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O Papalagui

Jamais Tuiávii pretendeu editar para a Europa estas falas ou discursos; nem mandar
imprimi-los de forma alguma, porque se destinavam, exclusivamente, aos seus
compatriotas polinésios. Se, contudo, sem que ele o saiba e, decerto, contra a sua vontade,
comunicaremos ao mundo europeu que lê as falas deste nativo, é porque estamos
convencidos de que para nós, brancos instruídos, pode ser útil conhecer a forma como
nos vê, a nós e a nossa cultura, um indivíduo estreitamente ligado à natureza. Com os
olhos dele ficamos sabendo como nós mesmos somos, de um ponto de vista que nos é
impossível assumir. Podemos, principalmente os fanáticos da civilização, achar que é
ingênua a maneira como ele pensa; talvez pueril, ou mesmo tola. Mas aqueles que forem
sensatos e humildes terão, ao refletir, de concordar com muito do que diz.Tuiávii; e terão
de auto-criticar-se porque a sua sabedoria não provem da erudição mas da simplicidade
que é divina.

Estas falas representam, por si, nada mais nada menos do que um apelo a todos
os povos primitivos dos mares do Sul para que se libertem dos povos civilizados da
Europa. Tuiávii, que despreza esta última, viveu na mais profunda certeza de que os seus
antepassados indígenas haviam cometido o maior dos erros quando acolheram
amávelmente as luzes da Europa. Tal qual aquela virgem de Fagasa que, do alto de um
rochedo, repeliu com o leque o primeiro missionário branco, dizendo: "Vai, demônio
malfazejo", também ele viu na Europa o demônio sombrio, o princípio que destrói,
aquele do qual deve fugir quem quiser conservar-se puro.

Quando o conheci, Tuiávii vivia pacatamente, segregado do mundo europeu, na


pequena e longínqua ilha de Upolu, que faz parte do arquipélago de Samoa, na aldeia de
Tiavéa, da qual era senhor e chefe mais importante. À primeira vista, parecia um gigante
maciço, simpático, com dois metros de altura, de estrutura particularmente robusta. A
voz, em contraste, era suave, branda, quase feminina. Os olhos grandes, profundos,
sombreados por espessas sobrancelhas, tinham algo de fantástico, fixo. Mas, quando de
repente falava, mostravam-se calorosos, revelando disposição clara e benévola.

Nada havia, quanto ao mais, que distinguisse Tuiávii dos outros nativos. Bebia
a sua Kava (bebida popular samoana, feita com as raízes do arbusto chamado Kava);
pela manhã e à noite, ia ao loto (serviço religioso), comia bananas, taro e inhame,
observava todos os usos e costumes de sua terra. Eram só os mais íntimos que sabiam
quanto incessantemente seu espírito fervilhava, à busca de esclarecimento, nos momentos
em que, como se sonhasse, os olhos semicerrados, ficava deitado na grande esteira que
tinha em casa.

Ao passo que os indígenas, em geral, viviam tal qual crianças, apenas e


exclusivamente no reino dos sentidos, totalmente e só no presente, sem perqüirir coisa
alguma de si mesmos, nem do ambiente mais próximo ou mais distante, Tuiávii era de
natureza excepcional, pois excedia de muito os seus semelhantes: isto é, tinha
consciência, essa força íntima que nos distingue, mais do que qualquer coisa, de todos os
povos primitivos.

Talvez fosse desta singularidade que se originara o seu desejo de conhecer a


Europa longínqua; aspiração ardente que já sentia quando ainda freqüentava a escola
dos missionários maristas mas que só realizou quando adulto. Juntando-se a um grupo
teatral popular que viajava pelo continente, visitou, faminto de experiência,
sucessivamente todos os países europeus, ganhando, assim, um conhecimento exato das
respectivas características e culturas. Mais de uma vez me espantou a precisão com que
estes conhecimentos atingiam minúcias aparentemente insignificantes. Tuiávii possuía,
no mais alto grau, o dom da imparcialidade que marca a observação acurada. Nada
havia que o ofuscasse, palavra alguma que o desviasse de uma verdade. Ele via, por
assim dizer, a coisa em si, se bem que jamais se arredasse do seu próprio ponto de vista,
por mais que refletisse.

Embora eu tenha vivido mais de um ano muito próximo a ele — eu era membro
da sua comunidade —, Tuiávii só se abriu comigo quando nos tornamos amigos, depois
que ele havia de todo superado, ou mesmo esquecido, o europeu em mim; depois que se
convenceu de que eu amadurecera para a singeleza da sua sabedoria e de que dela não
zombaria de maneira alguma (o que jamais fiz). Foi só então que me permitiu escutar
trechos dos seus apontamentos. Leu-os para mim sem paixão, sem esforço oratório, como
se aquilo que tinha para dizer fosse, por assim dizer, histórico; mas foi precisamente pela
forma com que falava que tanto mais nítida e claramente me impressionou o que disse e
me despertou o desejo de registrar o que ouvira.

Foi só muito mais tarde que Tuiávii me entregou os seus apontamentos e me


permitiu traduzi-los para o alemão. Segundo pretendia, a tradução devia servir,
unicamente, para fins de comentários de minha parte, jamais seria um fim em si mesma.
Todas estas falas são esboços, nenhuma está concluída; nem Tuiávii jamais as
considerou de outra forma. Depois da completa ordenação da matéria em sua mente,
depois de reduzi-la à clareza derradeira é que tencionava iniciar o seu "trabalho
missionário", conforme chamava, na Polinésia. Tive de deixar a Oceania antes que ele
partisse nesta viagem.

