIOLOGIAEMEXAME
Teresa Cristina Carreteiro

Muitos teóricos acreditaram que a era da Psicossociologia chegara ao


fim. No espaço até então ocupado por ela, surgiram diferentes métodos de
intervenção que se mostraram, aparentemente, mais eficazes e mais rápi-
dos. Todavia, podemos nos perguntar (e é essa a questão colocada por A.
LÉVY, nos seus dois textos) se esses novos métodos não minimizam a pos-
sibilidade de mudanças reais e duradouras, uma vez que ignoram a angús-
tia inerente a toda transformação e a toda ação de caráter irreversível.
No momento atual (e esse é um dos pontos abordados nos estudos de A.
LÉVY e A. NICOLAÏ), as sociedades são afetadas por consideráveis rupturas
e mudanças, responsáveis por um incontestável mal-estar nas identificações
e nas identidades. Pode-se mesmo perguntar se a civilização não estaria
passando por um processo involutivo (como já o temia FREUD). Essas trans-
formações devem, então, ser pensadas e acompanhadas por intervenções de
pesquisadores, capazes de levar em consideração as dificuldades inerentes
a tais situações, a fim de que as sociedades possam, verdadeiramente, enfren-
tar suas dificuldades e buscar superá-las, de forma responsável.
Entretanto, quais são os problemas realmente essenciais, na atualida-
de? Aos olhos do psicossociólogo, os mais importantes entre eles parecem ser
o crescimento do individualismo, os “intermináveis adolescentes” citados
por A. NICOLAÏ, o triunfo da racionalidade experimental, com o seu corolá-
rio, a busca desenfreada pelo êxito econômico e financeiro e, finalmente, o
recrudescimento do “narcisismo das pequenas diferenças” (FREUD), que
acarreta as disputas inevitáveis entre nações, etnias, grupos religiosos etc.
É certo que a Psicossociologia não tem poder para tratar dessas ques-
tões no âmbito da sociedade global, mas ela pode auxiliar os atores e os
autores sociais (segundo a terminologia de A. NICOLAÏ) ou os sujeitos
(segundo A. LÉVY) que querem inovar e criar novas modalidades sociais.
Ela pode ajudá-los a analisar melhor as estratégias de ação que podem
desenvolver, assim como compreender as conseqüências de suas toma-
das de decisão. No momento atual, um trabalho de tal monta é necessário e,
sobretudo, possível, pois, como o evidencia Nicolaï, as mudanças essenciais

107
Psicossociologia – Análise social e intervenção

surgem em níveis locais e em regiões periféricas, e não a nível global e em


regiões centrais.
Os sociólogos não se enganaram, quando anunciaram, como o fez
Touraine, o “retorno do ator”. No entanto, isso só adquire sentido se pen-
sarmos que as modificações devem ser acompanhadas por mudanças no
psiquismo do ator (autor, sujeito), assim como por mudanças no modo do
funcionamento dos grupos (A. LÉVY). Lidar com tais situações tem sido a
tarefa da Psicossociologia, desde a sua criação, quando afirmava que é na
vida cotidiana que as transformações ocorrem, na relação e pela relação, e
que não se pode dissociar mudança individual e coletiva.
É verdade que a Psicossociologia deve evoluir, interessar-se mais
pelos movimentos sociais, pelas interações entre sujeitos, por tudo aquilo
que poderíamos chamar de forças instituintes. Essa disciplina deverá,
também, dar atenção especial à conversação e ao debate. Seguindo essa
via, ela estará atenta à exigência de verdade e poderá ajudar os indivíduos
a tentarem superar seus medos, conhecendo mesmo um certo prazer na
criação individual e coletiva. Ela poderá, igualmente, ajudá-los a acredi-
tarem nas suas próprias palavras, levando-os assim a se tornarem pro-
gressivamente mais autônomos.
Nesse sentido, na atual crise pela qual passa o Brasil, a Psicossocio-
logia tem algo de positivo a oferecer, podendo auxiliar os vários atores a
aprofundarem a reflexão sobre as suas organizações, suas instituições e
seus diversos grupos sociais, além de auxiliar na pesquisa de questões
relativas a como queremos e podemos nos transformar. Mas, para tanto,
antes de mais nada, faz-se necessário o reconhecimento do mal-estar que
perpassa todos os campos de nossa sociedade, atingindo mesmo as dife-
rentes dimensões da cidadania.
Será, portanto, a partir do reconhecimento de nosso lugar de atores
sociais (enquanto sujeitos individuais ou coletivos), capazes de contri-
buir, seja para a evolução social, seja para a sua involução, que podere-
mos reconhecer nossas possibilidades instituintes.
É importante ainda mencionar outra questão, levantada por A. LÉVY:
as verdadeiras mudanças, prováveis de ocorrerem na sociedade, não sur-
girão de tomadas de decisões formais, ritualizadas, como têm sido fei-
tas, com freqüência, na prática social. Ao contrário, elas ocorrerão a
partir da elaboração das dificuldades e da criação de novas modalida-
des de busca da verdade. Esse processo é longo, pois requer que se ultra-
passe o nível da exterioridade, realizando um genuíno trabalho psíqui-
co, os diferentes sujeitos devendo analisar sua própria implicação. Só
assim pode-se proceder a um verdadeiro aprimoramento ético, através
da crítica efetiva e da transformação de nossas práticas sociais.

108
APSICOSSOCIOLOGIA:CRISEOURENOVAÇÃO?1
André Lévy

O que se passa hoje com a Psicossociologia e com as práticas que ela


introduziu, no início dos anos 60, em tantos setores da vida social? Sua
influência no tratamento dos problemas de mudança individual e coleti-
va, no modo de compreender as organizações e as instituições e, ainda,
nas condições de uma evolução das pessoas e das práticas organizacio-
nais está atualmente em decadência? A Psicossociologia foi suplantada,
tornada obsoleta pelas novas doutrinas e metodologias que apareceram a
partir daquela época e que se inspiraram tanto nela?
Caso se acredite no que se diz a esse respeito, e observando-se toda
uma série de sinais, seríamos tentados a pensar que, com efeito, as coisas
se passam assim: o número restrito de manifestações, a receptividade
reduzida das produções escritas recentes,2 o envelhecimento, nem sem-
pre bem sucedido, de equipes e instituições tradicionalmente associadas
a ela, as tendências por demais freqüentes a reduzi-la a uma espécie de
novo humanismo misturado a um rogerianismo neolewiniano, posto ao
gosto da moda pelas contribuições da Sociologia das organizações, da
socioterapia e da Escola de Palo Alto, – tudo isso parece indicar, forçosa-
mente, que a Psicossociologia não é mais um lugar vivo de criação intelec-
tual e de inovação nem está presente em questões dominantes das organi-
zações atuais, muito marcadas por transformações profundas na
organização do trabalho e nas relações com ele e por reviravoltas devidas
à informática e às novas técnicas de comunicação.
Se me decidi a escrever esse texto, é porque me parece que, malgrado
as aparências, as preocupações às quais a Psicossociologia tentou trazer
respostas não perderam em nada sua acuidade e que nada leva a pensar
que elas devam um dia desaparecer.
E isso se traduz em um interesse, na acepção forte do termo, presente em
muitos meios, por uma verdade da qual só é possível aproximar-se conside-
rando-se a relação com o outro e por meio de uma pesquisa rigorosa que

109
Psicossociologia – Análise social e intervenção

exclui radicalmente toda relação ou desejo de submissão e de dominação, ou,


retomando termos de E. ENRIQUEZ,3 por

um trabalho de análise que visa não ao simples questiona-


mento, mas que favorece a transformação da ação e suscita
nos homens implicados, não apenas a inquietude e a interro-
gação, mas a vontade de inovar, de viver de outra forma, de
ter prazer...

Parece-me igualmente que, a partir de interrogações relativas ao pa-


pel da Psicossociologia na sociedade, da renúncia a certas ilusões para
as quais ela criou espaço, do reexame sem complacência de algumas de
suas metodologias (dinâmica de grupo e intervenção psicossociológica,
por exemplo), ela é hoje o lugar de pesquisas que têm como objeto renovar
suas formas de abordagem e suas bases teóricas, a partir das quais não é
tão arriscado prever que ela possa tomar um novo impulso.
Mas importa, primeiro, tentar captar as razões e os significados da
aparente decadência da Psicossociologia e do sucesso de métodos e técni-
cas que parecem tê-la suplantado.

A decadência aparente da Psicossociologia


Sem pretender realizar um inventário completo das novas metodolo-
gias que surgiram, uma após outra, desde o início dos anos 70, pode-se citar
a análise institucional, os métodos centrados na expressão corporal, as abor-
dagens sistêmicas da Escola de Palo Alto – a “comunicação nova” –, a aná-
lise organizacional, a análise transacional e, enfim, mais recentemente, as
metodologias inspiradas em novas pesquisas em Psicologia cognitiva.
Essa enumeração, que evidentemente não é exaustiva, reagrupa abor-
dagens extremamente diversas e dificilmente comparáveis. Entretanto,
elas têm em comum o fato de terem pretendido, em um determinado mo-
mento, oferecer respostas globais a questões deixadas em suspenso pelas
práticas psicossociológicas. Embora durante alguns anos, uma após ou-
tra, elas tenham podido ser a referência principal, senão a única, para os
atores sociais e para muitos práticos, elas foram sendo substituídas mui-
to rapidamente nessa função por alguma outra metodologia mais pro-
missora. Em outras palavras, como todo fenômeno de moda, elas conhe-
ceram também um fenômeno de desgaste rápido.
É certo que a maior parte delas não desapareceu, o que tem como
conseqüência que, em seu conjunto, constituem, para os atores engajados
na ação, uma gama extremamente considerável de meios que eles podem
escolher, em função do que lhes parece ser necessário.

110
A psicossociologia: crise ou renovação?

Em si, tudo isso tem uma conseqüência de importância tão grande


que modifica radicalmente a relação do ator com as técnicas: essas pas-
sam a ser, então, meios que ele controla, podendo escolher o local e o
momento de aplicação ou combiná-los à vontade; isso é totalmente dife-
rente da relação que ele deve manter com uma metodologia que, por não
lhe deixar escolha, impõe-lhe regras às quais ele deve se submeter sob
pena de torná-la inoperante ou de mudar seu significado.
Podem-se fazer duas observações suplementares que contribuem para
explicar o sucesso – comercial, pelo menos – desses métodos:
a- eles se apresentam como respostas susceptíveis de fornecerem so-
luções eficazes e rápidas a problemas imediatos e delimitados. Em
outras palavras, eles “funcionam” a um custo relativamente redu-
zido de tempo e dinheiro; desse ponto de vista, eles se comparam,
com vantagens, a outros métodos mais longos, incertos e custosos.
Dessa forma, eles estão prontos a se ajustarem a um requisito de
resultados e não apenas de procedimentos.
Certamente, fazendo assim, eles apenas retomam as intenções das
primeiras experiências popularizadas por K. LEWIN e C. ROGERS
(resolução de conflitos sociais, auto-realização, emergência de per-
sonalidades mais autônomas e congruentes etc.), intenções que,
na verdade, deveriam ter sido consideravelmente reduzidas, à
medida que os psicossociólogos tomavam consciência das leis do
inconsciente (limites da “autonomia”...) e das intransigências ins-
tituídas nas estruturas e relações sociais e à medida que elabora-
vam metodologias acentuando a duração e um nível de investi-
mento muito mais radical e, ao mesmo tempo, com ambições mais
limitadas e incertas.
É praticamente certo que a análise institucional, por exemplo,
ganhou grande parte de sua reputação devido à sua capacidade
de provocar, em um breve lapso de tempo – da ordem de alguns
dias –, efeitos espetaculares em uma instituição. O mesmo ocorre
com a bioenergia e com outros métodos de reeducação sexual.
Quanto às terapias preconizadas pela Escola de Palo Alto, no
quadro sugestivo do brief therapy center – “centro de terapia breve”,
elas consistiam em tratamentos visando a “objetivos concretos e
acessíveis”, dentro de um limite de tempo (dez sessões no máxi-
mo),4 contrapondo-se a tratamentos longos que perseguiam objeti-
vos considerados como “utópicos” (tais como a busca de causas e
origens dos sintomas).

111
Psicossociologia – Análise social e intervenção

b- Um segundo traço que nos parece caracterizar bem as novas orien-


tações é o interesse muito particular que elas manifestam pelos
mecanismos lógicos, “enquadramentos”, “sistemas” (por exem-
plo, o sistema de ação concreto de M. CROZIER) que regulamen-
tam as relações entre homens e o funcionamento dos grupos e
das organizações de maneira quase automática e sem interven-
ção humana. Isso ocorre não apenas nas diferentes orientações
sistêmicas (de Palo Alto a CROZIER) que enfatizam a importân-
cia dos jogos e das regras do jogo, mas também nas orientações
cognitivas. Essa tendência já estava presente, há que se lembrar,
na análise institucional que queria reduzir o papel do analista ao
dos analisadores (“isso” analisa). Embora ocorram desvios,5 não
é possível daí deduzir que a concepção de mudança tenha se tor-
nado puramente instrumental, aparecendo em utensílios, instru-
mentos e técnicas susceptíveis de serem utilizadas sem a partici-
pação de um sujeito, reduzido, então, a um “ator” ou a um
“agente”; mas parece ser verdade que o objetivo das metodologias
assim desenvolvidas é a aquisição de um controle sobre os ho-
mens e sobre os processos, tendo como corolário a colocação en-
tre parênteses do sujeito enquanto ser de desejo e de projeto.
Tal fascinação pelo que “funciona”, pelos “utensílios” que permi-
tem responder rápida e, se possível, automaticamente a problemas
delimitados, pelo instrumento e pela instrumentalização – que,
evidentemente, não está muito distante de uma fascinação pelo
poder –, deve ser compreendida no contexto de nossa sociedade
altamente tecnológica, dominada por relações mercadológicas e
seus valores, colocada sob o signo da urgência (ou do sentimento
de urgência) – sociedade que é fonte da angústia diante da au-
sência de um ponto de referência estável e central e pelo senti-
mento contrário de estar presa num feixe de determinações que
escapam a todos.
Tudo o que se apresenta como uma exigência do sujeito, especi-
almente a necessidade de tempo, e que, concomitantemente, não
garante nem assegura nada, tudo isso é, então, condenado a ser
rejeitado.
Nessa perspectiva, a “crise” ou a decadência relativa da Psicos-
sociologia pode ter um caráter relativamente saudável. Abando-
nar a outros um território no qual ela não poderia lutar no plano
da eficácia, obriga-a a retornar às suas fontes e a se definir com
mais rigor.

112
A psicossociologia: crise ou renovação?

Se ela parece estar muito ausente do “mercado” é porque mui-


tos psicossociólogos renunciaram, progressivamente, a fazer com
que a crença em sua capacidade de ser “performático” fosse com-
partilhada; isso os levou a aprofundar o significado complexo
das demandas que lhes eram endereçadas, seu caráter paradoxal
e a impossibilidade de reduzi-las, sem risco, a demandas por
respostas e soluções.

O conceito de demanda social


Com efeito, é a partir de uma reflexão exaustiva sobre a noção de de-
manda que a Psicossociologia se construiu. Colocando como premissa a
importância do psicológico no social e, reciprocamente, a articulação ínti-
ma entre o individual e o coletivo, ela foi levada à idéia de uma “demanda
social”. A demanda expressa, com efeito, uma perspectiva segundo a qual
todo acontecimento psíquico, toda história singular, é eco de acontecimen-
tos sociais, inscritos em uma história coletiva que, reciprocamente, “existe”
e se desenvolve apenas se “vivenciada” por pessoas.
Entretanto, a noção de “demanda social” é ainda ambígua e ne-
cessita ser esclarecida.
Primeiramente, pode-se observar que o termo demanda comporta sig-
nificados que se situam em dois registros diferentes: um de ordem econô-
mica, implicando um bem, um objeto, assim como uma relação de troca.
Assemelha-se, nesse caso, à noção complementar de oferta – demanda e
oferta devem se equilibrar. Nesse sentido, está próxima à noção de enco-
menda, isto é, ato pelo qual a demanda (potencial) é feita. Para evitar a
ambigüidade desse último termo e reservar-lhe apenas o segundo signifi-
cado (psicológico), há quem quis diferenciar, então, demanda de enco-
menda – LOURAU, especialmente. No que nos diz respeito, tal distinção
não nos parece desejável pois, mesmo se ela resolve de maneira artificial
a ambigüidade do termo demanda, retira-lhe, por isso mesmo, uma gran-
de parte de sua riqueza.
Assim, no registro econômico, a demanda é, necessariamente, uma
demanda de objeto, endereçada a um outro, combinada então a pressões
mais ou menos fortes, mais ou menos explícitas, que podem, no limite,
assimilá-la a uma encomenda, no sentido de ordenar ou encomendar,
exigindo a submissão daquele a quem ela se dirige.
Se, entre a demanda e a encomenda, podem-se percorrer todos os graus,
indo do pedido e da sugestão (que supõem o reconhecimento da liberdade
do outro e sua adesão voluntária) à ordem (que supõe, ao contrário, uma

113
Psicossociologia – Análise social e intervenção

relação de dominação hierárquica), ainda é verdade que o termo de-


manda inclui sempre, pelo menos em um segundo plano, uma certa relação de
poder e de dominação.
Outra vertente de significado do termo situa-se no registro psicológi-
co. Nesse caso, não é uma demanda de objeto, mas a expressão de um
desejo, de uma falta, dirigida a quem se estima seja capaz de supri-la. No
limite, trata-se de uma demanda de amor.
Se, no primeiro registro, a demanda é facilmente interpretável, explici-
tada pelo objeto que designa, no segundo, em contrapartida, sua interpreta-
ção é sempre problemática, inclusive e sobretudo por quem a formula. Por
essa razão, durante um processo de consulta ou de intervenção, a “análise
da demanda” não poderia ser um preâmbulo, mas seria um processo per-
manente que daria sentido a todo o trabalho realizado.
Seja qual for o registro – econômico ou psicológico –, a “demanda” só
tem sentido e só existe, na acepção própria do termo, na relação com
aquele a quem ela se dirigiu e apenas se foi ouvida por ele. Ela se torna
real por essa e nessa relação. Mas as coisas se passarão de forma inteira-
mente diferente caso o destinatário seja reconhecido e se reconheça a si
próprio, como capaz de dar uma resposta adequada (o objeto solicitado)
ou caso diga ou seja incapaz de fazê-lo.
Toda demanda se situa ao mesmo tempo no dois registros, o que lhe
dá riqueza e complexidade. Enquanto é apelo ao outro, seja de reconheci-
mento ou de amor, dificilmente é formulada como tal, disfarçando-se,
freqüentemente ou sempre, em demanda de outra coisa – conselho, ajuda,
solução, objeto material etc; inversamente, toda demanda de objeto revela
também um apelo indizível a ser decifrado.
Certamente, tudo isso não é específico da Psicossociologia; aplica-se
a todas as relações ditas de ajuda, seja em um quadro terapêutico, em
um trabalho social ou nas diversas outras relações cotidianas – entre
pais e filhos, marido e mulher etc.; a questão da demanda – sua escuta,
sua interpretação, seu tratamento – é, principalmente, uma das dificul-
dades da problemática da transferência e da contra-transferência na
situação analítica.
Entretanto, o que dá um sentido e uma configuração particular a essa
questão, na Psicossociologia, é que, aí, a demanda é considerada não
como individual, mas como social.
É, então, necessário indagar a respeito de seu significado. Ele não é
evidente, pois o qualificativo “social” tende, precisamente, a tirar da acep-
ção corrente de demanda toda conotação psicológica.

114
A psicossociologia: crise ou renovação?

O conceito de “demanda social” não significaria que grupos e insti-


tuições se incorporariam em sujeitos portadores de desejos inconscientes.
Ao contrário, refere-se ao fato de que as demandas emergem em situações
coletivas, das quais resultam vivências compartilhadas que, eventual-
mente, exprimem-se sob formas coletivas (greves, manifestações agressi-
vas ou angustiantes etc.), as quais, por sua vez, podem ter efeitos nas
situações que as originaram.
Mesmo quando essas expressões coletivas manifestam-se em micro-
situações – grupos e organizações particulares –, estão sempre ligadas a
condições macrossociológicas que elas expressam, mesmo que seja de
maneira difusa.
Como conseqüência, as demandas sociais podem e devem ser anali-
sadas e tratadas de maneira igualmente coletiva.
Em outras palavras, o acesso a essas demandas e às situações pro-
blemáticas em relação às quais elas adquirem sentido se dá de forma
privilegiada em situações de interação coletiva, nas quais elas podem ser
avaliadas, mobilizadas, transformadas em atos, compreendidas e inter-
pretadas.
É em relação a esses dados que o trabalho do psicossociólogo pode
ser definido: fazer emergir demandas através de situações preparadas
com objetivo não apenas de permitir uma expressão menos difusa delas,
mas também de permitir interpretá-las. Porém, há sempre o risco de redu-
zi-las ao objeto que elas anteciparam (reivindicação, meios de resolver
um conflito etc.) e de levá-las assim para um registro mercadológico; o
psicossociólogo está sempre submetido a pressões que visam a colocá-lo
em uma relação hierárquica (de mando), de dependência ou de submis-
são, às quais é difícil resistir, especialmente se ele próprio ocupa uma
posição na hierarquia da organização na qual intervém.

Análise da demanda: a ética da Psicossociologia


Fazer emergirem demandas não consiste em adotar uma atitude de
escuta passiva simples. De um lado, uma demanda só existe quando
escutada por seu destinatário e, de outro, ela é endereçada apenas àquele
que se pensa esperá-la e que, de uma maneira ou de outra, a solicitou, quis
ou “demandou”.
Assim, não há nada em comum com a posição de simples espelho,
reflexo interpretante. Para que uma demanda seja dirigida a um consul-
tor, é necessário que ele tenha se manifestado, testemunhado através de
seus escritos, atos e palavras, que sua prática não é aplicação de uma

115
Psicossociologia – Análise social e intervenção

técnica posta ao dispor de atores sociais, que suas teorias não se reduzem
a um quadro conceitual neutro, mas que traduzem um desejo, uma ética,
uma concepção da sociedade e das relações humanas.
Estar disposto a receber demandas sociais com toda sua dimensão
intersubjetiva e a reconhecê-las como tais – e não como simples reivindica-
ções –, afirmar que elas são, ao mesmo tempo, confessáveis e tratáveis,
incitar assim também os solicitantes a reconhecê-las como questão, enig-
ma, cujo sentido e destinatário verdadeiro ainda têm que ser decifrados
(renunciar, consequentemente, a reduzi-las a problemas específicos sus-
ceptíveis de terem uma solução externa), tudo isso expressa bem o que, na
falta de outro termo, parece-nos ser uma ética, uma perspectiva – que, desde
LEWIN, não deveria ser identificada a um projeto de sociedade.
Tal projeto reduziria a Psicossociologia a uma ideologia cujas meta-
morfoses certamente não seriam estranhas à “crise” que ela conheceu e
que tentamos analisar acima. Trata-se, ao contrário, de fixar um nível de
rigor mínimo que permita ao psicossociólogo resistir a pressões e superar
os riscos nos quais incorre: não através de uma filosofia abstrata, mas
através de princípios regendo procedimentos, princípios que não poderi-
am ser transigidos – inclusive, com uma preocupação ecumênica de bom
quilate – sob pena de trair o que dá sentido à sua ação.
Evidentemente, não é possível, no espaço desse artigo, desenvolver
esses princípios ou os procedimentos que os sustentam. Entretanto, al-
guns pontos nos parecem determinantes:
1- Analisar a demanda social implica que se considere sua hetero-
geneidade. Esse ponto, que foi particularmente desenvolvido por
Jean DUBOST, corresponde a uma representação da sociedade
como composta de uma pluralidade de atores, individuais e cole-
tivos, interagindo entre eles, cujas respectivas demandas só ad-
quirem sentido umas em relação às outras. Assim, um grupo,
uma empresa, um serviço administrativo, uma classe de atores
etc., não podem ser considerados como tendo uma “demanda”
analisável em si, independentemente das outras com as quais ela
se articula. Tal representação exclui, principalmente, toda análi-
se em termos de relações bipolares; da mesma forma, ela evita a
tentação antropomórfica que consiste em atribuir a um grupo
atributos de um sujeito individual e sua unidade imaginária.
Desse ponto de vista, a noção de sistema é bastante útil, com a
condição, entretanto, de ser interpretada em toda a sua complexi-
dade e com todos os seus paradoxos;6 como oportunamente evoca-
do por J. DUBOST, BRADFORD antecipava tal perspectiva de

116
A psicossociologia: crise ou renovação?

análise desde os anos 50, propondo os termos “sistema-cliente” e


“sistema-interventor”.
2- Por outro lado, é importante que todo ator e, em especial, todo inter-
ventor ou consultante que aspira a exercer um papel de análise situe
sua ação em relação a uma perspectiva de pesquisa e, dessa forma,
a um trabalho teórico centrado em objetos de saber. Desse ponto de
vista, a intervenção junto a um grupo deve ser vista, ao mesmo tem-
po, como uma ação e como um modo de desenvolvimento de novos
conhecimentos.
Sem dúvida, tal mediação frente ao saber é a principal condição
que permite ao ator social munir-se, antecipadamente, (de forma
relativa) contra os riscos de reduzir sua relação com o outro a uma
relação de poder dual, instrumental, condicionada a uma preocu-
pação de eficácia ou de utilidade (reduzindo, então, igualmente, a
demanda à sua vertente econômica ou mercadológica).
Evidentemente, tal perspectiva não se restringe à Psicossociologia;
aplica-se também à Psicanálise, em especial. A introdução, por K.
LEWIN, do conceito de “pesquisa-ação” contribuiu para precisar
as formas como ela poderia se manifestar na prática.7 Porém, a
perspectiva lewiniana de pesquisa-ação pode ir além, incluindo
tanto atores quanto interventores e analistas.
Em suma, e sendo breve, trata-se de tentar definir, desde o início
da ação de intervenção, os objetos de pesquisa comuns aos inter-
ventores e aos solicitantes e, em uma relação de colaboração, iden-
tificar os dados, conceitualizar as situações das quais emergem
as demandas e compreender os processos que governam sua evo-
lução.
3- Não importando qual seja o interesse dos preceitos positivistas da
ciência experimental, eles serão sempre incapazes de proteger o
pesquisador e, a fortiori, o interventor-pesquisador contra o risco
de, sem o perceber, ter sua atividade mais ou menos afetada por
sua posição de sujeito e de ator social. A desconexão pregada
pelos defensores da ciência positivista – Max WEBER, por exem-
plo –, para garantir a independência do pesquisador em relação
às influências de poder e às ideologias, não pode pretender sub-
meter os processos de produção teórica apenas aos critérios de
racionalidade e objetividade.
Assim, J. FAVRET-SAADA8 deu ênfase a que o fato de falar e fazer
falar nunca é neutro. O pesquisador etnógrafo está necessariamente

117
Psicossociologia – Análise social e intervenção

“preso” pelo seu objeto, nem que seja apenas para legitimar sua
própria posição de sábio em relação às “crenças” de “indígenas
atrasados” cujos ritos estuda. Da mesma forma, questionar, inves-
tigar, assim como observar, implicam sempre em estar inscrito
numa relação de forças.9
O “desprendimento” implicado em um trabalho de pesquisa não
pode, então, ser estabelecido antecipadamente como um princípio
normativo; parafraseando J. FAVRET-SAADA, tal princípio ape-
nas levaria pesquisadores e atores “a se mirarem no espelho que
cada um mostra ao outro”, com tudo o que isso comporta de in-
consciente e de cumplicidade consciente.
O “desprendimento” só pode resultar de um movimento duplo:
em primeiro lugar, de apreensão – deixar-se prender pelos discur-
sos dos outros e participar deles, aceitar sua implicação e a subjeti-
vidade dela resultante; em seguida, de “re-apreensão” teórica das
situações observadas, dos discursos sustentados (incluindo o seu
próprio) e dos processos realizados – “re-apreensåo” quer dizer,
nos termos de J. FAVRET-SAADA, “saber como se foi apreendi-
do”, “o que pode ter sido através de seu próprio desejo de saber”.
Entretanto, essas diversas indicações não deveriam ser interpreta-
das como normas rígidas; elas expressam antes uma perspectiva,
uma orientação, e não condutas estritas às quais o interventor-
pesquisador deve se conformar. Embora seu enunciado seja neces-
sário, ele o é não tanto para prescrever uma tarefa que, de qualquer
jeito, é impossível, mas para levar os que se engajam nela a desco-
brirem seus limites.

Perspectivas para o futuro


A Psicossociologia ocupa, então, um lugar específico no conjunto
das ciências humanas e esse lugar diz respeito a necessidades durá-
veis. É indispensável, embora não suficiente, reafirmar essa posição e
manter-se nela. Igualmente, é importante que esse lugar seja interpre-
tado em função de evoluções, consideráveis nas últimas décadas, da
sociedade e das ciências do homem. A Psicossociologia é a instância
de tal renovação ou ela se limita à reprodução de práticas antigas? Ela
tem um futuro? Em caso afirmativo, quais são seus pontos fortes? Sem
pretender responder a essas questões, consagraremos a elas as últi-
mas páginas desse texto, tentando identificar, brevemente, algumas
tendências atuais.

118
A psicossociologia: crise ou renovação?

Uma primeira observação, de ordem geral, impõe-se: qualquer que


seja o domínio, é impossível, hoje, falar de orientações da Psicossociolo-
gia e de psicossociólogos, sem evocar seus vínculos com outras discipli-
nas e outros atores sociais.
A pretensão da Psicossociologia de monopolizar a questão da mu-
dança social, mesmo que apenas em uma perspectiva microssociológica,
não é mais aceitável. Assim, a influência crescente da Psicanálise tornou
necessária, desde os anos 60, uma profunda reavaliação de seus métodos
e objetivos, dominados principalmente, até então, por perspectivas lewi-
nianas, rogerianas e morenianas. Não é mais possível considerar o traba-
lho de formação, de análise de grupo, de intervenção ou de consulta sem
referência a trabalhos de inspiração psicanalítica.10
Mais recentemente, certas correntes de Sociologia Clínica,11 princi-
palmente aquelas orientadas para a análise das instituições e dos movi-
mentos sociais, dedicaram-se, com uma perspectiva bem global, a proble-
mas de mudança social, contribuindo sobretudo para a compreensão das
dimensões institucionais e culturais.
Por outro lado, embora se possa ser crítico com relação aos desenvol-
vimentos recentes que revisamos, talvez rapidamente demais, no início
do texto, e se possa dizer que eles freqüentemente conduziram a impas-
ses, a retrocessos ou mesmo que violaram objetivos e princípios funda-
mentais, é forçoso admitir que não podem ser ignorados e que se deve
reconhecer que também eles contribuíram para abrir novos campos e for-
mas de pensar.
Finalmente, há alguns anos, assiste-se a uma multiplicação de pes-
quisas orientadas para a análise de discursos coletivos e para as intera-
ções lingüísticas – interlocuções, análise conversacional, etnometodolo-
gia;12 embora em sua origem tais trabalhos tenham sido feitos com objetivos
puramente descritivos e de pesquisa, orientam-se cada vez mais para o
estudo da linguagem como lugar de produção e de transformação de estru-
turas e de relações sociais. Mostram, assim, convergências, cada vez mais
evidentes, com alguns trabalhos da Psicossociologia e contribuem para
esclarecer, de uma forma diferente, os processos de intervenção e de mu-
dança e para fornecer conceitos e métodos novos para analisá-los.
É certo que essas indicações sintéticas mereceriam um desenvolvi-
mento bem mais amplo. Em todo caso, elas acentuam a necessidade de
uma abordagem pluridisciplinar e a impossibilidade da Psicossociolo-
gia renovar-se sem contribuições externas. Mostram também que tais arti-
culações não são feitas facilmente e que elas se chocam com diversas

119
Psicossociologia – Análise social e intervenção

dificuldades advindas de diferenças epistemológicas, por vezes funda-


mentais, e de representações específicas de objeto.
O que é verdadeiro no plano teórico também o é no terreno da prática.
O problema da mudança individual, grupal ou institucional não é mono-
pólio do psicossociólogo. Desde a colaboração intensa – freqüentemente
conflitiva e não de todo desprovida de ambigüidade – que foi estabeleci-
da, nos anos 60 e 70, com os psicanalistas e psiquiatras empenhados em
reformas da instituição psiquiátrica, muitos outros atores apareceram:
formadores, trabalhadores sociais, sindicalistas, responsáveis políticos
locais, arquitetos etc., com os quais novas formas de colaboração devem
ser inventadas.

Notas
1
Traduzido de: LÉVY, André. “La psychosociologie: crise ou renouvau?” Cahiers d’Etude
du CUFCO, 17, p. 9-18, 1990, por Eliana Vianna Soares e Marília Novais da Mata
Machado.
2
Como exemplos: BARUS, J. Le sujet social. Dunod, 1987; DUBOST, J. L’intervention
psychosociologique. PUF, 1987.
3
ENRIQUEZ, E. “Eloge de la psychosociologie”. “Connexions”, 42, 1983.
4
WATZLAWICK et al. Changements, paradoxes et psychothérapies. Paris: Seuil, 1975.
5
BEAUVOIS, J. L. e JOULE, R. Petit traité de manipulation à l’usage des honnêtes gens.
PUG, 1987.
6
Em especial, ATLAN, H. Entre le cristal et la fumée. Paris: Seuil, 1979. e BAREL, Y. La
société du vide.
7
Cf. DUBOST, J. “Une analyse comparative des pratiques dites de recherche-action”.
Connexions, 43, 1984; RAPOPORT, R.N. “Les trois dilemmes de la recherche-action”.
Connexions, 7, 1973.
8
FAVRET-SAADA, J. Les mots, la mort, les sorts. Gallimard, 1977.
9
DUBOST, J. e LÉVY, A. “L’analyse sociale”. In: ARDOINO et al. L’intervention insti-
tutionnelle. Payot, 1980; LÉVY, A. “La recherche-action: une autre voie pour les sciences
humaines”. In: Du discours à l’action. L’Harmattan, 1985; LECLERC, G. L’observation
de l’homme. Seuil, 1979.
10
Por exemplo: ANZIEU, D. Le groupe et l’inconscient. Dunod, 1984; BION, W. Recher-
ches sur les petits groupes. PUF, 1965; JAQUES, E. Intervention et changement dans
l’entreprise. Dunod, 1972.
11
TOURAINE, A. La voix et le regard. Seuil, 1978.
12
BORZEIX, A. “Ce que parler peut faire”. Sociologie du Travail, 2:87; CHABROL, C. e
CAMUS-MALAVERGNE, O. “Coopération et analyse des conversations”. Connexions,
53, 1989; FLAHAULT. La parole intermédiaire. Seuil, 1978; GOFFMAN, E. Façons de
parler. Minuit, 1987; TROGNON, A. Situations de groupe et relations langagières. Tese
de Doutorado, Paris X, 1981.

120
A MUDANÇA: ESSE OBSCURO OBJETO DO DESEJO1
André Lévy

Para quem se interessa pela questão da mudança social, o ano de


1984 teria sido rico com a publicação de duas obras sobre esse assunto.2
Mas, poder-se-ia ser surpreendido ao constatar que, em nenhuma das
duas, se faz referência aos trabalhos dos psicossociólogos que, depois de
LEWIN, contribuíram de forma decisiva para a compreensão dos pro-
cessos de mudança nas organizações, relacionados com o desenvolvi-
mento de práticas sociais de intervenção.
Entretanto, de forma mais ou menos clara, essas obras trazem a
marca das inflexões que o pensamento sobre a mudança conheceu, des-
de há dez ou quinze anos: desapreço às teorias gerais que oferecem
modelos explicativos das mudanças sociais globais e, em contraparti-
da, interesse crescente pela análise e mesmo pela descrição de proces-
sos concretos de mudança nos grupos e instituições; tendência, tam-
bém, a abordar a mudança em suas manifestações cotidianas, mais do
que como fenômeno excepcional; retorno a uma problemática do inde-
terminismo,3 sobretudo nas Ciências Humanas, em detrimento da pro-
blemática da sobredeterminação que havia dominado as pesquisas du-
rante muitos anos.4
Essas evoluções, certamente, não podem ser atribuídas apenas aos
psicossociólogos; resultam também da desilusão com a capacidade ex-
plicativa e preditiva das teorias gerais relativas à mudança, do efeito
das decepções ligadas às evoluções políticas e sociais desde o início dos
anos 70, da crise das ideologias e das doutrinas que pregam uma trans-
formação radical e revolucionária da sociedade.
A importância que os trabalhos de CROZIER e de TOURAINE ga-
nham hoje, no campo que nos interessa, é significativa desse estado de
coisas: se o primeiro reduz a mudança ao desenvolvimento de processos
de regulação e de negociação permanentes nas organizações, o segundo

121
Psicossociologia – Análise social e intervenção

ressalta as mudanças futuras, preparadas em grupos pertencentes a mo-


vimentos sociais virtuais.
Se os psicossociólogos não podem ser considerados como os únicos
responsáveis por essas evoluções, não é menos verdade que eles foram os
primeiros a pressenti-las e a desenvolver suas implicações, talvez por se
terem situado no terreno das mudanças em vias de ocorrer, participando
delas diretamente, do interior e não de um ponto de vista exterior, aquém
ou além, para as constatar, prever, dirigir ou combater.
Nesse terreno, com efeito, a questão que se coloca não é tanto a de
explicar uma mudança já realizada, mas participar do momento e do
lugar nos quais ela se efetua e, por isso, compreendê-la como tal.
K. LEWIN, que aparece necessariamente em toda reflexão sobre mu-
dança, teve o grande mérito de abordar essa questão diretamente. Assim,
fez notar que se tratava não de uma simples passagem de um estado a
outro, mas de um processo que podia ser descrito segundo três fases dis-
tintas (descristalização, deslocamento, recristalização).5 Além disso, esta-
beleceu que o lugar desse processo não era forçosamente o indivíduo so-
zinho, isto é, que a mudança social não resulta sempre da acumulação de
mudanças individuais, mas que ela poderia se realizar, de súbito, no gru-
po (na relação e pela relação, como demonstramos num texto anterior).6
Apesar da extrema dificuldade que existe para se entender um fe-
nômeno que se assemelha à criação poética ou à invenção científica e
que, por definição, foge à apreensão – pois só se poderia falar dele após
sua ocorrência –, e porque toda observação ou análise que se poderia
fazer, necessariamente, iria reificá-lo, parece-nos possível, hoje, fornecer
alguns elementos de forma a precisar e complementar essas reflexões já
antigas – mesmo que isso só possa ser feito de maneira aproximada e
sugestiva, necessitando ser aprofundada.
Antes, porém algumas observações prévias:
a- Estabelecer a mudança como processo grupal e não como resultado de
uma série de interações entre indivíduos significa que o grupo constitui
uma realidade fenomênica e que esse termo não define apenas um ní-
vel de análise.

O conceito de interação pela linguagem7 parece-nos, aqui, muito


fecundo; ele permite, com efeito, designar como lugar desse pro-
cesso a realidade intersubjetiva que constitui o discurso – atos de
escrita ou de palavra – e se livrar, definitivamente, de uma leitura
psicológica.

122
A mudança: esse obscuro objeto do desejo

b- Se o discurso pode ser tomado como o lugar da mudança, nem


todo processo discursivo se identifica, entretanto, a um pro-
cesso de mudança.
Isso nos obriga a precisar a que “mudança” nos referimos.
Toda vida é “repetição de ciclos”, “exceto do corpo que se usa”,
escrevia Paul VALÉRY.8 Com efeito, a vida se conserva reprodu-
zindo-se (termo que não deve ser confundido com a repetição do
mesmo, que é a morte) – reprodução das espécies, reprodução
das instituições, reprodução das idéias...
O termo mudança poderia, pois, legitimamente, designar tudo o
que está vivo; porém, tal definição é geral demais para ser útil.
Com efeito, o desenrolar de uma existência, seja a de um indivíduo
ou de um grupo, não se reduz a esse processo evolutivo, lento e ininter-
rupto. Ele se traduz, também, por momentos de descontinuidade que
marcam fraturas no destino, reorientações bruscas, mutações, redirecio-
namentos, freqüentemente não isentos de violência. Mesmo se posterior-
mente esses acontecimentos pareçam ter sido inelutáveis, eles não po-
dem ser previamente enunciados. Como já dissemos,9 a mudança, desse
ponto de vista, é

um acontecimento ou um fato que introduz uma ruptura na vida


do sujeito, (...) mudar não é submeter-se inteiramente à lei da
repetição (...), é acontecer, é se abrir a uma história, à aventura, ao
risco (...) pelo aparecimento e exame de elementos de significa-
ção verdadeiramente inéditos (...).

A teoria dos sistemas distingue, assim, a mudança no sistema e a


mudança do sistema: se essas duas dimensões parecem contraditórias,
elas mantêm entre si relações dialéticas e complementares que é preciso
compreender. No entanto, é sobre essa segunda significação de mudan-
ça, como ruptura, que queremos nos centrar aqui.

A mudança é um trabalho
do espírito, do pensamento

Antes de ser um acontecimento material – biológico, físico, econô-


mico, tecnológico –, a mudança é um acontecimento psíquico. Antes de
ser um acontecimento objetivo, ela é um acontecimento subjetivo. Com
efeito, é o espírito que, como observou Paul VALÉRY, tem “o poder de
transformação das representações” e o de “tratar situações insolúveis

123
Psicossociologia – Análise social e intervenção

por meio da atividade de reflexão, favorecendo o estado de disponibi-


lidade de recursos próprios, isto é, a liberdade”.10
O psiquismo (o mental) e sua dinâmica são, então, por excelência, o
lugar da mudança, da possibilidade de desligamentos e de novas combi-
nações. As condições materiais, objetivas, só têm valor de mudança quan-
do elas são apropriadas mentalmente, ao nível de suas significações.
Para entender bem essa proposição, é necessário se livrar de toda
perspectiva em termos de causalidade. As inovações técnicas podem
certamente ser consideradas como as manifestações mais gritantes de
mudanças marcantes nas sociedades modernas e como o fator mais de-
terminante da subversão dos valores, das instituições, dos modos de
pensamento. Não estamos interessados na polêmica que opõe os que
julgam que as condutas são determinadas pelas idéias, representações
ou intenções e os que estimam, ao contrário, que essas últimas consti-
tuem racionalizações de condutas instituídas e de situações objetivas.
Nosso propósito vai além: ele consiste em dizer que as mutações,
a emergência de instituições e de novas práticas sociais se realizam,
antes de tudo, por um trabalho do espírito, o único capaz de desfazer
relações antigas e elaborar novas e que, se o ato é fundador, ele o é
apenas se fizer sentido. Por exemplo, a história do desenvolvimento
da informática mostra como suas inovações mais técnicas e suas apli-
cações industriais mais espetaculares traduzem, em todos os níveis,
um trabalho de pensamento, tanto dos que as concebem quanto dos
que as utilizam. Ou, ainda, pode-se não duvidar da eficácia dos novos
métodos de terapia comportamental ou das aplicações da abordagem
sistêmica à terapia familiar, mas essas seriam certamente ilusões peri-
gosas se supusessem que se pode poupar um trabalho do pensamento.

A decisão: momento, lugar e modelo da mudança


Paradoxalmente, os psicossociólogos, depois de LEWIN, interessa-
ram-se pouco pelos problemas de decisão, exceto numa perspectiva orga-
nizacional ou de teoria dos jogos. A decisão tem sido encarada mais como
um problema de lógica, de organização ou de poder do que como um
problema psicológico. Fazemos, ao contrário, todos os esforços para acen-
tuar o fato de que o ato de decidir (uma das principais funções do
dirigente, segundo FAYOL) seria inconseqüente se não fosse recoloca-
do no processo complexo do qual ele é apenas um dos momentos – se
ele não fosse preparado por uma longa elaboração e seguido por um
trabalho de apropriação, no qual o psicológico teria todo o seu lugar.

124
A mudança: esse obscuro objeto do desejo

Mas tanto é absurdo reduzir a decisão ao momento único da esco-


lha, negligenciar ou considerar secundário todo o trabalho de análise e
de elaboração psicológica que o prepara e o acompanha, quanto é falso
considerar negligenciável esse momento “decisivo” – no qual o sujeito
que oscilava entra bruscamente e de maneira irreversível em um futuro
imprevisível – ou considerá-lo como sendo de uma outra ordem.
Qualquer que seja o grau de sofisticação dos estudos de probabili-
dades, algumas continuam sempre desconhecidas e o momento da deci-
são é sempre, necessariamente, um salto para o desconhecido, sem rede
de proteção nem garantia de espécie alguma.
A noção de processo não pode mascarar o fato de que a decisão marca
uma descontinuidade no curso da história: só o fato de “tomá-la” cria, por si,
uma situação nova e envolve inteiramente, em suas opções e em seus desejos
fundamentais, os que a tomaram e aqueles em relação aos quais ela é tomada.
LEWIN, em sua época, sublinhara a importância crucial do momento
da decisão coletiva que, por si própria, modifica as representações e leva
os indivíduos a adotar novas condutas, renunciando, ao mesmo tempo, a
fundamentá-las no que até então parecia “evidente” (as sensações de re-
pulsa, por exemplo), para baseá-las em uma escolha voluntária que se
apoia em uma aposta feita coletivamente em uma outra verdade.
Os processos de decisão analisados por LEWIN,11 incluindo os há-
bitos de compras das donas de casa de Ohio, podem parecer distantes da
decisão histórica analisada por FREUD da crença em um só Deus todo
poderoso, de se dar um pai e de nomeá-lo (Moisés e o Monoteísmo). Em
um comentário sobre esse famoso texto de FREUD, o psicanalista W.
GRARANOFF salienta o fato de que toda decisão é, inicialmente, a deci-
são de “não se apoiar no testemunho dos sentidos” e a de se opor à
fantasia de que: “quem não pode chegar a se apoiar no real, só pode
ocultá-lo. Somente a decisão pode fundá-lo”.12
A decisão seria, então, esse ato arbitrário pelo qual o sujeito se retifica,
afastando-se da certeza “baseada no testemunho dos sentidos” (do pro-
cesso primário e das fantasias), da continuidade sem hiatos, do feminino,
da duração (bergsoniana), para chegar ao processo secundário e criar o
real, a organização social, o tempo, a divisão, “operando uma disjunção
violenta, com o risco de sua própria desagregação”.
Por isso, em um trabalho anterior,13 acentuamos o ato arbitrário, o
“golpe de força” na origem de toda organização social, a partir do enun-
ciado de regras que não se apoiam em nenhuma legitimidade anterior, da
ordem do real-concreto-sensível.

