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Novembro/2010
O filme “Central do Brasil” foi escolhido como objeto de análise para a
articulação com a teoria sócio-histórica no presente trabalho. O longa-metragem se
baseia na relação de Dora, a escrevedora de cartas e Josué, o garoto que, após a morte
da sua mãe, inicia uma busca incessante por seu pai, junto à Dora. A história se inicia
tendo a Central do Brasil (estação de trens no subúrbio do Rio de Janeiro) como
cenário. Dora é uma professora aposentada que escreve cartas para analfabetos – mais
especificamente, para a população migrante que almeja manter laços com os parentes
distantes, e é revelada como uma pessoa sem compromisso com valores éticos e morais,
uma vez que não coloca todas as cartas dos clientes nos correios e quase colocou Josué
como vítima de tráfico externo. Tal ambiente é uma amostra da realidade dos migrantes
nordestinos que se mudam para a cidade do Rio de Janeiro em busca de melhores
condições de vida, mas que num contexto de desigualdade social, na luta pela
sobrevivência são entregues ao assalto, ao tráfico de forma a aumentar o quadro da
violência urbana.
Ana é uma das clientes de Dora, que leva o seu filho Josué, um garoto de nove
anos, para escrever uma carta para o seu pai, o qual deseja conhecê-lo. Na saída da
estação, Ana sofre um acidente de carro ao ser atropelada, que causa a sua morte. Desta
forma, Josué fica abandonado na cidade e é o momento em que definitivamente decide
procurar o seu pai. A única opção de Josué é pedir para que Dora escreva uma carta para
atender a essa necessidade dele. Dora, no entanto, não parece se sensibilizar com a
situação do garoto num primeiro momento. Posteriormente, se envolve com ele na sua
busca pelo pai com destino à Bom Jesus do Norte, na Bahia.
No discorrer do filme, vários obstáculos são postos para que alcancem sua meta,
ao mesmo tempo em que os dois personagens conquistam uma relação de amizade cada
vez mais afetuosa, passado o momentos inicial da rejeição recíproca. A trajetória dos
personagens em busca do pai de Josué no sertão de Pernambuco e da Bahia é, portanto,
o cerne sobre o qual se constrói o desenvolvimento do longa-metragem, no qual se
inserem todos os personagens secundários, os equívocos nos endereços possíveis para a
casa do pai de Josué e como a relação de Josué e Dora assume novos caminhos à
medida que convivem, de forma a causar mudanças em suas atitudes.
Nos momentos conclusivos do filme, eles são encontrados pela família do pai: os
irmãos de Josué, os quais aguardavam pelo pai que saiu de casa e não mais retornou.
Neste contexto, se mostra a revelação da carta do pai de Josué a Ana, na qual revela que
tinha a intenção de reencontrá-la e reunir a família para que vivessem juntos. Desta
forma, Dora, que obteve o sentido da sua trajetória concluído, retorna ao Rio de Janeiro.
De acordo com a psicologia sócio-histórica, através da dialética existente entre
singular, particular e universal é possível compreender o homem como um ser social,
isto é, um indivíduo que depende fundamentalmente desta relação para formar sua
essência humana, através das apropriações e objetivações feitas ao longo de sua vida, no
processo chamado de humanização.
No movimento que constitui tal dialética, o singular se constrói no universal e
este se concretiza através da atividade histórico-social desenvolvida pelo indivíduo, o
trabalho. Isto só se torna possível através da mediação feita pelo particular, com as
apropriações adquiridas pelo indivíduo em seu contexto de vida. O acúmulo de
experiências leva à maior complexificação do sujeito. No filme, o personagem Josué
vivia somente com sua mãe, Ana, pois seu pai morava no Nordeste e não mantinha
contato algum. Ana, por não ter condições de viajar ao encontro do marido, mandava
cartas a ele através da escrevedora Dora, que nunca às colocava no Correio. O menino
Josué, um indivíduo singular, vivia em contato com uma realidade social em que nem
todas as objetivações feitas pelo homem eram possíveis de serem apropriadas, uma vez
que a estrutura social na qual estava inserido, junto de sua mãe, não dava acesso a elas,
devido ao modo de produção vigente, o capitalismo. A forma como todas as
experiências sociais o afetaram, resultou nas construções de vínculos de acordo com a
sua condição concreta de vida. Tais experiências tiveram um papel particular na vida de
Josué, ou seja, a apropriação que ele fez da realidade foi subjetiva, já que ela diferencia-
se entre os indivíduos, de forma que suas funções cognitivas e emocionais produziram
um grau de apropriação da realidade distante da objetivação do gênero humano, ou seja,
do universal.