Por mais que haja ambicionado permanecer fiel ao máximo ao original, sem me
permitir interferir em absoluto na ordenação da matéria, tenho, no entanto, consciência
do quanto me escapou da natureza intuitiva de sua fala, do sopro de sua intensidade. Hão
de me perdoar de bom grado aqueles que sabem quanto é difícil traduzir para o alemão
uma língua primitiva, ou exprimir o que nela soa pueril sem dar impressão de banalidade
ou insipidez.

Todas as conquistas culturais européias são engano paraTuiávii.o insulano sem


cultura; são becos sem saída. Isso poderia parecer arrogância, se tudo não fosse exposto
com simplicidade maravilhosa, se não revelasse humildade. Sim, ele adverte aos seus
compatriotas que se libertem do fascínio do Branco, mas o faz com melancolia,
mostrando que o seu zelo missionário emana do amor humano e não do ódio. "Acreditais
trazer-nos a luz", disse-me em nosso último encontro, "mas, na verdade, quereis é
arrastar-nos para a vossa obscurida-de". Tuiávii vê as coisas e os fenômenos da vida com
a honestidade e o amor à verdade de uma criança; esbarra em contradições, descobre
deficiências morais profundas e, enumerando-as, recordando-as, transforma-as em
experiência. Ele não consegue reconhecer em que reside o alto valor da cultura européia,
se ela aliena o homem de si mesmo, o torna inautêntico, mais o desnatura, o piora. Ao
enumerar nossas conquistas e começar, por assim dizer, pela epiderme, pela
exterioridade, designando-as de modo absolutamente não-europeu e desapiedado, sem
nenhum respeito, Tuiávii nos revela o espetáculo, embora limitado, de nós mesmos;
espetáculo ante o qual não sabemos se é do autor ou do seu objetivo que devemos rir.

A meu ver, reside nesta franqueza pueril, nesta falta de respeito o valor que
têm para nós, europeus, as falas de Tuiávii e a razão para que sejam publicadas. A
Guerra Mundial fez-nos cépticos em relação a nós mesmos; começamos nós também a
questionar as coisas no seu verdadeiro conteúdo; começamos a duvidar de que sejamos
capazes de realizar o ideal que temos de nós mesmos dentro de nossa cultura. Daí por que
não nos devemos julgar demasiado eruditos. Desçamos, por uma vez, das alturas de nosso
espírito até a maneira singela de pensar e ver deste homem dos mares do Sul que, ainda
livre do fardo da instrução e ainda primitivo no modo de sentir e de pensar, nos ajuda a
descobrir em que nós perdemos o sentido sagrado do homem, criando, em compensação,
ídolos sem vida.

Hom in Baden
Erich Scheurmann
__________________________________________________________________________

I
Como o Papalagui cobre a sua carne
com muitas tangas e esteiras
O Papalagui está sempre precupado em cobrir bem a sua carne. "O corpo e os
membros são carne; só aquilo que está acima do pescoço é que é o homem, realmente":
assim me falava um Branco, muito respeitado e tido como muito sábio. Queria ele dizer que
só se devia considerar aquelas partes em que reside o espírito, com todos os pensamentos,
bons e maus: a cabeça. A cabeça, sim, e se necessário também as mãos, o Branco permite
que fiquem descobertas, embora a cabeça e a mão não sejam mais do que carne e osso.
Aquele que, quanto ao mais, deixa que se lhe veja a carne não pode pretender à verdadeira
moralidade.

Quando faz de uma moça sua esposa, nunca o rapaz sabe se foi enganado, porque
jamais lhe viu, até então, o corpo(1). A moça, por mais bela que seja, tanto quanto a mais
bela taopu (2) de Samoa, cobre o corpo para que ninguém o veja, nem tenha prazer em vê-lo.
A carne é um pecado, segundo diz o Papalagui, porque o seu espírito é grande, é o que ele
pensa. O braço que se ergue, à luz do sol, para atirar, é flecha do pecado; o peito, sobre o
qual palpitam as ondas do respirar, é habitação do pecado; os membros com que a moça
convida para a siva (3) são pecadores. E também os membros que se tocam para fazer seres
humanos, alegrando a vasta terra, são pecaminosos. Tudo que é carne é pecado. Um veneno
existe em todos os tendões, malicioso, que salta de um homem para outro. O espetáculo da
carne, por si só, é suficiente para envenenar quem a contempla, intoxicá-lo, corrompê-lo e
torná-lo tão abjeto quanto aquele que se deixa ver. É o que proclama a moral sagrada do
homem branco.

É por isto que o corpo do Papalagui se envolve, da cabeça aos pés, em tangas,
esteiras e peles, tão justas, tão apertadas, que olhar humano algum, raio algum do sol as
atravessa; tão justas que o corpo se torna lívido, branco, fatigado, assim como as flores que
crescem no mais profundo dos bosques.