125
Psicossociologia – Análise social e intervenção

A decisão: ato de palavra


Assim, decisão tem essa significação não apenas porque não se reduz
a uma resolução íntima, mas porque é um ato público, um ato de palavra.
De acordo com as definições de FLAHAULT ou de TROGNON,14 a
enunciação de uma decisão: “eu decido então que...” é um ato “ilocucio-
nário explícito”, no sentido de que ele é um ato “que se realiza quando é
falado” – à semelhança de uma declaração de amor ou de um insulto.
O sujeito de tal enunciado, explicitamente designado, é o mesmo
sujeito da enunciação; esse se exprime aí e se expõe aí (nos dois senti-
dos do termo: mostrar-se, arriscar-se) – quer os destinatários estejam
implicados diretamente na decisão, quer sejam, simplesmente, toma-
dos como testemunhas.
Toda decisão é, pois, ao mesmo tempo, a enunciação de uma esco-
lha e o começo de sua realização: anúncio de um futuro, manifestação da
vontade de produzir, por seu conteúdo informativo e prescritivo, modifi-
cações na realidade, mas também emergência no seu próprio real – a or-
dem do discurso – da mudança evocada.
Isso não significa, evidentemente, que o enunciado de uma decisão
seja suficiente para transformar, como que por mágica, as situações ins-
titucionais, econômicas ou sociais, nem que a palavra seja onipotente.
Mas, simplesmente, que uma decisão necessariamente modifica, apenas
por seu enunciado, os termos nos quais a situação será doravante enca-
rada e as condições nas quais ela é susceptível ou não de ser mudada.
Mas, de forma mais importante ainda, isso significa que uma esco-
lha, qualquer que ela seja, só é concluída quando tiver sido dita e ouvi-
da, dando assim sentido aos atos que a traduzem – sem o que tudo se
passa como se nada tivesse verdadeiramente acontecido.
Um ato, em si mesmo, não pode significar uma mudança, pois ele
pode sempre ser desmentido, retomado ou reinterpretado; ele não com-
promete nem seu autor nem ninguém. É a razão pela qual todas as insti-
tuições insistem tanto no reconhecimento explícito de atos realizados
por seus autores – seu testemunho assinado; nas relações pessoais dá-se
o mesmo (o que é o amor sem sua declaração?). Uma decisão que não
expõe nominalmente seu ator (nos dois sentidos indicados) não é uma
decisão no sentido próprio e, assim, não muda nada.

A decisão: ato solitário e coletivo


Como todo ato de palavra, a decisão é, assim, ao mesmo tempo
um ato eminentemente individual e um ato coletivo. Se o sujeito que

126
A mudança: esse obscuro objeto do desejo

decide se compromete sozinho – nenhuma solidariedade pode evitar


que se experimente um intenso sentimento de solidão diante de uma
decisão importante, como diante da morte –, compromete-se também
por conta de outros e diante deles: ele os toma como testemunhas, os
desafia, força-os a se reconhecerem no futuro que ele traça ou a rejei-
tá-lo. Aqui, talvez mais do que em qualquer outro momento, ele é
investido da vontade do grupo diante do que é necessário, inelutá-
vel, e da obrigação de assumir sozinho as contradições coletivas, cons-
cientes ou inconscientes, e de abandonar o terreno do possível, o jogo
de hipóteses, do imaginário, para fundar o real.
A indignação manifestada por alguns com relação a PISANI, que
preferiu propor um futuro às comunidades da Nova Caledônia, as cen-
suras que lhe foram feitas por fazer a escolha em vez de ficar como árbi-
tro neutro e deixar os oponentes escolherem, eles próprios, entre as pos-
sibilidades, esconde mal, sob a má fé dos argumentos, o despeito
resultante de uma decisão contrária à dos que protestavam. Porque uma
decisão é de qualquer forma inevitável. Fazer crer que ela possa resultar
mecanicamente da contabilidade das escolhas individuais é a fraude que
todo poder utiliza para tentar se tornar invisível.
O caráter coletivo de uma decisão é tanto mais manifesto quanto
mais ela se traduz por uma palavra proclamada por um único ho-
mem frente à coletividade, o risco que ele assim corre estando na
proporção daqueles aos quais ele convida.
Nesse sentido, a definição usual (segundo FAYOL) do chefe como
aquele que decide contém uma parte da verdade apontada por
FREUD, bem antes do livro sobre Moisés, em “Psicologia de Grupo e
Análise do Ego”, a respeito do herói.

Decisão, interpretação e prática de análise social


No entanto, as decisões tomadas nas organizações apenas raramen-
te têm a significação que lhes demos aqui. É mais comum tratarem-se de
atos formais ou simbólicos, rituais ou emblemáticos, vazios de sentido e
sem conseqüências. Então, em que condições adquirem sua plena signi-
ficação e apreendem o real?
A prática da análise social permite esclarecer essa questão? Em que as
reflexões precedentes permitem compreender as condições nas quais essa
prática é susceptível de contribuir, efetivamente, para um processo de mu-
dança, não se reduzindo, como muitas vezes ocorre, a uma atividade lúdica
ou de encantamento, formal e, igualmente, sem apreender o real?

127
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Uma certa leitura da Psicanálise, feita pelos psicossociólogos, levou


a associar a mudança sobretudo a um trabalho de elaboração e de perla-
boração (working-through), processo longo e contínuo – oposto aos atos
que afetam diretamente a realidade ou à transmissão de saberes.
Seria importante, certamente, sublinhar que as mudanças sociais e
as decisões levam tempo para amadurecerem e serem preparadas, para
se imporem como necessárias e para se traduzirem concretamente em
condutas. O trabalho sobre as resistências, a luta interminável contra os
efeitos do recalque e o instinto de morte constituem, incontestavelmen-
te, uma porta essencial para o que chamamos de trabalho de mudança.
E é insistindo nesses aspectos que a prática de análise psicossociológica
conseguiu adquirir sua identidade e se diferenciou das abordagens tec-
nológicas, pedagógicas ou manipuladoras da mudança social.
Mas a insistência sobre essa dimensão contribuiu para fazer esquecer
que o trabalho de perlaboração só não cai no vazio se for ajudado por
interpretações feitas no momento oportuno, permitindo um salto qualitati-
vo e a passagem sem transição de um nível de compreensão a outro.
Certamente, nenhuma interpretação está assegurada ou completa,
ela é necessariamente parcial e partidária, implica um risco e um custo,
como toda decisão; mas, mais vale uma interpretação equivocada do que
nenhuma interpretação.
Assim, um levantamento de dados no contexto de uma intervenção
psicossociológica pode, certamente, ajudar a fazer emergir conteúdos re-
calcados ou censurados e provocar trocas e um trabalho de análise sus-
ceptíveis de facilitar certas tomadas de decisão. Mas ele pode, igualmen-
te, sendo difícil, senão impossível, escapar dessa eventualidade,
contribuir para reificar os sistemas de racionalização e de explicação
que justificam as condutas. Na medida em que esses sistemas explicati-
vos se apresentam habitualmente como uma re-escritura da história da
organização, remontando ao passado e interpretando “fatos” ou even-
tos que cada um pode ver ou experimentar, eles têm pretensões a uma
objetividade que mascara interesses e jogos subjacentes à trama e aos
efeitos que esses “relatos” buscam produzir.
Esses sistemas, com efeito, possuem as características do relato his-
tórico, tais como J. P. FAYE15 as analisou; eles têm a pretensão de “dizer
a verdade” (“o narrador é aquele que sabe”) e contribuem, ao mesmo
tempo, ainda que não tenham conhecimento disso, para fazer a história,
termo que, como observa FAYE, serve para designar ações reais bem
como o relato dessas ações.

128
A mudança: esse obscuro objeto do desejo

Os discursos que podem ser coletados durante essas pesquisas parti-


cipam, pois, das condutas às quais elas se referem; mas sua coerência, que
as análises de conteúdo tendem a destacar com mais força ainda, contri-
bui para reforçar seu caráter dogmático, ideológico, e o desconhecimento
dos interesses materiais ou psicológicos que eles promovem e que são
relativos às posições ocupadas na estrutura por aqueles que os detêm (“A
verdade dogmática visa a retirar do escrito seu traço de história”, diz-nos
LEGENDRE, “nascendo, então, o texto, subtraído do tempo”.16)
O fato de colocar em evidência essas construções não somente não
favorece a concretização de mudanças, mas tende a afastá-las, justifican-
do, de antemão ou posteriormente e em nome de uma pseudo – ”reali-
dade”, práticas contestadas ou abordadas.
Trata-se de um movimento contrário àquele subjacente às condu-
tas de decisão, visto que essas, longe de se fundamentarem no “real”,
ao contrário, fundamentam o real através de um ato de pensamento
arbitrário.
É aqui que uma concepção por demais rígida, moral e “não-direti-
va” da regra de abstinência induziu os psicossociólogos, muitas vezes, a
pensar que lhes seria suficiente descrever os discursos, contentando-se
em esclarecê-los e, sobretudo, que deveriam se abster de tomar o parti-
do de uma significação mais que o de outra.
Essa vontade de imparcialidade e de objetividade, que preserva o
analista social da decisão, do risco de uma interpretação verdadeira, ten-
de também a fazer acreditar que os diferentes discursos contêm, cada um,
uma parte da verdade comum, que eles constituem visões diferentes, mas
complementares, de uma mesma “realidade”; ela tem como efeito fazer
esquecer o que constitui, no inconsciente dos sujeitos, essas diferentes
visões e o que elas ocultam, bem como o lugar que ocupam na organiza-
ção – e ocultar, mais ainda, os conflitos revelados pelas contradições
entre seus discursos.17
O ato de palavra que a pesquisa inaugura se transforma, assim, em
um processo de reificação de enunciados fechados, impedindo qualquer
possibilidade de palavra nova e fazendo com que os conflitos, não po-
dendo ser traduzidos em decisões, atuem diretamente no real.
Esse contra-exemplo da pesquisa inscrita no contexto de uma inter-
venção psicossociológica permitiu-nos apreender, bem claramente, a ne-
cessidade de uma atividade interpretativa para que um trabalho de aná-
lise se articule a um processo de mudança ao invés de tender a enrijecer

129
Psicossociologia – Análise social e intervenção

os sistemas de representação e contribuir, reforçando-os, para condutas


de evitação dos problemas e de negação das contradições.
Em exemplos desenvolvidos anteriormente,18 estabelecemos, em
compensação, como uma atividade de interpretação pode se articular
com uma atividade de decisão e de mudança, na trama dos discursos e
nas condutas concretas.
Se pareceu surpreendente colocar “a decisão”, habitualmente asso-
ciada a um ato de autoridade, no centro de nossa reflexão sobre mudan-
ça e se pareceu arriscado associá-la ao trabalho analítico e interpretati-
vo, que exclui, por princípio, todo exercício de poder sobre outrem,
esperamos, entretanto, através dessas páginas, ter apreendido melhor,
com a própria ajuda dessa contradição aparente, o motivo pelo qual a
mudança se situa, precisamente, na interface dessas atividades de pen-
samento, conjugadas uma à outra.
Juntas, e somente juntas, elas permitem aos homens se protege-
rem “da luz brilhante do não questionável e organizar de outro modo
o campo das significações”.19 O que a interpretação realiza no espaço
analítico, a decisão realiza no campo da organização social, sem que
jamais, porém, essa realização se traduza em conclusão, em enunciado
de uma certeza; elas ficam, uma e outra, sob a dependência dos efeitos
que engendram e, especialmente, daqueles que retornam sobre si mes-
mos: uma decisão é sempre submetida à prova da realidade, da mes-
ma forma que uma interpretação, sempre suspensa na sua possível
verificação, é sempre “fundamentada no amor à verdade, isto é, no
reconhecimento da realidade que exclui todo engano ou simulacro”.20
Se a decisão, pelo que ela prescreve ou sugere, abre um novo espa-
ço de condutas, a interpretação, pelo que ela enuncia, abre um novo
espaço de palavras. Mas, como BATESON mostrou há bastante tempo,21
toda palavra se situa ao mesmo tempo nos dois registros da informação
e da sugestão – ato de palavra, análise em ato.
Elas definem o lugar da mudança na medida exata em que, toma-
das em um campo de conflito no qual contribuem para deslocar os ter-
mos, nunca instituem uma relação de forças.
Contudo, elas parecem facilmente contraditórias; mas isso não se da-
ria por que essa contradição permitiria mascarar a realidade paradoxal
das organizações sociais – elas sendo, ao mesmo tempo, projeto de conti-
nuidade, de previsão e de unidade, bem como instituição da divisão, da
ruptura e de limites a todo desejo de onipotência? Do mesmo modo, esse

130
A mudança: esse obscuro objeto do desejo

paradoxo inerente a todo sistema organizado, vivo,22 dura apenas o tem-


po em que acontece uma atividade decisória e analítica (ou interpretati-
va), seu desaparecimento coincidindo com a instauração de um Estado
totalitário e cristalizado.

Notas
1
Traduzindo de: LÉVY, André. “Le changement: cet obscur objet du désir”. Connexions.
45, p. 173-184, 1985, por Maria Lívia do Nascimento e Sílvia C. Josephson.
2
BOUDON, R. La place du désordre. Paris: PUF, 1984. MENDRAS, H. e FORSI, M. Le
changement social. Paris: Colin, 1983.
3
POPPER, K. L’univers irrésolu, plaidoyer pour l’indéterminisme. Paris: Hermann, 1984.
4
ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1966; BAUDELOT, C., ESTABLET, R. e
MALEMORT, J. L’école capitaliste em France. Paris: Maspero, 1971.
5
LEWIN, K. “Décision de groupe et changement social”. In: LÉVY, André. Textes fonda-
mentaux de psychologie sociale. Paris: Dunod, 1964.
6
LÉVY, A. “Le changement comme travail”. Connexions, 7, 1973.
7
TROGNON, A. Situations langagières et processus de groupe. Tese de Doutorado de
Estado, 1980.
8
VALÉRY, P. Réflexions simples sur le corps. Variété V. Paris: Gallimard, 1945.
9
LÉVY, A., ibid.
10
VALÉRY, P., ibid.
11
LEWIN, K., ibid.
12
“A decisão de se restituir o pai, de reinstitui-lo depois de tê-lo descartado, é, como
em Totem e Tabu, o ponto essencial que terá seu fechamento no livro sobre Moisés”.
“Isolar o nome do pai é renunciar a se fundamentar no testemunho dos sentidos,
é decidir que a paternidade é mais importante que a maternidade, decisão que,
em si própria, é um dilaceramento, um distanciamento que se torna o seu próprio
(...), é, para FREUD, a aventura da humanidade que cada homem deve refazer,
pessoalmente, em seu destino”. GRANOFF, W. Filiations. Paris: Minuit, 1974.
13
LÉVY, A. Sens et crise du sens dans les organisations. Tese de Doutorado de Estado, 1978.
14
TROGNON, A., ibid.; FLAHAULT, F. La parole intermédiaire. Paris: Le Seuil, 1978.
15
FAYE, J.-P. Théorie du récit. Paris: Hermann, 1972.
16
LEGENDRE,P. L’amour du censeur. Paris: Le Seuil, 1974.
17
Essa vontade apoia-se também numa concepção relativista e subjetiva da verdade,
excluindo a possibilidade de diferir o verdadeiro do falso. Como demostra FAYE,
tal concepção está na origem do pensamento totalitário.
18
LÉVY, A. e DUBOST, J. “L’Analyse social”. In: ARDOINO et al. L’intervention insti-
tutionnelle. Paris: Payot, 1980; igualmente, LÉVY, A. Sens et crise du sens dans les
organisations, tese citada; LÉVY, A. e ENRIQUEZ, E. “Évolution technologique et pers-
pectives psychologiques”. Connexions 35, 1982.
19
CASTORIADIS-AULAGNIER, P. “Savoir et certitude”. Topique 13.
20
BATESON, G. e RUESCH. Communication. The social matrix of psychiatry. Norton, 1942.
21
Ibidem.
22
BAREL, Y. Le paradoxe et le système. PUG, 1979; ou, igualmente, LÉVY, A. Sens et
crise du sens dans les organisations, op. cit.

131
Psicossociologia – Análise social e intervenção

132
RUPTURAS,MUTAÇÕESE
COMPLEXIFICAÇÃOEMECONOMIA1
André Nicolaï

O objetivo da maioria dos economistas é o de equiparar o funciona-


mento da Economia ao de uma sociedade animal. Isso significaria:
1- Que existe uma perfeita determinação do comportamento dos
atores (para os seguidores de PARETO, advinda da realização de
um nível ótimo único; para os seguidores de KEYNES, da queda
necessária na tendência ao consumo; para os marxistas, dos pa-
péis dos “funcionários do capital”): assim, cada uma dessas cor-
rentes teria, à sua disposição, apenas um modelo de comporta-
mento possível;
2- Que existe entre esses atores uma perfeita complementaridade de pa-
péis e, por conseguinte, de comportamentos que visam ao seu desem-
penho;
3- Que daí resulta, necessariamente, um equilíbrio: equilíbrio ótimo
para WALRAS, de subemprego para KEYNES, de lucro-zero para
RICARDO. Na melhor das hipóteses, admitir-se-á um crescimen-
to equilibrado (SOLOW) ou, na pior delas, um declínio a um es-
tado estacionário (RICARDO). Poder-se-ia mesmo admitir que o
equilíbrio é raramente atingido mas que, em tal caso, emergem
mecanismos de regulação que atuam como fator de reequilibro
do sistema.
São raros os economistas que tratam da mudança por rupturas e
mais raros ainda os que trabalham do ponto de vista de uma eventual
complexificação após cada crise profunda do sistema. Somente alguns
autores fundadores e algumas correntes ortodoxas ousaram atacar o pro-
blema: SMITH, no livro III da Riqueza das Nações (“variações do progres-
so da opulência nas diferentes nações”); MARX, em toda a sua obra;
Schumpeter (Teoria da evolução econômica e Capitalismo, Socialismo e De-
mocracia); PERROUX (A Economia do século XX); os historicistas alemães
(que, aliás, jamais chegaram a um acordo sobre a sucessão dos estágios

133
Psicossociologia – Análise social e intervenção

históricos da evolução econômica); os institucionalistas americanos (de


VEBLEN a GALBRAITH, passando por ROSTO, que se recusam a deixar
unicamente por conta dos historiadores e sociólogos o tema da mudança).
Existem várias razões para essa situação de carência teórica: inicial-
mente, o medo dos economistas de serem percebidos como influenciados
por MARX; em seguida, o alinhamento da principal corrente de pensa-
mento (o dos neoclássicos) com a física do século XIX (a do equilíbrio e
da reversibilidade); a lição tirada de KEYNES (as interrogações sobre a
longa duração só interessam aos subdiplomados e, além disso, “a longo
prazo, todos nós estaremos mortos”); o receio de cair no domínio da
não-formalização e de que a Economia deixe de ser “a mais dura das
ciências moles”; o misoneísmo em relação a descobertas ou hipóteses
elaboradas em décadas recentes pelas “ciências duras” (as “catástrofes”
dos matemáticos, as estruturas dissipativas ou os atratores estranhos dos
físicos, o não-evolucionismo dos biólogos: assim, por exemplo, foram
necessários cinqüenta anos para a Economia se apropriar do conceito de
regulação). Mais fundamental ainda foi a dificuldade (lógica, mas tam-
bém afetiva) de se admitir, nas sociedades humanas e, por conseguinte,
na esfera das atividades econômicas, que os agentes são simultaneamen-
te: a) agidos pela lógica de reprodução-mudança das relações (das estrutu-
ras) do sistema, lógica e relação que preexistem aos agentes, impondo-se
a eles; b) atores do sistema, uma vez que, por seus comportamentos, eles
são o suporte de suas estruturas; c) autores, mesmo que involuntários, das
mudanças que aí se produzem. Daí também as dificuldades em admitir:
que a determinação dos comportamentos não é total e que cada agente
dispõe de um leque de modelos possíveis; que a complementaridade en-
tre esses agentes não é perfeita, o que pode dar lugar ao aparecimento de
crises, mas também de estratégias, nas zonas de complementaridade im-
perfeita; que as crises, quando profundas, repetidas e duráveis, permitem
justamente rupturas e mudanças. Todas essas hipóteses contradizem, ter-
mo a termo, aquelas enunciadas acima sobre a determinação dos agentes,
da perfeita complementaridade dos papéis e do equilíbrio.
Do exposto, duas conseqüências podem ser tiradas:
1- A teoria econômica depende sempre, para a renovação de suas
hipóteses de base, das descobertas ou hipóteses enunciadas pe-
las ciências duras. Entretanto, ela precisa de algumas décadas
para poder se aclimatar e tornar familiares essas idéias advin-
das de um outro lugar.
2- Quando, por fim, a adoção das hipóteses acontece, prevalece o racio-
cínio por analogia: os novos conceitos ou hipóteses são utilizados

134
Rupturas, mutações e complexificação em economia

tais quais formulados, eles não são transformados a fim de se


tornarem aplicáveis a um campo, cujos elementos, isto é, os ato-
res, são simultaneamente (cf. supra) agidos, atores e autores do
seu sistema, o que não é o caso dos elementos físicos, químicos
ou biológicos.

***
Quais são, então, os novos conceitos e hipóteses, oriundos de ou-
tras áreas, que poderiam ser transpostos para o campo econômico?
1- Inicialmente, os conceitos de dinâmica dos sistemas e de auto-re-
gulação (a homeostase dos biologistas dos anos vinte). Eles se refe-
rem a sistemas autônomos, mas abertos ao seu meio ambiente e,
por isso, capazes de se auto-regularem, face a “ruídos” provenien-
tes do exterior. Mas já aí é preciso assimilar e divulgar a seguinte
hipótese: no campo econômico (e em geral no campo social), os
“ruídos” são cada vez mais endógenos, por serem produzidos
pelo próprio funcionamento do sistema. O ambiente natural e
mesmo o corpo natural dos agentes são, literalmente, “desnatu-
ralizados” pela extensão do mercado, enquanto que as “dife-
rentes sociedades” (outro componente do meio ambiente) desa-
parecem de modo acelerado (calculava-se que, em 1900, existiam
no globo cerca de 50 000 sociedades diferentes; em 1950, não
restavam mais que 10 000).
Assim, a partir do século XIX, as crises econômicas foram, inicial-
mente, a tradução conjuntural de uma imperfeição repetitiva na
complementaridade dos papéis dos agentes, constituindo-se, pois,
como crises momentâneas de coerência. Em um período de crises
simplesmente conjunturais (as crises do ciclo Juglar), as regulações
espontâneas ou voluntaristas reequilibram o sistema, graças aos
comportamentos de adaptação de certos atores. O resultado disso
é um aumento da “variedade” do sistema, isto é, de sua capacida-
de de fazer frente a um leque amplo de disfunções.
2- Os conceitos de auto-organização, autopoieses, autocriação, auto-
geração etc. colocam outros problemas, visto se referirem a solu-
ções eventualmente encontradas (o êxito não é certo) para as cri-
ses estruturais e para as crises-ruptura. Nesses períodos,
verifica-se não apenas um deslocamento da coerência entre os
papéis, mas também um deslocamento da coesão entre os agen-
tes, ou seja, uma recusa em manter a adesão aos “compromissos

135
Psicossociologia – Análise social e intervenção

históricos”, exigidos por uma complementaridade necessariamen-


te conflitante (pois não igualitária) entre os papéis desempenha-
dos (exemplos de compromissos mal sucedidos: a aliança campo-
neses-indústria, sob o protecionismo de MÉLINE, na França; o
compromisso fordista empresários-assalariados, sob a égide do Es-
tado, durante a inflação-crescimento dos Trinta Anos Gloriosos).
Essas crises-ruptura, ligadas a um esgotamento da variedade pró-
pria a esse estágio do sistema, exigem que se leve em conta a “fle-
cha do tempo”: a irreversibilidade da “escolha” que será efetuada
nas ramificações oferecidos pela bifurcação (ou a “polifurcação”?)
onde nos encontramos. É certo que essa escolha é aleatória, logo
não previsível, e só poderá ser verdadeiramente explicada a poste-
riori. Nesse ínterim, o que sabemos é que esse tipo de crise aumen-
ta as zonas de complementaridade imperfeita (as “zonas de incer-
teza”, segundo CROZIER) e, por conseguinte, amplia a margem
de manobra dos inovadores que, nesse momento, experimentam
de modo disperso as várias soluções possíveis para essa crise.
Mas, entre os economistas, encontramos poucas reflexões (na Fran-
ça, apenas as de DUPUY e PASSET) sobre o que poderia ser o
equivalente econômico das estruturas dissipativas e, em espe-
cial, sobre os respectivos papéis do esgotamento da variedade
própria a esse estágio do sistema, assim como do próprio acaso
na escolha que será feita entre as possibilidades apresentadas.
A mutação estrutural depende igualmente do “conjunto de inova-
ções” que se revelarem dominantes. No entanto, costuma-se esque-
cer que tais inovações dependem da presença ou não, na socieda-
de ou numa área econômica dada, de inovadores potenciais. Sua
presença é vista como consolidada, embora vários exemplos his-
tóricos (a estagnação árabe, a partir do século XI até as atuais
contestações periféricas do império econômico americano) pare-
çam mostrar, de um lado, que existem muitas sociedades fecha-
das – ou que voltaram a se fechar – e, de outro lado, que a reserva
de desviantes potencialmente inovadores se constitui ora na pe-
riferia do Centro (os N.P.I.,2 por exemplo), ora entre as malhas
muito frouxas ou esgarçadas desse Centro (a economia subterrâ-
nea da Lombardia ou a economia “bismarkiana” da Baviera).
Certamente não é falso explicar o ativismo do empresário-inova-
dor pela “vontade de poder” (SCHUMPETER) ou pelo tempera-
mento sangüíneo (KEYNES), mas isso deixa de lado os fatores

136
Rupturas, mutações e complexificação em economia

culturais (MAX WEBER, MORISHIMA) que permitem ou não a


presença desses tipos de agentes e sobretudo a aceitação – e, por
conseguinte, a difusão ou não – de suas inovações.
Isso significa que é preciso acrescentar às duas primeiras condi-
ções para a saída da crise (ampliação das possibilidades e a pre-
sença dos inovadores) uma terceira condição: a existência de um
imaginário social que dê lugar a essas possibilidades e a esses agen-
tes, tornando possível viver em perspectiva (C. CASTORIADIS).
Mesmo se essas teorizações existissem, elas correriam o risco de
cair na armadilha do evolucionismo ingênuo, ou seja, da lineari-
dade (doravante descontínua) do “progresso”. Isso seria esquecer
o fato já mencionado do desaparecimento de 40.000 sociedades,
em cinqüenta anos. E seria esquecer também os milhões de atores
marginalizados ou mesmo “eutanasiados” pelas mudanças ocor-
ridas na complementaridade de papéis. Mas ainda continua fal-
tando, nesse quadro, uma teoria do fracasso.
Continua também faltando uma articulação entre os respectivos
papéis, nessas mutações estruturais, do mercado e das estratégias
(públicas e privadas). Em período de não-crise (ou de crises regu-
ladas) o mercado nada mais faz que aperfeiçoar, ao nível dos deta-
lhes, a complementaridade dos papéis: trata-se do ajustamento.
Em épocas de crises-ruptura, ele se torna o ordálio, julgamento de
Deus face à incerteza “não-probabilizável” (KNIGHT). Mas a ra-
zão do mais forte deve se inscrever em uma lógica clandestina,
inerente ao sistema, da designação, da predestinação do mais forte.
Já aludimos à localização na periferia ou nas malhas frouxas da
rede, assim como aos fatores culturais. Mas ainda permanece in-
teiro o problema da coincidência bem sucedida do shake-hand, entre
a mão invisível e o punho de ferro.
Há outro problema não estudado, pois “é preciso dar tempo ao
tempo” (apesar da repetição do fenômeno, desde os Goliardos da
Idade Média até os jovens lobos dos N.P.I., passando pela revolu-
ção dos costumes de 1968): é o fato de que as rupturas favorecem os
conflitos de gerações, aparecendo assim como conflitos “trans-clas-
ses”. Talvez a crise de coerência estivesse mascarada por uma per-
sistência anacrônica da antiga coesão: a descrença em relação ao
antigo compromisso histórico só pode surgir da nova geração, jun-
to à qual também se verifica o desaparecimento da adesão. Isso
leva talvez à expansão das ocasiões de inovação e à multiplica-
ção de experimentações inovadoras.

137
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Enfim, mesmo que saibamos, desde BRAUDEL, que o Centro se


desloca, não poderemos jamais predizer em que direção ele se desloca.
3- Uma última hipótese a ser ajustada em Economia: o aumento da
complexidade, após a solução eventual da ruptura. Ela se define
(P. GROU, por exemplo) como “um aumento do número de ele-
mentos em jogo e um aumento dos vínculos existentes entre eles”.
Certamente podemos multiplicar as referências atuais:
- aumento do número dos agentes aí implicados, devido à exten-
são atual do mercado e, às vezes, à extensão do capitalismo (os
N.P.I.);
- aumento da quantidade de informações emitidas e do número
de conexões entre os agentes implicados;
- conjugação crescente dos mecanismos de regulação (R. BOYER,
por exemplo): concorrência, poderes oligopolíticos em escala
internacional, integrações regionais (Mercado Comum Euro-
peu etc.), polimorfismo das intervenções do Estado;
- outras referências.
Mas, ao mesmo tempo, podemos constatar:
- fenômenos de simplificação: diminuição do número de socie-
dades diferentes; diminuição do número de agentes que têm
um poder real de ação; homogeneização da linguagem, da cul-
tura; “mercantilização” generalizada do globo e de atividades
que outrora eram não-mercantis (a cultura, o lúdico, o sagrado
e, embora ainda não totalmente, a família e a escola);
- fenômenos de regressão a formas mais simples, antes de even-
tuais mutações e complexificações bem sucedidas (o equiva-
lente da neotínea): o recurso ao mercado-ordálio (como nos
tempos do capitalismo selvagem), após dessacralização, des-
politização, des-sindicalização e mesmo des-identificações; 3
- fenômenos de extensão truncada: o mercado se expande mas
não necessariamente o capitalismo (o mercado + a acumula-
ção + a “destruição criadora” + a relação salarial);
- fenômenos de recuo sobre as características locais e fenômenos
de “identificações maciças” (E. ENRIQUEZ): nacionalismos,
integrismos, sectarismos (com suas conseqüências sobre os
próprios comportamentos econômicos);
- enfim, fenômenos de “autonomização” e de assimilação lú-
dica de alguns subconjuntos econômicos (as “bulas finan-
ceiras”, por exemplo).

138
Rupturas, mutações e complexificação em economia

No que diz respeito à complexificação, é preciso também questio-


nar o antigo problema da relação entre o aumento das quantidades (dos
elementos, das conexões) e do “salto qualitativo”, tão caro aos marxis-
tas de outrora.

***
Tudo isso tem por objetivo nos lembrar que as analogias, para
serem fecundas, devem inicialmente ser especificadas, a fim de po-
derem ser transpostas ao novo campo de aplicação. Podemos sugerir
algumas hipóteses sobre as especificidades próprias aos sistemas so-
ciais antropológicos (incluindo a Economia), objetivando marcar suas
diferenças do estudo dos sistemas físicos, mecânicos, informáticos,
químicos, biológicos e mesmo etnológicos, dos quais recebemos hi-
póteses e conceitos novos.
1- Nos sistemas sociais, contrariamente a todos esses sistemas (por
exemplo, as sociedades animais), a complementaridade entre os
papéis e grupos de agentes detentores desses papéis nunca é per-
feita. Apesar da necessidade econômica ser reforçada pela coerção
social (o controle social e as normas interiorizadas) e mesmo pelo
prazer oriundo do jogo econômico (político etc.), o leque dos com-
portamentos não é, para cada grupo de agentes, completamente
fechado. Do mesmo modo, a complementaridade que os une (atra-
vés do mercado e dos poderes) é sempre imperfeita e potencial-
mente conflituosa. É preciso, pois, além das imposições do merca-
do e dos demais poderes, introduzir normas, regras ou convenções
para lhe dar suporte.4 Mas essas regras só têm valor à medida que
são (aproximativamente) respeitadas pela maioria dos agentes: a
coesão deve ser o suporte da coerência e supõe a adesão às regras
do jogo (J. D. REYNAUD). Essa adesão, por seu lado, não se dá
somente através do “interesse bem esclarecido”, como afirma o in-
dividualismo antropológico. Ela supõe, por um lado, uma interio-
rização das normas e uma culpabilização, quando da sua trans-
gressão e, por outro lado, identificações laterais (em relação ao
semelhante) e verticais (em relação ao superior). Contrariamen-
te, uma época de crise-ruptura supõe não somente um desloca-
mento da coerência, mas também um deslocamento da coesão: o
que acarreta, por um lado, a desculpabilização em relação ao de-
sejo de infração e, por outro, um deslocamento das identificações
laterais (o mais distante, ao invés do mais próximo) e verticais
(do establishment aos inovadores). E esses, para poderem inovar,

139
Psicossociologia – Análise social e intervenção

devem inicialmente figurar no conjunto de desviantes, devendo


encontrar, em seguida, as ocasiões de experimentar, de se expan-
dir e, por fim, de sentir um prazer lúdico em transgredir as regras
do jogo e “reposicionar” os antigos atores, muito numerosos e/
ou muito obsoletos. O imaginário da destruição pode, então, es-
perar desfazer o imaginário da conservação e situar o sistema em
um dos troncos da “polifurcação”.
2- Quando há ruptura, há geralmente mudança do número e da
qualificação dos atores, sem haver forçosamente o desaparecimen-
to do papel que era desempenhado pelos jogadores contestados
(os agricultores substituem os camponeses; os profissionais da
informática e da automação substituem os trabalhadores desqua-
lificados; os outsiders e os parvenus substituem, pelos golpes das
OPA,5 o pessoal patronal). No total, cria-se um conjunto em que
varia o número de jogadores (os agricultores são menos numero-
sos que os camponeses) e da distribuição das cartas (deslocamen-
to das formações exigidas e realocação das informações necessá-
rias), sem esquecermos ainda as marginalizações, as exclusões e
eutanásias – violentas ou suaves – que tal fenômeno implica. Existe
então, em período de crise, um New Deal dos poderes e uma mo-
dificação das regras do jogo. Daí resulta a mudança no funciona-
mento da complementaridade e, por isso mesmo, a modificação
do tipo de conjuntura.
3- Para não cair no modelo do fator explicativo único e que se aplica a
tudo, seria preciso distinguir, mais nitidamente, entre rupturas e mu-
danças no interior de um sistema (as mutações estruturais = as trans-
crições necessárias da identidade do sistema: relação salarial, acu-
mulação, inovações, modalidades de mercado) e a passagem de um
sistema a outro (as mutações sistêmicas: a passagem de escravo a
assalariado, por exemplo). No primeiro caso, estaremos lidando com
os avatares de um mesmo sistema, enquanto que, no segundo, lida-
mos com a passagem de uma lógica de reprodução econômica e so-
cial a uma outra lógica. Dada a imprevisibilidade das mutações sis-
têmicas, de sua unicidade histórica, dos fatos de regressão (por
exemplo, da sedentarização ao nomandismo), é mais prudente dei-
xar aos historiadores a explicação retrospectiva dessas mudanças.
Por outro lado – apesar de KEYNES –, pelo fato de que a longa dura-
ção se introduz e se choca com o cotidiano, os economistas não de-
veriam continuar excluindo de seu campo de estudos as transfor-
mações de um sistema (o atual) que une o futuro ao presente.

140
Rupturas, mutações e complexificação em economia

Poderíamos talvez propor, então, um esquema ideal típico, tal como:


1- As estruturas (as relações de complementaridade e, por conse-
guinte, de coerência) + a cultura (os conhecimentos, representa-
ções, normas; a aquisição de conhecimentos e de representações, a
adesão às normas e, por conseguinte, a coesão) + o comportamento
dos atores que fazem funcionar esses papéis e essas normas – ex-
plicam a lógica de funcionamento e de reprodução do sistema.
2- Apesar da necessidade e das normas (eventualmente o prazer), a
complementaridade entre os papéis continua imperfeita e pode
gerar a disfunção (crises conjunturais). A modificação espontânea
ou orientada dos comportamentos de certos atores permite regula-
ções e reequilíbrios do sistema.
3- Mas a adaptabilidade do sistema, em um determinado estado
(sua capacidade de “variedade” e de regulação) encontra limi-
tes (existe, por exemplo, “esgotamento da relação salarial for-
dista”). A continuação do funcionamento implica, então, uma
nova transcrição das relações que identificam o sistema e impli-
ca, portanto, uma mutação estrutural. Essa só será possível (pois
o sucesso não está assegurado) se certos agentes, emergindo de
reservatórios clandestinos ou periféricos de desviantes, existi-
rem na sociedade considerada e puderem se aproveitar de um
abrandamento das imposições da coerência e da coesão, para
experimentar as inovações, tornando-se então os emissários da
renovação do imaginário social.

Notas
1
Traduzido de: NICOLAÏ, André. Ruptures, mutations et complexification en économie
(mimeogr.), por Teresa Cristina Carreteiro.
2
Nouveaux Pays Industrialisés – Países recém-industrializados (N.T.).
3
Cf. “Malaise dans l’identification”. Connexions, n. 55, Paris: ERES, 1990.
4
Cf. “L’économie des conventions”. Revue Économique. V. 40, n. 2, março 1989.
5
OPA: offre publique d’achat (oferta pública de compra. N.T.).

141
Psicossociologia – Análise social e intervenção

142
IDENTIFICAÇÕESEXPERIMENTAISEINOVAÇÕESSOCIAIS1
André Nicolaï

O malvado é uma criança, porém robusta.


(Hobbes)

Tempo é criança brincando, jogando;


de criança o reinado.
(Heráclito, Fragmentos, no 52)

A crise das identificações, nos anos 60, precedeu uma crise política, a
qual, por sua vez, precedeu uma crise econômica. Atualmente, todas se
deslocaram para o Terceiro Mundo e para os países do Leste. No Ocidente,
não se trata mais de crises (isto é, de rupturas) mas sim de mal-estar (isto é,
de incertezas). E, se bem que o mal-estar é conseqüência das crises, talvez
anuncie o fim delas. Pois essas “perturbações”, quando não destroem a
sociedade em questão, criam, na imprecisão das referências e também no
mal-estar das identificações, condições de “saída da crise”:
l- Introduzindo o “jogo” na coerência instrumental dos papéis e na coe-
são (adesões complementares), a crise distende as complementarida-
des sociais e suscita falhas e interstícios. Esses se tornam “zonas de
incertezas” onde algumas estratégias podem nascer e se desenvolver: a
ocasião faz o ladrão.
2- A crise enfraquece a capacidade dos poderes vigentes de controlar
e de orientar o social. Assim, por exemplo, o Estado-Providência
perde ao mesmo tempo sua eficácia e sua credibilidade, só conser-
vando o papel tranqüilizador das figuras de tio (W. BRANDT,
MITTERAND, João Paulo II, GORBATCHEV) ou de irmão mais
velho (SOUCHON, MARADONA, ROCCARD, TAPIE e outros).
3- Ela mobiliza atores em potencial, na reserva de desviantes que exis-
tem em toda sociedade, e os transforma em autores das mudanças.
Do mesmo modo, ela mobiliza em cada “conformista” o lado desvi-
ante que persiste nele: há, de algum modo, “desfusão das pulsões”,
reorganização das personalidades e reciclagem da ação.
4- Ela confunde a hierarquia das referências culturais (o direito à dife-
rença concebido como a dignidade equivalente das culturas) e per-
mite, então, a introdução de novas referências.

143
Psicossociologia – Análise social e intervenção

5- Ela libera, assim, inúmeros imaginários de projetos que se apro-


priam, assimilam e transformam, de modos diferentes, os elemen-
tos culturais e os meios de ação disponíveis.
6- No final de contas, ela permite uma multiplicação de experimenta-
ções sociais, localizadas e transitórias, desses imaginários de projeto.
Esse movimento aciona inicialmente indivíduos ou pequenos gru-
pos atípicos, que podem arrastar atrás deles certos “conformistas” que
parecem certamente obedecer à regra: muda-se mais facilmente de práti-
cas do que de idéias e de idéias do que de personalidade. Mas quando se é
obrigado a chegar a esse extremo, pode-se reciclar também a identidade.
Quer se tratem de agentes inovadores ou reciclados, essas recomposi-
ções implicam também a experimentação de novas identificações e a explo-
ração de transformações suportáveis da identidade. O “mal-estar na identi-
ficação” traduz, ao mesmo tempo, angústias de identidade, tentativas de
reconstrução, perplexidades face às alternativas e buscas de orientação.
Mas esses agentes inovadores ou reciclados coexistem e estão em
relação com outros que, levados pela incerteza das situações e do futu-
ro, ao contrário, recorrem e se agarram a referentes e modelos tradicio-
nais (existentes, reativados ou mesmo imaginados). São pois simulta-
neamente experimentadas atitudes e estratégias de recuo e de
acomodação, por um lado, de assimilação e de inovação, por outro,
com todas as posições intermediárias possíveis. O resultado é que, para
todos, não apenas a realidade parece incerta, mas também versátil: essas
duas características vão ser percebidas como fonte de vantagens ou de
prazeres potenciais por alguns, ou como geradoras de pânico e de aban-
dono por outros. Daí os recuos ou as experimentações que implicam
que o local substitua o global e o precário o durável.

Os recursos e os recuos: a manuntenção


Essas tentativas de manutenção comportam muitas variantes. Con-
sideremos três delas com suas subdivisões: o “narcisismo das pequenas
diferenças”, o individualismo ilusório ou de oportunismo, as “intermi-
náveis adolescências” que, aparentemente dizem respeito a faixas etá-
rias, a grupos étnicos, a categorias socioprofissionais e, é claro, a tipos
de personalidade diferentes.

“O narcisismo das pequenas diferenças”


Ele consiste, diz FREUD, em um movimento de retorno libidinal a “um
grupo cultural mais reduzido” e uma orientação da agressividade para os

144
Identificações experimentais e inovações sociais

grupos estrangeiros ou excluídos, por uma dupla referência às diferenças


tradicionais ou consideradas como tal e a uma escala de idealização-rejeição.
a- Os mais clássicos desses recuos dizem respeito às diferenças
raciais, religiosas, nacionais, regionais, de classe, profissionais,
organizacionais etc. O global deixa de ser área comum de con-
frontos ritualizados entre complementares para se tornar a arena
de combate entre “tribos”. Por exemplo, as reativações religiosas
atuais no Irã, na Polônia ou mesmo no Ocidente podem certa-
mente corresponder a ressacralizações visando à sobrevivência:
mas elas são também a reativação de um pai ideal e discriminador.
E mesmo quando as pequenas diferenças do outro são explora-
das e valorizadas, podemos talvez perguntar se essa curiosidade
não mascara um voyeurismo: assim o turismo é talvez a face ilu-
minada, nos dois sentidos do termo, do racismo.
O que é mais importante: esse tipo de retorno narcísico leva à subs-
tituição do semiótico (véus islâmicos, solidéus – kipas – hebraicos,
gorros cristãos etc. e a aparência NAP) pelo simbólico.2 A valoriza-
ção dos signos e da agressividade desvaloriza a linguagem, a regra
e as sublimações.
b- O recurso de certas organizações a “clichês” traduz também essa
depreciação da palavra significante em benefício da voz. E a acen-
tuação dessa depreciação segue as mesmas etapas que a necrose
da organização que a emite: passa-se da organização ao serviço de
um projeto exterior (a palavra para convencer e seduzir), à organi-
zação que se toma por objeto de reprodução (o domínio da gíria do
grupo como teste de recrutamento: assim o domínio das gírias uni-
versitárias) e, finalmente, à organização que prefere “escolher” sua
própria morte a renunciar aos seus “princípios” e despedir seus
membros fixos obsoletos (os “clichês” combinando com o salário e
com o estatuto de membros fixos). A identificação que não se des-
vencilha do partido, da igreja, da empresa etc. é paralela à involu-
ção identificatória de seus membros.
c- Esse retorno pode se dar sobre unidades sociais mais fechadas e, é
claro, sobre a cumplicidade e a solidariedade dos companheiros ou
do grupo familiar. Assim, talvez estejamos passando do casal asso-
ciativo “moderno” ao casulo pós-moderno, invólucro de incubação
afetiva de ninfas à espera de seus imagos indecidíveis.3 A família,
que é geralmente lugar de violência necessária e legítima, em vista
da emancipação para o societário e a individuação, torna-se uma
contra-sociedade nos dois sentidos do termo. Fenômeno que ilustra

145
Psicossociologia – Análise social e intervenção

bem, às avessas, as afirmações de FREUD sobre a complementari-


dade antagônica dos vínculos familiares e dos vínculos sociais.
O retorno pode ir ainda mais longe.

