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Resumo
Esta pesquisa descreve e analisa três fases de um procedimento de intervenção com duas crianças surdoce-
gas pré-lingüísticas. O estudo foi desenvolvido em uma escola especial de Brasília e nas residências, duran-
te nove meses. O objetivo foi implementar e avaliar procedimentos de intervenção com os sujeitos, basea-
dos na abordagem co-ativa de van Dijk e na perspectiva sócio-histórica. Os resultados sugerem que as es-
tratégias propostas por van Dijk na década de 60 mostraram-se eficazes quando associadas a práticas de
sala de aula que privilegiaram o uso simultâneo de vários recursos alternativos de comunicação (Libras,
gestos, movimentos corporais coordenados, Tadoma, escrita, fala, objetos de referência etc.). As alunas,
que inicialmente apresentaram uma comunicação expressiva elementar, no final da pesquisa, passaram a
apresentar novas competências comunicativas baseadas no uso de sinais, escrita, bem como melhoraram no
desempenho nas suas tarefas, concentração e comunicação, passando a demandar mais informações do seu
meio.
Palavras chave: criança surdocega, comunicação, ensino especial, movimento co-ativo.
Trabalho apresentado XXXIII reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Belo Horizonte, MG, outubro de
2003.
Apoio financeiro: FAPESP e CAPES
Endereço para correspondência: Via Washington Luís, km 235 – Caixa ostal 676 – São Carlos – SP – CEP13565-905.
E-mail: pabdalah@bol.com.br
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do a mão da criança sobre a sua. Gradativa- uma ênfase nas indicações táteis como uma
mente, o professor vai permitindo que a criança forma de viabilizar às crianças o acesso às
entre em contato com o objeto do conhecimen- informações através do movimento e das sen-
to. O objetivo é ampliar a ação motora do sur- sações, maximizando e otimizando seus senti-
docego no ambiente. dos remanescentes. Proporcionam-se, assim,
Durante a fase da referência não repre- novas condições da relação entre as influên-
sentativa introduz-se o uso do objeto de refe- cias recíprocas dos fatores biológicos
rência como um recurso mediador da interação. (habilidades e recursos que a criança dispõe) e
O objetivo é relacionar determinados objetos sócio-culturais, na aprendizagem de novos
com as atividades a serem realizadas (Bloom, repertórios de comportamentos das crianças
1990). A apresentação do objeto inicialmente surdocegas (Vygotsky, 1988).
precisa ser contextual; depois se promove sua Para o desenvolvimento desta aborda-
descontextualização, passando a utilizá-lo co- gem na prática escolar, é necessário um pro-
mo uma referência que antecipa a atividade grama educacional cuidadosamente determi-
programada. Para tanto, o objeto reduzido ou nado. A organização do ambiente de trabalho
simplificado, precisa ter uma equivalência sim- ajuda o surdocego a memorizar a disposição
bólica com o real e com a atividade a ser de- dos materiais permanentes facilitando sua ori-
senvolvida. entação e mobilidade no espaço da sala de
A quinta fase é a imitação, representa a aula. O estabelecimento da rotina é fundamen-
continuação do movimento co-ativo de forma tal porque viabilizará melhores condições para
mais rica, uma vez que o surdocego começa a a criança evocar, combinar e se orientar nas
re-criar os elementos simbólicos assimilados a atividades do dia, podendo futuramente ante-
fim de conseguir a satisfação de suas necessi- cipar as atividades mediante o objeto de refe-
dades. rência da mesma. Para isto é importante colo-
O gesto natural é a última fase descrita car estes objetos em um espaço definido
por van Dijk (1968). Nesta fase, o surdocego (caixas de memória, mesa), segundo a seqüên-
começa a criar seus próprios gestos para repre- cia das tarefas a serem desenvolvidas no dia,
sentar algo que deseja conquistar. Transforma de tal forma que quando a criança chegar à
os movimentos corporais em instrumento de sala de aula possa tomar conhecimento da
comunicação. Assim, os primeiros gestos a programação. Após a realização da atividade,
serem utilizados no trabalho com surdocegos o objeto de referência é retirado do local, indi-
devem imitar um jogo motor, no qual todo o cando o fim da atividade (McInnes, 1999).