Escutai, irmãos mais sensatos das muitas ilhas, que fardo um Papalagui carrega no
seu corpo. Em primeiro lugar, envolve-o numa delgada pele branca, feita de fibras de certa
planta, a chamada pele superior, que se atira para o alto e se enfia de cima para baixo, pela
cabeça, peito e braços até as coxas. Por sobre as pernas e coxas até o umbigo, puxada de
baixo para cima, vem a chamada pele de baixo. As duas peles são cobertas por uma terceira,
mais grossa, tecida com os pelos de certo animal quadrúpede, lanoso, criado especialmente
para este fim. É esta, propriamente, a tanga, que consiste quase sempre em três partes: uma
cobre a parte de cima do corpo; a outra cobre a parte do meio; a terceira, as pernas. As três
partes prendem-se entre si por meio de conchas(4) e tiras, feitas com a seiva ressecada da
borracha, de tal forma que dão a impressão de ser uma peça só. Esta tanga quase sempre é
cinzenta como a lagoa quando chove, nunca é realmente colorida; quando muito, a peça do
meio, e só para aqueles homens que gostam de dar o que falar e de sempre andar atrás das
mulheres.

Por fim, os pés ganham uma pele macia e outra muito dura. A pele macia, na
maior parte das vezes, pode-se esticar e ajustar bem ao pé, ao passo que a outra quanto mais
dura, menos se ajusta. É feita com a pele de um bicho forte que se mergulha, durante algum
tempo, na água, se raspa com facas, se bate e se coloca ao sol até enrijecer de todo. Com
isso o Papalagui fabrica uma espécie de canoa de bordas altas, justo o suficiente para nele
caber um pé; uma canoa para o pé direito, uma canoa para o pé esquerdo. Estas canoas são
amarradas, são atadas, ao tornozelo de maneira que os pés ficam dentro de um estojo rígido,
tal qual o corpo do caracol. O Papalagui usa-o do nascer ao pôr do sol, sai nele para viajar e
com ele dança; mesmo que esteja quente como após a chuva tropical.
Como isso é muito contrário à natureza — conforme até o Branco percebe —, como os pés
ficam como se estivessem mortos e começam a cheirar mal, como, de fato, quase todos os
pés europeus já não conseguem agarrar nem trepar numa palmeira, por tudo isso o Papalagui
tenta esconder a sua tolice, cobrindo com muita lama a pele do bicho, que é vermelha por
natureza, dando-lhe, à custa de muita esfregação, um brilho tal que os olhos não suportam o
ofuscamento e têm de desviar-se.

Viveu, em certo tempo, na Europa um Papalagui que ficou célebre e que muitos
homens vinham procurar porque lhes dizia: "Não é bom que useis peles tãos estreitas e
pesadas nos pés; andai descalços sob o céu enquanto o orvalho da noite cobre a relva; assim
vos curareis de todas as doenças". Muito sadio era este homem, e ajuizado, mas riram-se
dele e não tardaram a esquecê-lo.

As mulheres, aliás, tal qual os homens, usam muitas esteiras e tangas, enroladas no
tronco e nas coxas. Sua pele se mostra sempre coberta de cicatrizes e esfoladuras devido aos
cordões. Os seios ficam flácidos, sem leite, por causa de uma esteira que os aperta e vai do
pescoço até o ventre e se amarra na frente e também nas costas; esteira que se enrijece com
espinhas de peixe, arame e fios. É por isto que a maior parte das mães dão o leite aos filhos
num rolo de vidro, fechado em baixo e com uma maminha artificial em cima.

Nem é o leite delas mesmas que dão, mas o de animais vermelhos, feios, chifrados,
dos quais o arrancam com violência pelas quatro tetas que têm em baixo.
Aliás, as tangas das mulheres e das moças são mais finas que as dos homens, e também
podem ser de cor, muito luzidias. É comum o pescoço e os braços aparecerem, mostrando
mais carne do que o homem. Em todo caso, convém que as moças se cubram muito e se diz
com benevolência, então, que são pudicas, o que significa: observam os mandamentos da
boa moral.

Daí é que nunca entendi por que, nos fonos (5) nos banquetes, as mulheres e moças
deixam que se lhes veja a carne do pescoço e das costas, sem daí resultar vergonha. Mas
talvez esteja nisso a graça da solenidade: é que aí se permite aquilo que não se permite todos
os dias.

Só os homens têm o pescoço e as costas sempre muito cobertos. Do pescoço ao


mamilo, o álii, isto é, o chefe, usa um pedaço de tanga tratado a cal, do tamanho de uma
folha de taro, por cima da qual, enrolado no pescoço, descansa um aro mais alto, também
branco e também tratado a cal. Através deste aro ele passa um pedaço de tanga colorida,
fixa-lhe um prego de ouro ou uma conta de vidro, tudo pendente do peitoral. Muitos
Papalaguis também usam aros tratados a cal no punho; nunca, porém, nos tornozelos.
Este peitoral branco, como os aros brancos de cal, tem muita importância. Jamais um
Papalagui fica sem estes adornos na presença de uma mulher. Pior ainda é se o aro de cal
enegrece, fica sem brilho; e é por isto que muitos áliis importantes mudam todos os dias os
peitorais e os aros de cal.