O “novo individualismo” e a mônada com janelas falsas4


Com exceção talvez do autista, não há narcisismo que se satisfaça
unicamente com o olhar interior ou especular. Quer dizer que o narcísico,
exatamente como Deus, “tem necessidade dos homens”. E isso, quer opte
pelo narcisismo de aparências corporais ou por aquele de aparências do
sucesso individual.
a- Do primeiro diremos pouca coisa, salvo que ele é a negação da
realidade espacial e temporal, pois ele reduz o espaço àquele que o
separa de sua imagem e, principalmente, porque ele denega a pas-
sagem do tempo e o conseqüente envelhecimento. Mesmo quando se
eleva acima do nível elementar das práticas obsedantes do body-
building para atingir o brilho cintilante do vestuário ou da lingua-
gem, o narcisismo individual, ipso facto, pinta com falsas aparências
a face pública de sua mônada: o efêmero da moda como garantia de
sua própria eternidade e da fidelidade do Cavalheiro à Rosa.
b- Mais interessantes, justamente porque mais na moda, são o narci-
sismo e o hedonismo do sucesso individual que ocorrem e se mos-
tram de duas formas: a consumação insaciável e rápida de objetos
simbólicos (uma bulimia vomitória, isto é, a que impede a obesida-
de: nós não saímos da expressão corporal); a ascensão profissio-
nal provada e marcada pelo ganho pecuniário, sendo aliás esse
que permite aquele. O “sempre mais” do período 1945-1974 dos
“Trinta Anos Gloriosos” foi transformado pela crise em “sempre
mais alto”,5 até que alguns craques na bolsa tivessem nivelado a
trajetória dos golden boys, de alguns yuppies e dos numerosos pou-
padores populares miméticos do esquilo de FOUQUET, revelan-
do assim a ilusão da satisfação ilimitada.6
Essa idealização do sucesso pecuniário, especialmente na França,
entre 1983 e 1988, é, primeiramente, uma aclimatação cultural tardia da
perversidade obsessiva do capitalismo (domínio da natureza e autorida-
de sobre os agentes) onde o prazer lúdico envolvido reforça a virtude
puritana e anal que, por sua vez, fortalece as exigências da necessidade
econômica. Ela é, além disso, uma conseqüência da crise econômica que
transforma o mercado em ordália e desvaloriza o status adquirido. Mas o
mercado-ordália tem também o mérito de reintroduzir a binaridade (como
se sabe, com o dinheiro, a cenoura e o bastão são a mesma coisa) num mun-

146
Identificações experimentais e inovações sociais

do onde as referências de identidade e de identificação se tornam impreci-


sas. O dinheiro, tomado como “medida de todas as coisas” (inclusive do
que antes não era mercadoria: o serviço público, o festivo, o prestígio etc.)
permite, exatamente como os pequenos narcisismos da diferença religiosa
ou étnica, uma erotização e uma “tanatização” brutais porque justamente
binárias. Isso é talvez patológico, mas é ao mesmo tempo reconfortante:
com a binaridade do jogo do dinheiro, assim como com as regras precisas
dos jogos lúdicos, mesmo o perdedor “sabe a que se ater”. Entre a binarida-
de e a injunção contraditória, é mais simples escolher a binaridade.
A vantagem da acumulação sobre as formas qualitativas do narci-
sismo é dupla: ela permite não apenas transformar – no imaginário – o
qualitativo em quantitativo (o “Pompidou dos tostões” cúmplice do po-
der, de junho de 68, em substituição ao “Mudar de vida”), mas também
efetuar (período 1983-1988) sua própria transformação sublimante do
quantitativo ao qualitativo (o que ganha mais é o melhor). A diferença na
conta bancária é um indicador mais preciso que a multiplicação das dife-
renças de vestuário ou de status ou a contabilização fastidiosa de mártires
da fé ou da revolução. Enfim, em prêmio de Schadenfreude, os assassinatos
psíquicos (aqui pecuniários) são sempre menos punidos que os assassi-
natos físicos (SEARLES).
A monetarização, a mercantilização e a acumulação respondem às
ameaças de perda de identidade e permitem uma identificação pelo
menos tão abstrata quanto a que se pode fazer à lei e, talvez, mais
tranqüilizadora, posto que mensurável e mesmo conversível – mesmo
que seja só em imaginação – em bens equivalentes. Além disso, essa
acumulação pecuniária permite, se ela for realizada, manter ou criar
os meios de aumentá-la. A palavra de ordem premonitória de Ray-
mond BARRE, “Criem sua própria empresa”, atualizava o “Enrique-
çam-se pelo trabalho e pela poupança”, acrescentando a atração lúdi-
ca que faltava à fórmula de GUIZOT. “O empresário competitivo” ou
o candidato a empresário podem então fantasiar de copular, numa
androgeneidade fecunda, as identificações da concepção materna com
as do priapismo paterno. Mas todas essas fantasias econômicas são ao
mesmo tempo auto-realizadoras pois incitam os agentes a se darem os
meios de realizá-las. Assim, o sucesso dos outsiders permite também e,
simultaneamente, uma certa renovação do empresariado e o rejuve-
nescimento das figuras identificatórias.
Por enquanto, notemos que o modelo do sucesso individual, caso se
propagasse a todos os agentes, se autodestruiria. Na verdade, o mercado,
se não for provido de códigos e rituais duráveis e respeitados, induz não ao

147
Psicossociologia – Análise social e intervenção

risco calculável mas à incerteza e, logo, ao insolúvel. Se cada um desem-


penhar o papel do “Cavaleiro Livre”, que opta pelo oportunismo e con-
ta com o “acaso moral”, cada um será, necessariamente, um cavaleiro
solitário. E o “passageiro clandestino” vai se encontrar sem meio de trans-
porte. Porque a perversidade obsessiva do dinheiro e do sucesso pecu-
niário, esse narcisismo manipulador, tem necessidade que outros res-
peitem as regras para que ele possa obter seu ganho e seu prazer do
ganho. Se os outros também se recusam a entrar nas regras e abolem a
culpabilidade de infringi-las, como antecipar-se a eles e manipulá-los?
Lembremos que o perverso tem necessidade de regras sociais e do su-
cesso dos outros para satisfazer seu narcisismo. No caso de fraqueza
delas, ele será levado a construir regras fictícias (por exemplo, a progra-
mação dos computadores das Bolsas) que, por sua automaticidade arbi-
trária e movimentos miméticos que suscitam, provocam a sanção do cra-
que das bolsas ou dos OPA selvagens.7
Isso que vale principalmente para as esferas econômicas pode, en-
tretanto, servir de modelo a outras esferas: a moda do kit que permite
individualizar as diferenças, a partir de elementos de vestuário comuns;
os barroquismos arquiteturais diferenciadores do urbanismo “pós-mo-
derno” e até mesmo as escolhas narcísicas de objetos afetivos.

A incerteza das regras e das referências tradicionais e, em contra-


partida, a nítida binaridade do mercado, a individualização extrema dos
novos modelos, tudo isso torna altamente provável e muito facilmente
explicável a estratégia do far-niente e o prolongamento de “interminá-
veis adolescências” por parte de numerosos jovens.

Intermináveis adolescências. (T. ANATRELLA)


Podemos resumir em poucas frases essa pesquisa: a invenção da
infância e depois da adolescência são fenômenos recentes; passa-se
rapidamente, na época atual, do adolescente revoltado e membro de
um grupinho ao adolescente intimista e que convive numa microsso-
ciedade; a adolescência se estende agora de doze a trinta anos; ins-
taura-se uma sociedade “adolescêntrica”, na qual os próprios pais
entram no modelo irmãos-irmãs; daí resulta, nas três etapas – puber-
dade, adolescência e pós-adolescência -, uma crise da progressão das
identificações e do trabalho do luto que essas etapas da constituição
da identidade implicam.
Acrescentaremos apenas algumas observações.
1- É como se a incorporação do aleitamento e os investimentos ini-
ciais sobre os pais não fossem transformados em identificações e

148
Identificações experimentais e inovações sociais

como se essas não fossem constituintes da identidade e, por isso


mesmo, da diferenciação.
2- Essa fuga do real e de suas oposições naturais (gerações, sexos,
prazer, saúde) ou sociais (pais-filhos, trabalho-lazer, sagrado-pro-
fano) e suas expressões simbólicas instrumentais (útil-inútil, efi-
caz-ineficaz etc.), cognitivas (semelhante-diferente, verdadeiro-fal-
so, culto-analfabeto), normativas (bem-mal, bonito-feio etc.) e
relacionais (amistoso-hostil etc.), essa fuga é compensada, como
ressalta essa obra, pela constituição de identificações e de micro-
grupos horizontais, a partir do modelo irmãos-irmãs. É necessário
acrescentar: a substituição da imago confusa do pai pela figura avuncu-
lar, em lugar da necessária complementaridade dos status do pai e
do tio, ressaltada já há muito tempo por LÉVI-STRAUSS.
3- A inversão da “chantagem afetiva” (das crianças em relação aos
pais, em vez do inverso habitual) é um bom indício do mal-estar na
identificação que, ainda por cima, remete à forma elementar da
tentativa de inversão da chantagem: o período anal. Tudo isso é
racionalizado nesse paralogismo: agora as crianças são deseja-
das; ora, eu não pedi para nascer; logo, se você quer que eu conti-
nue a optar por gostar de você, amamente-me e deixe-me brincar
com seu dinheiro. (Em contrapartida, essa inversão institui a famí-
lia como um dos lugares privilegiados da experimentação das trans-
gressões e das inovações).
4- A apatia, a abulia e a paralisia se tornam os meios de manter
uma situação de dependência alimentar, corporal e afetiva, as-
sociada a gratificações que a versatilidade das despesas e a im-
possibilidade de antecipar os comportamentos fornece. Criam-
se e mantêm-se, assim, personalidades “sem genealogia” (M.
ENRIQUEZ), isto é, sem assimilação e superação das identifi-
cações. E a substituição atual, nos casais, dos amores flutuan-
tes de até pouco tempo, por amores que fazem seu ninho, man-
tém a incerteza na diferenciação das figuras parentais e na
diferença entre semiótico e simbólico, perpetuando, pois, as con-
dições dessas intermináveis adolescências.
5- Se as figuras do tio (tia) e do irmão (irmã) mais velho(a) substi-
tuem as imagos parentais do pai ausente ou desvalorizado e da
mãe ambígua ou “dominadora”, as identificações verticais serão
transitórias (a rápida obsolescência dos ídolos o prova) sem se tor-
narem transicionais. Essa fragilidade e essa precariedade das identi-
ficações verticais será compensada pela solidez e estabilidade das

149
Psicossociologia – Análise social e intervenção

identificações horizontais entre pares amicais, nos quais procura-


se mais a semelhança narcísica de solidariedade que o questiona-
mento das diferenças entre modelos educativos (J. PIAGET).
O grupo de pares se torna, assim, confirmação da semelhança e da
permanência, em vez de ajudar na superação, por lutos repetidos, das
identificações parentais. A individuação é, então, adiada sem cessar.

As experimentações: inovações e identificações


Narcisismos de pequenas diferenças e intermináveis adolescências
são retornos ou pausas em posições preexistentes. Mas, paralela e simul-
taneamente, experimentam-se outras estratégias que se ligam mais à assi-
milação e à inovação e que privilegiam mais os processos que os estados.
Mas, como se tratam de experimentações, elas serão múltiplas, parciais,
locais, precárias, contraditórias. Por isso, elas terão mais de “remendos
próprios do pensamento selvagem” (Cl. LÉVI-STRAUSS) e de improvi-
sações astuciosas da Métis que da experiência intelectual antecipante e
preparatória para a ação, característica do Logos.
Elas mobilizam atores novos ou reciclados. Elas redistribuem o empre-
go dos lugares e do tempo. Elas supõem a experimentação de novas formas
e de novos objetos de identificação e a exploração de novas constituições e
transformações de identidade. Elas provocam mudanças onde não se espe-
rava e trabalham, assim, na reconstituição dos vínculos sociais.

Os novos atores
Entre os desviantes que toda sociedade necessariamente com-
porta, há os que são atores potenciais das mudanças. Se uma crise
abre falhas (na periferia) e interstícios (no centro), esses poderão pôr
em andamento estratégias de assimilação-inovação nas zonas de com-
plementaridade imperfeita.
Eles serão recrutados não somente nos meios geralmente margina-
lizados (um recente major na Escola normal é filho de Harki e as filhas
de imigrados norte-africanos se saem melhor na escola que seus irmãos).
Mas também nas famílias de classe média que têm uma estratégia de
ascensão social, ou mesmo nos micromeios do establishment que privi-
legiam mais a adaptabilidade que o conformismo. A isso é necessário
acrescentar que o fato de pertencer a uma sociedade só define e abre
leques de possibilidades às personalidades e que é o futuro agente, atra-
vés de identificações aceitas ou rejeitadas, que vai realizar, na sua bio-
grafia, uma dessas trajetórias possíveis.8 Sem esquecer também que cer-
tos adultos “estabelecidos” são capazes de reciclagem.

150
Identificações experimentais e inovações sociais

Esses portadores de mudança assimilaram e ultrapassaram, assim,


suas identificações para se construírem uma identidade inovadora e
adaptável. A constatação de que, em período de mutação, muitas das
transgressões inovadoras e construtivas são possíveis sem penalidades
excessivas permite essa construção de personalidades em pessoas nas
quais existem traços de perversão. Mas, diferentemente do perverso
obsessivo pecuniário de agora mesmo, “não é ainda o ganho como tal,
mas a paixão de ganhar que é essencial para ele”.9 Há, pois, aí um com-
ponente lúdico que ainda não se tornou obsedante, permitindo a busca
da novidade e a colocação em andamento do polimorfismo da “Razão
astuciosa”. Aqueles mesmos que contribuem para o obsoletismo dos
ideais, dos códigos, das ordens estabelecidas, das organizações, põem-
se, por necessidade e por prazer, a criar projetos, regras, poderes e agru-
pamentos. Eles se tornam, assim, os autores de “Revoluções minúscu-
las”10 que modificam:

O emprego dos lugares, o emprego do tempo


E isso nas diferentes esferas do social
1- No lúdico, inicialmente, pois é aí, por volta de 1968, que as derri-
sões e os projetos começaram e, além disso, porque as outras esfe-
ras (a empresa com suas brincadeiras de empresa; a universidade
com o disparate prometido na pluridisciplinaridade etc.) tentaram
depois se apropriar da festividade para se tornarem mais atraen-
tes. Mas, no domínio próprio do lúdico, constata-se, por exemplo, o
lugar cada vez mais importante dos esportes e espetáculos esporti-
vos de competição como oportunidades de identificação e como
ocasião para descarregar agressividade. Da mesma forma, a con-
sumação apressada de grupos musicais efêmeros tomou o lugar
da fidelidade às vedetes coletivas ou individuais estáveis. Final-
mente, um último exemplo: a popularidade e a renovação crescen-
te dos jogos de simulações, de papéis e mesmo “de empatia”, au-
mentadas ainda mais pela introdução da informática. Todas essas
experimentações tornam o lúdico atual mais próximo da Paidia
espontânea que do Ludus regulamentado (R. CAILLOIS).
2- Em Economia, o hedonismo do sucesso pecuniário e social e as exi-
gências da crise puseram em contradição os objetivos de mobilidade-
flexibilidade com os de lealdade-identificação. A segmentação do mer-
cado de trabalho faz coexistirem a ameaça de desemprego (para os
recalcitrantes que podem ser substituídos) e as várias tentativas
de sedução e de indução à fidelidade em relação aos executivos

151
Psicossociologia – Análise social e intervenção

considerados excessivamente inconstantes e, ainda por cima, com


a informática e a espionagem industrial, excessivamente tenden-
tes à sabotagem ou à traição. Mesma oposição, entre os jovens,
entre a precariedade dos empreguinhos e a motivação pelas em-
presas-juniors11 . E a um nível mais global, coexistência de uma
economia oficial que, às vezes, perde o fôlego e de uma economia
subterrânea, clandestina ou até mesmo mafiosa que, articulando-
se em redes regionais e familiares, chega em certos países a pro-
duzir 20% (Itália) a 50% (Marrocos, Colômbia) do PIB.
3- Se, em política, o número de militantes, de aderentes e mesmo, às
vezes, de eleitores continua a baixar, isso não significa indiferença e
ainda menos rejeição das instituições e dos partidos, como foi o caso
depois das crises de 1921 e de 1929. A perda das ideologias não leva
à desmobilização total mas, ao contrário, a lutas ativas de tendências,
a tentativas de “renovação” e à emergência de outsiders (atualmente os
Verdes). Sob a égide de um “consenso fraco” e avuncular, numa apa-
rente ausência de gravidade e na adesão de quase todos à “economia
social de mercado”, tecem-se novas redes entre novos atores e explo-
dem, às vezes, arrebatamentos na defesa da Escola (ou de sua laicida-
de) ou nas campanhas humanitárias pelo Terceiro ou Quarto Mundo.
Assim, “o coração à esquerda, a carteira à direita” e o trocado no
centro restabelecem as referências que pareciam ultrapassadas.
4- A esfera da reprodução física e social dos agentes, apesar dos atrasos
habituais em relação a uma realidade em mutação, é também o lugar de
experimentações simultâneas e sucessivas, embora freqüentemente iná-
beis (a sucessão de reformas escolares). A coexistência e a rivalidade
dos modelos patriarcal, conjugal, associativo (G. MÉNAHEM) e, ago-
ra, que fazem ninhos, assim como a coexistência de referenciais corpo-
rais (das belas produzidas às belas sensuais) ou emblemáticos (do he-
rói ao anti-herói) já chamam a atenção para a diversidade dos
“familiogramas” que aí se poderiam revelar. Mas também, do seio dos
adolescentes intermináveis, emergem, de tempos em tempos, líderes
estudantis, festivos, políticos (mas não ainda religiosos).
5- Isso não coloca o sagrado livre de qualquer mudança, apesar da
predominância atual de efervescências religiosas. Se a prática domi-
nical católica caiu na França abaixo de 10% (cf. Le Monde de 27 de
outubro de 1989) e se a mediação dos prelados ou dos tele-
evangelistas e dos Tios (Abbé Pierre) ou Tias (Madre Tereza) dei-
xam de lado as organizações e as instituições intermediárias, apa-
recem, entretanto, práticas e grupos de oração ou de reflexão que,

152
Identificações experimentais e inovações sociais

por vezes, chegam a se organizar em redes para sustentar organi-


zações não governamentais (e não episcopais) caritativas, educa-
tivas e, às vezes, mesmo no Terceiro Mundo, produtivas. Sem fa-
lar das seitas, do recurso ao horóscopo, aos advinhos e às loterias.
Em todos esses casos, trata-se por certo mais de religiosidade que
de religião: até o Estado é abandonado pela Providência, sendo o
luto pelo pai que não chegou a ser reverenciado, substituído pela
nostalgia persistente do “gigante sagrado”.
Mas essa religiosidade talvez prepare a retomada de movimentos
realmente religiosos (pensamos, é claro, na predição de MALRAUX para
o século XXI), se entrementes o Sagrado não tiver se fixado sobre um
objeto profano menos totalitário e obsessivo do que podem ser, às vezes,
respectivamente, a política e o dinheiro.
Esse percurso das esferas do social permite pôr em evidência algu-
mas características comuns: o resfriamento do global compensado pela
mediação de uma figura central avuncular (ou de irmão mais velho); a
coexistência de experimentações locais, parciais, múltiplas, precárias e,
freqüentemente contraditórias; os tateamentos de veleidade de passa-
gem do semiótico ao simbólico; e finalmente: o desaparecimento de cor-
pos e organizações intermediárias entre o local e o global.
A passagem ao local marca o recurso “às pequenas unidades sociais”
(WINNICOTT desde 1971) e instaura “o tempo das tribos”. No cume, os
“ídolos” sem veneração ou com entusiasmos efêmeros; na base, grupos
de debate. No meio, apenas algumas instituições estimadas (sem ilusão
excessiva: a escola) ou sempre fascinantes (as Grandes Escolas) parecem
se manter. A prática religiosa dos católicos franceses reduz-se à metade
em trinta anos, porém numerosos são os grupos carismáticos. A CGT
perde mais de 55% de seus efetivos entre 1977 e 1987, mas as reivindica-
ções dos assalariados se exprimem através de “coordenações” fugazes,
porém decididas. Poderíamos também constatar a simultaneidade da
mundialização do mercado (até nos países do Leste) e a transferência
dos poderes econômicos nacionais, quer para firmas multinacionais cada
vez mais “apátridas”, quer para a nova região asiática dos “Cinco Ti-
gres” e, mais dificilmente, para a CEE. E, no interior de um país, é o
Estado que se julga obrigado a incentivar os “núcleos duros” ou a con-
servar os golden shares para impedir o esfacelamento ou as pilhagens
selvagens e sem sedentarismo.
É que os novos atores não têm nenhum interesse e não obteriam ne-
nhum prazer se as zonas de incerteza se reduzem excessivamente, por
codificações precisas ou por organizações invasivas. Em período de

153
Psicossociologia – Análise social e intervenção

experimentação é necessário preservar a margem de manobra: assim sen-


do, cada um é favorável às regras para os outros e à liberdade para si.
Além disso, a secreção de regras precede a transformação de redes em
organizações distintas, porque as primeiras podem ser modificadas mais
facilmente do que as segundas que, uma vez instaladas, não podem ser
reorganizadas e reorientadas.
Pode-se, pois, prever que as turbulências continuarão a afetar por
muito tempo esses níveis intermediários porque elas são favoráveis à
emergência de “minorias ativas” (S. MOSCOVICI) e às suas tentativas
de deslocamento dos poderes e de ocupação do espaço.

O deslocamento dos centros e o nomadismo dos atores


Esse é um fenômeno bem esclarecido, no que tange à história do
capitalismo, por historiadores como BRAUDEL ou I. WALLERSTEIN:
as mutações de desenvolvimento jamais se produzem no país momen-
taneamente dominante, mas nas zonas periféricas onde as aquisições
instrumentais e culturais podem ser reordenadas e desenvolvidas sob
um novo imaginário, fora do controle exercido pelo Centro. É por isso
que as revoluções, mesmo que sejam minúsculas, produzem-se onde não
se espera e constituem, pois, “surpresas”.
Além disso, é necessário que os atores periféricos ou intersticiais
tenham traços comuns de personalidade que os predisponham para isso.
A flexibilidade-mobilidade atual talvez seja tanto um desejo quanto uma
constatação do que existe, pelo menos em muitos jovens, inclusive jo-
vens executivos12. Assim, as pressões econômicas iriam ao encontro de
desejos pessoais. Com a condição, entretanto, que os investimentos lá-
beis de objetos desse nomadismo só se concentrem nos meios de ação,
os quais estão a serviço de objetivos determinados e realizáveis, como,
por exemplo, em certas regiões, antigamente atrasadas, do norte da Itá-
lia onde se desenvolvem redes de PME (pequenas e médias empresas),
cujo dinamismo se apoia no nacionalismo local. Aí o nomadismo erran-
te se transforma em migração periódica orientada.
Essa atração pela mobilidade e pela flexibilidade tem como conse-
qüência a necessária aceitação da precariedade eventual dos resultados
da ação, conjugada com a manutenção dos objetivos. Nesse caso, a efeme-
ridade das identificações e dos prazeres dos intermináveis adolescentes
se transforma em tomada em consideração da existência do tempo, o que
é um dos signos importantes da passagem do princípio de prazer ao da
realidade. E as impaciências do “tudo imediatamente” cedem o lugar à
procura de atalhos no adiamento da realização do desejo.

154
Identificações experimentais e inovações sociais

Um outro signo dessas reconstruções dispersas aparece no investimento


de cada uma das esferas de atividade (econômica, política etc.) pelas ou-
tras. É claro que a contaminação generalizada é própria de uma situação de
crise em que o desaparecimento das referências deixa o campo livre para
injunções contraditórias. Mas, numa situação de mal-estar, as referências
são apenas evanescentes: são imprecisas e inconstantes, mas existem. E essa
mobilidade pode produzir inovações e novas implicações dos atores.
Assim, a captação do lúdico (jogo de papéis, jogo de empresas...),
do político (mudanças de poder) e mesmo do doméstico (a suposta ex-
celência de certas “grifes”) pelo econômico é importação de motivações
próprias para as outras esferas e, logo, aumento da variedade e da in-
tensidade das motivações com objetivos econômicos. E como se sabe,
desde bem antes de FREUD (FOURIER já tinha observado), no adulto
não é a repetição mas, ao contrário, a mudança de situações e de escolha
de objetos que aguça o prazer.
Cada esfera de atividade tem seu campo próprio, mas é também
uma dimensão de todas as outras (M. GODALIER). Se esses aspectos
importados de outros domínios aumentam, a mudança de cada uma
das esferas crescerá paralelamente aos prazeres obtidos, principalmen-
te por aqueles agentes que são felizmente tocados por “uma certa anor-
malidade” (J. MC DOUGALL).
Todas essas mudanças disseminadas no emprego do tempo, do es-
paço, das coisas, das idéias, dos valores, dos prazeres... colocam o pro-
blema do papel desempenhado pelas identificações.

O papel das identificações


Um pouco paradoxalmente, a conformidade e, ainda mais, o con-
formismo dos agentes denotam identidades inacabadas; as identifica-
ções são, aí, substitutivas (a vida por procuração) e arcobotantes (sem
contrafortes, a personalidade arrisca-se a desmoronar). Em contrapar-
tida, o tipo ideal seria aquele de um agente individualizado (capaz de
ser ele mesmo com os outros, diz WININICOTT), cujas identificações
seriam, no início, por sua superação, constitutivas da personalidade e,
em seguida, unicamente confirmadoras da identidade.
Paralelamente, podemos contrapor, idealmente, as sociedades fun-
dadas sobre a relação fusional (Gemeinschaft), cujos agentes perdem
suas identidades quando se encontram em um outro agrupamento, e
as sociedades baseadas na troca (com suas diversas variantes fundan-
do a Gesellschaft) onde os agentes sublimam os vínculos familiares em

155
Psicossociologia – Análise social e intervenção

vínculos societários (TONNIES revisto por FREUD). Mas, entre esses tipos
extremos e opostos, situam-se todos os barrocos das sociedades concretas.
O atual mal-estar na identificação não seria proveniente da passa-
gem por um barroco (inédito desde o período que precede o rapto das
Sabinas): a constituição tateante de um vínculo social por uma “socieda-
de de irmãos” sem referentes paternais plausíveis? Poderíamos sugerir a
seguinte seqüência:
- os vínculos sociais anteriores (constituídos evidentemente pela
emancipação e superação dos vínculos familiares) se revelam ca-
ducos e decepcionantes;
- tentam-se, então, retornos aos vínculos familiares verticais ou aos
dos sósias desses, mas constata-se ser isso impossível ou de novo
decepcionante;
- experimentam-se, então, tipos de vínculos laterais (de tipo irmãos-
irmãs) ou colaterais (de tipo tios-sobrinhos) que propõem identifi-
cações menos estruturantes que as precedentes;
- isso explicaria a diversidade das experimentações e também a predo-
minância atual da Métis e dos semióticos sobre o simbólico e o Logos;
- a dificuldade está, então, em transformar as identificações laterais,
imprecisas e transitórias, em identificações hierárquicas, representadas
e transicionais.13
Fundamentalmente, é um problema de escrita que obriga a ler o pro-
grama e a obedecê-lo, ao mesmo tempo que se escreve. Essa é, sem dúvida,
a fonte da atenção atual para as autopoieses e as auto-organizações (VARE-
LA, DUPUY, por exemplo). A autocriação da sociedade é recriação de seus
agentes. E o que permite essa simultaneidade está talvez indicado no divã
ou nos hospitais psiquiátricos, por uma dicotomia bem marcada entre os
distúrbios decorrentes da predominância das referências ao ideal do eu so-
bre as referências ao censor e os distúrbios estritamente inversos. Se se qui-
ser caricaturar: narcisismo atual contra neurose obsessiva de outrora.
Mas há formas de narcisismo bem mais numerosas do que aquelas
já mencionadas aqui. Salientemos uma que poderá ser encontrada como
traço de personalidade nos inovadores de que tratamos: um ideal do eu
nascido quase sem pai, onde o censor só interviria para condenar os
distanciamentos entre a realização e o eu ideal. Desse modo, é o fracasso
que sanciona e não a falta que culpabiliza. Resta ainda ligar o ideal do eu
a uma esfera de realização (mas, como vimos, as esferas atualmente se
interpenetram) e a uma figura representativa (mas a única figura grati-
ficante de identificação de prospeção é a do irmão mais velho, com o

156
Identificações experimentais e inovações sociais

qual se está, apesar de tudo, em concorrência). Chegando à encruzilha-


da, a “estrutura dissipativa” de orientação se tornaria: ser melhor sucedi-
do, diferentemente e alhures que o referido irmão mais velho. Daí a mul-
tiplicidade, a diversidade e a flutuação das experimentações de saída da
crise social... e das intermináveis adolescências. Mas também o aumento
do prazer obtido na substituição rápida das identificações com as figuras
múltiplas e fugazes do referente fraternal, experimentações e prazer que
só se estabilizam quando se acentua o afastamento e se afirma a diferença
em relação a esse referente. Enquanto isso, o mal-estar subsiste, tanto para
os autores das mudanças, quanto para aqueles que o desemprego, a idade
ou a condição de estrangeiro colocam em situação de espectadores ou de
vítimas: nenhum deles pode antever o resultado.

Algumas conseqüências
1- O tipo de conseqüência mais marcante é o das apropriações: desde
1968 há apropriação pelos poderes políticos sucessivos de projetos (mo-
dernizar a universidade) e mesmo, às vezes, das utopias (“mudar a vida”,
em 1981). Mas também apropriação da tendência lúdica pela empresa e
pela Bolsa, das motivações de poder pelos agenciadores de OPA, das co-
ordenações pelos sindicatos etc. Essas apropriações podem, aliás, permi-
tir a certos herdeiros enfeitar o cadáver sob o disfarce da renovação.
2- Mais interessantes são as criações de novas redes e de novas re-
gras de jogo. Já mencionamos o desempenho das economias paralelas e
mesmo mafiosas na Itália, na Colômbia ou alhures. Poder-se-ia também
tomar o exemplo da organização progressiva dos movimentos ecologis-
tas ou o da proliferação das PME (pequenas e médias empresas). Mais
surpreendente ainda seria o caso da ligação dos movimentos carismáti-
cos com redes nacionais e mesmo internacionais que tendem a escapar
da autoridade episcopal e mesmo pontifical.
Há, pois, no fim de contas, reconstituições múltiplas do tecido soci-
al: passa-se das ilhas ao arquipélago. Mas essas reconstituições perma-
necem parciais e, por isso, podem entrar em conflito, como na tectônica
as placas entram em fricção, em oposição ou em encavalamento: daí
alguns tremores da sociedade em torno de véus, de bandeiras, de fetos
ou de liberdade de viajar. (O que prova, de passagem, que apesar de
HEGEL, da maioria dos marxistas, de Daniel BELL e de FUKUYAMA, o
fim da história só concerne a cada indivíduo).
Esses conflitos e fricções permitem acertos de contas e seleção das
experimentações de inovações e de seus atores, outsiders ou reciclados,
com a eliminação das organizações, dos indivíduos e da identificações

157
Psicossociologia – Análise social e intervenção

obsoletas ou impossíveis. E aquele que sobrevive restabelece as diferen-


ças evidentes e banais, por um momento denegadas (entre os sexos, as
gerações, os tempos, os espaços, as culturas etc.). Daí o reaparecimento de
referências e de inteligibilidade das ramificações, mesmo se as referênci-
as são modificadas e as ramificações deslocadas.
Talvez, como alguns dizem, mesmo essas autopoieses contribuam
para aumentar a variedade, ao mesmo tempo agradável e funcional, e
a complexidade progressiva do sistema. E a que corresponderia, sob a
aparente homogeneização da aparência dos indivíduos, um aumento
da variedade e da complexidade das identidades (e pois das identifi-
cações constitutivas e confirmativas)? Adaptabilidade e criatividade
dos autores evidenciariam isso, pois se destinam a prepará-los para as
metamorfoses do sistema.
3- Mas sabe-se também que o vínculo social e, portanto, suas re-
constituições passam pela invenção da linguagem e pela sublimação ho-
rizontal da afetividade (E. ENRIQUEZ, principalmente). Ora, todo mun-
do notou “o silêncio dos intelectuais” (os conhecidos) no auge da crise
(1981-1983) e mesmo no momento em que a retomada econômica e as
mudanças sociais tornavam-se mais patentes. Isso impõe a questão: “Será
que Ulisses falava quando as sereias cantavam?”
Se a estratégia adequada para esse tempo é o polimorfismo obstina-
damente orientado, encontramo-nos, necessariamente, sobre as superfí-
cies marítimas de águas inquietas onde a linguagem tanto pode se des-
monetarizar (IVG, pedidores de emprego, equívocos no lugar das palavras
corretas) como se tornar canto de apelo ao desvario (pensemos na voz dos
discursos hitlerianos). Os signos (o sol, a estrela polar) são, então, as úni-
cas referências ainda fidedignas. Por isso, para retomar uma distinção apro-
fundada por Julia KRISTEVA, as experimentações de inovação social são
também um bordejar contra o vento para ascender do semiótico ao sim-
bólico. O barroco societário atual é, talvez, um momento dessa ascensão,
uma escala num porto cosmopolita onde a única língua possível seria um
pidgin das palavras, das normas e das formas, esperando a nova fundação
de uma Focéia em Massalia e a volta do Logos grego.
Quanto às metamorfoses contemporâneas da “transcendência ho-
rizontal” em direção às outras que CAMUS projetava, todo mundo
sabe passar pelas identificações libidinais. Até mesmo os novos em-
presários que experimentam todas as formas de sedução para obter de
seus especialistas e executivos carreiristas-oportunistas (e mesmo, ama-
nhã, de seus “técnicos de superfície”?) a adesão que eles sabem neces-
sária à coerência funcional.

158
Identificações experimentais e inovações sociais

De qualquer modo, nas diferentes esferas do social, do econômico


ao sagrado, a receita das identificações complementares novas (e, logo,
das coesões) não parece ainda inventada. É por isso que, no mal-estar, os
novos atores hesitam entre a perenização imaginária, no adulto que eles
se tornariam, da criança-rei perversa que eles foram e o exercício de um
domínio efetivo que lhes permitiria manobrar realmente os peões no seu
tempo social. Estaria a saída, então, na formação de ninho familiar, si-
multaneamente, centro de denegação da incerteza para uns e refúgio tem-
porário contra os riscos de suas inovações, para outros?
Mas, “não conjeturemos à toa sobre as coisas supremas” (HERÁCLITO
ainda, naturalmente).

Notas
1
Traduzido de: NICOLAÏ, André. “Identifications expérimentales et innovations soci-
ales”. Connexions, 55, 1990-1, p. 61-78, por Eliana de Moura Castro.
2
NAP: Neuilly, Auteuil, Passy. Tende a substituir: BC-BG (bon-chic bon-genre). Essa
moda de aparência de NAP reintroduz a diferença de vestuário entre os sexos, assim
como os signos da diferença pelo dinheiro.
3
“Imago: estado do inseto que chegou ao seu completo desenvolvimento e à capaci-
dade de reproduzir”, Petit Larousse, edição de 1963. Já o estado de ninfa faz lembrar
o que FREUD diz do “bem-estar morno” que provoca a persistência de uma situa-
ção desejada inicialmente pela pulsão.
4
Os períodos de estabilidade (inclusive crescimento harmonioso) oficializam a predo-
minância do Todo (Holismo) sobre as Partes (os agentes). As épocas de crise e
reconstrução valorizam, ao contrário, os atores (Individualismo). Temos assim uma
alternância de interpretações. O problema: em época de “destruição criativa”, onde
se escondem os “vínculos sociais”?
5
Michel ROCARD acaba de propor o “sempre melhor”: mudança de máscara ou
mudança de projeto?
6
O esquilo aparecia nas armas do Superintendente, com a divisa: “Onde ele não
subirá?”. Mais dura foi a queda.
7
“L’économie des conventions”. Revue Economique, 40, 2 de março, 1989. [OPA: Offre
Publique d’Achat = oferta pública de compra. N.T.].
8
C. W. MILLS (L’imagination sociologique) propunha para as ciências do homem “ar-
ticular história e biografias, sociedade e personalidades”.
9
MARX, “Zur Kritik...” In: M. RUBEL. Oeuvres: Économie. Gallimard, Pléiade. Tomo 1,
p. 239. MARX acrescenta: É a superioridade dos yankees sobre os ingleses”. Hoje ele
teria, sem dúvida, escrito: “dos japoneses sobre os yankees”.
10
Autrement, n. 29, 1981.

159
Psicossociologia – Análise social e intervenção

11
Os jovens executivos estão submetidos a duas injunções contraditórias: por um
lado, a oposição entre a moral do trabalho e as incitações da sociedade de consumo
(D. BELL), por outro lado, a oposição entre a incitação à fidelidade à empresa e a da
idealização do sucesso pecuniário individual. Quanto aos jovens empresários: se
antes o fundador “não tinha filhos”, agora são os novatos que são levados a não
precisarem do pai.
12
Cf. Uma pesquisa de MCS de setembro de 1988: morosidade, mobilidade, oportu-
nismo.
13
Uma mudança social, para TARDE, é “uma verdadeira dissociação de pais e filhos
[...] uma não-imitação de exemplos paternais”.

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Identificações experimentais e inovações sociais

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161
Parte III
Intervenção psicossociológica
Psicossociologia – Análise social e intervenção

164
INTERVENÇÃOPSICOSSOCIOLÓGICA
Regina D. Benevides de Barros

É, sem dúvida, instigante a tarefa de tomar o tema da “Intervenção


Psicossociológica” e trazê-lo a público através de textos de alguns de
seus principais pensadores. Pelo que eles mesmos nos contam, essa pare-
ce ter sido, também, uma das características marcantes de suas próprias
histórias: estimular a crítica, lançar um olhar novo sobre o mundo, sem
vê-lo como algo já dado, realizar práticas nas quais pesquisa e ação não
são dois pólos que se interligam, mas a construção de ferramentas de
ruptura com o cotidiano.
Assim, os textos de J. DUBOST (“Notas sobre a origem e a evolução de
uma prática de intervenção psicossociológica”, 1980; “A respeito das ori-
gens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais”,
1987), de A. LÉVY (“Intervenção como processo”, 1980) e de E. ENRIQUEZ
(“A respeito da formação e da intervenção psicossociológicas”, 1976) tra-
zem-nos a instituição da intervenção em faces e recortes polêmicos, criando
em nós uma vontade de entrar no debate, contribuir, trazer também nossas
histórias e implicações com o “Movimento Institucionalista”.

As décadas de 60/70:
Movimentos sociais e produção teórica
A Europa de pós-guerra defronta-se com experiências que convo-
cam um repensar sócio-político, desembocando, nas décadas de 60/70,
em uma espécie de “crise das instituições”.
É bem verdade, entretanto, que essa “crise” também eclode em vá-
rios países e que, em cada lugar, ela tomará formas próprias.
No Brasil, em fins de 50/início de 60, vivíamos experiências de edu-
cação popular que colocavam no centro da cena a instituição da Pedago-
gia, instrumentalizada então, na maioria das vezes, a partir da divisão
não-saber x saber. Poderíamos dizer, por exemplo, que o trabalho de
Paulo FREIRE e alguns desenvolvidos, mais tarde, pelas Comunidades

165
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Eclesiais de Base, inserem-se, desde essa época, no que viríamos a deno-


minar “Movimento Institucionalista”, pois procuravam construir uma
teoria-prática desnaturalizadora, crítica das experiências instituídas.
Por aí, fica claro que “Movimento Institucionalista”, quando toma-
do em seu sentido amplo, designa a crítica à naturalização das institui-
ções, questionamento de seus modos de instrumentalização.
Em meados de 60, o país, convulsionado pelo golpe militar, vive a
extirpação de muitas das experiências “alternativas” de organização so-
cial e política.
No campo da Psicologia, presenciamos, de um lado, uma entrada
maciça de trabalhos com influência da Psicologia Social norte-americana
(de caráter adaptacionista) e, por outro, éramos tocados pelo pensamento
latino-americano – em função não só da proximidade geográfica mas,
principalmente, por causa da situação política e social de repressão im-
pingida tanto ao Brasil, como à Argentina, ao Chile e ao Uruguai.
O mês de maio de 68 francês, analisador histórico do status quo vigente,
do conservadorismo universitário, da burocracia partidária, colocou em
cheque, de modo generalizado, as experiências que vinham sendo desen-
volvidas desde o pós-guerra e que apenas timidamente caminhavam.
Os fins do anos 60/década de 70 serão, então, palco de uma produ-
ção expressiva, na interseção dos campos filosófico, político e social. As
instituições são analisadas, uma certa psicossociologia se faz interven-
ção, abandonando seus laços experimental-adaptacionistas.
Vemos, então, chegar também até nós o eco dessas produções, atra-
vés do contato com os “institucionalistas” franceses, fossem mais liga-
dos à Psicossociologia (M. PAGES, J. DUBOST, A. LÉVY, E. ENRIQUEZ),
à Socioanálise (R. LOURAU, G. LAPASSADE, R. HESS, J. ARDOINO)
ou, ainda, à recente corrente que então se desenvolvia – a esquizoanálise
(F. GUATTARI e G. DELEUZE).
Ainda que marcados por grandes diferenças, havia certos pontos
que ligavam os “institucionalistas”: a critica relativa à separação investi-
gação-intervenção, o trabalho com grupos e comunidades como disposi-
tivos-alvo privilegiados, a recusa a uma psicologização dos conflitos so-
ciais e a uma Sociologia abstrata, a análise (no sentido do olhar/escuta
que decompõe) como modo básico de funcionamento.
No Brasil, o contato com as correntes francesas institucionalistas se dá
em fins dos anos 60/início de 70, de maneira diferenciada e com focos de
penetração mais localizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

166
Intervenção psicossociológica

Uma história a respeito dos cruzamentos do movimento instituciona-


lista com as práticas desenvolvidas no Brasil ainda está por ser feita, mas há
algumas produções importantes que já apontam, de forma mais pontual,
para as influências e os efeitos que esses pensamentos aqui exerceram.
O recente trabalho de M. MATA-MACHADO (1992) faz uma histó-
ria do que foi e de como está hoje o desenvolvimento da corrente psicos-
sociológica em Belo Horizonte.
É marcante, segundo a autora, a influência do pensamento institu-
cionalista francês, a partir de 1968, quando se estabelece um convênio
entre a UFMG e a Embaixada da França. A entrada se dá, portanto, via
Universidade e, mais especialmente, através do Curso de Psicologia.
Como ela nos diz: “Em 1968 e 1969, tivemos entre nós, respecti-
vamente, os professores Max PAGÈS e André LÉVY. Ambos haviam
participado, em 1959, da formação da A.R.I.P. (Association pour la Re-
cherche et l’Intervention Psycho-sociologiques), que congregou pesqui-
sadores práticos (...)”; “(...) sofremos [também a influência] do traba-
lho de Georges LAPASSADE, professor que esteve em missão cultural
em Belo Horizonte durante três meses em 1972. Junto com René Lou-
rau (...), Lapassade (...) havia formulado a teoria da Anáse Institucio-
nal, cuja prática foi denominada Socioanálise”. (MATA-MACHADO,
1992, p. 2)
O pensamento institucionalista atravessa, segundo M. MATA-MA-
CHADO, a história da Psicologia Social no Curso de Psicologia da
UFMG. Se no início a orientação era claramente norte-americana, man-
tinha, entretanto “uma vertente de articulação entre teoria e prática”
MATA-MACHADO, 1992, p. 2).

Em 1967, sob a liderança de Garcia, foi formado o Centro de


Psicologia Social Aplicada (CEPSA), voltado à pesquisa e à prá-
tica.(...) Atendíamos sobretudo a demandas advindas de mei-
os educativos e religiosos (...).
Com PAGES, fomos lançados numa perspectiva rogeriana, com
a qual logo rompemos (...). Lévy apresentou-nos, além de seus
próprios escritos, alguns de Enriquez, de Rouchy e, sobretu-
do, o texto de Dubost: “Os métodos de intervenção psicossoci-
ológica” (...)
Em 1971, iniciou-se o que veio a ser talvez a maior intervenção
psicossociológica da qual o Setor de Psicologia Social, como
grupo, participou: a implantação da Reforma Universitária de
1968 em diferentes escolas da UFMG. (MATA-MACHADO,
1992, p. 3-4).

167
Psicossociologia – Análise social e intervenção

A chegada de G. LAPASSADE traz influências novas sobre os pro-


cessos de intervenção em curso e, a partir de então, por um certo tempo,
passou-se “a intervir usando os dispositivos propostos por Lapassade e
Lourau” (MATA-MACHADO, 1992, p. 4).
Essa perspectiva é, entretanto, segundo a autora, “parcialmente aban-
donada, em favor de intervenções com perspectivas mais modestas, menos
desejosas de mudar o mundo (...)” (MATA-MACHADO, 1992, p. 6). Hoje,
há alguns projetos em andamento, cujos interlocutores privilegiados são
A. LÉVY, J. DUBOST e E. ENRIQUEZ.
No Rio de Janeiro, o percurso do pensamento institucionalista toma
outras formas, ainda que tenha mantido a característica de ter sido difun-
dido através do “meio psi”.
Digo isso porque chama a atenção o fato de que, na Europa, o movi-
mento institucionalista inclui sociólogos, pedagogos, psiquiatras e psi-
cólogos, enquanto que, no Brasil, são primordialmente esses últimos que
desenvolvem tais propostas.
O pensamento pichoniano, trazido pelos psicanalistas argentinos no
início dos anos 70, aliado a algumas críticas às instituições de formação em
Psicanálise, fez com que, no Rio de Janeiro, o movimento institucionalista
tivesse um viés grupalista que, mais tarde, absorveu a influência de alguns
teóricos vindos da França (R. LOURAU, G. LAPASSADE, G. MENDEL).
Encontramos, assim, em fins de 70/início de 80, a fundação do
IBRAPSI – Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e instituições – que
inclui a Análise Institucional como uma das suas áreas de formação. Ao
mesmo tempo, o tema começa a ser ministrado em disciplinas de algu-
mas universidades.
Na década de 80, outros centros de estudos e pesquisas se consti-
tuem em torno de propostas institucionalistas: o núcleo Psicanálise e
Análise Institucional (1984) e o Centro de Estudos Sociopsicanalíticos
(CESOP, 1986).
É também na década de 80, mas estendendo-se até hoje, que um
certo número de intervenções com esses enfoques ganha destaque. Al-
gumas são objeto de publicações: Análise Institucional no Brasil (KA-
MIKHAGI e SAIDON, 1987), Grupos e instituições em Análise (RODRI-
GUES, LEITÃO e BARROS, 1992).
O que se percebe é que, além dos autores já citados, somou-se a
influência do pensamento de outros (M. FOUCAULT, R. CASTEL, G.
DELEUZE, F. GUATTARI, entre outros), construindo-se práticas singu-
lares, atentas às características da realidade brasileira.