corpo participa da identificação do objeto ou
da situação. O que importa é representar os Método
objetos a partir do que se pode fazer com eles, Participantes
tornando claro o que se pretende realizar, exe- Participaram deste estudo duas crianças
cutar em um momento específico. Outro passo surdocegas, pré-lingüísticas, do sexo femini-
necessário é o nível co-ativo dos gestos natu- no, sem outros comprometimentos aparentes,
rais, isto é, o professor deverá repetir muitas porém com atraso no desenvolvimento da co-
vezes de forma atraente e lúdica o movimento municação. As crianças eram de famílias com
do gesto, antes da criança ser capaz de realizá- baixo nível socioeconômico. As duas residiam
lo de forma independente. Muitas vezes, é ne- em cidades do Distrito Federal distantes cerca
cessário que os gestos e os sinais sejam realiza- de 35 km de Brasília.
dos no próprio corpo da criança. Quando esta A identificação das alunas será 9I e 7G,
conseguir realizar o gesto sem ajuda, evidenci- os números representam a idade cronológica
ará que possui condições de falar sobre algo de cada uma durante o período de coleta de
que está ausente. Neste estágio, o mediador dados e as letras foram aleatórias. O compro-
deverá estimular a expressão da criança por metimento auditivo e visual em ambas foi de-
meio de perguntas. corrente da Síndrome da Rubéola Congênita.
Percebe-se que em todas as fases desen- A 9I possui oito anos de experiência escolar
volvidas e descritas por van Dijk (1968), há na rede pública de ensino especial e a 7G, três
anos.
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10. registro escrito em braile, mediante o uso do segundo a modalidade de serviço oferecido.
brailex e larabraile (materiais produzidos pela O objetivo foi proporcionar as alunas à
instituição Laramara situada em São Paulo), e oportunidade de comparar os objetos, identifi-
máquina braile modelo Perkins. car a mudança do espaço físico e orientar-se
Portanto, o procedimento mencionado em relação à seqüência de atividades e a mo-
priorizou a ação (movimento e representação), dalidade do atendimento, bem como se deslo-
estimulou à síntese visual (gráfica), a síntese car de uma sala para outra de forma autôno-
oro-tátil (vibração da emissão verbal). Além ma. Deste modo, elas eram estimuladas a en-
disto, incentivou a utilização de diferentes for- contrar salas, ou ainda, a levarem ou busca-
mas de registro (soletração dactilológica, braile rem material em salas diferentes.
digital, fonológica, gráfica, letras avulsas), re- 3. Conversa de roda. Teve por objetivo am-
presentação em Libras, aplicação e generaliza- pliar o vocabulário em sinais, palavras e ex-
ção do significado contextual, social e cultural pressões mediante a alternância de turnos de
da palavra. Buscou-se manter uma rotina de conversação. Inicialmente, estes momentos se
trabalho marcada pela regularidade e freqüên- restringiram a perguntas realizadas pela pes-
cia destes procedimentos, com vistas a ampliar quisadora com indução das respostas.
e diversificar o vocabulário. A título de exem- 4. Calendário. Teve por objetivo possibi-
plo descrever-se-ão outras atividades que fize- litar às alunas condições para se situarem em
ram parte da rotina. relação a: (a) atividade (começo, meio e fim);
1. Música. Teve por objetivo familiarizar os (b) sucessão das situações de aprendizagem
sujeitos com a seqüência, o ritmo e a melodia em espaços distintos e com outros profissio-
dos sinais e com a atividade comum aos de- nais; (c) renovação cíclica dos períodos (dias
mais alunos da escola. A interpretação em Li- da semana, meses), e (d) compreensão do ca-
bras era realizada pela pesquisadora, que ficava ráter irreversível do tempo (segunda-feira já
em frente à aluna (9I), no mesmo nível. Nesta passou). Enfatizou-se um tempo dinâmico,
posição, realizavam-se as seguintes etapas: (a) envolvendo relações de passado, presente e
marcação de cada sinal de forma lenta; (b) re- futuro dos acontecimentos. Para tanto, utiliza-
petição dos sinais através do movimento co- ram-se os seguintes materiais: ficha tridimen-
ativo; (c) realização dos sinais no campo visual sional (3D): rotina diária e do tempo; ficha 2D
ou no braço, mão da aluna; (d) indicação da nomes: dia, mês e ano; calendário adaptado e
música, através do sinal de referência. caixa de memória, conforme descritos anteri-
2. Orientação espacial. Teve por objetivos (a) ormente.
explorar as relações entre os objetos no espaço; A atividade do calendário foi dividida em
(b) locomover-se; (c) quantificar as portas exis- três partes: (a) tempo; (b) dia da semana e do
tentes a partir de um referencial; (d) identificar mês, e (c) organização da caixa de memória.