Enquanto as mulheres têm, para as festas, muitas esteiras de cor, com as quais
enchem uns baús em pé e ocupam muitos de seus pensamentos para saber que tanga
gostariam de usar hoje ou amanhã, se pode ser curta ou comprida; enquanto elas falam com
muito interesse nos adornos com os quais fixá-los, os homens quase sempre têm um só traje
para festas, do qual quase nunca falam. É a chamada roupa de ave, de um preto muito forte,
que desce em ponta pelas costas, feito o rabo de papagaio (6). Quando se usa esta roupa de
festa, também as mãos levam peles brancas; peles em cada dedo, tão estreitas que o sangue
arde e corre para o coração. Por isto se permite que os homens sensatos apenas segurem
estas peles nas mãos, ou as coloquem na tanga abaixo dos mamilos.
Assim que saem da cabana para a rua, o homem e a mulher envolvem-se noutra
tanga mais larga, grossa ou fina conforme o sol brilhe mais ou menos. Cobrem, então, a
cabeça, os homens com um vaso preto, rijo, curvo e oco feito o telhado de uma cabana
samoana; as mulheres com grandes malhas de vime ou cestos virados para cima, aos quais
prendem flores que nunca murcham, penas ornamentais, tiras, contas de vidro, todo tipo de
enfeites. Parecem-se com a tuiga (7) da taopu durante a dança de guerra; só que esta é muito
mais bonita, e só que não cai da cabeça durante a tempestade e a dança. Os homens sacodem
estas casas que levam na cabeça sempre que têm de cumprimentar alguém, enquanto as
mulheres apenas inclinam para diante a carga que trazem como se fosse uma canoa muito
pesada.

Só à noite, quando vai para a esteira, é que o Papalagui tira todas as tangas, mas se
enrola, imediatamente, numa outra, uma só, que se abre nos pés e os deixa descobertos. As
mulheres e moças quase sempre usam esta roupa de noite, ricamente bordada no pescoço, se
bem que pouco se veja. Assim que o Papalagui se deita na esteira, cobre-se, sem mais tardar,
até a cabeça, com as penas que se originam de uma grande ave e se juntam numa grande
tanga para não se soltarem ou se espalharem para todos os lados.
Estas penas fazem o corpo suar e fazem o Papalagui pensar que está deitado ao sol, mesmo
que este não brilhe, porque ao próprio sol o Papalagui não dá muita atenção.

Compreende-se, portanto, que o corpo do Papalagui seja branco e pálido, sem a


cor da alegria. Mas é assim que o Branco quer. Até as mulheres, principalmente às donzelas,
precupam-se muito em proteger a pele, evitando que se exponha à luz plena; quando saem
para o sol, colocam-se embaixo de um grande teto, como se a cor lívida da lua valesse mais
que a cor do sol. É que o Papalagui em todas as coisas gosta de fazer uma sabedoria e uma
lei a sua maneira. O seu próprio nariz, pontudo como o dente do tubarão, para ele é bonito,
ao passo que o nosso, sempre redondo e mole, ele acha feio e disforme, quando nós
pensamos exatamente ao contrário.

É porque o corpo das mulheres e moças se cobre tanto que os homens e rapazes
desejam ardentemente ver-lhes a carne, o que é natural. Noite e dia, pensam nisso, falam
constantemente nas formas do corpo das mulheres e moças, como se fosse grande pecado
aquilo que é natural e bonito, só devendo ocorrer na maior escuridão. Se eles deixassem ver
a carne à vontade, poderiam pensar em outras coisas; e os olhos não revirariam nem a boca
diria palavras impudicas quando encontrassem uma moça.

Mas a carne é pecado, é do aitu*? Existe idéia mais tola, amados irmãos? A crer
no que diz o Branco, deveríamos querer, como ele, que a nossa carne fosse dura como a
rocha do vulcão, sem a bela quentura que vem de dentro. No entanto, alegramo-nos porque a
nossa carne encontra o sol; as nossas pernas mexem-se como o cavalo selvagem, sem tanga
que as amarre, nem pele que as contenha e não nos preocupamos com que coisa alguma caia
da nossa cabeça. Alegramo-nos ao ver a virgem que mostra seu corpo bonito ao sol e à lua.
Tolo, cego é o Branco, que não sente o prazer verdadeiro, ele que precisa cobrir-se tanto
para evitar se envergonhar.
*

Notas:

1. Nota de Tuiávii: mesmo mais tarde, ela só o mostrará raramente, e apenas de noite ou ao
crepúsculo.
2 Moça aldeã, rainha das moças.
3 Dança nativa.
4 Tuávii refere-se aos botões e elásticos
5 Reuniões, deliberações
6 É do fraque que se trata, certamente.
7 Enfeite de cabeça.

***
II
Dos baús e fendas de pedra
e do que entre eles existe

O Papalagui mora, como o marisco, numa casca dura; e vive no meio de pedras,
tal qual a escalopendra*entre fendas de lava, com pedras em volta, dos lados e por cima. A
cabana em que mora parece-se com um baú de pedra em pé, com muitos compartimentos e
furos.

A gente desliza para dentro e para fora da casca de pedra apenas por um lugar que
o Papalagui chama entrada quando vai para dentro, e saída quando vem para fora, embora
ambas as coisas sejam absolutamente uma só e a mesma. Neste lugar existe uma grande
folha de madeira que se tem de empurrar com força para entrar na cabana. Mas isto é só
para começar: tem-se de empurrar ainda outras folhas para estar, de fato, na cabana.

Quase todas as cabanas são habitadas por mais pessoas do que as que moram
numa só aldeia samoana; por isto, tem-se de saber exatamente o nome da aiga (1) que se quer
visitar. Cada aiga tem para si uma parte especial do baú de pedra, ou em cima, ou embaixo,
ou no meio, à esquerda, à direita, ou mesmo na frente. E cada aiga não sabe nada da outra,
nada mesmo, como se entre elas não houvesse um muro de pedra mas, sim, Manono,
Apolima, Saváii (2) e numerosos mares.

É muito comum nem saberem o nome umas das outras; e se se encontram no


buraco por onde entram e saem, cumprimentam-se de má vontade, ou resmungam qualquer
coisa, tal qual insetos hostis, dando a impressão de estarem zangadas por terem de viver
perto umas das outras.