168
Intervenção psicossociológica

Em São Paulo, sente-se também a influência do pensamento grupa-


lista argentino que, em alguns casos, encaminhou-se para a formação de
centros de estudos, pesquisas e intervenções, incluindo, mais tarde, as
contribuições da socioanálise.
Especialmente através dos trabalhos de S. ROLNIK, difundiram-se
os pensamentos de F. GUATTARI e de G. DELEUZE, desembocando em
algumas traduções e publicações, bem como na entrada, na universida-
de – PUC/SP –, de obras desses autores. Atualmente, o Núcleo de Estu-
dos da Subjetividade, do Curso de Pós-graduação em Psicologia Clínica
da PUC/SP é um dos centros que congregam, em São Paulo, algumas
pesquisas realizadas sob essa influência.
Mas, se a difusão inicialmente se deu através do eixo Rio de Janei-
ro-Belo Horizonte-São Paulo, hoje, o “pensamento institucionalista”, em
suas várias vertentes, já toma contornos bastante diferenciados, tendo
incluído outras influências teórico-práticas, diversificado seus modos
de intervenção e expandido por outras áreas do Brasil.
Os textos que se seguem trazem dados históricos mas, sobretu-
do, a inquietação dos autores frente aos efeitos da intervenção psi-
cossociológica, à instituição de formação e à de pesquisa. Sua leitura
e reflexão são um convite irrecusável.

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169
Psicossociologia – Análise social e intervenção

170
NOTAS SOBRE A ORIGEM E A EVOLUÇÃO DE UMA
PRÁTICADEINTERVENÇÃOPSICOSSOCIOLÓGICA1
Jean Dubost

Os agentes sociais chamados a realizarem práticas novas de pesquisa


e de ação podem ter o sentimento de que escolhem e inventam, mais ou
menos livremente, os princípios e as modalidades de sua intervenção. Pa-
rece-me ser verdade que sua atividade comporta uma dimensão criativa,
implicando opções e esforços de imaginação e que, em uma determinada
situação, os indivíduos e as diferentes equipes não se comportam de uma
forma idêntica. Mas creio, principalmente, que os traços que caracterizam
uma prática concreta de intervenção resultam, em primeiro lugar, de variá-
veis como:
a- as condições gerais que engendram, em uma determinada socie-
dade e em um determinado momento de sua história, as dificulda-
des sentidas por um ator social;
b- as condições particulares desse ator que o levam a esperar um
resultado positivo da ajuda de um terceiro;
c- a formação, a natureza do “saber-fazer”, o status e a posição
social, além dos desejos de terceiros, aos quais as demandas e as
encomendas são endereçadas e, finalmente, a interação entre
essas variáveis.
Por mais banais que sejam, essas hipóteses podem guiar uma refle-
xão retrospectiva sobre a evolução de nossa prática e de nossas idéias.
Limitamo-nos entretanto, aqui, a algumas observações.

1945-1950
Reflito sobre as primeiras ações de intervenção às quais estivemos
associados, no período que se seguiu à Liberação (éramos diversos mem-
bros fundadores da A.R.I.P.,2 hoje estando quase todos na faixa dos cin-
qüenta anos, e tendo conhecido o mesmo meio – o das grandes e médias
empresas industriais ou comerciais – e por intermédio do mesmo tipo de

171
Psicossociologia – Análise social e intervenção

organismo: os gabinetes privados de engenheiros consultores organiza-


cionais, estabelecidos na capital, freqüentemente com a estrutura jurídica
de associações. Muitos dentre nós trabalharam, em períodos diferentes,
entre 1945 e 1959, nos mesmos organismos3).
O período imediatamente após-guerra foi dominado, evidentemen-
te, pelo problema da reconstrução, da recuperação econômica do país e
por esperanças de restruturação política, econômica e social; essas espe-
ranças tinham sido tecidas durante os anos de ocupação alemã pelos
que tinham pertencido à Resistência; esse período foi igualmente domi-
nado por conflitos políticos e decepções que não chegaram a prejudicar
um certo consenso nacional, uma vontade geral de reconstrução das for-
ças e dos meios de produção.
A intensidade das dificuldades alimentares e de habitação, a passa-
gem rápida de um período de desemprego a um mercado de trabalho
caracterizado pelo excesso de empregos, inflação, movimentos reivindi-
catórios e formas de repressão mobilizadas diante das greves operárias
não impediam nem o estabelecimento do primeiro plano de moderniza-
ção e de aparelhamento nem o desenvolvimento simultâneo da ideologia
racionalizadora – a organização científica do trabalho – e da ideologia
que levava em conta o “fator humano”, a busca de participação, formas
de autoridade mais compatíveis com um ideal democrático. A ajuda pro-
posta às empresas para acelerar sua reconstrução, inspirada mais ou
menos diretamente pelos Estados Unidos (plano MARSHALL, missões
de produtividade, comissões especializadas de organizações interna-
cionais nascidas da ONU etc.), comportava, então, tanto contribuições
no plano de métodos contábeis, de gestão, de estruturas de direção, quan-
to no domínio da “simplificação” do trabalho nas oficinas e escritórios,
do recrutamento de pessoal, da formação em habilitações.
Nesse contexto, à imagem de seu homólogo americano e segundo
os exemplos dados pelas forças militares engajadas no conflito mundial,
o engenheiro sentia a necessidade de associar “especialistas do fator hu-
mano” à sua prática de intervenção.
Na Sorbonne, o ensino de Psicologia e de Sociologia é ainda limitado
a dois certificados de licenciatura em filosofia que quase ignoram a Psica-
nálise, o Marxismo, o funcionalismo etc.; mas as “aplicações” precedem
largamente o reconhecimento acadêmico das correntes teóricas: criação
dos primeiros centros de consultas psicopedagógicas, desenvolvimento
de novos métodos de psicoterapia, de reeducação, de investigação psi-
cológica (técnicas projetivas) e, simultaneamente, ênfase a métodos es-
tatísticos, suas aplicações no domínio da economia, da conjuntura, do

172
Notas sobre a origem e a evolução de uma prática de intervenção psicossociológica

planejamento, da demografia, da gestão etc. Nossos primeiros anos de


profissionalização são divididos entre as atividades de estudos e aplica-
ções psicotécnicas – seleção e orientação –, levantamentos de dados com
amostras – opinião pública, estudos de mercado –, pesquisas sobre a
“moral” civil – do tipo de experimentação de campo –, monografias so-
bre empresas industriais – sobretudo sob a égide da UNESCO –, tentati-
vas de reeducação de adolescentes em tratamento etc.
Essa irrupção de atividades e ações inovadoras tem por resultado,
especialmente, a aquisição de numerosas habilitações e a descoberta de
trabalhos da Psicologia Social norte-americana (LEWIN, MORENO e de-
pois ROGERS); em seguida, as obras de G. FRIEDMANN fizeram com
que se conhecesse as de E. MAYO de ROETHLISBERGER e de DICKSON.
Essas atividades e ações provocavam também o desejo de ultrapassar os
estudos pontuais e aplicações de técnicas, desenvolvendo uma aborda-
gem mais global, no plano das práticas, guiada pela busca de uma con-
cepção mais unitária das Ciências Humanas, na qual FREUD e MARX
não seriam nem excluídos um pelo outro nem apenas superpostos.
Em relação a esse último ponto, lembremos, por exemplo, que os psi-
quiatras de orientação marxista que suscitaram, na França, a partir dos
anos 40, o movimento que iria ser denominado “institucional”, a partir de
1952, separam-se em duas tendências, segundo o esforço que fazem para
integrar a contribuição freudiana – e as práticas psicossociológicas inspi-
radas sobretudo por MORENO – ou denunciá-las como fortalecedoras de
tecnologias capitalistas de manipulação; se as tentativas de Reich são, nessa
época, pouco conhecidas na França, o movimento surrealista se encarrega
logo (cf. André BRETON, Les Vases communicants) de familiarizar uma parte
da intelligentsia com a problemática freudo-marxista, vista particularmen-
te como a complementaridade necessária entre a liberação individual e a
liberação coletiva; a relação crítica e complexa que G. POLITZER desen-
volveu com a Psicanálise dos anos trinta constitui uma referência viva nas
discussões da época; é o momento também no qual G. PALMADE aborda
o problema das condições teóricas de uma concepção unitária das ciênci-
as do homem através da busca de conceitos transespecíficos no sentido de
BACHELARD (essa tese só seria publicada dez anos depois de sua defe-
sa, em 1961, pela Dunod); é também a época em que LAGACHE escreve
L’Unité de la psychologie etc.
O espaço microcultural no qual uma parte de nós se forma é, então,
marcado por esses dois “faróis” (como diz BRETON): MARX e FREUD;
o movimento trotskista, onde milito durante esse período, é ele pró-
prio dividido entre tendências “defensistas da URSS” – reformistas com

173
Psicossociologia – Análise social e intervenção

relação ao stalinismo – e “derrotistas” – revolucionárias. Entre essas


últimas, o grupo “Socialismo ou Barbárie”, dirigido por C. CASTO-
RIADIS4 e Cl. LEFORT, separa-se da IVa Internacional, em 1949, em fun-
ção do problema da burocracia operária. Igualmente um outro, no qual
se encontra B. Perret; mas o fato de que surrealistas tenham se refugiado
nos Estados Unidos, durante a ocupação, enfraqueceu a influência do
grupo dirigido por BRETON. O debate ideológico que domina em gran-
de extensão a França é muito marcado pela influência do PCF e pela
defesa incondicional da URSS, o que dificulta que esses grupos e os liga-
dos mais estreitamente ao anarquismo tenham audiência; mas parece-me
certo que uma parte do projeto psicossociológico foi influenciada, desde
sua origem, por essas correntes e idéias fourieristas que as precedem.
Uma missão americana de pesquisa coordenada por PARSONS
dedicou-se a estudar o fenômeno do nazismo na Alemanha imedia-
tamente após-guerra. Antes de sua volta aos Estados Unidos, a
C.E.G.O.S.5 retém, em 1947-1948, um dos colaboradores dessa equi-
pe, R. WILLIAMS, sociólogo industrial que conduziu duas interven-
ções junto a empresas francesas.
As intervenções de WILLIAMS inovam em matéria de métodos de
pesquisa (por exemplo, utilizando um tipo de entrevista inspirada em
C. ROGERS e a postura não-diretiva) ou formas de conceituação (recor-
rendo à linguagem sistêmica), mas elas permanecem muito próximas,
na relação que elas estabelecem com o cliente, das práticas de consulta
em organização: o essencial da prestação de serviço se refere a um traba-
lho de estudo com função de diagnóstico (quais são os pontos fortes e os
pontos fracos da firma enquanto organização social?; como esses po-
dem ser explicados?) e prognóstico (o que poderia acontecer a médio e
longo prazo se não forem tomadas novas medidas?); as consultas nas
quais o estudo desemboca são apresentadas de maneira esquemática
em relatório escrito; servem, com o restante do relatório, de apoio às
reuniões-discussões propostas pelo consultor à Direção, esse procuran-
do encorajar aquela a encontrar modalidades operatórias que traduziri-
am as orientações de solução preconizadas. Mas o tempo gasto nessas
reuniões representa apenas uma pequena parte do tempo total do traba-
lho e o sociólogo não tenta obter a divulgação de seu relatório a outros
leitores além dos que a própria direção espontaneamente propõe. Entre-
tanto, a idéia de que as ações de pesquisas de campo têm por si mesmas
um efeito positivo sobre o estado psicossocial, sobre a “moral” da em-
presa, e que esse efeito será reforçado se as decisões tomadas considera-
rem suficientemente os elementos expressos pelo pessoal entrevistado,
é freqüentemente colocada pelo sociólogo consultor.

174
Notas sobre a origem e a evolução de uma prática de intervenção psicossociológica

Paralelamente a essas intervenções conduzidas em empresas de ta-


manho médio (200 ou 300 pessoas), as que são conduzidas por equipes
francesas, em empresas maiores, são menos inovadoras no plano das
técnicas de entrevista e de elaboração de resultados; elas tendem mesmo
a se restringir a uma “consulta de pessoal” do tipo levantamento de opi-
niões sobre um certo número de temas que parecem problemáticos e im-
portantes; porém, elas colocam, de início, uma exigência nova: os repre-
sentantes de pessoal no Comitê de fábrica (ou uma comissão ad hoc de
delegados sindicais) devem ser ouvidos na escolha de métodos de estu-
do, como por exemplo na elaboração do questionário de pesquisa, e eles
devem ter acesso aos resultados, da mesma forma que a direção. As hesi-
tações ou conflitos que são expressos nessa ocasião fazem com que as
reuniões preparatórias do estudo propriamente dito ou que acompanham
as diferentes etapas (especialmente as de controle do respeito aos princí-
pios negociados inicialmente) representem uma parte do orçamento-tem-
po e ainda um momento importante do processo de consulta. Ao contrá-
rio, as reuniões que se seguem à apresentação dos resultados não são
numerosas e os agentes do estudo não estão mais presentes; a capacidade
da Direção de escutar as críticas expressas aparece como uma das variá-
veis importantes nessa fase.

Os anos 50
Esses primeiros casos (conhecemos pessoalmente oito entre 1946 e
1951 ou 1952) aparecem, em última análise, sobretudo como uma aplica-
ção de uma técnica de levantamento de dados mais ou menos estrutura-
da, junto a pessoal assalariado de uma empresa. À medida que se de-
senvolvem certas formas de trabalho com perspectiva de formação –
desde os “círculos de aperfeiçoamento” até os primeiros seminários de
dirigentes, passando pelas reformulações européias do T.W.I. ou dos
métodos de educação popular do tipo “treinamento mental” –, a idéia
de articular a conduta das operações de pesquisa a um trabalho de con-
fronto e de reflexão em grupo, apoiando-se nos resultados, parece cada
vez mais interessante.
Da mesma forma, uma nova etapa é vencida quando as técnicas de
pesquisa psicossocial, aplicadas ao estudo de opiniões ou de escalas de
atitude, se abrem a uma abordagem mais clínica, facilitada pelo desen-
volvimento de registros em fitas magnéticas, que permitem uma transcri-
ção exaustiva de entrevistas aprofundadas – primeiro individuais, de-
pois eventualmente coletivas –, e pela passagem da simples codificação
de respostas a questões abertas a uma análise de conteúdo bem mais
apurada dos discursos registrados.

175
Psicossociologia – Análise social e intervenção

As mudanças na concepção de intervenção, induzidas pela aquisi-


ção de novos saberes práticos, dão mais ênfase ao trabalho de confronto
que acompanha o feedback dos resultados do que à expressão de opiniões,
à análise estatística dessas e à elaboração do diagnóstico dos problemas de
funcionamento psicossocial, feita pelos encarregados da pesquisa. Por outro
lado, técnicas de entrevista e animação de reuniões-discussões, inspiradas
pelas práticas de aconselhamento, levam a não se considerar apenas o
conteúdo manifesto das opiniões, queixas e reivindicações relativas a
dados fatuais (condições de trabalho, características da pirâmide hierár-
quica e da estrutura de qualificações, modos de remuneração, pirâmide
de idade, grupos de mais velhos, absenteísmo, turn-over, higiene, segu-
rança etc.), mas levam também ao interesse pelo conteúdo latente, pelos
sentimentos coletivos, pela maneira como certos acontecimentos da em-
presa foram vividos por diferentes categorias do pessoal, cujos conflitos,
algumas vezes antigos, ainda marcam representações e atitudes para com
a direção, as relações intercategorias e as microculturas da organização.
Enfim, e essa não sendo a conseqüência menos importante, a pas-
sagem de instrumentos de pesquisa com perspectiva métrica – corres-
pondendo ao método de desempenhos psicotécnicos –, relacionados a
uma metodologia experimentalista ou diferencialista, para uma orien-
tação mais clínica, provocou a transformação da representação dos pa-
péis do psicossociólogo.
De perito ou agente ligado aos promotores do estudo – engenheiro-
consultor –, ou aos que decidem – Direção Geral, Direção de Pessoal –, o
psicossociólogo procura se tornar consultor da organização enquanto
uma unidade; retomando as palavras usuais do consultor organizacio-
nal, que fala sobre seu campo e suas intervenções, e diferenciando-se por
meio do adjetivo psicossociológico, ele estabelece uma ruptura com o papel
do perito e procura destacar sua especificidade. Ele faz da relação de
consulta um problema em si, um objeto de trabalho, e tenta inventar, no
interior desse quadro de atitudes, os papéis que permitiriam assegurar
uma função de ajuda à maneira de um catalizador.
Em outros termos, ele se pergunta se os bloqueios, as disfunções, as
crises, as dificuldades que estão na origem da demanda que lhe é endere-
çada são devidos a uma recusa mais ou menos consciente (em particular
da Direção ou dos quadros elevados) em ver quais são os problemas, sua
natureza real, em pesquisar verdadeiramente como se poderia resolvê-
los, de pagar o preço por sua solução. Ajudando todas as pessoas, que
habitualmente não têm a possibilidade de falar, a se expressarem,
favorecendo de maneira suficientemente progressiva a circulação das

176
Notas sobre a origem e a evolução de uma prática de intervenção psicossociológica

informações e os confrontos, isto é, criando novas estruturas de comu-


nicação e novas formas de trabalhar os problemas, à medida que esses
são identificados, o psicossociólogo espera aumentar a capacidade do
conjunto de reconhecer a origem de certas dificuldades, de perceber di-
reções de solução, de ver com melhor conhecimento de causa quanto se
está decidido a investir e a pagar o preço por um funcionamento melhor,
sem nunca ocupar o lugar dos atores implicados, sem dar conselho.
Nessa perspectiva, o psicossociólogo tende a separar seu papel da-
quele do engenheiro, do especialista em uma técnica de produção, gestão
ou organização. Concebendo-se a si próprio como um agente que facilita
a regulação da firma através de uma ação sobre as comunicações, ele
recoloca os aspectos técnicos como dependentes da capacidade de todos
e não mais de um subconjunto interno ou externo; de fato, ele próprio
contribui, sem dúvida, mesmo desejando o contrário, para separar a esfe-
ra das atividades da organização da esfera das comunicações sociais e
das relações humanas.
Querendo colocar sua relação de consultor em nível global e não
apenas no plano de uma instância de direção, isto é, considerando a
empresa sobretudo como um sistema social unitário, ele exerce uma pres-
são que, se aceita, dá efetivamente a palavra a categorias que não a exer-
cem na vida cotidiana; ele dá força para que sejam escutadas e considera-
das as dimensões sócio-emocionais e os interesses não reconhecidos; ele
crê que, permitindo a expressão do reprimido, ajuda as categorias vítimas
da repressão; de fato, mais tarde, ele descobrirá ainda que essa expressão
e o trabalho que a acompanha apenas excepcionalmente conduzem a
mudanças de estrutura e que, mesmo nesse caso, as mais altas instâncias
conservam seu poder intacto e que a estrutura da organização, além dos
arranjos menores concedidos, acaba totalmente reforçada.
Porém, nos anos cinqüenta e no início dos anos sessenta, estávamos
sobretudo preocupados em fazer o público reticente reconhecer a impor-
tância dos fenômenos afetivos coletivos, em especial dos inconscientes, a
necessidade de uma evolução de concepções e de formas de autoridade,
os sistemas de comunicação na empresa, os processos de preparação e
tomada de decisões; a idéia de que a intervenção, inscrevendo-se na
relação de consulta – na qual os psicossociólogos intervêm como agen-
tes de facilitação e catalizadores de fenômenos de tomada de consciên-
cia –, constituía uma situação de descoberta e de aprendizagem, não nos
impedia de nos sentir comprometidos com uma espécie de guerra de cul-
turas onde se confrontavam diferentes modelos de organização, que re-
cortavam mais ou menos amplamente os conflitos sociais globais.

177
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Além disso, as formas pelas quais as correntes políticas que falam


em nome do Marxismo denunciam toda ação psicossociológica como anti-
operária são tão radicais e violentas que não facilitam um verdadeiro
trabalho de crítica interna. Tenho a impressão de que, nessa época, acei-
tamos considerar que o significado político de nosso trabalho era refor-
mista, já que tendia a atrasar o momento de manifestação de um conflito
aberto, mais do que acelerar tal processo; mas pensamos que os proble-
mas sobre os quais trabalhamos se colocam também nos regimes não
capitalistas; que a passagem ao socialismo – para os que são antigos
militantes decepcionados com a estrutura e o funcionamento das organi-
zações operárias, como para os que mantêm um engajamento político ou
sindical – não implica apenas na abolição da propriedade privada e na
planificação centralizada, mas também em uma transformação cultural
profunda; que essa transformação das relações sociais em direção à ver-
dadeira democracia e à liberdade passa também por uma evolução das
pessoas, das formas de autoridade, das estruturas organizacionais e que
não é cedo demais para uma reflexão e experiências sobre esse tema,
mesmo se as organizações do movimento operário se recusam a tomar a
iniciativa no que lhes diz respeito.
Da mesma forma, os limites das ações de intervenção, que algumas
vezes demoram a ser identificados e que em outros casos surgem subita-
mente, são mais relacionados aos dados locais – e/ou à natureza do
regime capitalista – do que ao próprio princípio da tentativa.

Os anos sessenta
No momento de criação da A.R.I.P. (1959), sua equipe agrupava es-
sencialmente dois grupos de práticos, ambos preocupados em criar uma
estrutura de trabalho que permitisse realizar diversos projetos sem as
limitações conhecidas anteriormente. Uma dessas equipes saía do orga-
nismo de consulta onde ela trabalhava em ligação estreita com engenhei-
ros organizacionais. A outra continuava a realizar, em uma empresa na-
cional, atividades de formação psicossocial no nível de dirigentes e
intervenções em unidades regionais.
Mas a organização e a animação de estágios do tipo Grupos de Evo-
lução, utilizando os métodos derivados do Grupo T de Bethel, do psico-
drama analítico etc., não poderiam ter lugar no interior de uma empresa
nem ser tolerados em um organismo cuja vocação continuava a ser a
organização científica do trabalho.
O caráter clínico do novo grupo, então, era bem mais claramente mar-
cado pelas atividades que ele iria desenvolver. No momento da criação, a

178
Notas sobre a origem e a evolução de uma prática de intervenção psicossociológica

proporção de membros que tinham buscado uma cura analítica pessoal


ou tinham-na já terminado, era de um terço; dez anos depois, a proporção
era aproximadamente de nove décimos; a metade já era, ou iria finalmen-
te se tornar, terapeutas ou analistas.
A orientação não diretiva, de inspiração rogeriana, dominou os pri-
meiros anos de funcionamento, desde 1959 (data do primeiro seminário
de longa duração), malgrado a influência já sensível da Psicanálise –
incluindo as abordagens britânicas introduzidas desde o primeiro ano
pela presença de L. HERBERT, antigo membro do Tavistock e primeiro tra-
dutor de BION na França –, até 1966 (marcado pela vinda de C. ROGERS à
França e a descoberta (ou a confirmação) da distância nos separando
desse autor, tanto no plano teórico e ideológico quanto prático).6
No começo dos anos sessenta, uma longa intervenção em uma empre-
sa implanta, se podemos dizê-lo, uma estrutura de análise de grupo no seio
de um subconjunto da sociedade; o registro de sessões é feito num progra-
ma de pesquisas que permanece dividido entre as perspectivas experimen-
talista e clínica: a despeito de numerosas reuniões de trabalho que balizam
todo o processo, reunindo às vezes toda a equipe, outras vezes apenas três
psicossociólogos, atuando diretamente no campo, esse esforço produzirá
apenas resultados parciais (cf. sobretudo as publicações de Max PAGES e
de J.-C. ROUCHY).7 Paralelamente, trabalhos mais próximos de uma orien-
tação sócio-pedagógica são conduzidos por outros membros da equipe: que-
remos dizer que, nesses, a referência a uma pedagogia ativa e ao lugar ocu-
pado pela animação dos grupos, feita dentro de uma perspectiva de estudo
de problemas, ou mesmo com um ponto de vista adaptativo mais clara-
mente afirmado, reduz-se ao trabalho de perlaboração de fenômenos afeti-
vos coletivos e, neles, tenta-se trabalhar na articulação do psicossociológico,
do sócio-técnico e mesmo do econômico.
A organização e a condução de seminários representa, durante todo
esse período, e ainda agora, a metade das atividades da A.R.I.P. Ao mes-
mo tempo em que os estágios se diversificam em direção a questões de
pedagogia, de formação de adultos, de metodologia psicossocial, de socio-
logia das organizações, algumas vezes mesmo de introdução à econo-
mia, os grupos de evolução tendem a aumentar sua duração e a priorizar,
em lugar de fórmulas intensivas concentradas em cinco ou dez dias, a
continuidade no tempo; alguns membros ficam completamente ocupados
com análises (grupos semanais de psicodrama, grupos abertos de análise
etc.). Os seminários derivados do Grupo T e cada vez mais marcados pela
abordagem psicanalítica tornam-se objeto de discussões sérias e de diver-
sas publicações. Essa evolução está ligada também à da clientela desses

179
Psicossociologia – Análise social e intervenção

estágios incluindo cada vez mais uma proporção maior de professores,


de trabalhadores sociais, de padres e religiosos, de atendentes, de psiqui-
atras e de psicoterapeutas.
Ao mesmo tempo, embora o número de intervenções de longa du-
ração permaneça sempre reduzido, a demanda se estende a associações,
movimentos educativos, institutos religiosos e hospitais psiquiátricos.8
Isso quer dizer que as demandas provenientes de meios industriais dimi-
nuem, mesmo quando a freqüência a estágios pelos diretores permanece
relativamente estável. Entretanto, os anos 60 conduzem uma parte da
equipe a intervir no estrangeiro, junto a organizações com função econô-
mica; é uma intervenção no México, junto a um Centro de Produtividade,
em 1961, que inova a metodologia que será a da intervenção em Geigy-
França; a integração, na equipe, de estrangeiros francofones (Maurice
JEANNET na Suíça, Paul NINANE na Bélgica) está ligada a atividades
em empresas desses países; durante vários anos, diversos membros da
A.R.I.P. intervirão na Itália (sobretudo na Fundação Agnelli) e ajudarão
na constituição de uma associação de psicossociólogos italianos com os
quais a colaboração prossegue.
É sobretudo na França, então, que o trabalho em meio industrial
acusa uma redução contínua. É certo que umas tantas razões podem
explicar o fenômeno: as opções tomadas pela equipe (sua orientação
mais clínica, sua atitude crítica com relação à escola lewiniana e pós-
lewiniana: mudança planejada, desenvolvimento organizacional); sua
ambivalência ou seu ceticismo com relação a demandas susceptíveis
de provir desses meios (que se traduzirá depois de 1968 inclusive no
domínio da formação permanente); sua recusa em fazer pesquisas de
mercado; a participação de um número crescente de membros da equi-
pe no ensino universitário ou na pesquisa, o que reduz o potencial de
intervenção do grupo etc. Mas creio que é necessário evocar tam-
bém, para explicá-lo, o despontar do clima de consenso nacional
que marcou o período de reconstrução após-guerra e, de maneira
ainda mais geral, as condições ideológicas próprias da França; a
guerra da Algéria, por exemplo, o fato de que certas bases ideológi-
cas discerníveis na constituição da própria disciplina psicossocial
se articulavam às do movimento estudantil que iria explodir em 1968
(assim, a tendência que iria colocar a maioria no seio da U.N.E.F.
por volta de 1965, em Paris, denomina-se “psicossociológica”) ou
às de certos meios intelectuais (cf. os últimos anos da revista Socia-
lisme ou Barbarie, os números especiais de Arguments sobre a Auto-
gestão, Psicossociologia e Política etc.).

180
Notas sobre a origem e a evolução de uma prática de intervenção psicossociológica

1968 e depois
Como tantos outros, vivemos os acontecimentos de maio como uma
“intervenção”, simultaneamente política e cultural, de uma audácia espan-
tosa, que dava uma direção totalmente imprevista, desproporcional a tudo o
que poderíamos ter esperado desde a Liberação, a todos os tipos de temas
presentes de maneira mais ou menos explícita no projeto psicossociológico e,
como muitos outros, experimentamos a desilusão de constatar que o que nos
parecia ser bem mais que uma revolta cultural, a despeito de sua repercussão
no conjunto do país, não desembocou no político, que a “Comuna Estudan-
til” (MORIN) ficou sendo uma “revolução antecipada” (CASTORIADIS),
um “movimento revolucionário sem revolução” (TOURAINE).
Embora alguns dentre nós víssemos, antes de 68, nas ações de mo-
vimentos como a F.O.E.V.E.N., com os quais a A.R.I.P. trabalhava desde
1964, uma direção susceptível de provocar, dentro de certo prazo, uma
evolução global do sistema educativo, o período que se seguiu a maio
mostra, ao contrário, que o reconhecimento desses esforços pelos autores
da nova lei de orientação significava antes uma oposição à mudança,
mesmo que modesta, por parte da instituição; enquanto o projeto previa a
multiplicação de intervenções em todos os estabelecimentos onde uma pro-
porção suficientemente grande de professores já estava comprometida com
um trabalho de evolução a nível de sua sala de aula, a tendência foi retomar
atividades de formação visando a uma mudança pessoal.
Limites e impedimentos percebidos no confronto com a realidade das
instituições levam não apenas a renunciar a produzir uma mudança global,
através do desenvolvimento de ações locais, mas também a abandonar a
esperança de analisar a instituição, por meio de atividades do tipo interven-
ção psicossociológica. As instituições não se analisam, como o fazem os
indivíduos ou os grupos, ao considerarem suas relações e vida psicológica.
Antes de prosseguir no desenvolvimento desse último ponto,9 evo-
quemos ainda alguns aspectos da evolução da equipe desde 1970:
- as atividades de caráter clínico se tornam cada vez mais especiali-
zadas, centrando-se na evolução das pessoas, consideradas em seus
papéis sociais e modos de inserção;10
- integração de novos membros trabalhando em disciplinas diferen-
tes ou praticando abordagens diferentes;
- elaboração de projetos de pesquisa-ação; por exemplo, no domí-
nio do Aperfeiçoamento das Condições de Trabalho; por pesqui-
sa-ação entende-se aqui projetos integrando uma dupla perspecti-
va (heurística e de mudança) na realização de uma intervenção

181
Psicossociologia – Análise social e intervenção

cuja iniciativa é tomada pelo psicossociólogo e não pelo agente de


uma demanda de consulta.
Esse último aspecto leva à questão mais geral, relativa ao modo de
implicação social do psicossociólogo, e permite resumir um aspecto da
evolução que me parece importante:
- nos anos que se seguem à Liberação e, sem dúvida, até o começo dos
anos 60, o psicossociólogo considera a si mesmo como um ator social
participando da vida econômica; ele participa desse clima de consen-
so que marca para nós o período após-guerra, mesmo quando se esfor-
ça em separar seu papel de cidadão e militante de seu papel profissio-
nal, ou quando se sente mais um agente de estudo e pesquisador, ou
melhor, “agente de mudança”, como dizem alguns dentre nós reto-
mando o termo utilizado por LEWIN e seus alunos, ou “indutor de
mudança”, quando as referências à pedagogia ativa, a ROGERS ou
mesmo a certas posições políticas saídas do trotskismo (cf. o grupo
Socialismo ou Barbárie) começam a ganhá-lo.
- A partir dos anos 60, seu modo de intervenção refere-se cada vez mais
ao modelo da relação de consulta saído da psicologia clínica e sobretu-
do da prática psicanalítica; progressivamente, tende a se ver como um
analista com funções de elucidação; sob a influência do pensamento
psicanalítico, em especial lacaniano, todo ponto de visto adaptador –
ou contestatório – parece-lhe antinômico a uma verdadeira atividade
elucidadora, devendo ser afastado ou suspenso, da mesma forma que
o desejo de curar o paciente no tratamento individual (a cura, benefício
a mais).11 Estudando (por três vezes: 1963, 1967, 1972) o trabalho de
JAQUES na Glacier Metal, parece-me que, durante os quinze primei-
ros anos (de 1948 a 1963), a “socioanálise” ilustra, no campo social,
tal opção, afastando-se dela em seguida.12
- Porém, no último período, parece que se pode observar uma volta a
uma representação mais próxima da do início. O modelo do analista
pareceu sempre, no plano das idéias, bem problemático, mesmo quan-
do, na prática, ele arriscava ocupar o lugar de ideal do eu.
Como o mostra André LÉVY, noções como transferência e contra-
transferência não podem ser transpostas da Psicanálise para a análise so-
cial; se há na obra freudiana um paradigma relevante para a sociologia
clínica, ele deve ser buscado em outro nível, exigindo um esforço de
abstração não só da situação específica na qual o prático das ciências
sociais se encontra, mas também de seu objeto de trabalho, relativo pri-
meiramente à natureza das relações sociais.

182
Notas sobre a origem e a evolução de uma prática de intervenção psicossociológica

O analista pode esperar, por exemplo, se tornar o objeto privilegia-


do dos fenômenos transferenciais de grupos e coletividades, porque ocu-
pa, no campo, uma posição de autoridade ou de poder totalmente parti-
cular – por exemplo, a posição de médico chefe em um estabelecimento
psiquiátrico – e é evidente que tal lugar induz uma relação social que se
encontra primeiro na realidade antes de poder ser situada no espaço
imaginário que reproduziria uma relação vivida em outra parte.
Se ele se encontra em uma posição menos central, por exemplo, como
pesquisador ou consultor social, os fenômenos transferenciais não são
mais da alçada da análise, comparáveis à função que têm na situação
dual – ou grupal – de uma cura.
Simetricamente, considerar sua implicação não se reduz a procu-
rar saber quanto a situação lhe diz respeito, tendo em vista sua própria
história; nem a se considerar parte da ação, pertencente ao campo es-
tudado, presente nele; ainda menos a revelar coisas a respeito de si
próprio, habitualmente caladas e cuja expressão pode ser psicologica-
mente difícil, cedendo a pressões de que se é objeto, ou satisfazendo o
próprio exibicionismo, sob pretexto de dar a reconhecer àqueles junto
aos quais intervém o direito de saber quem lhes fala e de que matéria
são feitos os agentes de intervenção.
A consideração da implicação parece-me aqui se situar primeira-
mente na análise do sistema de lugares, na referência ao próprio lugar
ocupado, ou que se tenta ocupar, e, sobretudo, ao que lhe é atribuído e que
ele recusa ou aceita, com todos os riscos que isso comporta. O trabalho de
Jeanne FAVRET-SAADA em Bocage13 parece-me representar, a esse res-
peito, um esforço exemplar para tentar extrair da Psicanálise um para-
digma epistemológico relevante para um trabalho sociológico. A expres-
são pesquisa-ação, que ainda me parece pertinente para caracterizar tal
abordagem, é certamente oposta à acepção lewiniana.
Essa consideração sobre a implicação do prático (ou sobre lugar da-
quele que solicita algo no campo onde ele próprio se encontra e sobre as
relações que ele mantém com os outros agentes do sistema; lugar onde se
está, que faz com que se seja chamado e que se responda a tal apelo etc.)
conduz-me a propor nesse parágrafo uma última observação.
Toda intervenção psicossociológica, toda pesquisa-ação – quer seja
resposta a uma demanda ou resulte de uma iniciativa do prático – tem
sempre como origem uma outra intervenção de qualquer natureza – psi-
cossocial ou não; nunca é independente, é sempre ligada a uma ação que
a precede ou que a engloba, ação que é também uma intervenção que não
pôde atingir suficientemente seus objetivos e cuja existência – e fracasso –

183
Psicossociologia – Análise social e intervenção

tenta-se mais ou menos claramente esconder. Uma boa parte do proble-


ma do significado que vai tomar uma intervenção psicossocial está na
relação que ela manterá com aquela que a precedeu: é ela intervenção
para (a serviço de), sobre, contra, no sistema de intervenção que a gerou?
Caso se despreze essa origem, não se pode, evidentemente, responder a
essa questão; mas essa observação sugere uma pista de trabalho a seguir
desde o início. Continuando, ou mesmo depois de terminar, nunca é
fácil elucidar completamente a natureza exata da relação; acontece até
que os agentes de intervenção – e os grupos junto aos quais eles inter-
vêm – perdem facilmente de vista essa relação, sobretudo quando estão
absorvidos em seu novo trabalho, ou quando o utilizam para esconder
os acontecimentos que provocaram o processo.

Notas
1
Traduzindo de: DUBOST, Jean e LÉVY, André. “L’Analyse social”. In: ARDOINO et
al. L’intervention institutionnelle. Paris: Payot, 1980. p. 50-68, por Marília Novais da
Mata Machado.
2
Association pour la Recherche et l’Intervention Psycho-sociologiques.
3
A C.E.G.O.S., que era animada por Jean MILHAUD e Noël POUDEROUX; esse orga-
nismo tinha então relações estreitas com o I.F.O.P. presidido por Jean STOETZEL e,
de forma mais livre, com universitários como Georges FRIEDMANN.
4
Cf. a retomada recente desses textos na coleção 10/18 (Nos 751, 806, 825, 857, 1303,
1304, 1331, 1332 etc.) e dos de Cl. LEFORT em Eléments d’une critique de la bureaucra-
tie. Droz, 1971.
5
Compagnie Générale d’Organisation.
6
O distanciamento progressivo com relação à corrente rogeriana provocou, quatro
anos depois, a partida de Max PAGES, secretário geral da associação, desde sua
criação, e de A. de PERETTI, seu vice-presidente.
7
Max PAGÈS, “L’intervention psychosociologique dans l’entreprise”. In: Fondation Royau-
mont. Le psychosociologue dans la cité. Épi, 1967.
Jean-Claude ROUCHY. “Une intervention psychosociologique”. Connexions, n. 3, 1972.
8
Cf. sobre esse último ponto; LÉVY, André. “Une intervention psychosociologique dans
un service d’hôpital psychiatrique”. Sociologie du Travail, 1963, n. 2; Les paradoxes de la
liberté dans un hôpital psychiatrique. Paris: Epi, 1969; mais recentemente, “Dire la loi...”,
Connexions, n. 17, 1977.
9
Cf. n. 29 de Connexions, jan.-março, 1980, Psychosociologies, no qual são avaliadas as
transformações das práticas psicossociológicas nos últimos 10 ou 20 anos (N.T.).
10
Cf. por exemplo o artigo de J.-C. ROUCHY em Connexions, n. 29 (Vers une psycho-
sociologie psychanalytique).
11
Cf. J. LACAN. Ecrits (por exemplo, o capítulo “Variantes de la cure-type”, de 1955).
12
Cf. meu texto de introdução em Elliott JAQUES, Intervention et changement dans
l’entreprise. Paris: Dunod, 1972.
13
Les Mots, la Mort, les Sorts. Gallimard, 1978.

184
INTERVENÇÃOCOMOPROCESSO1
André Lévy

Se as diferenças entre as diversas correntes da Psicossociologia


se afirmaram e se aperfeiçoaram nos últimos anos, como Jean-Claude
ROUCHY2 propõe, permitindo esclarecimentos progressivos, esses
ainda são muito relativos; o agravamento de diferenças doutrinárias
ou ideológicas, devido a fatores circunstanciais e à necessidade de se
criar uma identidade visível ou uma demarcação, mesmo que artifici-
al, freqüentemente ocupa o lugar de uma elucidação das diferenças
teóricas ou dos postulados epistemológicos.
Porém, a experiência adquirida tornou os psicossociólogos mais pru-
dentes. Tomaram consciência da enorme distância que existe entre a com-
plexidade das situações e suas metodologias e teorizações.
Esclarecer sua posição em relação às situações, à maneira de se defi-
nir diante dos conflitos de todo tipo, bem ou mal resolvidos, mostrar seu
itinerário3 sinuoso e, entretanto, sobredeterminado por uma profunda
lógica, pela fidelidade a alguns princípios e valores essenciais – em resu-
mo, “dar conta de sua prática” – é uma tarefa cada vez mais difícil de ser
feita seriamente.
Parafraseando HEGEL, está na moda hoje celebrar a importância do
“trabalho do negativo”. Tal afirmação, porém, quando é apenas verbal, tem
qualquer coisa de suspeita, sobretudo porque permite aos que a enunciam
afirmar sua superioridade sobre os que vivem diretamente essa negativida-
de, através das contradições de suas condutas profissionais.
No que me diz respeito, há muito tempo, renunciei às ilusões da
mudança social planejada ou ao otimismo rogeriano com relação aos
homens e aos grupos, à crença em sua positividade fundamental e, além
disso, descobri como essa mesma crença pode ser suspeita, uma vez sus-
tentada pelas pulsões de morte, pelo desprezo e pelo ódio que ela tenta
conjurar. Porém, tudo isso não me leva a entregar-me ao prazer da renún-
cia doutrinária e da autocondenação.

185
Psicossociologia – Análise social e intervenção

O essencial de minha atividade de interventor está centrado em um


trabalho psicológico, feito paulatinamente com grupos relativamente pe-
quenos, nos quais os conflitos e as contradições são trabalhados concre-
tamente por cada um, em relações diretas, face a face. Embora com uma
posição totalmente diversa da de ROGERS, penso que só é possível rea-
lizar um trabalho que valha a pena com grupos e organizações quando
se tem um interesse afetivo verdadeiro pelas pessoas que fazem parte
deles4 ; penso que uma atitude voluntária e falsamente objetiva, desa-
paixonada, científica, pode ser apenas uma máscara para o desprezo
profundo com relação ao outro e representar apenas ações tecnocráticas
a serviço de um desejo de poder mais ou menos oculto.
Toda a minha experiência, longe de chegar a um ceticismo, ou mes-
mo a um nihilismo, leva-me, ao contrário, a reconhecer, cada vez mais
claramente, o significado da análise (no sentido freudiano) em grupos e
sociedades humanas.
As práticas de intervenção, diferentemente das ações de formação
e de pesquisa, dizem respeito, diretamente, aos grupos de pessoas em
seu devir coletivo. As tomadas de consciência, as aquisições de conhe-
cimento ou de compreensão resultantes do trabalho analítico que se
desenvolve nesse contexto têm sentido apenas em função de seus efei-
tos concretos na história do grupo.
Como evocado por Jean DUBOST nas páginas precedentes,5 as pri-
meiras intervenções psicossociológicas conhecidas, na França,6 por esse
rótulo, visavam a compensar os efeitos objetivantes e idealizantes da
pesquisa, instituindo, junto aos grupos envolvidos, um processo de fee-
dback dos resultados e acarretando um trabalho de interpretação e resolu-
ção coletivas dos problemas evidenciados.
Durante muito tempo e, com freqüência, ainda hoje, a intervenção
psicossociológica foi associada a essa metodologia.
Mas tal metodologia ainda depende em excesso do modelo epistemo-
lógico da pesquisa científica, o que lhe dificulta acomodar-se a uma pers-
pectiva com caráter analítico e chegar a resultados diferentes da ativida-
de decisória; ela é, sem dúvida, mais lúcida ou, no mínimo,
diferentemente lúcida, mas ainda assim tem acesso ao real apenas por
intermédio de estruturas hierárquicas de poder.
Ela repousa, fundamentalmente, no postulado de que o conheci-
mento representa um valor ou um bem e que sua conquista é um ele-
mento determinante de uma estratégia de mudança, cuja meta é a trans-
parência cada vez maior da organização; reciprocamente, ela desconhece

186
Intervenção como processo

não apenas que o acesso ao saber não é um simples problema técnico,


mas, sobretudo, que a técnica só tem pertinência e eficácia quando é
susceptível de ser mobilizada em situações e relações concretas; caso
contrário, é apenas um simples instrumento ideológico. De toda forma é
surpreendente que, 35 ou 40 anos depois de LEWIN, ainda se tenha que
demonstrar essas ilusões.7
A última intervenção da qual participei, que adotava aproximada-
mente esse modelo, data de 1972.8 Fomos obrigados a efetuar um levanta-
mento de dados como primeira etapa de nossa intervenção, pois a direção
da empresa fazia disso uma condição. Mas tomamos uma série de precau-
ções para garantir que tal pesquisa não bloqueasse o processo de análise
coletiva ao qual pretendíamos chegar, cuidando, de um lado, que nosso
relatório (que seria comunicado a todos) não pudesse ser, de forma alguma,
considerado como um diagnóstico e, de outro lado, criando condições para
que um início de confronto entre os membros da organização fosse feito
durante nossa pesquisa e por ocasião de seu relato.
Porém, tais precauções foram vãs: a metodologia de levantamento
pressupõe, com efeito, implicitamente, que se considere cada entrevista
como um objeto isolado; ela implica na reificação de palavras em “da-
dos” de informação. O fato de escutar cada pessoa isoladamente, uma
única vez, supõe que seu pensamento possa ser “apreendido” e resumi-
do a um objeto – o objeto-entrevista. A reunião desses diferentes objetos
na análise, isto é, a colocação de todas as entrevistas em um mesmo con-
junto, supõe, por sua vez, que, em determinado momento, seja possível
uma leitura vertical da expressão coletiva.
Tal metodologia induz, então, à expectativa de uma objetivação e de
uma organização dos problemas, permitindo seu tratamento e sua capta-
ção ulterior, com vistas a decisões e ações.
Para dar conta das clivagens existentes entre as diferentes manei-
ras de se representar a empresa, fomos conduzidos a distinguir diver-
sos discursos concorrentes, cada um se referindo ao passado da em-
presa para explicar, de uma forma histórica, quase narrativa, os
problemas atuais da empresa.
Cada uma dessas representações era formulada de maneira muito
coerente, apropriada para demonstrar as bases sólidas das soluções
preconizadas: adaptação dos antigos dirigentes a novos mercados e às
novas tecnologias; melhor coordenação administrativa, esclarecimento
das funções; reequilibro do poder em favor da produção e mudança de
atitude do proprietário, visto como ligado demais ao responsável co-
mercial, seu amigo, de quem dependia bastante.