Além de que, o homem como um ser social, indivíduo singular, se constrói a
partir da relação existente com a genericidade parte esta, de sua sociedade. A primeira
trata-se da relação com as objetivações históricas humanas (universal): o homem se
apropria delas e objetiva-se como sujeito ativo e participante das transformações do
contexto em que vive, inclusive da construção de sua individualidade (particular). E é
no cerne da segunda relação - entre indivíduo e sociedade, por meio de relações
concretas e históricas - que a primeira se realiza. Esse contato com as objetivações do
gênero humano torna-se fonte de mediação para o homem estabelecer objetivamente sua
individualidade e se constituir como um ser social e genérico, isto é, universal, sem
abdicar da singularidade alcançada, que manifesta toda universalidade já conquistada
pelo gênero humano.
Segundo Duarte (1999) o gênero humano pertence à categoria histórica, ou seja,
é conquistada socialmente, e se realiza no interior das relações sociais concretas e
históricas nas quais cada homem se insere.
Dora, no início do filme, é uma mulher amarga e cínica, que sobrevive com o
dinheiro que recebe transcrevendo cartas para supostos analfabetos. A ação
humanizadora que este trabalho poderia ter, se ela utilizasse seu aprendizado como
professora para ajudar os outros, perde seu sentido a partir do momento em que ela não
envia as cartas, mas as deixam guardadas em uma gaveta, fazendo delas verdadeiras
mercadorias. Ocorre a mudança de alguns traços do caráter de Dora na medida em que
estabelece uma relação com Josué, o menino que quer conhecer o pai de qualquer
maneira, ainda mais depois da morte de sua mãe. Ao acompanhá-lo na viagem em busca
do pai, Dora e Josué aproximam-se e identificam-se, fazendo com que suas
singularidades se confrontem e se complementem, pois buscam conhecer a si mesmos,
não possuem família – acentuada ausência da figura paterna – e estão aprendendo a
sobreviver por conta própria desde muito novos. É uma relação mediadora para ambos,
em que eles transformam um ao outro e são transformados, em um processo que suporta
desavenças e abandonos. Dora compra roupas novas, torna-se mais vaidosa por
influência do menino, muda a atitude em relação às cartas, não as guardando mais ou
jogando-as no lixo. Josué passa a ser mais alegre e mais confiante em relação aos outros
e deposita em Dora a figura materna e paterna ausentes. Entre pessoas desconhecidas e
um cenário marcado pela pobreza, ambos humanizam-se e encontram no outro uma
singularidade até então desconhecida, que torna possível a construção de suas
identidades, novos elementos individuais e de personalização.
O homem com sua singularidade se resultam em uma síntese de múltiplas
determinações, ou seja, é uma síntese complexa em que a universalidade se concretiza
socialmente e historicamente, através da atividade vital humana, que é social, o
trabalho. ***Atividade é o meio/modo pelo qual o ser humano se relaciona com a
realidade, buscando a satisfação de suas necessidades. Toda atividade é gerada por uma
necessidade, que por sua vez é criada pelas condições concretas da vida, do meio social
no qual o indivíduo está inserido.
O fator determinante para a humanização dos antepassados animais do homem e,
conseqüentemente o surgimento da sociedade foi o surgimento do trabalho. Todas as
modificações anatômicas e fisiológicas devidas ao desenvolvimento de atividades
acarretaram necessariamente uma transformação global do organismo, dada a
interdependência natural dos órgãos e o surgimento da atividade vital humana –
trabalho. É um processo que liga o homem à natureza, no qual ele age sobre a mesma,
transformando-a e concomitantemente se transformando.
O trabalho é caracterizado por dois elementos interdependentes, sendo o
primeiro deles o uso e o fabrico de instrumentos. O segundo consiste em que o trabalho
somente pode ser efetuado em condições de atividade comum coletiva, de modo que o
homem não entra somente em uma relação determinada com a natureza, mas com outros
homens, membros de uma dada sociedade. É através do intermédio desta relação com
outros homens que o indivíduo se encontra em relação com a natureza.
Para Duarte (2000), Leontiév e Vigotski utilizam o conceito de atividade/ação
diretamente com o de trabalho humano, como podemos observar na teoria marxista:
BONIN, L.F.R. A teoria histórico cultural e condições biológicas. São Paulo (Brasil),
Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1996.