Se a aiga habita no alto, embaixo do próprio teto da cabana, tem-se de subir por
muitos galhos, em ziguezague ou em círculo, para chegar ao lugar em que está escrito na
parede o nome da família. Vê-se, então, a imitação graciosa de uma maminha que se aperta
até que ressoe um grito e apareça a família. Esta olha por um pequeno furo gradeado,
redondo, para saber se não é um inimigo, caso em que enchendo sempre o ar de fumaça e
cinzas, como se fosse a erupção da grande cratera de Saváii. Fumaça e cinzas que chovem
nas fendas, de modo que os altos baús de pedra parecem o limo dos pântanos; as pessoas
recebem nos olhos e nos cabelos terra preta, além de areia dura entre os dentes.

Apesar disso tudo, os homens andam por estas fendas da manhã à noite, muitos
até contentíssimos. Nota-se que em algumas fendas há uma confusão para a qual as pessoas
acorrem feito limo grosso. São as ruas onde se construíram enormes caixas de vidro nas
quais se mostram todas as coisas necessárias à vida do Papalagui: tangas, enfeites para a
cabeça, peles para as mãos e os pés, coisas de comer, carne, alimentos verdadeiros como
frutas, legumes e muitas outras coisas. Tudo está ali exposto para atrair os homens. No
entanto, ninguém pode tirar coisa alguma, mesmo em caso de precisão extrema. Para isso,
tem-se de conseguir uma licença especial e fazer uma oferenda.

Nestas fendas, de todos os lados, há perigos que ameaçam; os homens não


somente esbarram uns nos outros, mas circulam e galopam a cavalo, cruzando-se e
entrecruzando-se, ou se fazem carregar em grandes baús de vidro, que deslizam sobre tiras
metálicas. É grande o barulho. Os ouvidos ficam surdos, porque os cavalos batem com os
cascos nas pedras do chão, as pessoas batem com as peles duras que lhes cobrem os pés. As
crianças berram, os homens gritam de alegria ou medo, todos gritam. Ninguém pode
entender o que o outro diz senão gritando. É um rugido geral, um ronco, um bater de pés,
um grunhido, como se a gente estivesse no penhasco de Saváii, com a tempestade bramindo;
bramido que, no entanto, é mais agradável e não enlouquece como o rugido que se ouve
entre as fendas de pedra.

Tudo isso: os baús de pedra com a quantidade de homens, as fendas altas, o ir-e-
vir, por assim dizer, de muitos rios, as pessoas no meio deles, o barulhos, os rugidos, a areia
preta, a fumaça negra, principalmente, sem uma árvore, sem azul do céu, sem ar leve, nem
nuvens - tudo isso é o que o Papalagui chama "cidade", sua criação, de que tem muito
orgulho. Aí vivem homens que nunca viram uma árvore, um bosque, um céu claro; nunca
viram o Grande Espírito face a face. Homens que vivem como se fossem répteis na lagoa,
como se fossem bichos debaixo dos corais, mas esses no entanto, estão cercados pela água
límpida do mar e o sol pode chegar até eles com a sua boca quente. O Papalagui tem
orgulho das pedras que ajunta? Não sei. O Papalagui é um ente humano que pensa de modo
especial: faz muita coisa que nada significa e que lhe faz mal, mas apesar disso, ele se jacta,
gaba-se do que constrói.

Portanto, a cidade é isso que falei; mas existem muitas cidades, pequenas e
grandes. As maiores são aquelas onde moram os chefes mais importantes do país. Todas as
cidades estão espalhadas como se fossem ilhas no meio do mar: é comum umas estarem à
distância de umas tantas braçadas pelo mar; mas há outras que se leva um dia de viagem
para alcançar. Todas estas ilhas de pedra estão ligadas entre si por meio de caminhos
marcados. Mas pode-se também ir num navio terrestre, fino e comprido feito um verme, que
está sempre cuspindo fumaça e que desliza, muito rápido, em fios de ferro comprido, mais
rápido do que um bote de doze assentos, a toda velocidade. Mas se a pessoa apenas quer
dizer talofa (4) a um amigo de outra ilha, não precisa ir até à casa dele: sopra o que quer dizer
em fios metálicos, que vão de uma ilha de pedra a outra, feito compridos cipós. Mais
depressa do que uma ave voando, o recado chega ao lugar pensado.

Entre todas as ilhas de pedra está o país que, propriamente, se chama Europa, onde
a terra é, em parte, bela, e dá frutos como a nossa, com árvores, rios, florestas e também
pequenas aldeias de verdade. Aí as cabanas são também de pedra e possuem muitas árvores
frutíferas, que a chuva lava e o vento torna a secar.

Nestas aldeias vivem outros homens que sentem e pensam diferente dos que vivem
na cidade. Chamam-se homens do campo e têm as mãos mais grossas do que os homens que
vivem nas fendas e tangas mais sujas. Mas comem muito mais. A vida deles é muito mais
saudável e mais bela do que a dos homens das fendas. É raro, no entanto, que acreditem
nisso e invejam os outros a quem chamam de preguiçosos, porque não cavam a terra e não
plantam, nem colhem. Vivem em luta com os da cidades porque têm de lhes dar a comida
que tiram das suas terras; têm de colher as frutas que o homem das fendas come; têm de
criar e abrigar o gado até engordá-lo e dar a metade ao homem da cidade. O caso é que
precisam fazer muita força para dar comida aos homens das fendas e não compreendem por
que estes se envolvem em tangas mais bonitas; por que têm as mãos mais brancas; por que
não suam debaixo do sol, nem têm de padecer o frio e a chuva como eles.