187
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Entretanto, a coexistência desses diferentes discursos, cada um es-


truturado segundo sua própria racionalidade (econômica ou tecnológi-
ca, ideológico-afetiva, organizacional), traduzia também, e sobretudo, a
esperança de se chegar a reuni-los em um único discurso e de se resolver
assim o que era vivido por todos como uma crise de sentido, uma crise
ideológica – mais aguda ainda por se desdobrar em uma crise de poder;
em outras palavras, a ausência de uma referência única traduzia-se no
sentimento de um poder diluído e inapreensível.
A pesquisa havia fortificado essa esperança, particularmente por
meio de nosso relatório oral, que pressupunha a possibilidade (ao menos
para nós) de escutar e compreender todos os discursos, um de cada vez, e
de passar assim, sem dificuldade, de um a outro, expondo cada um com a
mesma objetividade.
O que era então uma realidade contraditória e clivada foi transfor-
mado em pontos de vista divergentes, no limite, complementares, porém
situados no mesmo plano, repousando sobre pressupostos certamente
divergentes, mas potencialmente articuláveis entre si.
Tais implicações se tornaram muito claras durante a leitura e a
discussão de nosso relatório: a esperança de um discurso único dissol-
veu-se logo, à medida que cada discurso, reconstituído graças a nos-
sos cuidados, surgiu como a expressão totalitária de um lugar de inte-
resses específicos na empresa, impondo uma interpretação única da
realidade na qual uma parte do grupo se reconhecia, enquanto que os
outros tinham o sentimento de serem, então, negados (o que se tradu-
ziu em movimentos diversos durante a leitura, algumas vezes insu-
portável para uma parte do grupo).
A esperança desfeita era também a de uma comunidade no seio da
qual as contradições e as oposições se resolveriam por si mesmas.
A perda da esperança acarretou, inevitavelmente, o término definiti-
vo da intervenção e a renúncia ao trabalho de grupo previsto (malgrado
uma preparação inicial já feita para a constituição de grupos).
Uma outra análise de conteúdo dos dados de pesquisa teria sem
dúvida evitado esse desenlace. Mas teria sido preciso que assumísse-
mos pressupostos contrários à nossa posição: teríamos de nos esforçar
para articularmos o discurso comum, como se esperava de nós, e, sobre-
tudo, teríamos de apresentar cada discurso como se fosse a expressão
parcial de uma mesma realidade objetiva. Em outras palavras, teria sido
preciso fazer de conta que achávamos que era suficiente, para apreen-
der a “realidade”, excluir de cada expressão o que a tornava particular

188
Intervenção como processo

(subjetiva demais, excessiva demais) e conservar, em contrapartida,


o que poderia completar e “enriquecer” o discurso comum – e tanto
pior (ou tanto melhor) se certos discursos parecessem mais “objeti-
vos” que outros.
Tal é o contrato implícito do levantamento de dados, cujos pressu-
postos “científicos” kantianos simplesmente traduzem de outra forma
essa crença do senso comum, segundo a qual apreende-se melhor a “rea-
lidade” quando se somam diferentes visões que se pode ter dela, a partir
de diversos “pontos de vista”.
Mas essa crença implica na possibilidade de apreender diretamente,
embora imperfeitamente, o “real”, em discursos que as pessoas expressam,
pois o “real suposto” de cada discurso é concebido como uma parcela.
Essa crença conduz, assim, a um princípio de tolerância de pontos de
vista diferentes, aliada à consciência da relatividade de cada um dos prin-
cípios que, sabemos, estão na base de toda sociedade “harmoniosa”.
Mas se aceitamos, constrangidos, o levantamento de dados, não acei-
tamos seus pressupostos; desejaríamos, ao contrário, que cada discurso
fosse reconhecido como expressão real de um vivido, como uma palavra
destinada a ser perseguida e retomada, por menos que ela fosse levada a
sério e que se tentasse compreendê-la. Gostaríamos também de compreen-
der como essa palavra poderia testemunhar o lugar ocupado pelos que
falavam e o que lhe permite ser mantida, escutada ou recusada.
Essa experiência possibilitou-nos, então, perceber o quanto a prática
da pesquisa, qualquer que seja a maneira como é conduzida, associa-se
necessariamente à busca de um sentido, isto é, de uma explicação geral.
Mesmo quando as contradições são explicitadas e acentuadas, o fato de
serem recuperadas em um discurso único leva a crer na possibilidade de
ultrapassá-las ou, no mínimo, articulá-las; o levantamento inscreve-se
necessariamente no projeto de dar um sentido; é a função das representa-
ções, que não se reconhecem como um discurso, mas se apresentam como
um saber sobre – saber ou sentido cuja função principal é a de fundamentar,
legitimamente, ações ou decisões (saber para).
Longe de favorecer um processo de análise, a pesquisa contribui,
assim, para o recalque: primeiramente, transferindo para o pensamen-
to as clivagens e contradições resultantes das divisões intra-organiza-
cionais (particularmente da divisão do trabalho); em seguida, levando
a acreditar na reunião imaginária dessas representações divergentes,
reduzidas a enunciados fechados, desconectados das condutas e es-
tratégias.

189
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Então, é grande a tentação de abandonar o modelo heurístico do


levantamento e recorrer ao modelo psicanalítico, a fim de aplicá-lo aos
grupos e organizações.
A não ser que se idealize o processo de análise social, essa só pode,
com efeito, ser feita em uma experiência de comunicação, no sentido pleno
do termo, na qual o imediatismo do risco é sensível, na qual uma resposta
instantânea, sob forma falada ou atuada, pode ocorrer, colocando em jogo
pessoas em sua integridade intelectual, moral ou corpórea.
Os grupos face a face aparecem, então, como lugares privilegiados de
análise: constituem o que forma a espessura do social, a opacidade de
uma palavra que não se reduz a um conteúdo e nunca coincide perfeita-
mente com os discursos construídos, instituídos, reproduzidos em luga-
res separados do lugar e do momento de sua emissão.
Os processos sociais não se reduzem evidentemente ao que pode ser
apreendido nos grupos face a face; mas, reciprocamente, esses processos
não podem ser compreendidos nem podem evoluir, independentemente
das maneiras como se atualizam, se articulam e se transformam.
Só é possível, então, falar de análise social em situações de grupo nas
quais os sujeitos podem inserir, na enunciação, enunciados interpretati-
vos que fazem sentido para eles.

Crítica da Psicanálise aplicada aos grupos


Não me deterei aqui nesse assunto complexo. Porém, se há um resul-
tado do qual estou seguro, tendo acumulado experiência de análise de
grupo por 15 ou 20 anos, este é o seguinte: se um certo trabalho analítico
pode ser feito nos grupos, esse não é o mesmo feito no quadro da cura
individual. O fato de querer transpor as regras e as técnicas da Psicanáli-
se para a análise social, de considerar análogos seus quadros e settings
respectivos, de comparar particularmente as relações de transferência/
contratransferência entre um psicanalista e um analisando com as rela-
ções que se passam entre um ou mais interventores com um grupo ou
organização, só pode ter um resultado: o recalque da palavra, a negação
dos conflitos e das clivagens e o desenvolvimento de uma relação norma-
tiva e pedagógica falsamente denominada de analítica.
O obstáculo mais sério a uma “Psicanálise de grupo” é a impossibi-
lidade para o “analista” de se constituir como um terceiro; embora ele
ocupe incontestavelmente uma posição especial, nem que seja por estar
associado apenas temporariamente ao grupo e por buscar objetivos dife-
rentes, sua posição de exterioridade é apenas relativa.

190
Intervenção como processo

Qualquer que seja o discurso que ele mantenha a respeito de sua


independência ou suposta neutralidade, isso é apenas uma petição de
princípios, pois tal afirmativa não se refere a uma diferença irredutível –
física, material ou simbólica.
FREUD9 já havia destacado essa dificuldade, apontando que um
dos limites da análise social era a necessidade de um poder no qual o
lugar do analista pudesse se apoiar – poder cujo exercício é contraditó-
rio com todo trabalho analítico.
O analista não pode estar em uma situação de exterioridade radical
relativa ao grupo ou à organização, pois variáveis da mesma natureza
condicionam seu lugar e o dos outros membros, uma vez que, desde o
início, ele se insere no mesmo sistema de alianças, pressões, estratégias,
das quais necessariamente é parte.
Podem ocorrer aí fenômenos de deslocamento ou de projeção com
relação ao interventor, mas relações de transferência, no sentido preciso
desse termo, não podem ser estabelecidas ou desenvolvidas; essas rela-
ções implicariam particularmente, por parte do analista, o respeito à re-
gra de abstinência, do não agir, e o desenvolvimento de uma relação entre
os dois sujeitos – analista de um lado, grupo do outro.
Se isso é possível nas relações de pessoa a pessoa, corpo a corpo, o
mesmo não se passa nas relações com um grupo cujas identidade e uni-
dade são definidas arbitrariamente, com a participação do analista-inter-
ventor, no próprio ato que o institui como analista, em função de uma
“demanda”, cuja existência ele postula (ou mesmo contribui para estru-
turar). A própria expressão “transferência do grupo” ou “transferência
institucional” parece-me um absurdo ou até mesmo um embuste.
Tudo isso aparece claramente nas situações de formação (grupo de
diagnóstico, por exemplo), cuja existência depende inteiramente do ato
fundador (programa) do analista e do seu reconhecimento pelo “grupo”,
cuja existência postulada como objeto transferencial (desejante) é neces-
sária para instituí-lo como analista.
Não desenvolverei aqui o que já escrevi anteriormente10 e que me
levou a concluir que esses grupos não poderiam ser outra coisa senão
situações de aprendizagem disfarçada, “fenômenos” abstratos de “gru-
po” em geral, isolados de toda historicidade, caracterizados ainda por
serem uma realização do fantasia do animador-genitor.
Nas situações de intervenção, tudo se passaria diferentemente se
fosse possível situar os grupos ou as organizações “naturais” definindo
suas fronteiras e sua história.

191
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Tentei demonstrar11 que o próprio fato de alguém se definir e se


posicionar como analista leva a postular, no mesmo ato, seu objeto, isto
é, o grupo ou equipe como unidade diferenciada, tendo uma existência
e uma história separadas (pelo emprego, por exemplo, de termos como
o “grupo” ou a “demanda”).
O interventor pode, assim, ser tentado a definir um quadro de tra-
balho análogo ao de uma situação de formação, por meio de regras ex-
plícitas e implícitas, concebidas de maneira a assegurar seu lugar como
analista de fantasias inconscientes, do “aparelho psíquico grupal”,12 e a
legitimar sua interpretação, graças às relações de “transferência” que se
estabelecem e se desenvolvem entre o grupo e ele próprio.
Reconstruindo de forma fictícia tal situação, ele encontra claramente
os limites que evidenciei a respeito do grupo de diagnóstico: a psicologi-
zação do conflito, sua redução a dimensões interpessoais ou a fenômenos
grupais gerais; ele elimina, por antecipação, tudo aquilo que pode fazer a
especificidade dessa situação e que a sobredetermina no plano organiza-
cional e institucional. Essas limitações são ainda agravadas pelo fato de
que ele também omite a consideração dos efeitos que a instauração dessa
situação pode ter tanto para a organização, fora da situação de análise,
quanto para as relações internas.
Mesmo com a ficção do “grupo em análise”, ele continua a atuar
como uma instância organizacional (uma equipe, um serviço), não uni-
ficada, fragmentada, atravessada por clivagens internas e prisioneira
de imposições institucionais e econômicas, tendo que tomar decisões e
executá-las; essas clivagens e divisões são apagadas na representação
segundo a qual todos compartilhariam da mesma demanda de análise
coletiva e se situariam de forma idêntica como participantes ou membros
do mesmo grupo, realizando coletivamente transferências para o mes-
mo analista.
Tal crítica da “Psicanálise aplicada” leva-nos a concluir que o inter-
ventor tem sempre uma posição de exterioridade relativa; não é o único
pólo transferencial em torno do qual se ordenariam e se desenvolveriam
as relações susceptíveis de serem interpretadas.
Um dos objetos de análise pode ser, então, o trabalho sobre as dife-
rentes maneiras pelas quais o interventor tende a ser utilizado em estraté-
gias, preso em diversas alianças (que ele aliás nunca pode recusar total-
mente sob pretexto de uma neutralidade ilusória).
Em uma intervenção efetuada em um hospital-dia,13 mostrei que a
modalidade de pagamento de meus honorários, feito diretamente por
cada membro da equipe e igualitariamente, traduzia o desejo de tirar

192
Intervenção como processo

o processo terapêutico do controle institucional da hierarquia, e o grupo


de suas restrições externas. Isso permitia assimilar a intervenção a ativi-
dades de ergoterapia, essas sendo também pagas pelos doentes e não sub-
metidas ao orçamento do hospital; essa modalidade se constituía, assim,
numa colocação em ato do desejo, especialmente do médico-chefe, de tor-
nar a psicoterapia autônoma e de acentuar a diferença entre essas ativida-
des e o trabalho das enfermeiras, que continuaria submetido às regras
administrativas, como, por exemplo, a presença. Um dos resultados, pa-
radoxal, do trabalho de análise, foi então o de evidenciar o caráter ilusório
desse desejo de autonomia da terapia e a maneira como ele contribuía
para reforçar a divisão do trabalho no seio da equipe no hospital.
Nessa perspectiva, o interventor não está ligado a nenhum grupo
em particular, a não ser provisoriamente; à medida em que o trabalho
progride, a composição do grupo pode evoluir, podendo o interventor
trabalhar com outras pessoas e outros grupos, segundo outras modali-
dades que não a análise de reuniões (entrevistas, observações, pesquisa-
ação etc.), mesmo quando essas evoluções se tornam difíceis ou impro-
váveis; as resistências internas na organização tendem, com efeito, a
congelar o trabalho de análise em um lugar determinado, a enquadrá-lo
e a controlá-lo até lhe retirar todo o significado que não coincida com o
de uma pedagogia ativa, de uma terapêutica localizada.
É por isso que, quando o interventor, por razões que ele gostaria
que fossem metodológicas ou de melhor garantia de sua posição, insti-
tui tal quadro, ele entra em conluio com as resistências.

Como avaliar a intervenção psicossociológica


Mesmo sendo possível se defender, nunca se pode ignorar total-
mente a questão da avaliação do ato profissional efetuado na interven-
ção psicossociológica. Não se pode escapar disso dizendo, como o fa-
zem certos psicanalistas, que não se tem de preocupar com os efeitos do
trabalho sobre o devir da organização (“sua cura”) ou com as relações
internas dela, que a emergência dos conflitos latentes, a desmistificação
de certas crenças, o abandono de tabus, o acesso aos processos psíquicos
inconscientes são metas que se justificam por si mesmas.
Se isso é em parte verdadeiro, merece ao menos uma explicação.
Certamente, o próprio fato de se colocar a questão da avaliação situa
o problema em termos que podem ser contraditórios com a significação
de uma experiência, o que vale não só para a análise, mas também para o
gozo sexual ou estético. Como posicionar tais experiências de acordo com

193
Psicossociologia – Análise social e intervenção

coordenadas de um esquema pragmático ou utilitarista, de acordo com


eixos orientados, do menos ao mais, do pior ao melhor, do negativo ao
positivo? E como não o fazer?
Assim, a mudança representa para nós, antes de tudo, um aconteci-
mento marcado pelo advento, na vida de um sujeito ou de uma comuni-
dade, de uma ruptura com um ciclo de repetições e, conseqüentemente, o
acesso a uma história, ao desconhecido, ao risco, à incerteza. Em um texto
anterior,14 descrevemos essa experiência como “a descoberta de um vazio
aí onde se acreditava haver plenitude, um possível onde havia certeza,
uma questão onde havia uma afirmação. Graças a esse vazio repentina-
mente desvelado, as peças começam a circular, um jogo mais livre se torna
possível... O novo que aparece não é, então, um novo pleno, para o qual
seria necessário abrir espaço e ajustar ao que já estava lá. Não é uma
soma, uma certeza a mais, mas uma subtração, uma certeza a menos, uma
peça retirada de um edifício em equilíbrio”.
Com efeito, a significação de uma intervenção ou de uma análise não
pode ser concebida independentemente do ato de transgressão envolvido
e da crise ideológica e política que atravessa a organização e que a ques-
tiona. Essa se encontra então em seu ponto de ruptura ou, no mínimo, em
face à eventualidade de uma ruptura, vivida como o fim ou a morte da
organização tal qual era imaginada, ou como o reconhecimento de cliva-
gens internas, irredutíveis, inclusive nas pessoas.
Tal concepção da análise social implica também a necessidade de
rearranjar a idéia que se faz de uma organização, a necessidade de
defini-la com conceitos distintos dos utilizados quando ela é captada
do ponto de vista do ator, isto é, com noções e representações úteis à
ação, orientadas para a resolução de problemas e para metas práticas
subentendidas.
Com efeito, toda teoria organizacional é relativa, dependente da
sua importância para determinadas situações e metas. Nenhuma dá conta
de uma “verdade” geral relacionada à natureza da organização em si;
organização é apenas um conceito relativo que se refere a finalidades
que variam de acordo com o lugar onde ele foi elaborado e onde ele
supostamente é útil. É por isso que se poderiam analisar significações
comparadas: a da teoria das organizações que as vê essencialmente como
sistemas de estratégias e de alianças; a da organização científica do tra-
balho, centrada nos problemas de produção racional; a da burocracia,
centrada no sistema de regras etc. A questão é: a quê e a quem cada
teoria serve?

194
Intervenção como processo

A prática de intervenção psicossociológica produz, também ela, uma


elaboração teórica a respeito dos processos organizacionais, tendo sua
própria pertinência.
Assim, explicamos por que15 o fato de assinalar e de interpretar re-
presentações e fantasias não apenas é insuficiente para justificar uma
intervenção, mas ainda a leva a cair na armadilha do levantamento de
dados (para ver ou para saber) ou, o que dá no mesmo, na pedagogia
demonstrativa (para fazer saber ou para convencer – postulando que as
condutas podem ser modificadas por meio de representações).
Pareceu-nos, com efeito, que representações podem ser conside-
radas como algo diferente de um conjunto ou de um sistema de idéias
e de juízos estruturado, ordenado, hierarquizado; essa é bem a forma
sob a qual elas freqüentemente se apresentam, mas ao preço de um
esforço de simplificação e de redução intelectuais. Quando se tenta
apreendê-las sob a forma em que efetivamente atuam, somos levados
a percebê-las como séries de discursos entrecruzados, desenvolvendo-
se segundo atos referenciais múltiplos – cadeias de significados fre-
qüentemente contraditórios, procurando indefinidamente e de manei-
ra nunca acabada a busca de um sentido; são discursos que as pessoas
enunciam nas situações em que se encontram, com a finalidade de cons-
truir referências, dar um sentido ao lugar que elas ocupam e atribuir
um sentido às divisões espaciais, temporais, sociológicas sobre as quais
a organização se baseia; são discursos destinados a legitimar, para os
outros e para si próprios, as ações e as divisões.
Entretanto, permanecem divididos os discursos de representação,
nos quais está subentendida a busca de significações comuns (graças às
quais a organização poderia ser apreendida como UMA); então, forne-
cendo explicações e tornando as divisões e as clivagens organizacionais
mais toleráveis, eles reproduzem essas mesmas divisões e contribuem
para reforçá-las.
Nessa perspectiva, o processo de análise não pode, então, consistir
em assinalar e decodificar as significações existentes, mas em apreendê-
las como discursos incompletos, em remetê-las aos lugares de onde são
enunciadas e às diferentes formas como cada um, de acordo com a posi-
ção que ocupa no sistema de divisão do trabalho, tenta explicar, enfrentar
e ocultar as contradições que vive.
Nesse sentido, a análise não alcança objetivamente um real supos-
to, mas ela própria é uma produção de discursos16 que permite abrir o
caminho do grupo a uma história, que permite às pessoas implicadas se
desligarem da fascinação exercida por seus próprios discursos, desde

195
Psicossociologia – Análise social e intervenção

que não proponham outro sistema de interpretação superior que, por


sua vez, reificaria significados.
Para ilustrar o que precede, citarei o caso de uma intervenção muito
breve, de algumas sessões ao longo de quatro ou cinco meses. Ela tomou
a forma de uma consulta junto a um grupo de seis a sete pessoas perten-
centes a uma comunidade religiosa, encarregadas de preparar e conduzir
uma assembléia geral próxima.
Essa Assembléia Geral deveria ocorrer alguns meses mais tarde; ela
pretendia ser, em especial, a ocasião da eleição do próximo Conselho ou
direção da comunidade. A preocupação das pessoas que me procuraram
era evitar que, como ocorrera na assembléia anterior, a fuga dos proble-
mas se traduzisse em voto de moções muito gerais e imprecisas, destina-
das a serem engavetadas. Mas as pessoas sentiam uma grande dificulda-
de, dado o mal-estar existente no interior da comunidade.
Assim, como condição para aceitarem sua missão, colocaram a pos-
sibilidade de contratarem os serviços de um psicossociólogo.
Embora eu tivesse trabalhado no passado, por diversas vezes, com
interesse e prazer, com pessoas pertencentes a esses meios, não tinha
nenhuma afinidade particular com relação a comunidades religiosas;
talvez tivesse mesmo o inverso; mas a demanda, endereçada agora a mim,
pareceu-me simpática, o problema que eles colocavam parecia-me inte-
ressante e eu sentia que poderia trabalhar com eles para resolvê-lo, sem
me sentir comprometido de qualquer forma que fosse com a comunidade
e seus valores. Esclarecemos, aliás muito rapidamente, essa não implica-
ção de minha parte com seus problemas ou sua ideologia; isso não ape-
nas não os inquietou mas, ao contrário, pareceu-lhes uma garantia para
realizarem o que se haviam proposto. Buscavam essencialmente um “téc-
nico”. Depois de uma breve hesitação, aceitei.
Igualmente, chegamos logo a um acordo a respeito do meu papel, que
deveria ser, em sua maior parte, centrado no trabalho do grupo (denomi-
nado Comissão da Assembléia Geral) durante todo o período de prepara-
ção da Assembléia. A questão de minha participação ou presença duran-
te o desenrolar da própria Assembléia foi deixada em aberto; apenas
depois do primeiro dia de trabalho decidi não participar de forma algu-
ma, nem para ajudar na sua animação nem como observador ligado à
Comissão. A razão de minha determinação, tanto quanto pude analisá-
la, era o sentimento de que não poderia, nesse lugar eminentemente po-
lítico que seria a Assembléia Geral, intervir nas orientações futuras da
comunidade e nos problemas que não me diziam respeito.

196
Intervenção como processo

Minha participação se limitou então a alguns encontros de um dia


ou de metade de um dia com a Comissão, aproximadamente um encontro
a cada mês (sempre que ela se reunia em Paris) e, em seguida, atendendo
expressamente à sua demanda, dois encontros no local da Assembléia
Geral, à noite, depois dos debates, a fim de ajudá-los a esclarecer o que
havia se passado durante o dia e de preparar o dia seguinte.
Tudo isso permitiu o posicionamento dos respectivos lugares: o
meu, de um lado, em relação à Comissão e, de outro lado, à Comunidade
em seu conjunto e à Assembléia Geral; o lugar deles, em relação à As-
sembléia Geral e à Comunidade; e enfim, a Assembléia Geral em relação
à Comunidade.

A Assembléia Geral e a Comunidade


Essa Assembléia Geral em preparação veio a ser, de fato, uma As-
sembléia Geral extraordinária. Ela havia sido decidida no ano preceden-
te, no final da assembléia anterior que havia deixado as pessoas insatis-
feitas e com o desejo de enfrentar os problemas mais diretamente, em
especial durante a eleição do novo Conselho ou Direção. Para isso, diver-
sas sessões haviam sido previstas.
Tratava-se então de um momento que, por diferentes razões (acentu-
ação da distância entre gerações, oposições cada vez mais marcadas en-
tre as diferentes concepções da Comunidade, vencimento dos prazos para
decisões importantes), era considerado por muitos (ou, pelo menos, pela
Comissão) como um ponto de transição, na história da Comunidade, que
não podia ser perdido.

A comissão em relação à Assembléia Geral


e em relação à Comunidade; eu próprio
em relação à Comissão e à Comunidade
Tendo visto essas diferentes posições respectivas como extremamen-
te articuladas umas às outras, parece-me mais interessante examiná-las
conjuntamente do que separá-las uma a uma.
Como já mostrei, decidi depois do primeiro dia de trabalho não par-
ticipar de forma alguma nem assistir à Assembléia Geral; isso me parecia
necessário para preservar a minha não implicação nos problemas direta-
mente políticos da Comunidade e para esclarecer as posições da Comis-
são e minha em relação à Assembléia Geral.
Como cheguei lá, se nas primeiras trocas não excluíra a priori uma par-
ticipação nos trabalhos da Assembléia Geral, cuja forma seria definida?

197
Psicossociologia – Análise social e intervenção

É importante, então, examinar o que se passou durante esse pri-


meiro dia:
Nesse momento, o grupo havia se empenhado em uma tarefa con-
sistindo em reunir todas as informações de que dispunha sobre os pon-
tos de vista e as proposições das diferentes comunidades regionais, ten-
do em vista a Assembléia Geral; eles haviam visitado pessoalmente cada
uma das comunidades, a fim de levantar suas opiniões. Nessa ocasião,
tomei conhecimento, com a ajuda deles, da organização complexa da
Comunidade: a existência de comunidades descentralizadas na região,
as relações entre elas, o tipo de atividades nas quais estavam empenha-
das e as diferenças existentes entre elas – inclusive no plano econômico
-, a lista dos membros da Comunidade e as diversas posições sociais
entre as quais se distribuíam, os textos definindo seu funcionamento, as
regras às quais se submetiam etc.
Nossas relações começaram igualmente a se tornar mais precisas.
Eu era calorosamente acolhido, com amizade e com confiança, como
um estranho mas não como um intruso. Embora a expectativa com
relação a mim fosse muito grande – eles estavam bastante prontos a
escutar e a levar em conta as minhas observações –, parecia-me que
não havia confusão entre os nossos respectivos papéis. Eles absoluta-
mente não procuravam se apoiar em mim, ou mesmo ser influencia-
dos na decisão que deveriam tomar e em relação às suas responsabili-
dades. O fato de que eu estava lá como um profissional, pertencente a
uma organização evidentemente leiga (a A.R.I.P.), talvez também meu
próprio sobrenome judaico, pareciam garantir a seus olhos (com uma
certa ingenuidade, sem dúvida) que eu não buscava nenhum interesse
pessoal relativo a seus assuntos internos; eu próprio me sentia um es-
tranho, sem implicação com o grupo.
Espantei-me, então, ao ver-me reagir rapidamente e com muita
vivacidade diante da maneira deles se situarem nessa tarefa. Apoian-
do-me no contrato que havíamos feito, que me autorizava a intervir
em tudo o que me parecia ir no sentido de evitar problemas e conflitos,
intervim bastante brutalmente para criticar as tendências deles a se es-
quivarem das dificuldades, a passar sobre elas e a generalizá-las apres-
sadamente demais.
Parecia-me, ao mesmo tempo, que essa mesma brutalidade respon-
dia a uma demanda inconsciente da parte deles, de sair de um estilo de
relações muito corteses, evitando toda aspereza, esquivando-se dos con-
flitos e divergências.

198
Intervenção como processo

No nível do conteúdo, observei, com bastante veemência, que eles


estavam errados ao se considerarem como simples emissários ou porta-
vozes das comunidades que cada um havia visitado e ao limitarem seu
trabalho a um simples cotejo ou colocação em ordem das informações
que haviam recolhido. Declarei-lhes que não poderiam recusar o poder
que lhes havia sido confiado de orientar e contribuir para a organização
dos debates da próxima Assembléia Geral, para a escolha dos temas que
seriam então tratados, para a maneira como os problemas seriam colo-
cados etc. O papel que tinham era não apenas técnico, mas também polí-
tico: eles não podiam deixar de influenciar nas orientações que seriam
definidas na Assembléia Geral ou mesmo na eleição. Caçoei da maneira
como alguns deles justificavam, em nome de valores democráticos, seu
papel de porta-vozes puros; demonstrei que, ao contrário, se efetiva-
mente o desenrolar da assembléia geral fosse determinado, em última
análise, pelas vontades expressas pela “base”, essa expressão estaria for-
temente condicionada à maneira como fora buscada e tratada.
Eles aderiram, com relativa facilidade, a meu ponto de vista, sem
deixar de observar, entretanto, que eu lhes recusava o papel de “técnicos”
que atribuía a mim próprio!
Analisando o trabalho deles como se fosse um levantamento de da-
dos e uma pesquisa-ação na Comunidade e em seus problemas e anali-
sando a disposição de tratar esses problemas, declarei-lhes:
1- Que esse trabalho exigiria muito tempo e investimento da parte
deles e, assim, encontros mais numerosos do que os previstos no
começo.
2- Que ele exigiria igualmente que trabalhassem o funcionamento de
seu próprio grupo; não eram apenas procuradores de votos e opi-
niões, mas representavam também, sem dúvida, diferentes ten-
dências existentes no seio da Comunidade, tendências que esta-
vam encarregados de confrontar e esclarecer. A maneira como
confrontariam e analisariam ou não suas divergências tinha toda
a chance de prefigurar o que se passaria na Assembléia Geral;
será que eles pretendiam se limitar a estabelecer um simples ca-
tálogo de dados de informação e de questões a tratar ou se empe-
nhar em um trabalho de análise da situação a partir desses ele-
mentos? Perguntei-lhes em que medida estavam prontos a fazer
esses investimentos.
Pareceu-me, então, que eles deveriam, periodicamente, relatar o
resultado de seus trabalhos e proposições a um Comitê Permanente e

199
Psicossociologia – Análise social e intervenção

que todas as decisões concernentes à Assembléia Geral próxima deveri-


am ser submetidas a essa instância.
Eles funcionariam então dentro de limites relativamente estreitos;
isso não excluía em nada minhas conclusões relativas ao papel político
deles mas, ao contrário, tornava-as mais precisas: uma das preocupações
deles era a de preparar seus encontros com o Comitê de maneira a evitar
se atolarem em problemas menores ou técnicos.
Essa discussão permitiu-me esclarecer meu próprio papel: o de um
consultor junto a um grupo empenhado em uma pesquisa-ação na comu-
nidade da qual emanava; esse grupo encontrava problemas que eram ao
mesmo tempo teóricos e técnicos (coleta de informações, análise e inter-
pretação dos dados coletados) e políticos (como apresentar e traduzir
essas análises em ações).
Paradoxalmente, a veemência com que me manifestara no sentido de
que a Comissão não evitasse sua implicação na tarefa e assumisse mais
integralmente sua missão teve como efeito permitir-me tomar a decisão de
recusar uma participação direta na Assembléia Geral (como me havia
sido proposto, com alguma hesitação). Isso pareceu-me indispensável
para diferenciar nossos lugares respectivos de implicação, minha posi-
ção com relação à da Comissão e também a da Comissão com relação à
Assembléia Geral.
Com efeito, isso permitiu que eu me situasse como consultor para a
Comissão e apenas para ela (naturalmente, com o conhecimento e o acor-
do da Comunidade).
O fato de ficar totalmente sem implicação com a Assembléia Geral e
seus problemas políticos e táticos, exceção feita à maneira como eles se apre-
sentavam na Comissão, permitia-me manter meu papel junto à Comissão
e permitia à Comissão manter o seu junto à Assembléia Geral e à Comu-
nidade (e, eventualmente, à Assembléia Geral preencher sua função junto
à Comunidade).
Caso eu participasse da Assembléia Geral, seria necessariamente
confundido com a Comissão, colaborando no objetivo supostamente
comum de favorecer a expressão e a elucidação dos debates, o escla-
recimento dos problemas e o seu tratamento. Isso apenas provocaria
confusão e a ilusão de que esse objetivo era puramente técnico (um
problema de organização e de relações), sem implicar posições táticas
e políticas. No limite, isso poderia contribuir para esvaziar a Assem-
bléia Geral de todo conteúdo político! (Quanto à eventualidade evoca-
da em certo momento, a de que eu participasse da Assembléia Geral

200
Intervenção como processo

como observador, sem direito à palavra, ligado à Comissão, essa era


uma proposta que ia no mesmo sentido, com o agravante de tornar a
situação ainda mais obscura).
Assim, ficou claro que:
a- a Assembléia Geral era o lugar político da Comunidade. Deveria
representar um tempo de análise coletiva, mas também de escolha
de orientação política.
b- a Comissão era o instrumento dessa vontade política da Comuni-
dade e das comunidades regionais; enquanto as comunidades esta-
vam implicadas nesse trabalho, a Comissão constituiria o corpo exe-
cutivo delas (ela foi aliás, formalmente, o Conselho provisório da
Comunidade enquanto durou a Assembléia Geral, até a eleição do
próximo Conselho, isto é, durante um vazio de poder).
c- quanto a mim, eu era o meio que a Comissão tinha para realizar
sua missão e, sobretudo, para ajudar a tomar consciência de sua
responsabilidade (política) e implicação do grupo e de cada um
de seus membros.
Devemos acrescentar que esses diversos esclarecimentos de papéis
foram feitos simultaneamente, uns em relação aos outros, não em trocas
prévias, mas no calor da discussão, durante o primeiro dia de trabalho,
através de minha inesperada implicação afetiva.
Pode-se aqui recolocar e aprofundar a questão evocada anterior-
mente, sobre o caráter relativo de exterioridade do interventor enquan-
to terceiro.
O termo relativo não deve evidentemente ser compreendido como
equivalente ao adjetivo parcial ou imperfeito (relativamente quente, por
exemplo): o interventor não é “um pouco” exterior.17 A análise que pre-
cede sobre nossa posição em relação à Comissão mostra bem o que se
deve entender como qualificando uma relação que só adquire sentido
em relação a outras.
Certamente, nossa posição profissional e inserção institucional, nosso
sobrenome (LÉVY) – e o fato de que não tínhamos nenhum vínculo ins-
titucional com a Comunidade nem com qualquer organização semelhante
– faziam de nós um interlocutor válido para o que se esperava. Mas isso
resultava não de uma diferença de natureza, existente no real, entre nós
e os membros da Comissão, mas do efeito de sentido que as qualificações
(psicossociólogo, membro da A.R.I.P., judeu) tinham para eles, por meio
das quais eles nos davam uma referência simbólica. (Já assinalamos a
ingenuidade que consiste em crer, a partir dessas diferenças em status

201
Psicossociologia – Análise social e intervenção

e posição social, que não visávamos nenhum interesse – ideológico, por


exemplo – em nossa associação com eles e em nossa implicação em seus
problemas).
Esse efeito de sentido, que se traduzia em um contrato implícito re-
gendo nossas respectivas relações e tornando possível, em conseqüên-
cia, o desenvolvimento de um certo trabalho, não se produz, entretanto,
sem que nossa posição social distinta seja associada a outras diferenças
no interior da Comunidade – entre os diferentes status sociais, entre as
comunidades regionais, entre a Comissão e o Conselho, entre outros es-
calões – e, particularmente, entre o que havia sido a última Assembléia
Geral e o que seria a próxima.
Nesse sentido, nossa alteridade, como terceiro, era “relativa”, sem
que isso excluísse – antes pelo contrário – o fato de que estivéssemos
implicados em todo um sistema de relações e sem que isso nos diferen-
ciasse radicalmente de outros membros da Comunidade.
Não queremos fechar esse exemplo de intervenção sem dizer algu-
mas palavras sobre a seqüência do trabalho que pudemos realizar com a
Comissão, a partir desse primeiro dia, e sobre o que pôde ser produzido.
Na sua maior parte, nosso trabalho centrou-se na maneira pela qual
os membros da Comissão liam e escutavam os documentos – cartas, rela-
tórios de reuniões, esquemas de análise de problemas a serem submeti-
dos à Assembléia Geral, estatísticas – que lhes chegavam (alguns dentre
eles haviam mesmo, como membros dessas comunidades regionais, par-
ticipado da redação de uma parte desses textos) e sobre a maneira como
formulavam, por sua vez, a partir desses documentos, suas análises da
situação sob forma de textos preparatórios da Assembléia Geral, destina-
dos a serem comunicados à Comunidade.
Não é necessário lembrar que esse trabalho tinha representações pré-
vias subjacentes: representações de cada membro da Comissão a respeito
do que era a Comunidade e do que ela deveria ser, que se traduziam em
diferentes maneiras de hierarquizar os problemas e de definir as linhas
de clivagem ou de oposição (dependentes, por exemplo, da importância
atribuída às pessoas, às instituições ou às atividades).
Tudo isso, aliado a uma tendência intelectual de globalizar os pro-
blemas, de associá-los a opções teóricas ou ideológicas abstratas, tornava
muito difícil uma escuta atenta do conteúdo dos textos, assim como um
trabalho de elaboração de hipóteses interpretativas.
Foi preciso, assim, lutar para tornar o trabalho mais lento, fazer
com que se ficasse mais tempo examinando detalhadamente os textos,

202
Intervenção como processo

considerando questões particulares, aparentemente menores; ou ainda,


interrogar sobre a importância e extensão de certas caracterizações mui-
to apressadas, ou de análises feitas em termos de escolhas dicotômicas
com base em princípios gerais, ou mesmo, algumas vezes, sobre pala-
vras fetiches, carregadas de subentendidos (por exemplo, o “projeto sa-
cerdotal” ou o “projeto espiritual”).18
Um exemplo: havíamos observado que o grupo tinha tendência a
considerar superficialmente, sem dar muita importância, as cartas que
exprimiam uma opinião muito pessoal ou muito particular e as opiniões
mencionadas nos relatos como sendo de uma única pessoa (“Um padre
disse...”). Fizemos com que se notasse que todas essas expressões ti-
nham em comum serem apresentadas como emanando de uma única
pessoa, que elas estavam marcadas por esse signo: “um padre disse”,
diferenciando-se assim daquelas que se apresentavam como produto
de uma elaboração coletiva; encontrava-se talvez aí o problema do lu-
gar das pessoas e da experiência individual na Comunidade, da expres-
são individual particularizada em relação à experiência geral; talvez
certos conteúdos não pudessem ser expressos senão sob essa rubrica; o
que significava não considerá-los?
O que se elaborava, assim, por meio desse trabalho preparatório e,
em seguida, na Assembléia Geral, era uma representação cada vez mais
complexa e contraditória da Comunidade.
No curso desse processo, a principal dificuldade foi a de situar as
verdadeiras clivagens, não em relação a princípios gerais e mutuamente
exclusivos, segundo os quais as definições da Comunidade, suas regras
de vida e suas instituições seriam colocadas em eixos – seja a crença em
certos valores, seja a coabitação em um mesmo lugar, seja o conjunto de
atividades –, mas em relação às diferentes posições ocupadas pelas pes-
soas e grupos coexistentes na Comunidade – do ponto de vista do di-
nheiro, da segurança, da idade...
Isso implicava o abandono da busca de uma definição geral na qual
alguns termos-fetiche representariam de maneira fictícia a unidade da
Comunidade e, em contrapartida, implicava também o reconhecimento e
aceitação de discursos múltiplos, refletindo situações particulares dife-
rentes, algumas vezes concorrentes e eventualmente incompatíveis.
Essa dificuldade surgiu durante o trabalho com o grupo, antes da
Assembléia Geral e no seu decorrer, sob forma de propostas contraditórias
para se organizar o trabalho da assembléia (por exemplo, a definição da
pauta dos diferentes dias, as questões a serem submetidas a voto etc.).

203
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Pôde-se assim, por exemplo: analisar as diferentes funções possí-


veis de um voto, suscitadas por textos formulados de formas diferentes:
fazer brutalmente o contraste entre duas opções mutuamente exclusi-
vas e igualmente absolutas – com o efeito provável de impedir toda es-
colha verdadeira e de criar uma unanimidade factícia sobre um texto
suficientemente abstrato para conciliar as contradições (por exemplo, o
“serviço concreto do Homem”); fazer uma sondagem, facilitando a es-
colha de futuras estratégias; criar uma situação nova, permitindo reve-
lar conflitos latentes e facilitando a continuação da discussão.
Para concluir, assinalarei que minha colaboração na Comissão ter-
minou, de comum acordo, na véspera do dia em que deveria ocorrer a
eleição do próximo conselho, isto é, justamente antes de cessar o vazio de
poder assumido pela Comissão cujo compromisso fora o de conduzir o
trabalho de análise coletiva.

Intervenção e organização
Essa última observação permite-nos introduzir uma questão final:
que relações há entre, de um lado, a intervenção e o processo de análise
que ela instaura e, de outro, o processo organizacional? A análise é anti-
organizacional, opõe ao desenvolvimento da organização? Ou, ao con-
trário, ela constitui uma terapêutica dessa última, permitindo-lhe aumen-
tar sua força, melhorar seu funcionamento, seu rendimento? Ou situa-se
em outro plano, a-organizacional?
Bem entendido, tais questões vão de encontro àquelas que tratamos
sob o ângulo das relações entre o analista e o grupo junto ao qual ele
intervém.
Uma primeira abordagem da questão é fornecida pelo conceito de
pesquisa-ação, quando aplicado a um processo de intervenção, visto en-
tão como desenvolvendo-se em dois planos – empírico e acionador, de
um lado, reflexivo e crítico, de outro.
Nessa perspectiva, a intervenção não se limita a uma prática de mu-
dança cujo único objetivo seria o de favorecer a evolução de uma situação
e sua compreensão por atores nela implicados, mas seria também um
meio de produzir um saber específico a respeito das organizações; além
do sentido que as interpretações e tomadas de consciência podem ter em
relação a situações específicas e a problemas concretos, elas podem con-
tribuir para esclarecer os processos organizacionais em geral.
Mas o conceito de pesquisa-ação (se não o tomamos em um sentido
estritamente lewiniano) não corresponde a uma simples relação de dois

204
Intervenção como processo

processos: a pesquisa ou produção de conhecimentos de um lado, a ação


de outro; ela também não é, como alguns às vezes pretenderam, uma
afirmação da identidade desses dois processos; ela implica, antes, que a
própria relação leve a uma redefinição profunda de cada um deles – ao
mesmo tempo, a outra concepção da ação e a outra concepção de orga-
nização do saber.
Com efeito, a perspectiva lewiniana da pesquisa-ação parece-nos li-
mitada pelo fato de não realizar essa revolução epistemológica, sendo mar-
cada pelas concepções tradicionais do saber e da ação; o fato de relacioná-
las é visto essencialmente como o estabelecimento de uma relação de
aliança, traduzindo-se pela postulação de uma ausência de contradição e
de uma complementaridade entre a lógica da ação e a lógica da pesquisa,
uma colocada a serviço da outra, o que é expresso implicitamente em afir-
mações como: “quanto mais se sabe a respeito disso, melhor se fica”, “quan-
to mais houver saber, mais a ação é eficaz e pertinente”.
Ora, essas afirmações estão longe de serem verificadas; ao contrá-
rio, podemos acentuar o fato de que a ação supõe, necessariamente, uma
dose de desconhecimento, senão de cegueira. Em um trabalho anterior,
tivemos a oportunidade de demonstrar, com precisão, como o fato de
ignorar as contradições no subsistema da pesquisa, isto é, entre o qua-
dro experimental de uma estrutura de intervenção e o conjunto do siste-
ma organizacional no qual essa estrutura se insere, leva a menosprezar
a maneira como os saberes assim produzidos dependem de sua impor-
tância prática, de normas e de valores próprios às situações nas quais
são elaborados e utilizados.
Assim, a concepção segundo a qual as ações-pesquisas estariam a
serviço do conjunto de uma organização pareceu cada vez mais ilusó-
ria, à medida que as experiências evidenciavam que os conhecimentos
que surgiam, longe de terem um valor geral ou intransitivo, eram sem-
pre escolhidos em função de interesses particulares e contingentes; que
a inserção dos interventores-pesquisadores em uma organização tra-
duzia-se em alianças de poder e, conseqüentemente, em uma modifi-
cação das relações de poder, assim como em reforço das representa-
ções da organização como um conjunto sem conflito, susceptível de
evoluir em direção a uma racionalidade crescente e a uma transparên-
cia cada vez maior de seus processos internos (particularmente dos
processos de tomada de decisão).
A análise dos limites e das contradições da pesquisa-ação lewiniana
desemboca assim em uma crítica epistemológica do saber e da ação e de
suas relações recíprocas.

205
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Ao se pensar a realidade e a ação, o saber-objeto é necessariamente


considerado dentro de uma perspectiva utilitarista e de controle – ilusão
que é desmentida pela irracionalidade das condutas, pelas restrições
impostas por estruturas sociológicas e psicológicas, pela existência de
conflitos e contradições irredutíveis.
Mas esse saber-objeto (ou conteúdo do saber) representa apenas
a parte mais visível, a mais simbolizável, do plano da experiência e
do trabalho designado pelo termo; é a parte que permite trocas e ma-
nipulações.
Com efeito, os conteúdos do saber se desenvolvem e adquirem sen-
tido na experiência de relação na qual o sujeito está implicado, cujo sig-
nificado é apenas parcialmente simbolizável.
Assim, em um processo de escrita, por exemplo, ocorre muito mais
do que a transmissão de conteúdos prévios: o ato de escrever os faz exis-
tir e, ao mesmo tempo, os transforma.
O saber, como experiência, implica todo um trabalho sobre si, sobre
seu passado, sobre seu presente e sobre suas relações com os outros, com
o mundo, e tem sentido apenas para o trabalho e no trabalho.19
Por isso, tratando dos processos de pesquisa, já assinalamos que
eles não se reduzem a uma coleta (objeto-entrevista mais objeto-entre-
vista) de “material” informativo ou de dados a respeito da situação. Os
efeitos “secundários” dessas entrevistas podem ser bem mais impor-
tantes (em termos de efeitos de sentido) que os resultados informati-
vos – efeitos de decisões tomadas durante a organização das entre-
vistas, discursos produzidos paralelamente ao levantamento, em
instâncias não controladas pelo investigador e fora de sua presença,
efeitos produzidos sobre as pessoas entrevistadas devido à própria
situação de palavra etc.
A pesquisa representa processos de produção de conhecimentos e de
sua elucidação que têm como efeito não apenas modificar, em uma organi-
zação ou em uma sociedade, as linhas de clivagem entre o saber e o não-
saber, entre as zonas de saber assumidas e as que não o são, entre sua
apropriação ou não por alguns em detrimento de outros, mas também mo-
dificar as linhas de clivagem entre o dizível e o indizível, entre os lugares de
palavra e os de não-palavra, entre o que pode ou não ser escutado.
Por essa tendência e não por uma afirmação de princípio é que se
pode apreender o vínculo entre esse processo e o da organização, na
condição de que essa seja considerada não como um agrupamento (uma
empresa, uma escola), mas como um processo, um sistema de ação.

