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SABERES
Tecendo a Manhã
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2.
Ao ler “Tecendo a Manhã”, vê-se que há muito mais do que apenas a formação
de um amanhecer. A própria ação de tecer a manhã através das palavras
meticulosamente escolhidas pelo poeta, criando uma tenda a partir dos
entrecruzamentos “dos fios de sol de seus gritos de galo” e esta se constituir um “tecido
aéreo” – “luz balão”, é a máxima significação materializada na expressão. Já no título
do poema, o emprego do gerúndio no verbo “tecendo” (e em outros verbos ao longo da
obra analisada) e ainda o forte paralelismo existente entre os versos confere ao poema
um caráter dinâmico do ato de produzir a manhã, tornando sua leitura mais fluente.
Cada elemento novo interage a um já existente de maneira dinamicamente
evolutiva. Tal procedimento é construído simultaneamente no campo do estrutural e do
expressivo. À medida que o poeta utiliza-se de um conjunto de palavras
intencionalmente selecionadas, essas se “fiam” uma nas outras através dos
enjambements bem perceptíveis, ligando visualmente um verso a outro, principalmente
na primeira estrofe, de maneira que se tornam literalmente um “toldo” estruturante na
expressão. Além do mais, o poeta ao utilizar a irregularidade dos versos, a organização
do poema em duas estrofes (idéia de construção/conclusão da manhã) mantendo um
ritmo insistente das aliterações /g/ e /t/ através de leves rimas toantes, desautomatiza o
leitor e o transporta da voz impessoal que narra o poema para a própria imagem sendo
“tecida” pelos sons cocoricados dos galos que se entrecruzam, ou melhor, se
“entretendem” para enfatizar o neologismo do próprio poeta, em formas nítidas e cores
de uma consistência amarelo-douradas de seus cantos de fios de sol.
Utilizando-se ainda do método da recriação, no primeiro verso o poeta
transforma o provérbio popular “Uma andorinha só não faz verão” em “Um galo só não
tece uma manhã” e daí seguem versos que criam movimentos encadeados de sons e
imagens iconizando o amanhecer, um ato tão costumeiro, porém de uma forma inédita,
nunca antes imaginada. Tal formação além de fazer relembrar a idéia da arte ligada à
concepção de mundo formulada por Mukaróvski (1981), como a atitude que o homem
(de uma determinada época, nação e camada social) adota espontaneamente perante a
realidade fazendo com que essa atitude além de representar artisticamente a realidade,
atue sobre ela ou sobre ela reflita, leva também à idéia do “estranhamento” do teórico
russo Chklóvsky (1973) quando defende em seu estudo A Arte como Procedimento que
o procedimento da arte é o da singularização dos objetos – escurecer a forma, aumentar
a dificuldade e a duração da percepção. Conseqüentemente, tais aplicações elevam o
poema “Tecendo a Manhã” à condição de obra de arte:
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“[...] A imagem poética é um dos meios de criar uma
impressão máxima.” (CHKLÓVSKI, 1973, p. 42)
O eco que a alternância rítmica parece criar leva o leitor para dentro do próprio poema
e o orienta para o mundo:
Eco que não somente parece levar o leitor para dentro do poema, como também
o projeta através da “pedra” do poema, do “ele” presente no fim do terceiro verso da
primeira estrofe, provido do infinitivo do verbo ELAR, cujo sentido é o “elo”, a união
dos galos às relações do leitor com o mundo, com a memória e informação, dando ao
poema um caráter polifônico justamente por possuir um conjunto de vozes formando
uma corrente que representa a continuidade do grito do galo inicial por outros galos
vizinhos e circunvizinhos promovendo uma onda de cocoricós matutinos, levando ao
conceito de polifonia do teórico russo Bakhtin (1982) quanto ao conjunto de várias
vozes sociais dentro de um texto literário gerando um procedimento discursivo. O
embate entre essas vozes gera discursos dialógicos. Confirmando uma comunicação
entre os gritos que se complementam e se respondem, a intertextualidade será deste
modo a combinação das vozes internas do texto reproduzindo o diálogo com outros
textos. Diante dessa premissa elementar do dialogismo, segundo a qual a consciência,
para funcionar, precisa interagir com outra consciência, o mesmo se pode dizer com
relação ao texto e a cultura:
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isolamento. [...] na cultura, nada pode ser considerado
isoladamente. Nem a ciência, nem a arte. Muito menos os
signos, as línguas e as linguagens. [...]” (MACHADO)
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galos vão se entretecendo em um “tecido aéreo” assim como diferentes sistemas de
signos vão se modelizando a partir das palavras em seu estado de dicionário (língua
natural), que se iconizam ao se interconectarem (signo verbal), entendendo a
modelização como um dispositivo que permite o exame da construção da linguagem
em sistemas culturais, sobretudo daqueles constituídos por signos de natureza distinta
dos signos verbais.