O homem das fendas, no entanto, pouco se importa, convencido de que tem mais
direitos do que o homem do campo e de que o seu trabalho vale mais do que plantar e
colher. Mas esta briga entre as duas partes não chega ao ponto de se guerrearem: em geral, o
Papalagui acha que tudo está bem, conforme está, quer viva entre fendas, quer no campo. O
homem do campo admira os domínios do homem das fendas quando vai à cidade; e o
homem das fendas canta e arruma quando passa pelas aldeias. O homem das fendas deixa
que o homem do campo engorde seus porcos artificialmente, e este deixa o homem das
fendas construir e armar os seus baús de pedra.

Quanto a nós, livres filhos do sol e da luz, o que nós queremos é permanecer fiéis ao
Grande Espírito e não lhe sobrecarregar com pedras o coração. Só homens loucos, doentes,
que já não seguram a mão de Deus, podem viver felizes entre fendas, sem sol, sem luz, sem
vento. Deixemos ao Papalagui a sua felicidade duvidosa, mas vamos obstar-lhe toda
tentativa de construir baús de pedras em nossas praias ensolaradas e de matar a nossa alegria
de viver com pedras, fendas, sujeira, barulho, fumaça e areia, conforme ele pensa e quer.

*
Notas:

1. Uma espécie de centopéia.


2. Família
3.Três ilhas do grupo de Samoa
4. Cumprimento samoano. Literalmente: "gosto de ti"

***
III

Do metal redondo
e do papel pesado

Irmãos sensatos, escutai com fé o que vou dizer e sabei como somos felizes por
não conhecer a angústia e o pavor dos Brancos. Podeis todos testemunhar o que o
missionário diz: Deus é amor; um cristão de verdade faz bem se tiver sempre diante de si a
imagem do amor; só assim é que vale para o grande Deus a adoração do Branco. Ele nos
enganou, nos mentiu, os Brancos, corromperam os missionários para que eles nos
enganassem com as palavras do Grande Espírito. Pois o metal redondo e o papel pesado,
que eles chamam dinheiro, é que são a verdadeira divindade dos Brancos.

Fale a um Europeu do Deus do amor: ele torce o rosto, sorri. Sorri da


simplicidade com que pensas. Estenda-lhe, no entanto, um pedaço redondo, brilhante, de
metal, ou um papel grande, pesado: sem tardar, seus olhos brilham, muita saliva lhe vem aos
lábios. O dinheiro é o objeto do seu amor, é a sua divindade. Todos os Brancos pensam nele,
até dormindo. Muitos há cujas mãos de tanto querer agarrar o metal e o papel ficaram tortas
e parecidas com as pernas da grande formiga do bosque. Há muitos cujos olhos cegaram de
tanto contar dinheiro. Muitos que renunciaram à alegria pelo dinheiro; ao riso, à honra, à
consciência, à felicidade, até à mulher e aos filhos. E quase todos renunciam à saúde pelo
dinheiro, pelo metal redondo e pelo papel pesado.

Carregam-no em suas tangas, dentro de peles duras dobradas. À noite colocam-no


debaixo do rolo onde pousam a cabeça para que ninguém o tire. Pensam todos os dias, todas
as horas, em todos os momentos no dinheiro. Todos, todos! Até as crianças têm de pensar
nele, devem nele pensar! É o que aprendem com a mãe, é o que vêem o pai fazer. Todos os
europeus! Se fores às fendas de pedra de Siamani (1) a todo momento ouvirás um brado:
marco! E sem parar: marco! Ouves este brado em toda parte: o nome que dão ao metal
brilhante e ao papel pesado em Falani (2) é franco; em Peletânia (3) xelim; na Itália, lira. Lira,
marco, franco, xelim, é tudo a mesma coisa. Tudo isto quer dizer dinheiro, dinheiro,
dinheiro. O dinheiro, e mais nada, é o verdadeiro Deus do Papalagui, se Deus é aquilo que
mais adoramos, que mais veneramos.

É necessário dizer que não é possível, na terra dos Brancos, ficar sem dinheiro,
em momento algum, desde que o sol se levanta até que se deita. Se estás inteiramente sem
dinheiro, não acalmas a fome nem a sede, não encontras esteira para dormir. Te mandarão
para o fale pui pui (4) falarão de ti nos muitos papéis (5) se não tiveres dinheiro. Tens de
pagar, quer dizer, tens de dar dinheiro pelo chão em que andas, pelo lugar em que ergues tua
cabana, pela esteira em que passas a noite, pela luz que aclara tua cabana. Tens de pagar se
quiseres atirar num pombo, se quiseres banhar teu corpo no rio. Se quiseres ir aos lugares
em que as pessoas se alegram, em que cantam ou dançam, se quiseres pedir conselho ao teu
irmão, tens de dar muito metal redondo, muito papel pesado. Tens de pagar por tudo.

Onde quer que vás hás de ver teu irmão com a mão estendida, pronto a desprezar-
te, a enfurecer-se contigo se nela nada puseres. Nem servirá de nada a humildade do teu
sorriso, a simpatia do teu olhar para abrandar-lhe o coração. Ele abrirá a goela e berrará:
"Miserável! Vagabundo! Ladrão!" Tudo isso quer dizer a mesma coisa: a maior vergonha
que se pode inflingir a um homem. Até para nascer tens de pagar; e quando morreres, a tua
aiga tem de pagar por ti, por teres morrido e também para o teu corpo baixar à terra; e pela
pedra que rolarem sobre a sepultura em tua memória.