206
Intervenção como processo

Tal concepção de organização, que, ao mesmo tempo, está subja-


cente e resulta de intervenções psicossociológicas, já foi evocada an-
teriormente.
Ela repousa na idéia central de que o desenvolvimento de um pro-
cesso organizacional consiste na instauração de uma perspectiva tem-
poral nas atividades e relações, instalando-as nas coordenadas de tem-
po e espaço. De alguma forma, uma organização funda um campo
temporal – um antes e um depois – e divide o espaço material geográfi-
co: é suficiente, por exemplo, fixar horas e lugares de reuniões para que
nasça um embrião de organização.
O termo requer então as noções de lugar e de tempo, tem subjacen-
tes uma afirmação e uma negação: aqui e não lá. Esse golpe de força, sem o
qual se formariam apenas vínculos episódicos, e sem o qual nenhuma
ação consecutiva seria possível, é a condição de toda vida social, de toda
construção material, espiritual ou mesmo afetiva.
O processo organizacional funda-se, assim, em uma negação do in-
consciente, especialmente do desejo de onipotência. As regras e proibi-
ções que materializam essa negação instauram um funcionamento regi-
do pelo “princípio secundário”; a racionalidade que elas introduzem
permite o desenvolvimento de uma atividade criadora e sua inserção na
história, permite aos homens escapar do ciclo da repetição. Não se trata
então de uma racionalidade mecânica, contabilizável ou informática, que
pretenderia circundar o sentido, mas, ao contrário, de uma racionalidade
criadora, que não exclui nem dúvida nem incerteza.
Se a existência de regras e proibições funda uma organização, essa,
para perdurar, supõe igualmente o desenvolvimento e a circulação de
representações. As regras dividem e separam, enquanto que as represen-
tações visam a dar um sentido unitário e homogêneo a essas divisões,
clivagens e limites; dito de outra forma, visam a introduzir, no nível do
pensamento, o desejo de tudo controlar.
O que faz com que uma organização seja uma atividade viva e criado-
ra, produtora da história e não de um estado de coisas mortífero, é
precisamente a impossibilidade, para essas representações – esses dis-
cursos de representações –, de realizarem sua meta de dar sentido, de
suprimir as contradições que as atravessam (já observamos como elas
reproduzem e contribuem para reforçar as divisões e as clivagens e
são pegas em estratégias e alianças). Daí o hiato persistente entre, de
um lado, o desejo de tudo compreender e, de outro, a necessidade de
dividir, de separar, de limitar.

207
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Paralelamente aos discursos escritos – enunciados de significações


fechadas –, uma palavra continua, assim, a se desenvolver; os sujeitos
podem então assumir o desejo e a impossibilidade de dar sentido, perse-
guir o projeto enfrentando seus limites e esclarecer as relações entre as
significações contraditórias que assim se engendram e se encadeiam aos
mitos e às fantasias inconscientes que as ligam a seu passado.
Respondendo a uma demanda de palavra, até então bloqueada ou
proibida, a intervenção psicossociológica contribui então para fazer reco-
nhecer que nem tudo é organizável, que a organização exprime e realiza
apenas uma das dimensões do sujeito; fazendo isso, ela implica uma
reviravolta de perspectiva: se ela é possível apenas como uma resposta ao
que é vivido como crise de sentido, ela se choca assim, em seu primeiro
esforço, com o desejo de reencontrar o sentido perdido e, então, de ignorar
as implicações dessa inversão. Colocar de novo em circulação as signifi-
cações imobilizadas, dar de novo às representações sua posição de dis-
curso e fazer com que sujeitos que falam as assumam, já é um ato que
contribui para deslocar os limites e as linhas de clivagem, ou, ao menos,
as que dizem respeito ao dizível e ao indizível.
Porém, dar a palavra ou contribuir para a sua manifestação não é
suficiente; é importante, sobretudo, acompanhá-la e ajudá-la a se desen-
volver, a despeito dos obstáculos e temores que ela provoca, quando seus
efeitos se fazem sentir na vida cotidiana através de acontecimentos im-
previstos, da emergência de novos atores ou de decisões que rompem com
um certo passado e abrem outras possibilidades.
Dessa forma, a intervenção participa do processo organizacional e
não da reificação de uma “Organização”, na qual os lugares ocupados
por cada um teriam como referência uma lei imanente e onde todos os
desejos seriam considerados e explicados:20 “Organização” totalitária,
que supõe a história acabada e que é o oposto tanto da organização –
processo dinâmico que cria a história –, quanto da análise que a torna
possível, mantendo vivo o passado, ao mesmo tempo em que rompe com
a fascinação que ele exerce.

Notas
1
Traduzido de: DUBOST, Jean e LÉVY, André. L’Analyse social. In: ARDOINO et al.
L’intervention institutionnelle. Paris: Payot, 1980, p. 69-100, por Marília Novais da
Mata Machado.
2
“Vers une psychosociologie psychanalytique”. Connexions, 29, I/1980.

208
3
Inspirado em G. LAPASSADE, Connexions, 29, I/1980.
4
Em termos mais sofisticados, trabalhando com a própria contratransferência.
5
Cf. Notas sobre a origem e a evolução de uma prática de intervenção psicossocio-
lógica. Traduzido de: DUBOST, Jean e LÉVY, André. “L’Analyse social”. In: ARDOINO
et al. L’intervention institutionnelle. Paris: Payot, 1980. pp. 49-68.
6
Por exemplo: Max PAGES. “Une intervention psychosociologique sur les structures et
les communications sociales”. Sociologie du Travail, 196l.
7
Cf. especialmente o capítulo sobre intervenção de M. CROZIER. “L’acteur et le sys-
tème”. Paris: Seuil.
8
Descrita e analisada mais detalhadamente em A. LÉVY. “Sens et crise du sens dans les
organisations”. Thèse d’Etat, 1978, inédita.
9
FREUD, S. Mal-estar na civilização.
10
Particularmente em “Analyse et critique du groupe d’évolution” e “ L’analyse dans les
groupes de formation”, Connexions.
11
“Dire la loi...”. Connexions, 21.
12
Esse conceito, introduzido por R. KAES, postula dois aparelhos psíquicos distintos,
um individual e outro grupal.
13
“Dire la loi...”. Connexions, 21.
14
“Le changement comme travail”. Connexions, 7.
15
“Sens et crise du sens dans les organisations”, op. cit.
16
Como toda análise de conteúdo, cf. “L’interprétation de discours”. Connexions.
17
Segundo o Petit Robert, esse é o sentido corrente do termo “relativo”, ilustrado pelo
exemplo: ele é de uma honestidade bastante relativa.
18
Nesse exemplo, a análise desses dois termos permitiu evidenciar que, quando o
projeto sacerdotal era apresentado como englobando o espiritual e não o inverso,
isso implicava a exclusão de um certo número de atividades que eram objeto de
contestações.
19
Cf. Les Mots, la Mort, les Sorts de J. FAVRET-SAADA, Gallimard.
20
L’amour du censeur, de P. LEGENDRE, Seuil; também “Le pouvoir et la mort”, de E.
ENRIQUEZ, em Topique.

209
Psicossociologia – Análise social e intervenção

210
DAFORMAÇÃOEDAINTERVENÇÃO
PSICOSSOCIOLÓGICAS1
Eugène Enriquez

As práticas de formação permanente, assim como os discursos ge-


rais sobre seus fundamentos, as interrogações a respeito de seu valor e de
suas significações explícitas ou latentes, multiplicaram-se consideravel-
mente nos últimos anos. Esse número de revista testemunha bem o fato.
Entretanto, uma dúvida me invade. Por que realizar tantas atividades de
formação? Por que indagar a respeito da incidência de uma escola ou de
métodos de formação, ou, ainda, sobre um possível papel que têm na
reprodução das relações sociais? É que esse ativismo formador e seu pos-
sível denegrimento ocultam dois problemas fundamentais:
l- O que ocorre de essencial no ato formador, o que nos interpela e
fascina no seu próprio movimento: a quase certeza de seu fracasso
inelutável, toda educação carregando a marca do impossível e dei-
xando o gosto amargo do inacabado, a repetição do discurso infi-
nito e sempre a ser retomado.
2- E também o que é o próprio sentido desse movimento, de toda
atividade de formação, isto é, o procedimento de exclusão do real e,
mais precisamente, de intervenção sobre as estruturas e os siste-
mas, possibilidade e multiplicidade das comunicações, reinvesti-
mento de energias de outra forma e em outro lugar.
Dizendo o mesmo com outras palavras, e mais violentamente, as
práticas de formação, como a maior parte das indagações a respeito da
formação, tendem a ocultar não apenas a experiência do vivido da forma-
ção, mas também a formação como processo de preclusão da mudança
social e da transformação das relações sociais.
Por isso, nesse breve artigo, e, sem dúvida, de forma concisa e injusta
(mas, por que ser tolerante? Como dizia CLAUDEL: a tolerância, há casas
para ela), tentaremos mostrar que o discurso e as práticas dos formadores
que acreditam nos efeitos benéficos de toda formação, que o discurso dos
psicólogos centrado no encontro interindividual e que os discursos dos

211
Psicossociologia – Análise social e intervenção

sociólogos perdidos na crítica das ideologias e das conseqüências da for-


mação são não apenas perfeitamente aborrecidos e freqüentemente inú-
teis, mas também têm, cada um à sua maneira, o mesmo objetivo: impedir
os atores sociais reais de se soltarem das malhas nas quais eles se encontram
e ser capazes de tentar assumir seu devir, sua vontade e sua imaginação.
Gostaríamos também (pois só o discurso crítico assinala sua pertinência
ao discurso criticado) de indicar, situando a prática que buscamos pro-
mover, quais são as vias que favorecem a experiência vivida e a recoloca-
ção em ato das relações sociais.

Análise dos discursos atuais sobre a formação


Três perspectivas serão consideradas:
l- a dos formadores e educadores;
2- a dos psicólogos;
3- a dos sociólogos críticos.

A perspectiva formadora
Ela se baseia em uma análise exata do mundo atual: as transformações
tecnológicas, o progresso dos conhecimentos, as mudanças nas discipli-
nas e a necessidade de interdisciplinaridade tornam rapidamente obsoleto
o saber que cada um dispõe, advindo a necessidade, de um lado, de recicla-
gem e, de outro, de uma nova oportunidade oferecida aos que não puderam
tirar proveito da escolarização à qual tiveram acesso. Assim, a formação
permanente torna-se indispensável. Orienta-se (e não apenas na China,
onde toda a sociedade é dirigida por uma vontade educativa) para uma
sociedade educativa, para um sistema onde, a todo momento, cada um
deverá atualizar seu saber e questioná-lo, a fim de poder seguir as mudan-
ças e, ainda mais, para desejá-las e provocá-las. Toda formação, todo cres-
cimento no domínio das informações, toda aprendizagem de técnicas teria,
então, um efeito positivo para o formado, que estaria mais à vontade para
viver e compreender o mundo técnico e social no qual está. Certamente,
alguns métodos de formação são preferíveis a outros. Será preciso empre-
ender uma experimentação de diferentes métodos e técnicas, assim como
aperfeiçoar os sistemas de avaliação dos resultados, a fim de se chegar a
uma formação verdadeiramente pertinente para os objetivos propostos.
Trata-se, então, de tempo, de paciência, de investimento pensado. O proble-
ma é unicamente operatório, mesmo se a noção de operação implica que se
seja obrigado a ter em conta motivações, resistências, temores do formado e
condicionamentos sociais.

212
Da formação e da intervenção psicossociológicas

Essa visão nos parece radicalmente falsa e acentua a ideologia tecnocráti-


ca de direita ou de esquerda (do poder); ela tende a fazer crer que é preciso
reforçar o eu consciente voluntário dos indivíduos, armá-lo solidamente
para que ele seja capaz de se comportar de maneira adulta, vendo exa-
tamente o que ele pode fazer no mundo tal como ele é. Quantos pres-
supostos!
Tentemos demonstrá-los: o real é definido estritamente pelas estru-
turas atuais. Ora, o real é o que escapa a toda definição, é o que excede
toda análise, mesmo se toda análise visa a circunscrevê-lo e defini-lo. O
real não está lá, como uma coisa a ser tomada e a ser controlada; ele se
revela na ação, na transformação e ele é, estritamente falando, inesgotá-
vel. Todos os teóricos da Sociologia e da História sabem bem, hoje, que
as reconstituições são parciais, sempre a serem melhoradas, que as cau-
sas determinantes não existem, que os acontecimentos que fizeram os
povos passar de uma epistéme (FOUCAULT) a outra não são apreensí-
veis,2 que o sentido descoberto reenvia sempre a um outro sentido pos-
sível ou a um não-sentido. Freud sabia que podia interpretar os sonhos
de seus pacientes mas que, além de toda interpretação, ele chegaria ne-
cessariamente ao ininterpretável, ao umbigo dos sonhos; da mesma for-
ma, sabemos agora que há um “umbigo do real” que nunca se deixará
decifrar e que a única esperança de abalá-lo um pouco é fazê-lo falar por
meio de golpes de força. Falar do real é simplesmente submeter-se às es-
truturas tais como elas são reveladas no discurso dos donos do poder. O
comportamento adulto é o comportamento refletido, cartesiano, sem pai-
xão, sem sonho nem loucura”,3 referindo-se ao racional e ao controle.
Talvez comecemos a nos dar conta (e LAPASSADE já o demonstrou muito
bem em seu livro L’entrée dans la vie) que não há comportamento adulto,
que o homem está sempre por nascer, que é próprio do desejo ser deslo-
cado infinitamente, que a libido é turbulenta; que falar de comporta-
mento adulto é nomear simplesmente o comportamento perverso do
técnico e do tecnocrata que crêem na virtude de seu logos e de seus
instrumentos, além de anularem toda diferença e toda dispersão, atra-
vés da ordem, da medida, do cálculo, quando não se trata simplesmente de
aceitar a superioridade do pensamento ocidental, mestre das leis e da mor-
te, sobre qualquer outro pensamento (o da criança, o do louco, o do primiti-
vo e, portanto, o do outro, que se torna assim excluído). Quanto à vontade
de reforçar o eu consciente voluntário, ela tem por finalidade fazer calar o
desejo inconsciente, as brechas repentinas, os blocos erráticos, os “docu-
mentos” que buscam seus caminhos e seus objetos e reforçar a ilusão do eu
sólido (“sou senhor de mim mesmo como do universo”), obtido apenas

213
Psicossociologia – Análise social e intervenção

com a supressão de todo excesso e de toda novidade. Ela visa a reforçar


o que denominamos imaginário enganoso (em relação ao imaginário
criador),4 isto é, as imagens engendradas pela complementaridade dos
papéis sociais, imagens protetoras, emblemáticas e carregadas com a
submissão de cada um a seu status e a seu papel social. “Que se exploda
de carne humana e perfumada”. Esse voto de MALLARMÉ não tem
espaço algum nessa concepção. Ela parece derivar dessa máxima terrí-
vel (deformação do pensamento de FREUD): “O eu deve desalojar o id”.
Quando houver apenas Eus fortes, a humanidade estará, então, plena-
mente livre para encarar as onipotências narcíseas e para o conflito ge-
neralizado, cuja única saída é o aniquilamento mútuo.5 Certamente, de
hábito, as ações formadoras são sustentadas sub-repticiamente por dois
princípios que não têm o mesmo peso nem o mesmo sentido:
l- Toda ação de reforço do eu controlador é acompanhada por uma
aprendizagem da dúvida, do questionamento do saber obtido.
2- A ação de formação visa principalmente à adaptação a um real
cotidiano e não tem, por isso, as conseqüências que acabam de ser
enunciadas.
Como é o funcionamento desses dois princípios?
l- O primeiro é o princípio fundamental de toda Pedagogia e não
tem nenhuma originalidade. Sempre foi dito que era preciso que
as cabeças fossem bem feitas e não apenas preenchidas e que era
preciso aprender a dúvida metódica enquanto procedesse à acu-
mulação de conhecimentos. E nunca esse programa foi mantido,
pois ele não pode sê-lo, se for atravessado pela ideologia do se-
nhor. Como viver o desejo do pleno, do que tranqüiliza, do que dá
poder sobre o trabalho e outras coisas, a alegria da certeza e, ao
mesmo tempo, o seu contrário, o confronto com a finitude, a opaci-
dade, a ruptura e a falta? Nossa experiência de vinte anos como
formador e de dez anos como professor universitário nos fornece, a
cada dia, as provas de sua impossibilidade, embora não se possa
crer na impossibilidade teórica de casar essa água com esse fogo.
Aliás, não se trata aqui de uma simples metáfora. Temos de um
lado o conhecimento, como uma água calma, desenvolvendo-se
progressivamente, seguindo etapas pedagógicas rigorosamente
definidas e afogando – lenta, mas seguramente – tudo o que não
entra nas normas e na edificação de uma boa cabeça pensante. De
outro lado, temos a bola de fogo, as variações de temperatura, a
energia que se desprende, a angústia de se perder no turbilhão de
questões. Ora, como diziam os alquimistas, falando dos signos da

214
Da formação e da intervenção psicossociológicas

água e do fogo: a água apaga o fogo. Então, pode haver dúvida


apenas se ela estiver no ensino como o verme no fruto e apenas se
não houver certeza, mas uma relação angustiada com o saber.
Como escreveu Piera CASTORIADIS: “saber exige renúncia à
certeza do sabido; querer a certeza implica na recusa em reconhe-
cer que todo saber de um movimento contínuo...” Pensamento
mítico e pensamento científico mostram, a despeito de suas dife-
renças, o lugar que aí vêm ocupar a nostalgia de uma certeza per-
dida e a de um primeiro modelo de atividade psíquica no qual
saber e certeza coincidem. Se o efeito dessa nostalgia parece de-
crescer quando se passa de um discurso mítico para o discurso
científico, permanece ainda o fato de que esse último só pode
conquistar seu lugar deixando-se atribuir um objetivo semelhan-
te ao de seu predecessor: prometer ao sujeito que renuncia à cer-
teza do mito e do discurso sagrado um saber que se oferece como
uma possível via de acesso a uma certeza futura e sempre diver-
sa”.6 Ora, toda formação com objetivo científico acrescenta a dúvi-
da às certezas. Conclusão: o que permanece são as certezas, a
dúvida sendo dissipada como uma eflorescência vaga. Isso é tes-
temunhado a cada dia nos discursos dos mestres do saber que
preenchem com suas palavras o vazio de suas vidas ou mesmo
utilizam instrumentos que forjaram para dominar os outros. Os
tecnocratas, os psiquiatras aliados do poder, os sociólogos conse-
lheiros do príncipe não nos desmentirão.
2- Quanto ao segundo princípio, ele exprime o fato de que não está
em questão distribuir o conjunto do saber a todo mundo, mas so-
mente o saber útil e rentável para quem o distribui. Se os dirigentes
são formados em técnicas de gestão é para que a empresa seja mais
competitiva; se os operários especializados podem aprender cer-
tos ofícios é por que nos faltam profissionais. Se os migrantes apren-
dem a língua do país é para que se integrem melhor aos hábitos e
costumes do país que os acolhe e para que se comportem melhor
como trabalhadores. Essa falsa formação assinala o desprezo que
os dirigentes têm por seus subordinados. É como lhes dar miga-
lhas de saber que lhes permitirão ser ainda mais submissos ao tra-
balho e ao respectivo papel na divisão do trabalho.
Igualmente, se a formação tem como perspectiva fornecer aos for-
mandos o meio de ficarem mais seguros de si mesmos em seus postos de
trabalho, sem que eles possam se perguntar por que eles e não outros
ocupam esse posto ou por que esse posto existe e em que estrutura ele

215
Psicossociologia – Análise social e intervenção

ocorre, que relações de poder ele pressupõe, é preciso, então, rejeitar


totalmente essa perspectiva como perfeitamente alienante (como “pri-
vação de consciência”, como o escreveu TOURAINE7) e como reforça-
dora do processo de esquizofrenia social. Acrescentemos que, além do mais,
é ela que mais freqüentemente dirige os métodos educativos escolares e
universitários e a maior parte das técnicas dos formadores da indústria.

A perspectiva psicológica (inter-relacional)


Seremos mais breves a respeito dessa perspectiva, não porque ela
apresente menos interesse ou porque nos mostremos mais tímidos ao cri-
ticá-la, mas porque apresenta, no momento, impacto social menor (esta-
mos, aliás, no momento em que ela começa a ter o direito de ser citada).
A perspectiva fundamenta-se na idéia de que a pessoa, alienada na
sociedade contemporânea, deve ensaiar novas comunicações com os ou-
tros e consigo mesma, estar em situação de tomar consciência de seus
comportamentos e do efeito que eles têm sobre o outro, ter um outro
modo de relação com os outros, com seu corpo e com seus desejos.
Horizonte grande e enaltecedor, ao qual muitos poderiam se subscre-
ver. É talvez por essa razão que, enquanto há vinte anos os estágios de
dinâmica de grupo encontravam obstáculos (os participantes tendo
medo de se questionarem), esses mesmos estágios, assim como as expe-
riências de bio-energética, gestalt-terapia, liberação corporal e sexual, gru-
pos de encontro, passaram a ter um sucesso que parece inquietante para
quem “não faz grupo” na hora atual. Um importante dirigente interna-
cional não dizia, há alguns anos, em um congresso de chefes de empresa,
que era necessário que esses chefes seguissem grupos conduzidos por
psiquiatras para serem capazes de tolerar a ansiedade inerente à direção
das grandes empresas modernas?
O único inconveniente, mas de peso, é que a pessoa, o homem, não
existe. O que existe são indivíduos de uma dada sociedade, vivendo em
uma cultura ou em uma subcultura precisa, tendo recebido um certo tipo
de educação, inseridos em instituições e tendo um certo lugar no processo
de produção e de reprodução.
O que quer dizer aprender a comunicar? Trata-se de comunicar-se
com o patrão, a mulher, o cachorro ou com o estrangeiro que, algumas
vezes, não chega a ser considerado nem como um cachorro? Que quer
dizer reconhecer seu corpo com seus poderes aterrorizadores em estágios
onde o corpo é entregue aos outros como elemento de manipulação? Como
viver a dolorosa confrontação com esse corpo, no qual se inscreve toda

216
Da formação e da intervenção psicossociológicas

uma história, que sofre e que ama, que barra o acesso aos outros e que é
demanda de amor, contentando-se a brincar com ele como se se tratasse
de um instrumento controlável? Isso chega ao máximo nas inépcias dos
sexólogos atuais e de seus miseráveis manuais que tendem a sistemati-
zar um saber sobre a sexualidade, como se a relação passional entre dois
seres pudesse ser colocada em fórmulas, em técnicas e em posturas. Tem-
se que ser tão débil quanto os sexólogos americanos e seus discípulos
franceses (esses sendo ainda mais estúpidos que os primeiros, pois são
apenas seguidores) para acreditar nisso.
Comunicamo-nos sempre através de um conteúdo, de um dispositivo e
enquanto não questionamos esse conteúdo e esse dispositivo, não temos
nada a dizer. Certamente o amor-paixão e a ternura estão além das pala-
vras. Mas, justamente, eles não se explicam. Como escreve S. LECLAIRE:

Quando, num momento de estado de graça, ocorre-me dizer a


uma mulher: ‘eu te amo’, alguma coisa explode em mim, renas-
ço. Sua beleza desencadeia esse prodígio, feito de uma explosão
que me fascina, de uma luz na qual me banho, que dá a cada
parte de seu corpo, a seu cheiro, à sua voz, à sua pele e às suas
palavras um atrativo que nada pode desmentir.8

Pode-se apenas descrever tal estado, mas não explicá-lo e ainda menos
provocá-lo. Não se aprende o amor, pois ele é o choque de duas verda-
des que lutam contra a (e a partir da) morte.
Então, tudo seria mentiras e ilusões nesse tipo de estágio? Res-
pondemos tranqüilamente que sim, se ele tem como finalidade apren-
der a se comunicar melhor, compreender-se melhor e se ele visa à ple-
nitude. Ele é apenas uma das fabulações que o mundo moderno
encontrou para mascarar sua frieza e a generalização da separação que
ele instituiu. Em contrapartida, permite colocar a questão: de que lu-
gar eu falo, a quem falo, por que falo dessa maneira, por quem e por
que sou falado, que instituições me sustentam, que desejos elas reto-
mam ou reprimem?; então, pode-se considerá-lo uma propedêutica a
uma análise social onde cada um é ao mesmo tempo ator e analista,
sujeito e objeto de desejos contraditórios do outro. Entretanto, mesmo
nesse último caso, subsiste um problema intransponível: o da lingua-
gem (palavra ou gesto) em um lugar fechado, durante um tempo de-
terminado. Trata-se unicamente de relações faladas e, como tais, sujei-
tas a serem apropriadas pelo discurso ideológico e pelo discurso
passional imaginário. O que se troca não é o projeto comum ou proje-
tos diferentes, complementares ou antagônicos, que podem ser atua-
dos, testados no mundo, dos quais podemos experimentar a boa base e

217
Psicossociologia – Análise social e intervenção

a carga afetiva. São palavras (ou gestos) em um lugar específico, defini-


do como um lugar no qual se deve comunicar. Os mais belos discursos e
os mais paranóicos (ou, pelo menos, os mais narcíseos) podem, então,
ser trocados: alguém vai querer transformar o mundo, questionará as
instituições, os tabus, as proibições, definirá a maneira como trabalhar
(fora de lá) para a mudança social. Outro deixará se levar por suas emo-
ções, chorará (o próprio ROGERS, e ele é um bom juiz, não se definia
como o psicólogo do olho úmido?), declarará sua paixão por uma esta-
giária, estará pronto a largar mulher e filhos, vai querer se fazer amar
por todos, tomar o lugar do líder, fazer triunfarem suas fantasias, tomar
o grupo em seus desejos. Eles podem fazê-lo: nada os obriga somar o ato
à palavra, o fazer ao dizer, o tempo ao momento. Eles, ao mesmo tempo,
arriscam tudo e nada arriscam. Uma vez de volta às suas instituições,
esses discursos, essas paixões desaparecerão ou serão sublimados. Fica-
rá apenas a lembrança de um momento único, onde tudo era diferente,
onde a graça valia o peso: da impossibilidade de sair do local do semi-
nário (mesmo quando o que se passava fora tornava-se objeto de análi-
se), da necessidade de que essa experiência se passasse num prazo rela-
tivamente breve (entre uma e duas semanas), ou, no caso de práticas
aberrantes (tendo por objetivo quebrar as resistências), como os week-
ends e as maratonas, do aumento do grau de irrealidade da situação,
favorecendo os processos regressivos, as manifestações sem seqüências,
as transferências maciças, as fantasias invasoras, os choros e os gritos de
alegria. O lento trabalho do negativo, única fonte de mudança, não
pode ser feito. As pessoas são entregues diretamente umas às outras e,
assim, não se entregam, no medo e tremor, a não ser que queiram ou
possam. Mas o psicólogo está lá para as acossar, para fazê-las sair de
suas tocas, a fim de viverem sentimentos intensos, para que entrem em
uma relação de transferência. Ei-lo, super-ativo, certificando-se de que
nada lhe escapa, analisando com toda a sua força, mostrando assim
sua potência, seu rigor, seu “saber-fazer”. E talvez, de tempos em tem-
pos, de todo esse bricabraque rápido e mal-controlado, surgirá uma
palavra verdadeira que será dita verdadeiramente a alguém, surgirá
um acontecimento que é um advento de alguma coisa, entrará em jogo
um sentimento “autêntico”, irromperá um lapso, um ato-falho, um sin-
toma que engendrará o desconhecido que os participantes arrebatarão
para trabalhá-lo profundamente. Mas, na maior parte do tempo, essa
explosão, esse irromper não ocorrerá, não porá nada em movimento,
pois as palavras trocadas, embora plenas, terão sido apenas o delírio
breve de pessoas que não poderão nem quererão se reencontrar de-
pois. Como fazer com que essa experiência possa ser verdadeiramente

218
Da formação e da intervenção psicossociológicas

uma abertura para novos comportamentos e a irrupção do imaginário


motor? Essa questão será retomada mais tarde.

O discurso dos sociólogos críticos


Aqui temos que lidar com um outro tipo de discurso, que não se
pretende voluntarista e criativo como a dos formadores, ou atento e
vivido como o dos psicólogos, mas científico, evidenciando o conjunto
de significações das condutas sociais. Esse discurso se pretende totali-
zador e sistemático. Quanto a seu conteúdo, ele é chocante e desespe-
rante. Toda formação (qualquer que seja seu programa, seus métodos, a
experiência que nela se faz) é apenas uma máquina para reproduzir as
desigualdades sociais, para expressá-las ou mesmo provocá-las. Afi-
nal, toda educação serve apenas para veicular a ideologia dominante,
divulgá-la nas massas dominadas e, assim, é o veículo privilegiado da
dominação social.
Não é nossa intenção buscar desmentir essa conclusão, que se apoia
em uma massa de trabalhos notáveis e que permitiu colocar em perspec-
tiva e questionar duramente o conjunto de métodos educativos. A mensa-
gem dada, em sua aridez, parece-nos aliás exata e corresponde a nossa
própria experiência.
Mas, então? Vemos que o que é dito é, simultaneamente, exato e peri-
férico (não tocando no essencial). Por que periférico? Uma comparação
permite situar nosso pensamento. Muitos autores (inclusive nós) mostra-
ram a influência da instituição analítica na prática da Psicanálise, o papel
do analista como a última e a mais forte personagem médica, aquele que
dita a norma (M. FOUCAULT), o sentido social do desenvolvimento da
Psicanálise e alguns de seus aspectos repressivos (CASTEL, DELEUZE e
GUATTARI). Sem dúvida, em muitos aspectos, eles têm razão (mesmos
se considerarmos os excessos de seus discursos). O único senão é que,
como muito bem o diz J.-B. PONTALIS, “A Psicanálise é o que se passa em
Psicanálise”, é essa troca de palavra, é esse turbilhão do amor e da morte,
é o encontro indefinidamente repetido do desejo e da lei, da falta e do
gozo que se passam no espaço onde dois seres se encontram.
Igualmente, na formação, o que é essencial é o que se passa no cam-
po formador, é a capacidade inventiva dos participantes, é a sua desco-
berta de si próprios e do mundo que os rodeia, é a tomada de consciên-
cia de sua determinação e de sua vontade de fazer. Além disso, falemos
sério: se a educação fosse apenas transmissão da ideologia dominante,
como os sociólogos – criados pelo sistema educativo – seriam capazes

219
Psicossociologia – Análise social e intervenção

de criticar essa ideologia dominante? Se eles haviam interiorizado plena-


mente essa ideologia, a partir de que poderiam questioná-la? Além do
mais, se a ideologia dominante tem necessidade de se exprimir é que,
justamente, ela não chega a ser totalmente dominante; se ela o fosse, não
teria mais necessidade de existir e de ter seus arautos e seus porta-vozes.
Encontramos aqui o que sustenta o discurso dos sociólogos e o que
lhe falta: o que o sustenta é a crença em um mundo unificado, homogêneo,
explicável por um único tipo de lei, crença da qual decorre a tendência
que eles têm a simplificar seus enunciados; o que lhes falta é considerar o
que se passa no concreto cotidiano, isto é, os movimentos sociais emergen-
tes, a transformação das relações sociais,9 as palavras inovadoras e as
ações sociais, em uma palavra, a vida.
É por isso que o discurso dos sociólogos provoca ao mesmo tempo
esse duplo sentimento de exatidão e de aborrecimento mortal, de consta-
tação aguda e de desmobilização geral. Seus enunciados são tão gerais,
tão sistemáticos, que só nos resta, depois de tê-los escutado, cruzar os
braços ou desejar mudar o conjunto do sistema, o que tem como conse-
qüência deixar-nos estupefatos diante do tamanho da tarefa.

Os impactos reais e os limites


da formação psicossociológica
Agora é o momento de deixar de lado nossa perspectiva crítica, mes-
mo se, nas Questões propostas, tenha sido possível ler, em filigrana,
quais eram os princípios que guiavam nossa ação. Para que não reste
nenhuma ambigüidade relativa à nossa intenção, exporemos uma série
de proposições que nos permitirão mostrar o que a formação não pode
fazer e, ao mesmo tempo, o que não se pode esperar dela, o que ela escon-
de em seu próprio movimento.

É preciso abandonar definitivamente o termo formação


Trata-se de uma experiência, de um processo, de um trabalho de
mudança, não de uma formação (a rigor, pode-se falar de de-formação e
de trans-formação).
O objetivo não é o de formar indivíduos para serem ou fazerem
alguma coisa. É o de permitir que pessoas situadas sexualmente, pro-
fissionalmente e socialmente se mexam, isto é, que elas possam pen-
sar de forma diferente a respeito de Questões novas, com outros tipos
de relação com o outro e tendo um acesso menos temeroso a seus
desejos e interditos.

220
Da formação e da intervenção psicossociológicas

O dispositivo (integrando o papel do psicossociólogo)


deve ser coerente com esse projeto
Quer se trate de favorecer o movimento, as correntes de informa-
ção, a criação de negentropia (isto é, de uma nova ordem vivendo a par-
tir da desordem), o retorno do recalcado social ou uma experiência de
mudança, o lugar do psicossociólogo deve ser um lugar vazio. Ele não
está lá como alguém que possui o saber (e que o distribuirá), ele não está
lá para apontar as inibições e os bloqueios, para provocar as pessoas a
dizerem ou a falarem, ele não é o portador do sucesso da experiência.
Ele está lá simplesmente como uma referência, instituído como o porta-
dor da lei sobre a qual os desejos se escoram, um terceiro garantindo o
vínculo social e questionando a relação dual; ele é a testemunha de que
o dito será escutado e não será esquecido.
Ele está lá sem desejo e sem compreensão particular, ele não quer
que as pessoas se tornem isso ou aquilo ou cheguem a um objetivo
específico predeterminado. Ausente, mas, através dessa ausência, pro-
vocando a vontade de respirar, uma movimentação de energias. Quan-
do ele intervém, ele o faz de forma diferente e de outro lugar que não
o esperado, ele está sempre deslocado em relação ao que se está a pon-
to de viver. Mesmo quando faz uma exposição (e por que, aliás, ele
deveria se calar?), o que ele exprime não é resposta às Questões que o
grupo se coloca, mas uma problemática, um encadeamento de Ques-
tões, um jogo de luz sobre certos pontos que, assim, fazem surgir
formas da sombra; ele oferece não um saber, mas sua relação com o
saber, suas falhas, suas interrogações e também suas paixões, seus
entusiasmos. Ele está lá vivendo, ele próprio preso à desordem e à
procura de uma ordem, indicando, por isso mesmo, que também ele
é possuído pela palavra e pelo desejo, que ele não pode portanto ser
situado num lugar determinado, que ele está sempre deslocado (como
o próprio desejo), resvalando, e que ele não é alfinetável nem tentará
alfinetar ninguém ou atribuir lugar a um outro. Por meio dessa au-
sência-presença, dessa desordem-ordem, desse lugar desocupado e
fugidio, ele acompanha o movimento das pessoas no grupo, suas idas
e vindas, suas descobertas e suas resistências.

As instituições fazem parte do campo de análise


Os participantes que estão presentes existem, na situação, em suas
diferentes dimensões: culturais, políticas, organizacionais. São homens
e mulheres que têm papéis sociais (membro de um quadro de pessoal,

221
Psicossociologia – Análise social e intervenção

enfermeiras, formadores etc.), vivem em organizações específicas, ten-


do um passado, projetos sociais, tomando certos caminhos e não ou-
tros. Não são pessoas ou seres desencarnados; por isso é essencial que
se trabalhe suas relações concretas com as respectivas vidas e com os
outros, com as instituições que lhes falam e que eles fazem falar. Por
isso o trabalho do grupo será centrado, não nas relações aqui e agora
entre indivíduos sem passado e sem futuro, mas naquilo que as rela-
ções vividas nessa situação exprimem, refletem ou transformam nas
relações vividas em outro lugar, na medida mesmo em que esse outro
lugar está presente no grupo (é bem por causa desse outro lugar que
eles vieram viver essa experiência). No caso contrário, as diferenças
são apagadas, os conflitos não têm mais espessura social, a relação
com o saber é suspensa no vazio, as escutas recíprocas são apenas
fruto das simpatias e das antipatias espontâneas. Ora, tal funciona-
mento é profundamente mistificador. Um exemplo, entre cem, per-
mitirá precisar esse ponto: em um estágio com os responsáveis hierár-
quicos de uma empresa, um dos membros do grupo era particularmente
escutado, praticamente nunca era contradito e, quando se pôs a evo-
car seus problemas afetivos, o resto do grupo o seguiu em bloco. Um
outro participante manifestava, com relação a esse personagem, uma
atitude de deferência e de sedução, além de estar sempre pronto a
antecipar seus desejos e a satisfazer suas mínimas vontades. Como
interpretar tal situação, caso não se saiba que o homem respeitado
era um dos grandes dirigentes industriais do país, que sua palavra e
suas decisões “valiam ouro”, caso não se saiba que esse homem se-
dutor acabava de perder o seu emprego em um escalão superior e
esperava fazer boa figura para conseguir um emprego ou para estabe-
lecer uma relação com uma pessoa poderosa que lhe permitisse reen-
contrar trabalho, o mais rápida e seguramente possível? Pode-se já ima-
ginar o que um especialista de relações humanas, pedindo que as
pessoas do grupo se dirijam umas às outras informalmente, usando os
nomes próprios sem os títulos e posição social, teria podido fazer como
interpretação em termos de liderança espontânea, de relação de iden-
tificação ou de submissão homossexual!
Essa perspectiva parece-nos mais importante ainda porque, não há
muito tempo, os participantes hesitavam em falar a respeito de si própri-
os, de suas relações afetivas, de seus corpos e, hoje, a resistência se deslocou.
Os participantes desejam falar de si próprios e de seus problemas, para
não falar de sua situação econômica, de seu lugar no processo de produ-
ção e na estrutura de dominação social.

222
Da formação e da intervenção psicossociológicas

Tal trabalho deve reintroduzir a dimensão temporal


Quanto mais o estágio for curto, intensivo, de breve duração, me-
nos tal processo pode ocorrer. O estágio “bloqueado” por um período
curto favorece fenômenos irreais, a imersão na vida aqui e agora, o foco
em relações afetivas imediatas, o desenvolvimento de fantasias de oni-
potência e a manutenção de máscaras sociais. Para que os participantes
possam estar verdadeiramente lá é indispensável que os estágios sejam
distribuídos no tempo e que um trabalho de maturação possa ocorrer
nos intervalos (que são os momentos da vida cotidiana) nos quais os
participantes se reencontrem consigo mesmos e com as estruturas nas
quais vivem. É por isso que somos partidários de estágios longos, de 15
a 40 dias (distribuídos em seis meses, um ou dois anos), nos quais cada
sessão é continuamente reinvestida pelo que as pessoas viveram, reali-
zaram, construíram ou destruíram em seu meio real.

Esse trabalho de mudança não passa mais por um


lugar fechado privilegiado nem pela simples palavra
Esse princípio resulta necessariamente do anterior. O lugar fechado,
lugar de análise, é aberto sobre o mundo exterior ou, mais exatamente, o
mundo exterior (o do cotidiano) está presente no estágio. Em cada sessão,
os participantes falam do que fizeram, experimentaram, sentiram em seu
ambiente de trabalho ou em seu meio social. Não estão lá como pura
presença, mas como portadores de suas angústias, de suas tentativas, de
seus sucessos. Os membros do grupo trabalham sobre esse material, ima-
ginam soluções, fazem propostas, experimentam comportamentos que
tentarão prolongar. As palavras trocadas nesse lugar definido engendra-
rão outras palavras, fecundarão novas atitudes, os desejos emergentes e
reconhecidos poderão fazer surgir novos desejos, outras palavras soci-
ais, outros atos sociais, da mesma forma que as condutas vividas no lugar
habitual “trabalharão” as condutas surgidas no estágio e poderão provo-
car novas rupturas no indivíduo, novas faltas sobre as quais se articularão
outras demandas. A partir do momento em que o desejo circula, em que as
palavras se transformam em ações e em que as ações são analisadas, reto-
madas, aprofundadas, confrontadas, não há mais dicotomia entre ato e
palavra, conduta e gesto, ação real e ideologia, o imaginário que aí está
torna-se imaginário motor, imaginário instituinte.

O processo de mudança é descentralizado


Enquanto toda formação visa ao reforço do eu consciente e toda pers-
pectiva estritamente psicológica tem como finalidade a plenitude afetiva, a

223
Psicossociologia – Análise social e intervenção

comunhão, a compreensão autêntica ou o reencontro de um “Eu e Você”,


o processo de mudança que tentamos descrever visa à dissolução da perso-
nalidade organizada, a colocação em movimento de forças de descons-
trução e de reconstrução, o aparecimento da desordem no organismo esta-
bilizado. Trata-se, então, de uma situação na qual todas as relações
(consigo mesmo, com o outro, com o saber) são descentradas, a fim de
que a energia livre, a loucura e o sonho possam ter, de novo, direito de
atuarem. Toda formação e toda educação visam a recalcar certas pul-
sões, a precluir certos registros (da paixão, do excesso, do gozo). Aqui, o
que é excluído tenta (freqüentemente com muitas dificuldades e resis-
tências) se manifestar, falar, ter efeitos. Daí os momentos tão diferentes
na vida da sessão. Momentos de mutismo e de temor, discursos ideoló-
gicos desenfreados, períodos de análise refletida, momentos de embota-
mento, de necessidade de alimento, irrupções vulcânicas, expressão grá-
fica etc..., a periodicidade desses momentos, sua cronologia e sua
importância não podendo absolutamente serem previstas. E é a própria
ausência de previsão que faz com que o grupo tenha uma história, viva
paixões, se interrogue sobre si mesmo, possa, talvez, ver surgir em seu
seio outras linguagens ou mesmo um além da linguagem.
Não está, naturalmente, em questão visar à dissolução pela dissolu-
ção. O que está em jogo é que sabemos que a ordem se constitui a partir da
desordem, que o amor inexiste sem a experiência da morte, que a lei e o
desejo reciprocamente se fundamentam. É em direção a essa experiência
originária que tentamos avançar, todos juntos, mas cada um tendo uma
relação específica com os outros e consigo mesmo.
Não nos enganemos entretanto. Essa experiência da heterogeneida-
de, do saber alegre, do fogo e mesmo do caos, nesse processo que, por
enquanto, somos ainda obrigados a chamar de formação psicossociológi-
ca, reencontra muitos obstáculos ou, algumas vezes, impossibilidades
totais. Enumeremos rapidamente algumas dentre elas, evidentes para to-
dos os que têm alguma experiência nesse domínio. Resistência vinda de
indivíduos em formação, que poderão manifestar um “medo da liberda-
de”, uma angústia diante do desconhecido, um temor do esfacelamento e
da dissolução definitiva e que solicitarão, ao contrário, ser protegidos, ter
caminhos balizados, sair com certezas e instrumentos de ação comprova-
dos. Eles dirão também que não querem a vacilação da neurose, mesmo se
ela pode se tornar criativa, mas que a perversão (a manipulação das técni-
cas) lhes assenta melhor. Resistência igualmente das instituições e orga-
nizações que delegaram participantes às sessões e que querem vê-los re-
tornar mais bem adaptados, mais dinâmicos, depois de terem liquidado

224
Da formação e da intervenção psicossociológicas

seus problemas e, sobretudo, não tendo a intenção de transformar a ins-


tituição na qual vivem. O que é demandado é a formação de melhores
administradores (melhores formadores, empregados ou assistentes sociais)
e não o nascimento de atores sociais que tenham projetos sociais e este-
jam prontos a neles investir. Naturalmente, resistência também da parte
da instituição de formação e do psicossociólogo, que arriscam ser colo-
cados dolorosamente em questão, pela experiência de viver uma via-
gem na qual eles também podem descobrir não a terra incognita, mas a
confusão, a dificuldade intransponível, a utopia e a inquietante finitude.
E eis que o psicossociólogo que queria se lançar ousadamente em uma
nova experiência, se transformará em um simples prestador de serviços,
um contabilista escrupuloso do progresso ou das dificuldades de seu
grupo. Enfim, há ainda o maior obstáculo: o fato de que essa “formação”
é dirigida a indivíduos e não a grupos reais existindo em organizações
específicas. E que, mesmo se os participantes podem, entre as sessões,
quando retornam às suas organizações, tentar experimentar novas con-
dutas, provocar mudanças, eles reencontram a inércia das estruturas, se-
não a violência simbólica da organização, o espanto e o desprezo de seus
colegas. Essa experiência da margem, que deveria transformar o que está no
centro, torna-se uma experiência de marginalização e de exclusão progressi-
vas. É por isso que não é possível tentar ultrapassar esse obstáculo, senão
abandonando progressivamente todo projeto formador (mesmo se ele se
assemelha ao que descrevemos) e optando, deliberadamente, por formas
mais ativas de trabalho no interior do social. É a isso que a intervenção
psicossociológica tenta responder.

Intervenção psicossociológica, seu


modo de existência, seu possível devir
Não está em questão aqui, naturalmente, tentar descrever os di-
versos aspectos da intervenção, as numerosas escolas, suas metodolo-
gias e seus objetivos freqüentemente contraditórios, mas simplesmen-
te precisar os contornos das razões de ser, para nós, da intervenção, o
que ela busca induzir, o que ela não poderá jamais realizar. Procedere-
mos como nos parágrafos que trataram da formação, avançando uma
série de proposições.

Na intervenção, o psicossociólogo encontra grupos reais


Para que um processo de mudança possa ser inaugurado, é necessá-
rio que ele seja evocado, vivido e experimentado por grupos que têm certas
zonas de liberdade e de responsabilidade. Trata-se, então, de trabalhar

225
Psicossociologia – Análise social e intervenção

com grupos reais, isto é, grupos que têm um certo lugar na estrutura da
organização, no processo de trabalho, na hierarquia interna, que têm
problemas concretos (de decisões, de melhoria de condições de trabalho,
de definições de tarefas etc.) e que desejam resolvê-los. A intervenção,
então, numa primeira análise, permite às pessoas falarem de sua vida
cotidiana, de seus sofrimentos e de suas esperanças e de se assumirem,
a fim de explorarem as vias que favorecerão a resolução de seus proble-
mas. O que está presente não é, como na formação, uma situação irreal,
mas, ao contrário, toda a violência do cotidiano que, além do mais, im-
pede de ver e de sentir outra coisa.