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um processo dialético, um processo inconcluso e dinâmico de relação centro/periferia,
geradora de informação e formação da memória. Para Lótman, “os sentidos na
memória da cultura não são conservados, mas sim fermentados. Os textos que
formam a memória comum de uma coletividade cultural não só servem de meio de
deciframento dos textos que circulam no corte sincrônico contemporâneo da cultura,
como também geram novos textos” (LOTMAN, 1994, p. 226). Daí a noção de cultura
como “logos que cresce por si mesmo” e que se projeta na poesia, permitindo um
novo olhar a cada nova leitura.
“[...] Eu procuro fazer uma poesia que não seja asfaltada, que
seja um calçamento de pedras, em que o leitor vá tropeçando e
não durma, nem seja embalado.” (MELO NETO, 1995, p.800)
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A poesia para Cabral precisa ser forma que revele informação. O leitor precisa
“tropeçar” nas construções poéticas, precisa se desautomatizar diante do estranhamento
a que toda obra de arte projeta. E nesse ponto entra a relação intenção/atitude do fazer
poético para Carpeaux:
Isso explica a resistência à poesia pelos próprios alunos, que são privados da leitura
efetiva de poemas e limitados a livros didáticos com concepções previamente
formuladas sobre um determinado poema. Mesmo que o poema “Tecendo a Manhã”
seja positivamente abordado na íntegra (boa maneira para proporcionar a prática de
leitura) em um espaço no final da unidade, juntamente com outros poemas de João
Cabral de Melo Neto, como foi abordado no livro para o ensino médio Literatura
Brasileira de CEREJA E MAGALHÃES (2000), possui anteriormente textos que já
direcionam o aluno para características (pré-conceitos) do fazer poético de Cabral, como
por exemplo, determina a obra do poeta como “A morte do eu lírico” e que o poeta cria
“de forma distanciada” e isso termina por influenciar o aluno a fazer posteriormente
uma leitura carregada de prévios juízos de valores que muitas vezes não dão espaço para
que ele perceba o compromisso social e universal que Tecendo a manhã causa a quem o
lê e o relê. E ainda, mesmo com tantos poemas completos e bem escolhidos que tal
livro comporta, muitas vezes passam despercebidos por professores que não desenvolve
nenhum trabalho de práticas de leitura para aguçar a sensibilidade do aluno diante da
construção do poema e simplesmente não reforçam a importância dos poemas indicados
para a construção do saber, como bem lembra o professor Hélder Pinheiro no capítulo
Poesia na Sala de Aula: por quê? do seu livro Poesia na Sala da Aula (2007):
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Um descaso que termina gerando problemas de grandes proporções: alunos inibidos
e avessos à construção de associações do poema ao seu cotidiano, consequentemente
tornam-se incapazes para formularem a percepção, a imaginação e o raciocínio,
indispensáveis ao conhecimento. Segundo Carpeaux, tal inibição é resultado de uma
convenção social e ainda:
É tão somente com afinidade e amor pelo ensino que o professor poderá com o
auxílio de seu conhecimento libertar a mente do aluno para a importância da leitura e da
criação artística, e para tanto o professor Hélder Pinheiro, em seu livro Poesia na Sala
de Aula (2007), argumenta:
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“afinada” com o espírito do texto”. (BOSI Apud PINHEIRO,
2007, p.37),
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARPEAUX, Otto Maria. “Poesia e Ideologia”. In: Otto Maria Carpeaux: ensaios
reunidos (1942 – 1978). Olavo de Carvalho (org.). Rio de Janeiro: Editora Topbooks;
UniverCidade, 1999. [S.p].
MACHADO, Irene. “Um projeto semiótico para o estudo da cultura”. In: Escola de
semiótica: a experiência de Tártu-Moscou para o estudo da cultura. S. Paulo: Ateliê
Editorial/FAFESP, 2003 p.29.
MELO NETO, João Cabral de. “Tecendo a Manhã”. Poesias Completas: (1940–1965).
2ª Ed. Rio de janeiro, José Olympio Editora, 1975 p.19.
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MUKARÓVSKY, J. “A arte e a concepção do mundo.”. In: Escritos sobre estética e
semiótica da arte. Trad. Manuel Ruas. Lisboa: Editorial Estampa (Col. Imprensa
Universitária, v. 20), 1981, p. 303-315.
PINHEIRO, Hélder. Poesia na Sala de Aula. Campina Grande: Bagagem, 2007, p. 23;
26.
VILLAÇA, Alcides. “João Cabral de Melo Neto”. In: Leitura de Poesia – Alfredo Bosi
(org.). São Paulo-SP. Editora Ática, 2003, p. 149 - 150.
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