Só vi uma coisa pela qual, na Europa, ainda não se exige dinheiro, da qual todos
podem participar quanto queiram: a respiração do ar. Mas acho que apenas se esqueceram
disso; e não hesito em declarar que, se ouvissem o que digo na Europa, imediatamente
também exigiriam pelo ar que se respira o metal redondo e o papel pesado. Pois todos os
europeus estão sempre à procura de novos motivos para exigir dinheiro.
Na Europa, sem dinheiro, és um homem sem cabeça, sem membros; és nada. Precisas ter
dinheiro, precisas dele para comer, beber, dormir.

Quanto mais dinheiro tens, melhor te será a vida porque, tendo-o, podes ter com
ele tabaco, anéis, tangas bonitas. Podes ter tanto tabaco, tantos anéis e tangas quanto for o
dinheiro que tenhas. Se tiveres muito dinheiro, podes ter muitas coisas. Não há quem não
queira ter muitas coisas e por isto todos querem ter muito dinheiro; e cada um mais do que o
outro. Daí a ânsia por consegui-lo, a atenção com que os olhos o buscam a todo momento.
Jogue um metal redondo na areia e verás que as crianças se atiram em cima, brigam por ele;
aquela que o agarra e guarda é a vencedora e fica contente. Mas é muito raro alguém jogar
dinheiro na areia.

De onde vem o dinheiro? Como é que se pode ganhar muito dinheiro? Oh! De
muitas formas, com facilidade ou com dificuldade. Se cortas o cabelo do teu irmão, se tiras
a sujeira da frente da cabana dele, se levas uma canoa na água, se tens uma boa idéia. Diga-
se, por amor à justiça, que se tudo exige muito papel pesado e metal redondo, é no entanto,
fácil ganhá-los em troca de qualquer coisa. Basta fazeres o que chama na Europa
"trabalhar". "Se trabalhares, terás dinheiro", é o que diz uma regra moral dos europeus.
Existe aí uma grande injustiça que o Papalagui não nota, nem quer pensar sobre isto para
não ser obrigado a reconhecer que ela existe. Nem todos que têm muito dinheiro trabalham
muito. (Por sinal, todos gostariam de ter muito dinheiro sem trabalhar). É assim: quando um
Branco ganha tanto dinheiro que dá para comer, para ter sua cabana e sua esteira e mais
algumas coisas, imediatamente, com o dinheiro que tem a mais, faz seu irmão trabalhar para
ele.

Dá-lhe, primeiro, o trabalho que lhe sujou e endureceu as mãos; faz que limpe os
excrementos que ele próprio expeliu. Se é mulher, arranja uma moça que trabalhe para ela,
mandando-a limpar a esteira suja, lavar a louça e as peles em que coloca os pés, consertar as
tangas que se rasgaram, sem ter o direito de fazer nada que não seja bom para seu amo.
Homem ou mulher, quem assim procede fica com tempo para o trabalho mais importante,
mais divertido, que não suja as mãos, não cansa e dá mais dinheiro. Se ele é construtor de
barcos, o outro deverá ajudá-lo a construir os barcos. Do dinheiro que este produz,
ajudando, e que devia, portanto, ficar todo para ele, o amo tira-lhe uma parte, a maior e,
assim que pode, põe mais dois irmãos trabalhando para ele, depois três, e mais, e mais, em
número cada vez maior, até cem ou mais, seus irmãos constróem os barcos para ele. Enfim,
o amo já não faz coisa alguma senão deitar-se na esteira, bebendo kava européia, queimando
rolos de fumaça, vendendo os barcos quando estes estão prontos e recebendo o metal e o
papel que os outros, trabalhando, ganharam para ele. Dizem, então: ele é rico. Invejam-no,
adulam-no muito e lhe falam com palavras sonoras, porque a importância de um homem, no
mundo branco, não é dada por sua nobreza, coragem, o brilho das suas idéias, mas pela
quantidade de dinheiro que tem, quanto dinheiro é capaz de ganhar por dia, quanto guarda
no seu forte baú de ferro que terremoto algum pode destruir.

Há muitos Brancos que amontoam o dinheiro que outros fizeram para eles;
levam-no para um lugar muito bem guardado e vão trazendo cada vez mais até que, certo
dia, já não precisam fazer os outros trabalharem para eles. Agora é o próprio dinheiro que
trabalha no lugar deles. Como é possível isso acontecer sem qualquer feitiçaria brava, nunca
pude saber, mas a verdade é que o dinheiro se multiplica como as folhas de uma árvore; e o
homem vai ficando mais rico, mesmo quando dorme.

Mesmo quando um homem tem muito dinheiro, muito mais do que a maior parte
dos outros, tanto dinheiro que daria para aliviar o trabalho de cem, até mil pessoas, nem
assim lhes dá coisa alguma; pega no metal redondo e senta-se em cima do papel pesado com
avidez e volúpia brilhando nos olhos. Se lhe perguntares: "Que vais fa-,zer com todo esse
dinheiro? Não podes ter mais na terra do que roupa,* comida, água para beber". Ele não
sabe o que responder, ou diz: "Quero ter cada vez mais dinheiro; mais e mais". E tu vês logo
que o dinheiro o pôs doente, que sua mente está inteiramente possuída pelo dinheiro.