A palavra é tomada progressivamente


pelos novos atores sociais
No próprio processo de intervenção é importante que todos possam
se expressar. Não por razões morais, mas porque sabemos que toda orga-
nização recalca não apenas certos desejos, um certo modo de linguagem
e de relações com os outros, mas, antes de tudo, recusa a alguns o próprio
direito de falar. Tudo se passa como se essas pessoas não existissem ou,
mais exatamente, existissem como executantes da máquina, como submis-
sos, não como atores sociais tendo alguma coisa a dizer sobre o andamen-
to da organização (assim, durante muito tempo, os estudantes não tive-
ram nada a dizer sobre o funcionamento da universidade e os operários
especializados sobre o andamento da fábrica e de seu trabalho). Essa
recusa, consciente ou inconsciente, é vivida como uma forte restrição (uma
repressão) e induz fenômenos de resistência implícita (barulho, desor-
dem nas salas, absenteísmo, desperdício, atraso e sabotagem da produ-
ção nas fábricas). A palavra reprimida, para se expressar, só pode fazê-lo
de formas selvagens que remetem à impossibilidade para essas pessoas de
se sentirem como tendo uma palavra e um desejo que podem ser reconhe-
cidos e ouvidos. É por isso que a intervenção não pode se contentar em
favorecer a reflexão, a discussão entre os que têm o direito reconhecido
sobre o controle da linguagem (o que apenas manteria a segregação social
na organização), mas ela deve facilitar a expressão dos excluídos e susci-
tar o nascimento de novos grupos sociais que provocam, assim, uma certa
fissura no organograma da organização.

A palavra se desloca em direção a novos campos


e a novos objetos sociais
No começo, os participantes estão aprisionados em seu vivido ime-
diato, nas estruturas tais quais são dadas e que representam para eles

226
Da formação e da intervenção psicossociológicas

praticamente a natureza das coisas. Sua imaginação é pobre e eles se


contentam com imagens estereotipadas. Numa pesquisa efetuada pela
C.F.D.T. nota-se que vários trabalhadores criticam o autoritarismo dos
chefes e pedem bons chefes que considerem suas qualidades de seres
humanos e que possam igualmente respeitar a si mesmos. Nenhum co-
loca em questão a distinção chefes-trabalhadores, pensamento-execu-
ção. Essa distinção instituída está perfeitamente interiorizada. Colocá-la
em causa seria um salto mental, afetivo e político que os trabalhadores
seriam incapazes de dar pois nada os preparou, progressivamente, para
imaginarem algo que para eles é da ordem do inimaginável e do impos-
sível. É por isso que o trabalho com os grupos deveria ter como objetivo
não apenas que os grupos tratem finalmente dos problemas que lhes
dizem respeito diretamente, mas que possam também (e talvez mais
tarde) evocar tudo aquilo que habitualmente não lhes diz respeito. Trata-
se aqui de dar uma olhada naquilo que não pode ser visto (por essas
pessoas), de falar sobre aquilo que não se deve dizer. É imiscuindo-se
nos assuntos dos outros que cada um poderá descobrir que o que está em
jogo lhe diz também respeito. Mas, para que o olhar se desloque, para
que possa interrogar o oculto, ele é obrigado a se tornar um outro olhar
lançado por uma outra pessoa. Isso quer dizer que as pessoas terão apren-
dido a sonhar, a deixar seus desejos serem expressos, a aceitar sua parte
de loucura, a não se deixarem aprisionar pelas representações habituais.
Para que um trabalhador se interrogue a respeito da distinção patrão-
empregado, talvez seja preciso que ele se interrogue sobre a distinção
homem-mulher, pai-filho ou ele-outros, ou que possa pensar de fora da
fábrica, examinar os vínculos entre a fábrica e o sistema econômico. Não
se trata de sonhar por sonhar, mas de poder reintroduzir essa parte de
sonho ativo, transformador do mundo, que faz surgir um real além do
real percebido, um real rasgando os véus da realidade tal como ela é
sempre mostrada pelos guardiães do poder.

O imaginário e o simbólico
A experiência a ser promovida é bem a do imaginário motor, do
imaginário instituinte das relações novas entre si e as coisas, entre si e o
outro, transcrevendo os desejos na ordem organizacional e aí introduzin-
do rupturas, “ruídos”. O que resulta, então, é a subversão da ordem sim-
bólica reinante que se exprime pelo organograma, pelas relações codifica-
das, relações de poder e separações instituídas. É a busca de uma nova
ordem simbólica que só pode existir na medida em que ocorrem atos novos,
na medida em que as relações se desestruturam e se restruturam de outra

227
Psicossociologia – Análise social e intervenção

forma, onde a lei, em lugar de ser transcendente aos seres e encarnada


em um único, é o que permite a troca e a reciprocidade, ou, então, é lei
retomada, transformada e garantida por cada um. Assim, a mudança
em um estabelecimento educativo para as crianças especiais passa por
uma quebra das relações codificadas entre o diretor, os psiquiatras, os
psicólogos, os educadores chefes e especialistas, pessoal de cozinha e de
limpeza, além das crianças. Essas relações não podem mais ser escritas
na ordem em que acabam de ser enunciadas e que é bem a ordem hierár-
quica. As posições, ao se deslocarem, fazem da criança também um edu-
cador, levam o pessoal a também intervir na gestão do estabelecimento,
o diretor se torna pedagogo e é questionado em sua função de direção.
Esses deslocamentos não desembocam na confusão, mas em uma maior
fluidez, numa decodificação das relações, numa análise em ato da orga-
nização, na evidenciação de que tudo está sujeito a questionamento e
que, dessa ruidosa confusão, pode sair a surpresa, o inesperado, isto é,
uma nova forma de educação, outras formas de relação e outros modos
de estruturação. O que significa que o imaginário faz surgir uma capaci-
dade maior de análise do conjunto dos participantes, cada um se tor-
nando, à sua maneira, ator e analista social. O que significa, igualmente,
que o surgimento do imaginário, sem análise, promete apenas, a médio
prazo, decepção, angústia sem freio e desejo por parte de todos de retor-
nar um dia à ordem antiga.

Os modos de pensamento e a linguagem são questionados


Para que o imaginário abra seu caminho e para que a análise possa
tomar corpo, é necessário que os modos de pensamento, a linguagem
utilizada e as problemáticas que eles instauram possam ser desviados,
subvertidos ou, no mínimo, interrogados. Já foi mostrado acima que o
sonho poderia ter lugar nos grupos. Isso quer dizer que o modo de pensa-
mento lógico, com seus argumentos e suas demonstrações, sua cronolo-
gia e suas articulações, deve se encontrar e se confrontar com um modo de
pensamento associativo, imaginativo, analógico, metafórico, no qual as
coisas e seus contrários possam ser considerados, no qual as relações de
equivalência (mesmo absurdas à primeira vista) possam ser colocadas.
Pois o modo de pensamento lógico é o modo de pensamento do senhor. Ele
distingue, ele classifica, ele exclui e, dessa maneira, enquadra e fecha as
pessoas nessa moldura que ele lhes prepara. Certamente o pensamento
dito racional é também aquele do controle das coisas e da natureza. Mas
sabemos muito bem com que facilidade pode-se passar do controle e da
administração das coisas à dominação dos homens. Aliás, a própria idéia

228
Da formação e da intervenção psicossociológicas

de controle da natureza, visão de um combate a empreender e de um


adversário a submeter, já não indica que as relações de cumplicidade, de
intimidade, de calor e de dádiva que o homem pode manter com a natu-
reza deixam lugar para tendências predadoras? Certamente também o
pensamento racional permite a comunicação universal e o desenvolvi-
mento científico e técnico. Mas aí também sabemos que, na realidade,
ele é apenas o apanágio de alguns e que o discurso científico é também o
discurso que exclui de seu campo a experiência diária, a invenção popu-
lar, as “estórias de comadres”, isto é, o repertório de saberes práticos e
de imaginação de culturas inteiras. Naturalmente, não nos propomos
fazer pouco caso do pensamento lógico. Buscamos, antes, reintroduzir a
poiesis (criação)10 nas formas de fazer e na teoria, o homo demens no homo
sapiens.11 Queremos dizer que a verdade, para ser expressa ou reencon-
trada, pede que cada um pense e viva na contracorrente. FREUD procla-
ma em bom som essa idéia quando escreve (na “Interpretação dos So-
nhos”): “O autor da interpretação dos sonhos ousou tomar o partido
dos antigos e da superstição popular diante do ostracismo da ciência
positiva”. Essa perspectiva não o impedirá, pelo contrário, de fazer, como
ele próprio o diz, da Psicanálise uma arte de construção, utilizando suas
qualidades de erudito e sua exigência de rigor. Se as pessoas deixam
unicamente seus desejos e inconsciente falarem, submetem-se ao princí-
pio do prazer, recusam o princípio da realidade e tornam-se incapazes
de pensar o limite. Mas, inversamente, se elas querem se definir apenas
em relação à realidade, falarão, então, apenas daquilo que os que mode-
lam e mostram a realidade querem deixá-las falar. Não se trata apenas
do modo de pensamento, mas também da linguagem utilizada. As pes-
soas se submetem, nas organizações, à língua (a parte social da lingua-
gem) dominante. Assim, muitos trabalhadores dizem que não possuem
o vocabulário que lhes permite se expressarem e numerosos chefes de
empresa utilizam tal situação para propor como “palavra de ordem”
uma formação com base na expressão escrita e oral que visa a conseguir
que cada um fale e escreva como se deve falar e escrever. Ora, a língua,
sob certos aspectos, é como o dinheiro, um elemento de mascaramento
do sistema social. MARX mostrou como o dinheiro mascara a natureza
do sistema capitalista, isto é, o sistema de exploração e de apropriação
da mais-valia do trabalho. A língua, por sua vez, dissimula, atrás da ima-
gem de falar bem, do bom estilo, da ortografia necessária, o roubo da
língua espontânea, da criatividade diária dos grupos sociais. Quando,
na França, a língua se torna sofisticada com MALHERBE e a academia,
rejeita-se definitivamente uma linguagem viva, colorida, divertida, vin-
da das tripas que RABELAIS elevou à quintessência, isto é, a verdadeira

229
Psicossociologia – Análise social e intervenção

linguagem popular. Por isso, a partir do Século XVII, a literatura estará


reservada aos salões e às suas cabalas miseráveis, não tendo mais ne-
nhum elo com as esperanças, os sonhos e os sofrimentos da gente miú-
da. A mesma coisa ocorre hoje. Há uma língua dominante, a dos tecno-
cratas, que são os que podem traduzir, em boa linguagem, precisa e
cifrada, argumentada, as idéias e opiniões dos que não sabem falar (ou,
mais exatamente, dos que não sabem falar como se deve falar em uma
sociedade tecnocrática). Eis que chegou o tempo dos tradutores, dos por-
ta-vozes e também dos especialistas que protegem seu saber (ou o seu
simulacro de saber) sob a alta tecnicidade das palavras que utilizam.
Mas os tradutores traem, os porta-vozes mascaram e os especialistas
reduzem. É indispensável que essa língua do poder possa ser recoloca-
da em seu lugar: não o da necessidade e da natureza das coisas, mas o
da dominação que ela instaura.
Aliás, todo mundo, confusamente, se dá conta disso. Quando se vê a
maneira como os jovens se exprimem, quando se escutam as palavras que
eles utilizam, as frases que inventam, pode-se constatar que eles se prote-
gem, dessa forma, do mundo adulto (e o atacam). Se os mendigos têm sua
gíria é porque toda língua é constitutiva de um grupo social e é uma membra-
na que o protege contra os outros. Se, então, os guardiães do poder têm uma
língua é bem para se constituírem em classe dirigente, para se protegerem
dos outros atores sociais, para culpabilizá-los por não saberem se exprimir,
para obrigá-los, fazendo-os aprender a falar, a pensar como eles e para sur-
girem como os únicos e bons tradutores de suas vontades e de suas espe-
ranças. É também por essa razão que todos os movimentos de contestação
cultural reivindicam, antes de mais nada, reencontrar sua língua, fazê-la
viver, experimentar o seu calor. É também por essa razão que cada vez que
é possível explicar as coisas na modalidade da linguagem habitual o saber
dos especialistas se cinde12 . É por isso que atacar a língua dominante,
inventar um falar, reencontrar a língua perdida, mudar o sentido das pala-
vras eqüivale a colocar a nu a problemática de dominação-submissão que
é constitutiva do falar dominante.

A instância política (o poder) está no campo da intervenção


Essa longa passagem por modos de pensamento e pela língua nos
permite caminhar agora mais rapidamente e chegar ao próprio centro
da questão: o poder instituído. Isso quer dizer que toda intervenção é
uma questão de poder. Não apenas de autoridade, de modalidade de
comando, mas de poder: da lei, de seus mandamentos, da tecnologia
que ela utiliza e que a faz existir. Veja-se bem a dificuldade, pois o

230
Da formação e da intervenção psicossociológicas

solicitador de uma intervenção, quem quer que seja (dono de empresa,


membros do comitê de empresa, diretor de hospital ou auxiliares de
enfermagem), nunca solicita que o poder que ele representa seja questi-
onado, mas, ao contrário, quer que ele seja reforçado. A intervenção, a
menos que ela seja simplesmente uma ação de apoio estratégico de al-
guns contra outros, terá necessariamente de questionar qualquer forma
de poder. Na própria medida em que leva as pessoas e grupos a se inter-
rogarem, a se informarem, a se comunicarem em suas diferenças e con-
flitos reais, nunca é resposta a um problema (responder é controlar, o
senhor das respostas é simplesmente o senhor), mas sim questionamen-
to infinito, interminável. Ela destrói as certezas e introduz o novo e o
descontínuo. Porque ela não pode estar a serviço de um poder nem de
um sistema de poder, sendo inauguração de uma palavra nova, choca-
se violentamente com as estruturas, os hábitos, as resistências. FREUD
dizia em “Os chistes e sua relação com o inconsciente”: “Penso que re-
sistências emocionais fundamentais obstam o caminho da aceitação do
inconsciente, fundadas no fato de que não se quer conhecer o próprio
inconsciente, sendo, então, o plano mais conveniente a negação comple-
ta de tal possibilidade.” É possível deslocar essa frase de FREUD e dizer
que ninguém quer conhecer todo o poder de que dispõe, nem renunciar
a seu poder. Então, quando estão no campo de análise não apenas as
relações, as comunicações interpessoais e intergrupais, os estilos de au-
toridade, mas também quando o poder está em jogo, a intervenção pára,
agradece-se ao interventor, pois foi através dele que o escândalo ocor-
reu. Entretanto, se uma demanda lhe foi feita, foi porque os solicitadores
experimentavam dificuldades e aceitavam, dentro de certos limites, co-
locar-se em questão. Mas, justamente, o interventor ultrapassou o limite.
De qualquer maneira, introduzindo uma falha nos poderes constituídos,
permitindo a novos atores se expressarem em novos campos, com uma
outra linguagem, ele lhes permitiu, assim, (mesmo se sua ação está além
do poder) experimentar seu próprio poder, sua vontade instituinte e, en-
tão, favoreceu o conflito assumido às custas do consenso que mascarava
os antagonismos. Assim, ele cheira a enxofre e deve ser sancionado.

Interesse e limites da intervenção psicossociológica


Resta apenas, então, o fracasso inelutável ou só a possibilidade de
um trabalho superficial, que não atrapalha ninguém e que permite ao
interventor facilitar algumas tomadas de consciência de problemas peri-
féricos, permitindo-lhe ter uma consciência tranqüila e assegurando-lhe
um ganho substancial e uma posição social invejável? Achamos que essa

231
Psicossociologia – Análise social e intervenção

alternativa não tem nenhum sentido, que, se ela se coloca, é em refe-


rência a uma vontade instauradora de poder por parte do interven-
tor, que só poderá viver, então, em meio a oscilações constantes e
bruscas entre a onipotência e a impotência, colocando-se como um
shaman ou um mártir, pólo de identificação ou bode expiatório. O
que ele é: simplesmente o avalista de uma possível análise, das fun-
ções elucidativas, de uma tentativa de desvelamento de relações so-
ciais, daquilo que está “ocupado por uma mentira” (LACAN). O que
ele traz: a possibilidade para o outro de ter acesso à sua própria pala-
vra, à sua linguagem e de tentar traduzi-las em ações significativas,
de se dar orientações normativas e inaugurar outros modos de relacio-
namento. Ele não é nem o revolucionário nem o reformista. Não sabe
pelos outros, não os conduz em direção a nenhum resultado. Ele ape-
nas lhes entreabre caminhos que eles desejam buscar. Também não se
pode dizer que ele fracassou, quando se viu excluído por ter permitido
que a questão do poder fosse colocada (para todos e por todos). Pois,
não lhe cabe questionar os poderes; é aos atores sociais reais, aos gru-
pos sociais existentes ou emergentes que cabe promover (nos outros
e em si mesmos), através de ações, os movimentos sociais, a tomada
da palavra e outros modos de relações sociais. Ele não realiza nenhu-
ma mudança, mas favorece o desejo de mudança. Ele não transforma
as estruturas, mas permite ao outro querer modificar as estruturas de
acordo com sua vontade. Ele não analisa sozinho, mas cuida que as
funções de análise existam e se exerçam no grupo. O que ele sabe bem,
em contrapartida, é que, sendo alguém que incomoda, procedendo por
deslocamentos e rodeios, seu trabalho só pode ser lento, encontrar re-
sistências vivas e não satisfazer a ninguém. Não deve esperar triunfo
nem sacrifício: sabe apenas que um movimento começou a existir,
energias começaram a circular, palavras a serem ditas, dispersões a
se operarem, eus a se abalarem. Quanto ao valor e à importância des-
se movimento, ele terá uma idéia somente muito mais tarde, se hou-
ver uma germinação ao invés de um fechamento.
Porém, esses resultados (que podem ser estimados como muito fra-
cos) só podem ser considerados se forem acompanhados por certas carac-
terísticas das situações em que ocorrem:
1- Quanto mais o interventor for chamado por grupos compostos por
voluntários, sem muita hierarquização interna e sem opacidades
devidas a problemas de status social e de sucesso econômico, mais
poderá efetuar um trabalho de análise que será completado e apro-
fundado por esses grupos.

232
Da formação e da intervenção psicossociológicas

2- Quanto mais intervier em meio aberto (e não em organizações


mais ou menos fechadas): grupos de responsáveis por diferentes
empresas, professores de diferentes estabelecimentos da educa-
ção nacional, agricultores tendo interesses em comum, mais será
possível que sua ação de elucidação seja prolongada por inter-
venções de pessoas colocadas estrategicamente em diferentes
pontos do poder.
3- Quanto mais seu trabalho tiver efeitos de treinamento e for mul-
tiplicado em diferentes grupos e organizações por aqueles com
quem ele colaborou, mais nos aproximamos de um processo cu-
mulativo, provocando mudanças notáveis nas relações e na pró-
pria textura das relações de poder.
4- Em contraposição, quanto mais ele intervier em organizações
fortemente estruturadas e hierarquizadas, onde cada um deve
defender sua identidade social e seu sucesso econômico, mais
ele arriscará ser atado pelos desejos contraditórios dos partici-
pantes, mais sua ação será limitada a certos grupos, mais seu
trabalho será suspeito e provocador de resistências. Isso não sig-
nifica que ele não deva intervir em tal contexto, mas que ele
deve saber, desde o início, que rearranjos mínimos favorecidos
por ele provocarão contra-ações, questionamento do seu valor e
da pertinência de suas ações. Suspeito por todos, manipulado
(mais ou menos) pelos diferentes grupos, traidor em potencial,
sua posição nada tem de confortável. Pode, então, inclinar-se à
rigidez ou, ao contrário, a conluios que retirarão toda a eficácia
de sua atividade ou que farão dele outro agente do poder local
ou da contestação instituída.
Anteriormente, havíamos dito que era preciso não ter grandes ilu-
sões a respeito da formação psicossociológica tal qual tentamos descre-
ver; podemos ter ainda as mesmas dúvidas quanto ao desenvolvimento
das intervenções. As maiores dificuldades parecem ser (indo das menos
importantes às mais essenciais):
1- A falta de formação dos interventores. Se existe um número bas-
tante grande de psicossociólogos capazes de conduzir grupos de
base e de sensibilização, os psicossociólogos dedicados à práti-
ca da intervenção são menos numerosos. Sabem pouco a res-
peito dos grupos e das organizações e têm desejos de mudan-
ça que não sabem como operacionalizar. Entretanto, há da parte
de alguns deles um certo desejo de aumentar sua capacidade
profissional. A prova são as numerosas demandas de formação

233
Psicossociologia – Análise social e intervenção

e intervenção endereçadas aos organismos e aos indivíduos que


têm prática nesse domínio.
2- Mais grave parece ser a “vontade de revolução” e o delírio me-
galomaníaco de alguns interventores que pensam transformar as
estruturas e destruir as instituições através de sua implicação vi-
gorosa na intervenção que conduzem. Aparentemente, eles se pre-
param para uma vocação de mártir, pois tornam-se insuportá-
veis para todos os grupos com os quais colaboram.
3- Enfim, o que nos parece mais importante, é a fraqueza (e a diminui-
ção constante) das demandas de intervenção. A razão é evidente: a
partir do momento em que os grupos e as organizações se dão conta
de que a intervenção não permitirá uma restruturação, uma redistri-
buição mais aceitável da autoridade, comunicações melhores e, so-
bretudo, um maior controle consciente, efetuado por eus fortes, a
demanda acaba. Quem quer conhecer a dúvida, a questão e a an-
gústia da finitude? Mesmo os que a pregam para os outros, não a
desejam com freqüência para si mesmos, mas o que lhes interessa é
o aumento de sua própria zona de poder ou a cegueira a respeito do
sentido de sua ação. Quanto aos grupos que tentam viver de outra
maneira, com outras relações, que assim buscam empreender atos
significativos, já estão tão ansiosos por trilharem uma nova via, que
já nem se permitem mais o autoquestionamento. Isso é compreensí-
vel, mesmo se nos ocorre perguntar se eles não se preparam algu-
mas desilusões.
Como escutar ainda uma palavra que cochicha, que busca a si própria
e que não promete amanhãs que cantam, em uma sociedade tecnocrática,
onde estão os mestres da ciência e os instrumentos de gestão, justamente ao
lado dos liberadores de todo tipo (do corpo, da mulher, do desejo da aliena-
ção etc.) que têm todas as mensagens a levar aos outros e que se apresentam
como mercadores da felicidade, tendo uma única palavra permitida que é a
palavra técnica (técnica de fabricação como técnica do corpo) ou produtiva
(produção de bens ou produção desejante), onde as ideologias prontas cru-
zam-se sem se influenciarem, em um soberbo isolamento psicótico, quando
não se misturam em um magma sem nome? FREUD dizia: “O eu é apenas
um palhaço de circo que, por seus gestos, busca persuadir a assistência
de que todas as mudanças que se produzem no picadeiro são efeitos de
sua vontade e de suas ordens13” Os palhaços se tornaram legiões e ocu-
pam a frente da cena. Deixemos que se esgotem em seus jogos perver-
sos. Um dia, eles desabarão. E o lento trabalho do negativo (o único que
é portador da vida e da verdade) poderá, então, ser retomado.

234
Notas
1
Traduzido de: ENRIQUEZ, Eugène. “De la formation et de l’intervention psychosocio-
logiques”. Connexions, 17, p. 137-159, 1976, por Marília Novais da Mata Machado.
2
A qual acontecimento ou a qual lei obedecem essas mutações que, repentinamente,
fazem com que as coisas não sejam mais percebidas, descritas, enunciadas, caracte-
rizadas, classificadas e sabidas da mesma maneira? Para uma arqueologia do saber,
essa abertura profunda na superfície das continuidades, mesmo que ela deva ser
analisada minuciosamente, não pode ser “explicada” nem reduzida a uma única
palavra. Ela é um acontecimento radical que se estende por toda a superfície visível
do saber, cujos signos, abalos e efeitos podem ser seguidos passo a passo. M.
FOUCAULT. Les mots et les choses. Gallimard.
3
Na primeira meditação, DESCARTES baseia a descoberta do “verdadeiro” na exclu-
são necessária da loucura, do sonho e do gênio maligno.
4
ENRIQUEZ, E. “Imaginaire social, refoulemente et répression dans les organizations”.
Connexions, no 3, 1972 (Imaginário social, recalcamento e repressão em organiza-
ções. Tempo Brasileiro 36/37: 53-94, 1974).
5
Segundo J.-M. DOMENACH: “Para não ser destruído, o Eu tudo destrói.” Le sauva-
ge et l’ordinateur. Le Seuil, “Points”.
6
CASTORIADIS-AULAGNIER, Piera. “A propos de la réalité: Savoir ou certitude”.
Topique, n. 13, Epi, 1974.
7
TOURAINE, A. Pour la Sociologie. Points, Le Seuil.
8
LECLAIRE, Serge. On tue un enfant. Seuil, 1975 (Mata-se uma criança. Rio de Janeiro:
Zahar, 1977).
9
Essa falta fundamenta a perspectiva dos sociólogos que pensam em termos de
sistemas e de modos de produção: quando os sociólogos (como TOURAINE) pen-
sam o socius em termos de relações sociais, não caem nesse erro, pois o centro de seu
pensamento é a ação social e não as normas sociais.
10
“Razão do encaminhamento do não ser ao ser” diz PLATÃO, cf. CASTORIADIS,
C. L’institution imaginaire de la société. Le Seuil (A instituição imaginária da socieda-
de, Paz e Terra).
11
Cf. MORIN. E. Le paradigme perdu. La nature humaine. Le Seuil.
12
Em Lip, os trabalhadores acreditavam que não poderiam compreender nada de
contabilidade e de problemas de gestão de empresa. Quando esses elementos lhes
foram explicados de forma direta e clara, eles disseram: “mas era apenas isso!”.
13
FREUD. Cinco lições de Psicanálise.

235
Psicossociologia – Análise social e intervenção

236
ASORIGENSTÉCNICASDAINTERVENÇÃO
PSICOSSOCIOLÓGICAEALGUMASQUESTÕESATUAIS1
Jean Dubost

Os problemas humanos criados pelo uso das máquinas e pelo de-


senvolvimento das sociedades industriais são respondidos por atores
que se defrontam diretamente com esses problemas, bem como pelos
responsáveis políticos – no nível de sistemas de ação institucionais – e,
também, pela intelligentzia que produz os discursos legitimadores e que
arma ora a classe dirigente, ora seus adversários. As Ciências Sociais
emergem, primeiramente, como força de pesquisa e estudos e, em se-
guida, contribuem mais diretamente para a formação de agentes espe-
cíficos de intervenção.
Para intervir, o patronato, seus quadros de direção, seus gerentes e
seus organizadores, bem como o movimento operário, suas organiza-
ções e seus militantes jamais esperaram os agentes formados pelas Ciên-
cias Sociais; porém, o surgimento dessas foi acompanhado por práti-
cas sociais novas que, há mais de meio século, continuam a buscar sua
verdadeira face. Ligado a elementos teóricos e ideológicos, um modelo
de papel diferente daquele exercido pelo professor, pelo especialista, pelo
formador, pelo mediador, pelo advogado, pelo sectário ou pelo militan-
te tende a se afirmar, contribuindo para inventar e analisar os modos de
funcionamento coletivo e as relações sociais.
Antes mesmo que os empregos de psicólogo e sociólogo do traba-
lho ou das organizações tenham sido realmente reconhecidos (eles são
ainda um pouco objeto de críticas e de apreensões, na França, em todo
caso), o nível político tentou intervir, através da legislação do trabalho,
dentro de uma perspectiva que mantém alguma relação com os processos
e os princípios propostos pelos psicossociólogos (cf. Leis AUROUX). Pa-
ralelamente, o contexto de crise e de guerra econômica tendeu a “psi-
cossociologizar”, se é possível falar assim, as estratégias dos adminis-
tradores (cf. rejeição ao taylorismo, círculos de qualidade, grupos de
progresso, projetos de empresa etc.).

237
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Do ponto de vista dos práticos, não se sabe muito bem se se trata de


uma convergência que os psicossociólogos devem considerar como um
avanço de suas teses ou tratar como uma oportunidade conjuntural
ou, ainda, como uma “reciclagem”, uma nova forma de resistência ou
de defesa, induzindo a uma regressão de seu projeto. Independente-
mente do fato de que as duas hipóteses não são forçosamente exclusi-
vas, a situação atual aumenta o mercado de consulta. Por razões eco-
nômicas evidentes, muitas empresas de serviços tentam aí penetrar,
sem escrúpulos excessivos, sejam de ordem teórica, metodológica ou
ideológica, e chegam mesmo a rejeitar, em nome do pragmatismo ou da
eficácia, qualquer referência científica.
Há quarenta anos atrás, especialmente através de Elliott JAQUES, o
Tavistok Institute of Human Relations já colocava claramente a distinção
entre as abordagens “tecnocrática” (intervenção sobre) e “colaboradora”
(intervenção com). Essa oposição e a opção resultante apoiavam-se parcial-
mente nos trabalhos de LEWIN, MORENO, ROETHLISBERGER e seus
predecessores; correspondem a uma teoria da organização que é com-
partilhada tanto pelos experimentalistas quanto pelos clínicos, tanto pelos
behavioristas quanto pelas correntes da fenomenologia e da Psicanálise,
tanto pelos promotores da mudança voluntária (planned change) quanto
pelos pesquisadores da Sociologia Industrial norte-americana: nessa con-
cepção, as perspectivas democráticas e a eficácia organizacional são ob-
jetivos transitivos, não antagônicos. Retomando, por exemplo, os ter-
mos de KATZ e KAHN, é em nome da produtividade industrial que é
preciso lutar contra o modelo “ditatorial” dentro da empresa.
Embora tal tese, em seguida, tenha sido matizada pela considera-
ção de fenômenos de ordem econômica e pelos do inconsciente, da cul-
tura e da história, assistiu-se a um desvio, nos Estados Unidos, no nível
das práticas de intervenção. Considerando-se garantidos pelo conjunto
de trabalhos de laboratório realizados em um subconjunto restrito de
empresas, os partidários da planned change e da action research partiram
para a conquista de um mercado, adotando uma perspectiva de aplica-
ção, propondo uma forma de serviços apresentada explicitamente como
uma tecnologia social.
De fato, no início, geralmente toda prática nova de intervenção, em
um espaço no qual surgiram problemas humanos, aparece como aplica-
ção de conhecimentos e de um “saber-fazer” criados em outro lugar e
mais ou menos arranjados para a circunstância. Porém, enquanto algu-
mas correntes de consulta parecem se satisfazer com essa perspectiva de
aplicação ou de transferência, outras tentaram continuamente se desligar

238
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

dela, não apenas para criar elementos teóricos e de “saber-fazer” mais


específicos, a partir de uma base socioclínica que lhe é própria (manten-
do, em conseqüência, a referência à noção de pesquisa ação), mas tam-
bém para manter as metas que a constituem como práxis, recusando a
redução a uma forma de atuação puramente instrumental.
Reencontram-se aqui, aparentemente, as duas abordagens distin-
guidas por JAQUES; na primeira, a referência à idéia da democracia
torna-se o modelo de funcionamento, teoria normativa da organização,
dispositivos técnicos; a segunda guia a maneira de estruturar o processo
de intervenção, deixando aberta a questão de um modelo de funciona-
mento, recusando-se a estabelecer normas ou evitando fazê-lo, conside-
rando a teoria sempre inacabada, sempre a ser construída e esclarecida
a cada nova intervenção.
Haveria, então, para os adeptos da abordagem colaboradora, mais
do que uma aporia na maneira pela qual se apresenta o desenvolvimento
organizacional, contradição que seria compartilhada, justamente, com a
concepção tecnocrática. Porém, na prática, se o desvio assinalado pela
mudança de rótulo (de “planned change” para “DO”2), na maior parte das
vezes, corresponde a um abandono de uma perspectiva de pesquisa pe-
los consultores que querem promover, em grande escala, a expansão de
suas atividades e a uma tendência a autonomizar o “cultural” (isto é, a
abandonar a concepção sociotécnica), não é certo que, sob a proteção de
uma terminologia tranqüilizadora para os clientes potenciais, esses con-
sultores, na condução de suas intervenções, não estejam mais próximos
do que admitem das perspectivas iniciais da planned change. Paralela-
mente, está claro que não é suficiente estar resolutamente engajado ao
lado da abordagem colaboradora, manter uma ligação forte entre os pon-
tos de vista psicológico e sociológico e entre pesquisa e ação para escapar
ao risco, continuamente presente, de ser instrumentalizado por um ator
às custas de um outro.
Embora, na prática, não possamos, então, identificar sempre o DO à
abordagem tecnocrática, ainda assim a distinção que evocamos parece-
nos sempre bastante pertinente para esclarecer a oferta dos práticos e as
condições de possibilidade de uma intervenção que se recusa a ser redu-
zida a engenharia.
Efetivamente, a conjuntura econômica e a ideologia atual, evocada
acima, abrem de novo, na França, o mercado da consulta e da intervenção
em meio industrial, ao mesmo tempo em que as demandas são, na maior
parte das vezes, de ordem instrumental:

239
Psicossociologia – Análise social e intervenção

- “O senhor, que tem a reputação de saber formar, venha ensinar a


nossos dirigentes como mobilizar o pessoal para os objetivos de
nosso projeto de empresa”;
- “Vocês, especialistas em comunicação, venham fazer um estudo
do tipo ‘retrato’, a fim de sensibilizar os agentes para seus papéis
comerciais e para as relações entre os serviços”;
- “Vocês, com experiência em círculos de qualidade, venham nos
ajudar a implantá-los em nossas fábricas”...
Assim, é tentador, para quem escuta uma encomenda desse tipo,
aceitar o papel de prestador de serviço, sem um convite a refletir sobre a
pertinência da operação decidida, sobre as relações entre essa solução e
os problemas e dificuldades vividas pela unidade etc. Está claro que a
oferta de “tecnologias sociais” parece corresponder a uma demanda.
Ela mantém a ilusão de que uma técnica de intervenção de um agente
externo poderá resolver as contradições da realidade, sem outros cus-
tos, para quem a encomenda, que o dos honorários e o do tempo conce-
dido, além de um apoio superficial da hierarquia à realização da ope-
ração; isto é, sem que o processo mude as posições respectivas dos
atores, a divisão do poder, a distribuição dos esforços e dos ganhos em
diferentes domínios. Essa crença mágica dos responsáveis no poder
da técnica relativa a problemas humanos (no próprio momento em
que a literatura empresarial demanda o reconhecimento das dimen-
sões irracionais do comportamento dos assalariados) pode, eviden-
temente, ser interpretada como função de defesa do empresário pou-
co desejoso de pagar por sua própria implicação; não é respondendo à
sua encomenda que se facilitará o estabelecimento de condições que
permitam analisar tal processo. Embora o fato de encorajar a ilusão
possa parecer, ao mesmo tempo, bem mais rentável a curto prazo e
confortável para o psiquismo do consultor (pois uma posição de pres-
tador de serviço permite economizar a análise da demanda, simplifi-
cando a vida e tranqüilizando todo mundo – ou quase todo mundo –,
ao menos no início...), não podemos acreditar que o fato de aderir aos
partidários de operações de mobilização psico-ideológica seja, a longo
prazo, uma boa estratégia: pode-se prever que elas se revelarão incapa-
zes de operar as mudanças esperadas e que serão também recusadas e
denunciadas pelos atores envolvidos, como ações de doutrinação.
Assim, parece-nos ser especialmente importante que o psicossoció-
logo continue presente no mercado de consulta em meio industrial e, de
uma maneira mais geral, nas organizações que desenvolvem esforços
de melhoramento de seu funcionamento coletivo; ao mesmo tempo, que

240
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

mantenha, tão firmemente quanto possível, o que nos parece constituir


as condições não mistificadoras da intervenção e, principalmente:
- o fato de considerar as teorias utilizadas como sempre inacabadas,
sempre infiltradas por elementos ideológicos, jamais apropriadas a
fundar uma Autoridade;
- o fato de manter explicitamente a referência às ciências do ho-
mem e da sociedade, isto é, entre outras coisas, considerar que
toda intervenção deve ser habitada por um projeto de pesquisa
cujos objetos são, em primeiro lugar, o próprio processo de con-
sulta, o sistema no qual a demanda emerge e a categoria de fenô-
menos sobre a qual o trabalho é feito;
- o fato de manter a interrogação sobre o sentido de nossas práticas,
sobre as funções sociais que elas garantem, sobre as condições que
favorecem sua emergência, seu desenvolvimento ou seu abandono.
Pensamos conhecer bem as dificuldades frente às quais se debate a
sustentação de tais exigências; é o preço que os consultores têm a pagar
por tentarem escapar à única lógica da relação mercantil e de seus efeitos
perversos, à influência das correntes ideológicas que sofremos, da mesma
forma que nossos parceiros, a fim de conservar as perspectivas de exis-
tência e de progresso a médio e a longo prazo.
Dito isso, a sustentação de uma práxis de intervenção local, associan-
do ao processo todos os atores envolvidos e opondo-se à perspectiva tecno-
lógica de produção de instrumentos de doutrinação e de mobilização
psico-ideológica, não deve levar a negligenciar os aspectos técnicos e o
exame de nossa própria relação com eles.
Em primeiro lugar, abordemos o problema a partir da noção de mé-
todo. Refletindo a respeito dos termos de base de toda intervenção, não
mantive esse substantivo, mas reagrupei sob a noção de processo os
atos do agente, o trabalho resultante de seus encontros com os atores,
seus efeitos sobre o sistema, os fatores que geraram o problema e a
demanda de consulta, as representações que os interventores e os ato-
res se fazem das qualidades desse trabalho, as regras e princípios que
eles se impõem, a fim de que essas qualidades existam. Evidentemen-
te, minha abordagem conceitual não ignora a noção de método e sabe
reconhecer o lugar que diferentes correntes e autores lhe concedem;
mas, quando aplicada à minha própria prática, ela tem em conta, especial-
mente, o fato de que a palavra método designa o caminho pelo qual se
passa e que esse nunca é totalmente conhecido antes de ser alcançado (e
mesmo depois). Creio ser útil e necessário interrogar-se, freqüentemente,

241
Psicossociologia – Análise social e intervenção

sobre o caminho a seguir, sobre a maneira como se afastou do previsto,


esclarecer todos os fatores acessíveis que podem explicar esses afasta-
mentos; porém, firmemente, creio também na necessidade de deixar
aberta a questão do método no momento em que uma demanda começa
a surgir, de não responder cedo demais com uma proposição saída de um
modelo prévio que se tentaria padronizar – ou de uma gama de modelos
entre os quais seria necessário escolher. A questão do método parece-me
fazer parte do trabalho de colaboração, deve ser o objeto de uma pesquisa
em comum que comporte também momentos de negociação.
O que se revelou como um “bom método” – a partir da opinião de
diferentes atores envolvidos –, numa dada situação concreta, pode, al-
gumas vezes, ser transposto sem grandes mudanças a uma outra, mas
pode, também, não poder sê-lo, por razões que só aparecerão quando já
se estiver a caminho. Assim, tendo a não apresentar um método defini-
do de maneira unilateral, mas, de preferência, a examinar princípios,
regras, perspectivas, hipóteses, representações iniciais que trazem em si
opções metodológicas que se esclarecem à medida que se caminha atra-
vés de um trabalho de análise e reflexão, abordando concomitantemen-
te o sistema, os atores envolvidos, sua participação no trabalho, o objeto
(O que se quer fazer? O que se quer mudar? Por quê?), os fatores gera-
dores do problema. Ao mesmo tempo, de forma alguma proíbo-me de
contribuir para a estruturação metodológica e técnica do processo, mas
tomo iniciativas e faço propostas; além disso, a partir de um determina-
do momento, tento fixar as modalidades de trabalho e um quadro técni-
co com os quais tanto participantes quanto consultores se empenharão
durante uma duração determinada.
Reconheço que minha atitude comporta uma certa suspeita a res-
peito de tudo o que diz respeito a técnicas, como também uma posição
crítica a respeito daqueles que têm tendência a autonomizar ou a privi-
legiar esse aspecto, fazendo dele um objeto fetiche ou atribuindo-lhe,
em excesso, dimensões ideológicas. Ao mesmo tempo, acredito ser ingê-
nuo pensar que todo trabalho induzido por uma intervenção não se apoia
em técnicas, que pode ser feito fora de um universo técnico, que meu
comportamento não é orientado por meus recursos técnicos, meus co-
nhecimentos e habilitações, adquiridos durante minha formação e mi-
nhas experiências anteriores. Caso um apelo seja feito a mim, isso se dá,
justamente, porque se atribuem a mim competências em um domínio
que, justamente, parece importante aos solicitadores, dada a natureza
dos problemas que eles se colocam e desejam tratar.

242
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

Por outro lado, compreendo bem a opção por estabilizar um dis-


positivo técnico, tolerando apenas uma gama restrita de variações, na
esperança de constituir um corpus de observações socioclínicas homo-
gêneo, para tratá-lo, a seguir, dentro de uma perspectiva comparada e
diferencial. Na medida em que se considera a intervenção como uma
estratégia de pesquisa que permite o acesso a fenômenos inacessíveis por
métodos convencionais, a técnica de estruturação do processo se torna
um dispositivo de inserção – o que G. PALMADE chama de dispositivo
“modelador” dos fenômenos estudados. É nessa perspectiva que é preci-
so, então, considerar os aspectos técnicos da intervenção sociológica de
TOURAINE ou da sociopsicanálise de MENDEL.
Porém, para o prático que pretende permanecer disponível a de-
mandas muito diversas e para o que, conservando sempre uma pers-
pectiva de pesquisa, considera que o dispositivo tem que ser inven-
tado e construído a cada vez, constituindo, em si mesmo, um objeto
de trabalho, tal vantagem deve ser abandonada. O modo de estrutu-
ração do processo pode se tornar, então, não apenas objeto de traba-
lho para os participantes, mas objeto de pesquisas diferenciadas para
os interventores.
Poderíamos, então, tentar, por exemplo, tornar mais inteligível, na
determinação das técnicas, a influência respectiva de variáveis como a
natureza do local (intra ou transorganizacional), as propriedades do
sistema (grau de centralização, tolerância à diferenciação, formas de
autoridade, tamanho, ecologia etc.), a natureza dos objetos, as funções
externas almejadas pelos atores, os recursos da equipe de consultores
escolhidos, suas orientações teóricas, os fenômenos de moda, os custos
etc. Evocaremos, rapidamente, no final desse artigo, a questão de sa-
ber em que medida as práticas se diferenciam, em função do campo no
qual elas aparecem.
Independentemente da relação que cada corrente de intervenção
tem com a questão técnica e com o objetivo de esboçar uma via de refle-
xão a respeito das escolhas que são feitas pelos práticos e/ou seus co-
mandatários, tentarei responder à questão: quais são as origens nas quais
os práticos de intervenção psicossociológica se nutrem?
Parece-me que é possível distinguir três categorias de origens: os
métodos de pesquisa das Ciências Sociais; os que foram constituídos pe-
las atividades da formação e da psicoterapia; as práticas sociais de inter-
venção e de ação já existentes nos diferentes campos de nossa cultura.
Cada uma comporta pressupostos, princípios estratégicos, uma lógica
própria e apresenta propriedades diferentes.

243
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Os métodos de pesquisa das


Ciências Sociais como origens técnicas
A noção de experimentação: se consideramos as primeiras pesquisas
de J. B. GODIN, certos ensaios de TAYLOR e os trabalhos de E. MAYO
como predecessores da intervenção psicossociológica, pode-se dizer que
a idéia de experimentação de campo constituiu, bem cedo, uma origem
técnica importante. Em seguida, ela alimentou uma parte dos trabalhos
da escola lewiniana (cf. COCH e FRENCH); algumas vezes, ela aparece
ainda em intervenções do tipo pesquisa-ação (cf. os social experiments no
campo urbano ou em certas empresas) e, de maneira bem menos acen-
tuada, nas de TOURAINE.
Não é de se espantar que a abordagem colaboradora acarrete uma
opção por uma orientação clínica; isso se passa sobretudo porque, de-
pois de LEWIN, seus discípulos americanos utilizaram muito pouco as
técnicas experimentais.
Quanto às estratégias de pesquisa, a propensão dos práticos de in-
tervenção, parece-me, é a de situá-las mais aquém e além de uma démar-
che teórico-experimental do que no nível de operações visando à admi-
nistração de provas. Entretanto, a partir do momento em que os práticos
integram à sua ação uma dimensão de pesquisa, mesmo que apenas para
conhecer melhor as propriedades de suas técnicas, eles podem ser leva-
dos a planejar uma parte de sua démarche com uma perspectiva que per-
mite uma exploração experimental ou diferencial de seus resultados.
Em um outro pólo dos métodos de pesquisa, a observação participante,
tal qual utilizada por certos sociólogos e etnólogos, representa uma ori-
gem técnica que foi utilizada não apenas em meio aberto, mas também
nos campos da saúde e social ou mesmo em meio industrial. É espanto-
so ver quantos psicossociólogos estiveram interessados, por exemplo,
na maneira como J. FAVRET-SAADA retomou e transformou essa abor-
dagem no campo da etnologia, a partir da prática psicanalítica.
Entre esses dois pólos, estão as técnicas de pesquisa de campo que, em
especial, forneceram um ponto de partida para as práticas de interven-
ção: estudos qualitativos e/ou quantitativos de amostras ou por meio
de recenseamento, combinados ou não a estudos monográficos e histó-
ricos, utilizando a análise de documentos disponíveis ou de instrumen-
tos mais especializados como os testes sociométricos. Algumas vezes, os
utensílios de registro (do gravador ao vídeo) foram largamente utiliza-
dos e, em algumas práticas, permanecem sendo uma condição técnica
ou um auxílio importante para o trabalho de análise, de devolução aos
participantes e de interação dos atores.