Está doente, obcecado, porque a alma lhe pende do metal redondo e do papel
pesado; porque jamais terá o bastante, jamais deixará de apoderar-se do mais que puder. Ele
não pensa desta forma: "Irei deste mundo tal qual a ele vim, sem provocar enfermidades e
nem injustiça, pois o Grande Espírito me mandou à terra sem metal redondo e papel
pesado". São poucos os que assim pensam. A maior parte continua doente, sem recuperar
jamais a saúde do coração, se regozijando com o poder que a grande quantidade de dinheiro
lhe dá. Ficam inchados de orgulho, como as frutas podres quando cai a chuva tropical. Com
volúpia mandam muitos dos seus irmãos para o trabalho pesado a fim de poderem engordar
e prosperar. Fazem isso sem que a consciência lhes doa. Alegram-se porque têm os dedos
bonitos, dedos limpos, que nunca se sujam. Não os atormenta, não lhes tira o sono saber que
estão roubando, a todo momento, a força dos outros, força que tornam sua. Nem sonham em
dar aos outros parte do dinheiro que têm para lhes facilitar o trabalho.
Assim é que existe, na Europa, metade que tem de trabalhar muito e se sujando
enquanto a outra metade pouco ou coisa alguma faz. Aquela metade não tem tempo para
deitar-se ao sol; a outra tem demais. Diz o Papalagui: "Todos os homens não podem ter a
mesma quantidade de dinheiro, nem todos podem deitar-se ao sol ao mesmo tempo!" Com
esta doutrina ele assume o direito de ser cruel, por amor ao dinheiro. Tem o coração duro, o
sangue frio. Finge até, mente, é sempre desonesto, sempre ameaça, quando quer botar a mão
no dinheiro. É comum um Papalagui matar outro por causa do dinheiro. Mata-o com o
veneno das palavras, atordoa-o para despojá-lo e é por isso que quase ninguém confia no
outro, porque todos conhecem a fraqueza comum. Jamais sabes se aquele que tem muito
dinheiro tem bom coração; é bem possível que ele seja mau. Nunca se sabe de que maneira e
de onde o outro tirou a sua riqueza.

Em compensação, o rico nunca sabe se as honras que lhe prestam são para ele
mesmo ou para o seu dinheiro. Na maior parte dos casos, são por causa do dinheiro. É por
isto que não compreendo porque se envergonham tanto os que não têm muito metal redondo
nem papel pesado e porque invejam o rico em vez de se sentirem invejáveis. Não convém,
nem é bonito pendurar no pescoço muitos colares de conchas; assim também, não convém
sobrecarregar-se com o peso do dinheiro que tira o fôlego do homem e a liberdade de
movimento necessária a seus membros.

Mas não há Papalagui que renuncie ao dinheiro; não há mesmo. Quem não ama o
dinheiro é ridicularizado, é "valea", quer dizer, estúpido. "A riqueza (ter muito dinheiro) dá
a felicidade", diz o Papalagui. "O país que mais dinheiro tem é mais feliz".
Nós todos, luminosos irmãos, somos pobres; e a nossa terra é a mais pobre que há debaixo
do sol. Não temos tanto metal redondo, nem tanto papel pesado que dê para encher um baú.
Somos uns mendigos, uns miseráveis aos olhos do Papalagui. Mas quando vos vejo os olhos
e os comparo com os dos ricos áliis, vejo que os deles são sem brilho, abatidos, cansados, ao
passo que os vossos, tal qual a grande luz, irradiam alegria, força, vida, saúde! Olhos como
os vossos, só os vi nas crianças do Papalagui, quando ainda não sabem falar, porque até
então nada sabem do dinheiro. Como nos favoreceu o Grande Espírito preservando-nos do
aitu, pois o dinheiro é um aitu; porque todos que tratam com ele são maus e fazem mal.
Quem apenas toca no dinheiro é tomado pelo seu feitiço; quem o ama tem de servi-lo e dar-
lhe todas as forças, todas as alegrias, enquanto viver. Amemos os nossos nobres costumes
que nos ensinam a desprezar aquele que exige alguma coisa pela sua hospitalidade; que
reclama um alofa (7) pelo fruto que dá. Amemos os nossos usos que não nos permitem
suportar que alguém tenha muito mais do que o outro, nem que alguém tenha muito e o
outro nada. Não sejamos de coração como o Papalagui, que pode sentir-se feliz e contente
mesmo se o irmão junto dele está triste e infeliz.

Livremo-nos, porém, antes de mais nada, do dinheiro. O Papalagui oferece-nos o


metal redondo e o papel pesado para nos dar o seu gosto. Eles querem nos convencer de que
o dinheiro nos fará mais ricos e felizes. Já são muitos dentre nós os que se deixaram
deslumbrar e se contagiaram com essa grave doença. Mas se acreditardes no que vos diz o
vosso humilde irmão; se perceberdes que vos falo a verdade quando vos digo que o dinheiro
jamais dá alegria e felicidade mas, pelo contrário, confunde e angustia completamente o
coração, a alma toda do homem; quando vos digo que com dinheiro, jamais se ajudou
realmente homem algum a ser mais alegre, mais forte, mais feliz; então havereis de detestar
o metal redondo e o papel pesado como o vosso pior inimigo.

*
Notas:

1 Alemanha
2 França
4 Inglaterra
5 Prisão
6 Jornais
7 Presente, retribuição.

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