244
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

A estratégia geral de intervenção que fundamenta o recurso a essas


técnicas de pesquisa e estudo repousa na idéia de que faltam aos atores
informações objetivas, que os consultores têm meios de aumentar o nível
de conhecimento do sistema e dos atores a respeito deles próprios, produ-
zindo dados válidos, e que a comunicação dos resultados os ajudará a
fazer o recuo necessário, a caracterizar melhor as situações, a identificar
os problemas, a isolar os objetivos, a escolher as variáveis de ação, a com-
preender os fenômenos que entravam o progresso em direção às metas, as
razões dos bloqueios, a atuação dos conflitos, a natureza das resistências,
a origem das disfunções, o significado das condutas etc.
Vistos como capazes de realizar as pesquisas necessárias para in-
formar sobre o estado de funcionamento vivido como insatisfatório, os
interventores são convidados ora a fazer um diagnóstico (combinado
ou não a recomendações), ora a produzir uma análise descritiva ou um
conjunto de observações e esclarecimentos, permitindo aos atores ela-
borarem por si mesmos um diagnóstico e se empenharem em um traba-
lho de análise e interpretação. Em todos os casos, quer os resultados se
apoiem em uma perspectiva demonstrativa ou sejam apresentados ape-
nas como sendo a percepção de um agente exterior, considera-se racio-
nal separar (ou alternar) as fases de estudos e as fases de ação. Os con-
sultores podem ser convidados a colaborar apenas nas primeiras (o que
tende a mantê-los, de fato, no papel de especialistas, de prestadores de
pesquisa e de estudo) ou a acompanhar o processo até que os efeitos
desejados sejam atingidos. Igualmente, em todos os casos, as respostas
às questões de saber quem terá acesso às informações resultantes da
pesquisa, quem participará do trabalho de exploração dos resultados,
quem conduzirá esse trabalho, quem escolherá as opções, quem reterá
as soluções etc. determinarão o caráter da intervenção (mais ainda do
que o modo de divisão do trabalho entre consultores e atores, nas pró-
prias operações das fases de estudo).
Pode-se observar que, na França, como em outros lugares, é sobre-
tudo dessa origem técnica que brotaram as primeiras intervenções-con-
sultas conduzidas depois da guerra; ainda hoje, freqüentemente, é des-
sa maneira que elas se estruturam, no começo; por exemplo, é comum,
atualmente, que, pela encomenda de um estudo “Retrato”, os responsá-
veis por um estabelecimento industrial demandem a um serviço exterior
ajuda para a instituição do “projeto de empresa”. Em um campo bem
diferente, o de intervenções em coletividades camponesas de países do
Terceiro Mundo, a obra de G. Le BOTERF (1981) mostra a importância
dessa origem técnica. Entretanto, há muito tempo, os limites desse modo

245
Psicossociologia – Análise social e intervenção

de estruturação técnica do processo foram percebidos (LÉVY, 1980). Po-


der-se-ia dizer que a célebre experiência de Hawthorne já apontava al-
guns deles. A respeito dos riscos nos quais se incorre e pensando, sobre-
tudo, no caso de intervenções-consultas intra-organizacionais,
apresentaremos rapidamente três observações:
- O trabalho é conduzido por uma equipe externa, sem associação
suficiente com os atores envolvidos: os pesquisadores ou responsáveis
pelo estudo trabalham fenômenos ou discursos coletados junto a indi-
víduos ou pequenos grupos; constróem, do exterior, um retrato even-
tualmente objetivo e fiel; malgrado seus esforços para se expressarem
de forma suficientemente prudente e pouco agressiva (ou para admi-
nistrarem uma demonstração convincente), os resultados afastam-se
muito das representações que habitavam o campo de consciência dos
atores para poderem ser aceitáveis; os participantes têm a impressão
de que se lhes despeja um relatório que tem valor de avaliação. Sociólo-
gos como CROZIER e SAINSAULIEU evocam, freqüentemente com es-
panto, a violência das reações que eles provocam quando apresentam
seus resultados: rejeição, cólera, denegação, depressão etc. Se muitas in-
tervenções, nas quais a fase de estudo fora concebida como um ponto de
partida, são interrompidas, de fato, com a apresentação dos resultados,
muito freqüentemente é porque o relatório funcionou como uma opera-
ção de interpretação selvagem. Não se sabe mais o que fazer, a não ser
esquecê-lo, enterrá-lo; depois de um certo tempo no qual ninguém ousa
tomar iniciativa relativa ao projeto inicial, caso se decida reiniciá-lo, es-
colhe-se, então, por exemplo, iniciar uma ação de formação desligada
da etapa inicial e com uma outra equipe de consultores.
- Há um risco ligado à análise insuficiente da demanda e das ilusões
a ela relacionadas; por exemplo, a idéia de mandar realizar um le-
vantamento de dados do conjunto do pessoal pode se dar devido a
uma esperança, de caráter mágico, de que a explicitação de sentimen-
tos e de posições antagônicas, o trabalho de recenseamento, o inven-
tário, a descrição minuciosa permitirão fazer emergir uma palavra
unificadora, restaurando a coesão, conseguindo uma solução de sín-
tese ou, ao menos, um conjunto de compromissos aceitáveis por to-
dos e permitindo, em especial, fazer economia de um trabalho verda-
deiro de expressão cara a cara, de confronto e de evolução das
diferentes partes envolvidas. O texto de André LÉVY, já citado, de-
senvolve muito claramente esse aspecto.
- A preocupação legítima em obter uma informação bastante completa,
significativa e “representativa” inspira uma lógica para a elaboração

246
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

do projeto – particularmente, quando se quer a associação de to-


dos os parceiros envolvidos –, o que provoca aumento dos temas
de estudo, da diversidade e tamanho da amostra (em grandes uni-
dades); chega-se, então, a uma solução que exige uma equipe e, so-
bretudo, adiamentos de realizações importantes, o que aumenta o
risco de decalagem entre a fase de pesquisa e o momento em que se
deveria investir no trabalho de exploração dos resultados.
Entre as formas de reduzir esses riscos e quando, durante o traba-
lho de análise da demanda, se sente um interesse suficientemente
grande de conceber o trabalho de estudo ou de pesquisa como uma
mediação oportuna e necessária, pode-se tentar:
- fracionar a investigação (por tema, por categoria de ator etc.) e alter-
nar fases curtas de levantamento de dados ou de pesquisa, corres-
pondentes a atuações mais modestas, com o trabalho sobre os re-
sultados; em outras palavras, preferir as opções que procedem por
meio de pequenas etapas sucessivas;
- associar todos os parceiros envolvidos, na medida em que isso for
compatível com suas possibilidades efetivas de participação; essa
meta de associação máxima leva também a alargar o leque de
técnicas, transformando-as para que se adaptem à perspectiva
da intervenção;
- preferir, às relações elaboradas e conceituadas demais, as devolu-
ções que estão próximas da expressão espontânea, dando o tempo
necessário ao trabalho de reconhecimento e de apropriação; assim,
a atividade interpretante é conduzida aonde as interações estão
favorecidas, ela resulta de um esforço coletivo que permite a contra-
dição, o debate, a perlaboração; como o próprio relatório, essa ativi-
dade interpretante submete-se às regras da interpretação clínica.
Quaisquer que sejam as técnicas de pesquisa utilizadas, os inter-
ventores não devem se deixar levar pela lógica própria ao campo
científico do qual elas saíram, mas repensar essa lógica (por exem-
plo, os critérios de cientificidade: validade, pertinência, reproduti-
vidade) em função dos princípios específicos da relação de consul-
ta, que dependem mais da segunda origem técnica da intervenção
que propomos distinguir.
De meu lado, e apesar das reservas expressas, não opto por uma po-
sição radicalmente hostil aos recursos dessa primeira origem; eles me pa-
recem, algumas vezes, inevitáveis e lembro-me de casos nos quais eles
ofereceram um começo muito positivo (ou apoios muito preciosos durante
o percurso) para um trabalho de colaboração de longa duração; parece-me,

247
Psicossociologia – Análise social e intervenção

porém, sempre útil interrogar-nos sobre o seu grau de relevância, sobre


a possibilidade de contorná-los, comparar as vantagens e as desvanta-
gens das técnicas oriundas dessa primeira origem com as das duas ou-
tras e ter em mente a ingenuidade do postulado implícito nelas, que
pode ser assim simplificado: “É suficiente estabelecer certas verdades e
comunicá-las às pessoas, a fim de que elas mudem”.

As técnicas originárias das práticas


de formação e de psicoterapia
Toda vez que uma nova fórmula de formação, de aperfeiçoamen-
to e, algumas vezes, de ensino provocou o sentimento de que se tinha
descoberto uma pedagogia fecunda no plano dos indivíduos, pôde-se
estar tentado a fazê-la sair da escola ou do centro onde nasceu para
aplicá-la diretamente aos grupos naturais. Passar-se-ia, assim, de uma
perspectiva de formação, cujos efeitos de mudança social resultariam
da transferência das aquisições do estudante a respeito do seu lugar
de trabalho ou de vida, a uma perspectiva de intervenção, na qual, ao
mesmo tempo que os indivíduos que os compõem, os grupos, as or-
ganizações e as “instituições” supostamente se aperfeiçoariam, evo-
luiriam, adquiririam novas propriedades.
De uma maneira geral, todas as técnicas de desenvolvimento orga-
nizacional (DO) originam-se do campo da formação e, com muita fre-
qüência, apresentam-se como a aplicação simples, em um plano concre-
to, de uma fórmula aperfeiçoada em um centro especializado ou
originária de experimentos de laboratório de Psicologia Social ou de Pe-
dagogia. A escola lewiniana escolheu essa via com o NTL – National Trai-
ning Laboratories (a palavra laboratory designando bem a idéia de experi-
mentar, numa escala pequena, métodos de mudança susceptíveis de
serem aplicados, em seguida, em diferentes lugares da sociedade). Uma
das concepções iniciais do Tavistock caminhava no mesmo sentido (cf. o
artigo de E. JAQUES, de 1948, traduzido para o no 3 de Connexions, 1972).
Considerando a importância dada à referência psicanalítica nessa
orientação e a dupla formação dos membros fundadores do Instituto Ta-
vistock, esse último exemplo encoraja-nos a reagrupar, nessa segunda
categoria de origens técnicas, as práticas de formação, de consulta psico-
lógica (counselling) e de psicoterapia. Logo, porém, é necessário lembrar
que, na Glacier Metal Company, a equipe de JAQUES não parou de trans-
formar essa base técnica para chegar ao que ele denominou, a partir de
1964, social analysis, ao mesmo tempo em que outros membros do mes-
mo grupo (RICE, TRIST, BRIDGER e outros) elaboravam as bases da

248
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

abordagem sociotécnica, das quais surgiram numerosas pesquisas-ação


e, especialmente, o movimento de democracia industrial.
Pode-se fazer o paralelo com a evolução de uma associação como
a ARIP: sua primeira intervenção psicossociológica de duração longa, na
empresa Geigy, consistia em transpor, para o seio da cúpula, os métodos
do grupo de base experimentado nos anos precedentes (J. C. ROUCHY,
1972); as intervenções que se seguiram, tanto em meio industrial quanto
no campo social e da saúde, não pararam, em seguida, de se diversifica-
rem em função da natureza das demandas, das estruturas de organiza-
ção, das orientações específicas a cada um dos membros da Associação.
Mas se, na França e em países estrangeiros, nos quais a ARIP interveio, tal
grupo nunca foi tentado pela idéia de estabilizar um ou mais dispositivos
técnicos do tipo DO, as práticas de formação e de psicoterapia constituí-
ram sempre a origem dominante de sua prática, ao mesmo tempo em que
se reforçava, no plano teórico, a importância da referência à Psicanálise.
Certos autores franceses que se nutrem das mesmas origens teóri-
cas não seguiram, tecnicamente, essa evolução; G. MENDEL e sua equi-
pe, por exemplo, conceberam diretamente, com uma perspectiva de in-
tervenção intra-organizacional, um dispositivo de análise admitindo
poucas variações e buscando sempre se distinguir – sem chegar a fazê-
lo, em nossa opinião – de qualquer intenção educativa (cf. Sociopsycha-
nalyse, no 1 a 10, Payot); D. ANZIEU transpôs, com uma perspectiva de
tratamento da organização hospitalar, sua prática de psicodrama analíti-
co, inscrevendo-se, ao mesmo tempo, em uma estrutura técnica inspirada
pela noção de aparelho psíquico grupal (R. KAES), o que representaria,
no plano organizacional, um equivalente simbólico da segunda tópica freu-
diana. A. LÉVY e, a fortiori, J. C. ROUCHY e E. ENRIQUEZ consideram,
ao contrário, o processo de elaboração do dispositivo (sua instalação e as
reiterações eventuais durante o percurso) como um objeto de trabalho
integrado ao processo de colaboração com os solicitadores.
Evidentemente, nem todos os métodos de intervenção que tecnica-
mente se equipam com as práticas de formação psicossociais têm as mes-
mas referências teóricas e, se quiséssemos ser menos esquemáticos, seria
evidentemente necessário diferenciá-los em função das orientações peda-
gógicas e das teorias de aprendizagem às quais eles se referem: técnicas
de condicionamento, de reforço ou de treinamento em métodos ativos, em
pedagogia do projeto, em pedagogia institucional, passando pelos estu-
dos de caso, jogos de simulação, utilização da autóptica, grupos de aná-
lise de prática profissional. Um critério de diferenciação importante das
práticas de intervenção-consulta e de suas técnicas pode ser encontrado

249
Psicossociologia – Análise social e intervenção

nos conceitos elaborados por G. PALMADE no campo da formação e


das reuniões: funções externas das atividades empenhadas, funções
internas asseguradas ou não pelos consultores no campo da produção,
da facilitação e, em especial, da regulação (hetero – ou auto –, de acom-
panhamento ou dinâmica).
Como para as intervenções que se equipam tecnicamente com os
métodos das Ciências Sociais, as que se nutrem da formação surgiram,
freqüentemente, sob pressão de demandas dirigidas a interventores. Com
efeito, as atividades de formação representam um precedente que permite
conhecer consultores potenciais. Além disso, os aspectos econômico-prá-
ticos nem sempre estão ausentes de uma demanda orientada para práti-
cos da formação, na medida em que instituir, entre os próprios serviços de
uma organização, estágios existentes fora dela, para os quais já se inscre-
veram individualmente N agentes, é mais rápido, mais racional e menos
caro. Enfim, a palavra de ordem, desde há algum tempo, é a descentrali-
zação; é necessário providenciar a formação do responsável local, espe-
rando-se que se aumentará assim, ao mesmo tempo, sua eficácia e seu
grau de adaptação às expectativas da unidade ou do serviço em pauta.
Evidentemente, é falsa a idéia de que uma fórmula de formação psi-
cossocial – concebida e experimentada pelos indivíduos que não se co-
nhecem e dos quais se espera que transfiram suas aprendizagens para as
suas respectivas unidades – conserva as mesmas propriedades quando é
dirigida a um grupo natural; embora ninguém pense seriamente em con-
servá-la, ela continua subjacente a muitas demandas desse tipo. Não se
quer dizer com isso que esse deslocamento a torna, forçosamente, irrele-
vante, mas que ela produz outros resultados além dos esperados no inte-
rior de sua localização inicial.
De uma maneira geral, o princípio estratégico subentendido durante a
oferta e demanda de tais intervenções postula que já se conheça a solução
do problema vivido pelo sistema envolvido (diferentemente dos casos evo-
cados anteriormente); aplicando o método ao qual nos referimos à totalida-
de ou a uma proporção significativa de agentes, no espaço organizacional,
pensa-se atingir a massa crítica que permitirá alcançar, localmente, a mu-
dança social desejada. Na lógica do modelo médico que funciona de manei-
ra subjacente, os responsáveis pela unidade fizeram seu diagnóstico e pres-
creveram o tratamento que delegam a interventores externos. Em relação
às situações descritas a respeito da primeira origem técnica, o risco, então, é
que se engane sobre a causa das dificuldades, sobre a pertinência do remé-
dio ou sobre os dois e que não se tenha, durante um tempo que pode ser
apreciável, os meios de verificar a validade das hipóteses.

250
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

Deixando de lado a qualidade das intuições dos que tomam as de-


cisões, tal risco, evidentemente, é função do tipo de formação da qual se
esperam efeitos: quanto mais os programas são estruturados e estrutu-
rantes, menos o trabalho empenhado autorizará as derivações necessárias
a um novo enunciado do problema inicial e a uma maneira mais adequa-
da de se perceberem as dimensões reais. Esse risco pode ser reduzido
apenas se, de um lado e de outro, houver disposição para investir em um
trabalho satisfatório de análise da demanda. Ainda assim, os consulto-
res, por demais impacientes em preencher seus carnês de solicitações, em
assegurar “suas tarefas”, inclinados demais a satisfazer imediatamente
o cliente ou dependentes demais da autoridade que esse representa, dei-
xar-se-ão cair na armadilha da prestação de serviço. Paralelamente, os
solicitadores, seguros demais dos próprios diagnósticos ou temendo muito
vê-los questionados e temerosos em embarcar num processo psicologica-
mente mais custoso para eles, arriscam encomendar uma ação incapaz
de obter os efeitos de mudança esperados.
Um meio técnico (que, aliás, já foi institucionalizado há mais de vinte
anos em um grande serviço público) para tentar reduzir esse risco consiste
em não assumir uma intervenção sociopedagógica sem proceder, primeiro,
a uma pesquisa prévia junto aos atores envolvidos e aos outros estratos
hierárquicos do estabelecimento considerado. Esse recurso às técnicas do
primeiro grupo não tem somente por função alargar a composição do
agente do diagnóstico prévio, transformar as pessoas envolvidas em ato-
res de sua própria formação, descobrir, entre os dirigentes, os voluntários
para se associarem na preparação de decisões, na elaboração dos progra-
mas, na construção pedagógica da ação e na condução dos estágios e
sessões etc.; ele oferece aos interventores uma fonte de mediações para, de
uma maneira progressiva, desenvolver a análise da demanda dos res-
ponsáveis, confrontá-la à dos outros atores, manter essa dimensão pre-
sente durante todo o processo.
Tal dispositivo técnico é insuficiente; ele pode não resolver as dificul-
dades que o consultor escolhido pode encontrar para assumir esse papel.
A competência de um interventor, do qual se espera a responsabilidade, a
condução e a animação das atividades de formação psicossocial em um
dado lugar – ou apenas a formação dos formadores internos – não se reduz,
então, ao desempenho eficaz da prática de formador; além disso, não é
suficiente substituir o adjetivo “psicossocial” por “sócio-profissional” para
reduzir suas dificuldades; na própria perspectiva da engenharia (ou na
metáfora médica), ele deverá poder substituir o tipo de formação deman-
dada por outras, dispor de uma teoria das condições nas quais uma dada

251
Psicossociologia – Análise social e intervenção

ação é susceptível de provocar efeitos sobre o sistema – e que tipos de


efeitos –, negociar os procedimentos técnicos que permitirão produzir
as informações que faltam, incorporar um cuidado permanente de
acompanhamento e avaliação etc. Porém, é interessante observar que,
mesmo na abundante literatura produzida pelo caso Glacier, nunca se
evoca o recurso a atividades de formação (a não ser a partir do décimo
quinto ano de intervenção-consulta, para comunicar aos responsáveis de
outras empresas o que se aprendeu no trabalho socioanalítico); a prática
permanente de intervenção socioanalítica desemboca em uma teoria da
burocracia, numa crítica aos limites do staff and line, em problemas de
remuneração etc. e não em técnicas de ação formadora de diretores, de
agentes de comando ou de pessoal de execução. Ela compartilha, com a
corrente sociotécnica e a maioria dos sociólogos da organização, a convic-
ção de que as condutas das pessoas, as estruturas da organização e a cul-
tura da empresa são interdependentes, que as características das tecnolo-
gias de produção e o modo de funcionamento coletivo também o são e
que uma formação não associada a mudanças, afetando a estrutura e as
instituições internas, é incapaz de obter uma verdadeira evolução.
Essa última observação leva-nos a examinar a terceira categoria de
origens técnicas.

As práticas sociais de intervenção já


presentes na sociedade
O fato de intervir – de vir entre (uma pessoa, um grupo, um sistema e
seu problema; dois atores ou diversas instâncias em interação...) –, em
resposta ou não a um apelo, é fenômeno tão geral nas sociedades huma-
nas e na sua história que é passível de desencorajar uma abordagem
teórica. Entretanto, talvez seja interessante descobrir em que campos su-
cessivos esse fenômeno foi progressivamente institucionalizado, a servi-
ço de que funções materiais ou simbólicas ele se desenvolveu e inventa-
riar os diferentes papéis correspondentes a ele em um dada cultura.
Sem poder preparar aqui tal reflexão, pode-se simplesmente obser-
var que o crescimento e a diferenciação funcional e os processos de divi-
são do trabalho, o desenvolvimento técnico e científico, a extensão perma-
nente da escala de mudanças são alguns dos fatores próprios a acentuar
sua importância. Por exemplo, as estruturas internas das organizações se
complexificam, criando sempre mais serviços encarregados de intervir
junto ao pessoal de operação, e os fenômenos de consulta e de interven-
ção psicossociológicas não são mais os últimos, em data, a emergir como
práticas e como papéis diferenciados.

252
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

Em suas primeiras manifestações, esses já tomavam emprestado do


ambiente cultural os elementos susceptíveis de equipá-los tecnicamen-
te; assim, J. L. MORENO não se nutriu apenas das duas primeiras ori-
gens, enriquecendo-as, mas também aproveitou as técnicas da arte dra-
mática para inventar sucessivamente o axiodrama, o sociodrama, o
psicodrama e os jogos de papel e de jornalismo (reportagem, acompa-
nhamento permanente e pesquisas aprofundadas a respeito dos aconte-
cimentos) quando, por exemplo, em Nova Iorque, no fim dos anos 20,
durante os motins do Harlem, intervinha em fenômenos de preconcei-
tos raciais e de violência urbana.
Freqüentemente ligados à ação das igrejas, os “organizadores de co-
munidades”, como o sociólogo S. ALINSKY, retomaram, em sua prática
de intervenção junto a populações migrantes desprivilegiadas, as técni-
cas de ação direta dos sindicatos americanos, não sem as enriquecer tam-
bém com novas formas de contestação e de pressão. Mais recentemente,
correntes tão diferentes quanto a advocacy planning e a análise institucio-
nal nutriram-se de fontes desse tipo. Com uma perspectiva de pesquisa
de lutas sociais e culturais atuais, a metodologia de intervenção desenvol-
vida por A. TOURAINE recorre também, sistematicamente, a práticas de
debate, de defesa ou de negociação. No campo das empresas de produ-
ção, as pesquisas-ação originárias da corrente sociotécnica e as interven-
ções do movimento da democracia industrial tomam emprestado, reno-
vando-as, as técnicas dos organizadores do trabalho e mesmo as dos
gerentes. Em países como o Canadá, os psicossociólogos, freqüentemen-
te, são chamados, nos conflitos entre direção e sindicatos, como mediado-
res – um papel que a cultura francesa tem dificuldade em desempenhar.
Então, seria absurdo e falso nos limitarmos às duas primeiras ori-
gens técnicas de intervenção; existem, evidentemente, fluxos de trocas
recíprocas entre os aspectos mais familiares da vida cotidiana – que con-
tinuam a constituir o ambiente cultural no qual as práticas psicológicas e
sociológicas se desenvolvem – e as duas origens. Essas trocas podem não
apenas contribuir para enriquecer e diversificar os elementos técnicos
tirados das duas primeiras origens, mas, eventualmente, vir a substituí-
las completamente, adquirindo uma nova especificidade através da ma-
neira como são utilizadas e integradas na práxis. Mesmo a história da
intervenção de E. JAQUES na Glacier Metal Company permitiria observar
como as técnicas iniciais, progressivamente, aproximaram-se dos modos
de intervenção “naturais” dos atores, inscrevendo-se mais diretamente
em suas práticas espontâneas, ao mesmo tempo em que essas evoluíam
por meio de experiências socioanalíticas.

253
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Se fosse oportuno, poder-se-ia ilustrar também como as práticas


sociais parecem evoluir sob a influência das técnicas e métodos da Psi-
cossociologia, como por exemplo no campo da imprensa escrita, audiovi-
sual, da magistratura, da polícia, das relações pastorais, das lutas militan-
tes etc. A variedade e a heterogeneidade dos elementos que reagrupamos
nessa terceira categoria são grandes demais, tornando fácil arriscar co-
mentários um pouco gerais. Entretanto, talvez possamos propor duas
observações antes de evocar rapidamente um exemplo concreto.
Da mesma forma que, para a primeira origem, a idéia estratégica
repousa na capacidade pressuposta dos atores de aproveitarem as infor-
mações mais objetivas a respeito de seu próprio funcionamento coletivo e,
para a segunda, pode-se mudar esse funcionamento apenas por meio de
aquisições e evoluções das pessoas, para a terceira, o pressuposto pode-
ria ser o de que os atores já possuem um conhecimento e um potencial
suficientes de transformação e que lhes faltam, apenas, as oportunida-
des, os dispositivos de encontro ou as garantias de mudança.
Um risco das orientações que tendem a privilegiar essa terceira ori-
gem técnica seria, então, o de não repensar suficientemente os emprésti-
mos influenciados pelas precedentes, e renunciar, em conseqüência, a
toda especificidade, deixando de lado os requisitos que permitem estabe-
lecer e manter as condições de análise.
Embora não ilustre especialmente esse risco, o exemplo seguinte pode
contribuir para que sejamos compreendidos; tratam-se de intervenções
desenvolvidas em um espaço industrial de tamanho grande, dirigidas à
prevenção de acidentes de trabalho.
No começo, a luta contra os acidentes está a cargo de um serviço
central de técnicos encarregados a um só tempo de produzir a regulamen-
tação interna, de coletar e tratar o conjunto de informações relativas aos
acidentes, de estudar as instalações da fábrica, os dispositivos de prote-
ção, o material e os utensílios do ponto de vista dos riscos, de assegurar a
publicidade dos resultados dos estudos, de coordenar uma rede de espe-
cialistas funcionais da prevenção, de organizar as ações de inspeção, de
formação, de propaganda, de sensibilização (por exemplo, instalação de
“monitores de segurança” escolhidos pela hierarquia, difusão das esta-
tísticas de acidentes, concurso de segurança) etc. Pode-se dizer que esse
serviço central cria um conjunto imponente de instituições de segurança,
tanto no plano material quanto no legal, e que, de alguma forma, ele acu-
mula um papel legislativo interno (fixar as leis, as prescrições) e funcio-
nal (no campo técnico, educativo, social), sem que ele próprio tenha au-
toridade no que diz respeito a sanções. Parece-nos que, de fato, há uma

254
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

coerência com uma concepção burocrática – no sentido de WEBER – de


uma organização fortemente centralizada.
Embora essas realizações permitam registrar progressos incontes-
táveis, certas unidades sentem que o nível obtido é ainda insuficiente
em relação ao alcançado, por exemplo, em outros países; a abordagem
escolhida não teria chegado a considerar todas as dimensões psicosso-
ciais do problema. O apelo dirigido por algumas unidades a consultores
externos ao serviço central ou a agentes de serviços de formação pode
ser traduzido, então, por uma intervenção psicossociológica, combinan-
do as técnicas derivadas das duas primeiras origens aqui distinguidas,
ou por uma intervenção apenas formadora. Elas procedem geralmente
– exceto nas fases de levantamento de dados e de observação – descen-
do a linha hierárquica e trabalhando em especial junto ao escalão mé-
dio, algumas vezes desenvolvendo, concomitantemente, o aperfeiçoa-
mento dos estratos mais baixos dos agentes de comando. Os confrontos
entre atores (por exemplo, no interior de um estrato ou entre comandos
e escalões, ou comandos e direção) não são feitos diretamente, mas me-
diados por dispositivos de estudos ou por situações de formação; evita-
se, geralmente, colocar cara a cara um grupo natural e seu escalão dire-
to. Poder-se-ia dizer que a condução do processo é prudente, progressiva
e que ela se passa em um lapso de tempo que se mede em anos. No caso
da intervenção psicossociológica, ela é acompanhada por mudanças que
afetam certos aspectos das estruturas das instituições locais e não ape-
nas as atitudes e comportamentos de atores.
Uma abordagem mais recente, que abandona os dispositivos de estu-
do e de formação, é passível de ilustrar o recurso à terceira origem; eviden-
temente, fundamenta-se também, no começo, na iniciativa de um responsá-
vel local decidido a desenvolver um esforço particular em matéria de
prevenção, com a colaboração de consultores externos à sua unidade. De-
pois de uma fase de informação-consulta dos atores envolvidos (comitê de
higiene, de segurança e de condições de trabalho, gerentes, contramestres,
pessoal de execução), cujo acordo é considerado como uma condição de
possibilidade, a base trabalhadora foi convidada a cooptar voluntários para
participar de um grupo de trabalho. Uma vez estabelecida a composição, o
grupo ou os grupos dispõem de uma seqüência de duas jornadas para
analisar a situação, produzir os diagnósticos, propor as medidas. No
fim desses dois dias, eles apresentam coletivamente o resultado de seu
trabalho ao escalão direto. Mais precisamente e sempre com a animação
dos consultores, eles defendem seus relatórios diante de seus contrames-
tres. De acordo com os resultados, planeja-se uma ou diversas seqüências

255
Psicossociologia – Análise social e intervenção

suplementares ou passa-se diretamente à etapa seguinte que consiste


em apresentar ao responsável local e a seus gerentes o relatório a respei-
to do qual o grupo inicial e o comando entraram em acordo. Um dos
pontos importantes desse processo é o de saber se os executantes volun-
tários e cooptados por seus colegas se empenharão ou não em um papel
de “conselheiro segurança” no interior de suas respectivas equipes e
segundo quais princípios esse papel será estruturado. A última negocia-
ção consiste, então, em saber em que medida e em que pontos as mu-
danças demandadas pela execução e seu comando serão adotadas pelo
responsável local e se os membros do grupo ou dos grupos de executo-
res confirmarão sua participação e segundo que modalidades.
Em relação ao processo das intervenções precedentes, esse explicita
as ações e organiza as situações de confrontos de maneira bem mais direta;
estende-se numa duração que se mede em meses. Como no caso anterior,
permite evocar aspectos que ultrapassam largamente as questões de segu-
rança num sentido estrito e leva a considerar os acidentes (ou os compor-
tamentos de risco) como resultante de um grande número de variáveis
(ou, como na teoria dos equilíbrios quase estacionários de LEWIN, de
múltiplas forças antagônicas). Porém, o choque de pontos de vista pode
ser mais brutal, a intensidade emocional mais forte, os mecanismos de
defesa que protegem habitualmente cada categoria de ator mais pronta-
mente atacados e reconstruídos por ocasião dos sucessivos encontros.
Tal dispositivo relaciona-se com o de grupos de expressão direta
dos assalariados, instituídos pela lei Auroux. Três aspectos o distinguem:
ele é demandado expressamente por um escalão da linha hierárquica e
não imposto por ela; ele não reúne todos os agentes da unidade envolvi-
da, mas um subconjunto (da ordem de um quarto a um décimo) com-
posto, em teoria, segundo o duplo princípio do voluntariado individual
e da cooptação por pares; todas as etapas que balizam a criação de um
novo papel (do tipo “conselheiro-segurança”) são animadas por uma
equipe de interventores externos à unidade. O primeiro ponto (a inicia-
tiva de um escalão ou de uma direção decididos a se empenharem em
um diálogo verdadeiro) e o último ponto são, para nós, decisivos. Se a
situação mobiliza práticas sociais muito familiares aos assalariados e,
em especial, aos delegados do pessoal e aos militantes sindicais, a pre-
sença ativa de um terceiro nos parece indispensável. Ela permite, entre
outras coisas, ultrapassar conseqüências e retroceder no momento em
que uma assimetria muito grande, ligada às diferenças de status e/ou de
poder, produz uma frustração muito forte no ator, a ponto dele renunciar,
demitir-se ou deixar o outro – ou os outros – conservar sua vantagem; tal

256
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

fenômeno pode-se produzir não apenas no interior de um dos estratos


envolvidos, mas também em encontros do mesmo estrato. Por isso, evi-
dentemente, é necessário que os interventores sejam percebidos como
suficientemente independentes de cada parte, sensíveis às causas pelas
quais os atores lutam, capazes de empatia e de domínio intelectual dos
problemas, a fim de fornecerem enunciados que não são gerais e abstra-
tos demais nem tão “pé no chão” ou neutros, além de serem percebidos
como tendo condições de guardar uma distância ótima e resistir às pres-
sões que podem ocorrer. Em outros termos, é preciso que se lhes reco-
nheça bastante autoridade para serem escutados e ouvidos por todos,
que se experimente bastante confiança em suas capacidades de catalisa-
rem um progresso que poderá ser aproveitado por cada parte. Essa di-
mensão de positividade corresponde a um dos limites da neutralidade
evocada: a presença do interventor só é possível se, bem cedo, cada ator
envolvido e ele próprio percebem a existência de metas suficientemente
compartilháveis e a virtualidade de uma mudança eqüitativa.
Tais requisitos, evidentemente, não são específicos de situações que
retiram seus elementos técnicos da terceira origem, mas têm, sem dúvida,
aqui, uma importância acentuada. Está claro também que, mesmo se
essas qualidades requeridas podem e devem se desenvolver através
da experiência de práticas relacionadas à segunda origem (da condu-
ção dos grupos de estudo de problema aos grupos de evolução), senão
à primeira, e, mesmo se a orientação evocada não persegue meta for-
madora nem meta de estudo (os resultados obtidos nesses dois domí-
nios sendo considerados como benefícios secundários), elas não de-
pendem apenas da técnica.
Enfim, caso se considere tais intervenções mais “sociológicas” do
que “psicossociais”, na medida em que elas tentam ter um acesso mais
direto às relações sociais, está, entretanto, claro que elas ainda se situam
no campo microssociológico. Escolher, para guiar a análise, ancorar, por
exemplo, o referencial teórico na Sociologia da ação de TOURAINE não
impede que uma abordagem intervencionista atravesse necessariamen-
te os fenômenos relacionais da Psicologia. O objeto “relações sociais” é
tomado em uma fantasmática organizacional das relações interpessoais
e dos fenômenos de grupo como o minério em sua ganga; tal metáfora,
aliás, mal consegue considerar o grau de intricação e interdependência
das dinâmicas grupal e social.
O fato de que a realidade dos sistemas de ação concretos e das con-
dutas sociais seja, em todos os níveis, tecido com fios múltiplos, sempre
pluridimensional, não deve de forma alguma levar a renunciar ao projeto

257
Psicossociologia – Análise social e intervenção

de análise (de decomposição em seus elementos) que caracteriza toda


démarche de conhecimento; mas, enquanto dispositivo de inserção, ne-
nhuma estrutura técnica de intervenção pode constituir uma peneira
perfeita, permitindo isolar, filtrar com segurança um objeto teórico; ele
contribui mais ou menos ativamente para lhe dar forma, sem chegar a
lhe dar um molde, retomando a distinção de PALMADE (1977). Assim,
o interventor é um clínico, quer esteja empenhado, enquanto pesquisa-
dor, em uma intervenção-consulta com perspectiva demonstrativa, quer
atribua prioridade aos problemas de ação e de existência, privilegiando
processos decisórios ou elucidações de sentido; a Sociologia que opta
por tal abordagem não pode mais excluir a Psicologia Social nem igno-
rar a vida psicológica dos grupos nos quais penetra; ela só pode ser ela
mesma ao preço de uma integração suficiente das abordagens da Psi-
cossociologia, até o ponto em que a distinção entre intervenções psicos-
sociológica e sociológica não mais seja fácil de ser feita. Com efeito, não
é suficiente dizer que é a escolha do referencial teórico, a natureza dos
dispositivos técnicos e os modos de intervenção que podem, por si só,
fundamentar tal distinção, caso se esteja inscrito em uma relação de con-
sulta; as escolhas iniciais arriscam, em cada momento, ser atropeladas
pelos acontecimentos presentes no processo e é apenas no desfecho que
se pode concluir de que vertente disciplinar os objetos que foram traba-
lhados realmente dependem.
Tal situação pode desencorajar um pesquisador; a mim, ela me leva,
antes, a resistir à tentação de considerar as práticas de intervenção psi-
cossociológicas como passíveis de adquirir, com o tempo, uma posição de
disciplina científica organizada em torno de um objeto específico e exclu-
sivo. Nem ciência nem tecnologia, elas seriam, no entanto, capazes de
contribuir em processos de pesquisa, particularizando-se por um traba-
lho técnico que lhe é próprio, elas dizem respeito a uma práxis distinta
daquelas do educador, do terapeuta, do gerente ou do político.
O caráter algumas vezes espetacular de seus efeitos (não é raro ver a
freqüência dos acidentes de trabalho em uma unidade ser reduzida a um
quarto, depois de dez ou vinte dias de intervenção, distribuídos por uns
poucos meses) não deve permitir que se esqueça seu lado efêmero (dois,
três ou quatro anos no mesmo exemplo acima evocado). Não é fácil, para
o pessoal de um estabelecimento, estabilizar uma mudança desse tipo (de
fato, uma evolução das relações que caraterizam seus modos de funcio-
namento), malgrado os fluxos que renovam sua composição e os outros
fenômenos internos ou externos que o afetam; enquanto não se tenta
atingir as estruturas intrapsíquicas individuais nem as estruturas globais

258
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

do espaço social considerado, a invenção de instituições locais (por exem-


plo, a criação de “conselheiros segurança”) é o único meio, para os ato-
res, de tentarem inscrever seu esforço na história da unidade; isso tem
pouca importância diante de um novo chefe determinado a orientar seus
esforços em uma direção inteiramente diferente.
Porém, malgrado sua fragilidade no tempo, tal resultado não se re-
duz a uma estatística de acidentes, por mais importante que ela seja para
as pessoas envolvidas. Por outro lado, se a inovação local exprime e reúne
novidades aspiradas, de maneira mais ou menos difusa, por certos seto-
res da sociedade, e se surgem conjunturas favoráveis, tais acontecimentos
podem inspirar outros e, assim, adquirir um sentido menos restrito.
Enquanto atores sociais, é da responsabilidade dos psicossociólo-
gos que optam por uma estratégia de “forçar entrada” afirmar, sem
subterfúgios, sua identidade social e a natureza de seu projeto, vigiar a
maneira como a sociedade institucionaliza sua atividade, lutar por esta-
belecer e manter as condições de possibilidade de seu papel (por exem-
plo, as que asseguram a qualidade da formação inicial dos práticos, o
aperfeiçoamento permanente que pode garantir um nível de competên-
cia aceitável, o reconhecimento de uma posição suficientemente indepen-
dente para estar em condições de contribuir concretamente para explorar,
analisar e experimentar as vias de democratização etc.). A inserção na
universidade, a colaboração ativa com os laboratórios de pesquisa, assim
como a manutenção de uma vida associativa que não seja só de função
corporativista são, para mim, importantes sob esse ponto de vista.
Anunciamos, no começo desse artigo, um ponto que vamos agora
abordar rapidamente: o de saber em que medida as práticas de inter-
venção se diferenciam, em função do campo social em que aparecem. Se
nos restringirmos ao caso da perspectiva “colaboradora” – que corres-
ponde ao que denominamos intervenção-consulta – e se entendermos
por campos os domínios de atividade como a indústria, a administra-
ção, o comércio, os setores de saúde, social e educativo ou os campos de
estudo como o meio rural, os espaços urbanos, os movimentos sociais
ou culturais etc., seria natural levantar tal hipótese. Entretanto, pode-se
observar que, diante de cada um dos campos que acabamos de enume-
rar, podem-se encontrar, na literatura especializada, exemplos que to-
mam emprestados elementos técnicos a cada uma das três origens que
distinguimos nesse texto; o mesmo se passa, se relacionamos os campos
e os tipos de intervenção-consulta que distinguimos (decisória, analíti-
ca, demonstrativa) ou ainda se examinamos essa classificação em fun-
ção das origens técnicas.

259
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Já observamos que, se tentamos elaborar uma taxionomia das prá-


ticas de pesquisa-ação no interior de um determinado setor (no caso, o
espaço urbano), pode-se aplicá-la a outros campos, sem operar modifi-
cações importantes e sem que ela perca sua pertinência.
Os critérios que me parecem mais eficazes para evidenciar as espe-
cificidades seriam antes:
- o lugar dos agentes que instituem o projeto no sistema em questão
(status social, autoridade, poder, posição central ou periférica etc.);
- o caráter do lugar: espaço intra-organizacional ou trans-organiza-
cional;
- a natureza dos objetos (as categorias de fenômenos) a respeito dos
quais tenta-se produzir uma certa forma de conhecimento e obter
mudanças, o grau de nossa capacidade de indentificá-los, concei-
tualizá-los e a maneira como os apreendemos teoricamente;
- as opções epistemológicas e as perspectivas ideológicas dos pes-
quisadores e de seus parceiros (suas relações com os modelos do-
minantes em sua região e em sua subcultura);
- a relação pesquisador-ator (relação mercantilista, de dependência
hierárquica, de colaboração profissional, voluntária ou militante
etc.), a estruturação dos papéis recíprocos, a divisão do trabalho.
Não quero ir tão longe a ponto de dizer que uma análise comparati-
va, lidando com uma amostra bastante numerosa de casos, não chegaria
a evidenciar as diferenças significativas de acordo com os campos. Por
exemplo, os resultados quantitativos estabelecidos por C. MARTIN em
uma pesquisa recente, a partir de um corpus de uma centena de interven-
ções no campo social (1986) e, ainda, as conclusões às quais J.-C. ROUCHY
chegou, evocando, nesse número, sua própria experiência no campo da
saúde, não coincidiriam, necessariamente, com o que se observaria em
outros lugares. Porém, pensamos que a raridade relativa do fenômeno
deixa-o ainda fragilmente institucionalizado e que isso favorece, até um
determinado ponto, a variância devida às condutas pessoais do consul-
tor e de seus parceiros.

Notas
1
Traduzido de DUBOST, Jean. “Sur les sources techniques de l’intervention psychosocio-
logique et quelques questions actuelles”. Connexions. 49, p. 7-28, 1987-l, por Marília
Novais da Mata Machado.
2
DO – Desenvolvimento Organizacional (N.T.).

260
As origens técnicas da intervenção psicossociológica e algumas questões atuais

Bibliografia
DUBOST, J. L’intervention psychosociologique. Paris: PUF, 1987.
LE BOTERF, G. L’enquête participation en question. Théories et pratiques de l’éducation
permanente. Paris: LFEEP, 1981.
LÉVY, A. In: L’intervention institutionnelle. Paris: Payot, 1980.
MARTIN, C. Les recherches-actions sociales. La Documentation française, 1986.
PALMADE, G. Interdisciplinarité et idéologies. Paris: Anthropos, 1977.
ROUCHY, J.-C. “Une intervention psychosociologique”. Connexions, 3, 1972.

261
Psicossociologia – Análise social e intervenção

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sagrados e certezas, relações de Este livro é de interesse para
poder e de autoridade foram Marília Novais da Mata Machado - Eliana de Moura Castro
os estudiosos das Ciências Hu-
analisados. José Newton Garcia de Araújo - Sonia Roedel (orgs.)
manas e Sociais em geral, tanto
Os autores, organizadores e para os que se dedicam à refle-
colaboradoras estão ligados por xão teórica, quanto para os que
um acordo de cooperação fran- praticam a Psicologia, a Sociolo-
co-brasileiro. Os franceses – gia, a Economia, a Psicanálise, a
Jean Dubost, Eugène Enriquez, “Quais são os problemas realmente essenciais, na atu- Educação, o Direito, a Adminis-
André Lévy e André Nicolaï – tração e a Política. Nele, psicólo-
alidade? Aos olhos do psicossociólogo, os mais impor-
são nomes consagrados em seu gos, sociólogos e um economis-
país. Seus textos foram selecio- tantes entre eles parecem ser o crescimento do indivi- ta interrogam suas áreas especí-
nados, apresentados e comen- dualismo, os ‘intemináveis adolescentes’, o triunfo da ficas e, sobretudo, a "transdisci-
tados por psicossociólogos bra- plina" que os congrega, a Psicos-
sileiros – Marília Novais da Mata racionalidade experimental, a busca desenfreada pelo
sociologia.
Machado, Sonia Roedel, José êxito econômico e financeiro e, finalmente, o recru- É apresentado, no livro, o es-
Newton Garcia de Araújo, Elia- boço de uma teoria original do
na de Moura Castro, Teresa descimento do ‘narcisismo das pequenas diferenças’
socius, da organização e do fun-
Cristina Carreteiro e Regina D. que acarreta as disputas inevitáveis entre as nações, et- cionamento social, feita a partir
B. de Barros. da análise social. Essa construção
nias, grupos religiosos etc. É certo que a Psicossociolo-
teórica foi inspirada e se funda-

análise social e intervenção


gia não tem poder para tratar dessas questões no âm-
Marília Novais da Mata
mentou em práticas sociais rea-
PSICOSSOCIOLOGIA
Machado é doutora em
bito da sociedade global, mas ela pode auxiliar os ato- lizadas em situações concretas,
reais: a "intervenção psicossocio-
Psicologia Social e
res e os autores sociais ou os sujeitos que querem ino-
lógica", dispositivo de consulta e
pesquisadora do LAPIP- var e criar novas modalidades sociais”. pesquisa, cuja história é aqui re-

André Lévy
FUNREI/FAPEMIG. vista e avaliada. A reflexão foi

André Nicolaï
fortemente influenciada pela Psi-
Eliana de Moura Castro canálise, mas também pelo pen-

Eugène Enriquez
samento filosófico que aponta

Jean Dubost
é doutora em Psicanálise e
para as representações imaginá-
professora aposentada da
rias do social e, recentemente,
UFMG.
pela sociologia da ação. Como

José Newton Garcia


conseqüência, aproximou-se do

de Araújo é doutor em
conhecimento da natureza do
vínculo que congrega os indiví-
Psicologia Social e Clínica ISBN 978-85-7526-022-7 duos, de um saber a respeito
e professor da PUC Minas. das mudanças e rupturas da di-

Sonia Roedel é mestre


nâmica social e da descoberta
9 788 575 26 022 7 do processo de criação institucio-
em Psicologia Social e nal; teoria e prática foram estrei-
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professora da UFMG. tamente unidas; mitos, ideologias,
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