o espaço através dos indícios táteis e cinestési- O item referente ao tempo foi explorado em
cos associados à via visual durante a locomo- seis etapas, são elas: (1) pegar as fichas 3D-
ção, conforme lembram Huebner et al. (1995). tempo; (2) ir para o pátio; (3) selecionar as
As alunas eram estimuladas e orientadas a res- fichas representativas do dia (sol, frio etc.);
peito das pistas táteis presentes na parede e no (4) retornar à sala de aula; (5) representar na
piso da escola, bem como quantificar as portas. lousa e depois no papel as condições do dia;
Assim, com a mão fechada e tendo a mão da (6) guardar as fichas. Inicialmente, as etapas
pesquisadora abarcando a mão de uma aluna, eram orientadas pela pesquisadora, depois
liberava-se para cada porta um dedo da mão da pela professora, no final as alunas as realiza-
aluna e os demais permaneciam na posição vam sem ajuda.
original. No início, esta atividade foi realizada O item referente ao dia da semana e do
de maneira co-ativa, com ajuda total, depois mês consistiu em um processo de sete etapas:
com ajuda parcial, por fim a realização era in- (1) realizar a identificação e reconhecimento
dependente. de cada ficha 3D: rotina diária; (2) marcar o
Outra técnica consistiu no uso de objetos dia da semana; (3) estabelecer a correspon-
de referência para identificar as salas da escola dência entre o sinal e nome; (4) soletrar o no-
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quando a criança surdocega possui no seu am- dos à forma encontrada por elas para exterio-
biente familiar e escolar uma reciprocidade e rizar o interesse no estabelecimento e manu-
disponibilidade na utilização diversificada de tenção das relações interpessoais. Provavel-
recursos de comunicação, suas condições de mente, esta característica que emergiu nos
aprendizagem se ampliam melhorando suas resultados seja pertinente à tese de Chomsky
interações com seu meio físico e humano e, (1973) sobre a existência nos seres humanos
conseqüentemente, deste para com ela. de uma programação inata destinada a desen-
A teoria de van Dijk (1968) mostrou-se volver aptidões para a linguagem.
básica na estimulação da aprendizagem de sis- Porém, a presença apenas da motivação
temas alternativos de comunicação em crianças para a conversação não promoveu uma intera-
surdocegas, desde que consideradas suas parti- ção prazerosa. A motivação constituiu-se no
cularidades e as especificidades de seu contex- passo inicial do processo, no entanto a função
to histórico, social e cognitivo. Neste processo, cultural da comunicação demonstrou que: (a)
é importante não perder de vista que qualquer o apoio às intenções comunicativas das alu-
deficiência influencia o estabelecimento das nas, interpretando suas contribuições com ba-
relações interpessoais e exige a organização de se no contexto imediato e no objeto; (b) a ex-
novos padrões de interação. Para isto, as fases posição delas aos modelos alternativos de
de nutrição, ressonância, movimento co-ativo e conversação; (c) a participação em experiên-
uso do objeto de referência consistiram nos cias de interação apropriadas e adaptadas às
pilares básicos para o apoio e a ampliação dos particularidades da surdocegueira, evitando
recursos de comunicação utilizados pelos parti- sua exclusão das atividades promovidas no
cipantes deste estudo. âmbito escolar e familiar; foram condições
A realização dos movimentos co-ativos que contribuíram com a ampliação dos recur-
na apresentação de objetos, gestos, sinais ou sos de comunicação das alunas. Este fato re-
dactilologia se mostrou uma estratégia bastante percutiu positivamente no ambiente familiar
eficiente na medida em que proporcionou uma promovendo novos padrões de interação. En-
margem de segurança para as alunas explora- fim, não há um único fator desencadeador do
rem de forma sistematizada o ambiente próxi- desenvolvimento da comunicação, mas uma
mo, bem como contribuiu com a superação das série de situações que se relacionam, determi-
dificuldades de configuração das mãos na reali- nam e reforçam-se mutuamente promovendo
zação dos sinais ou das letras do alfabeto dacti- formas específicas de comportamento.
lológico. Os resultados nas áreas de AVD e mo-
Os dados obtidos durante a intervenção tricidade (coordenação e controle dos grandes
levaram a redefinir o papel do objeto de refe- e pequenos músculos) mostraram que a surdo-
rência na comunicação com surdocegos, uma cegueira não comprometeu o acesso das alu-
vez que, inicialmente, não era possível compa- nas a estes conhecimentos e, principalmente, a
tibilizar a atenção das alunas em relação à in- aprendizagem e desenvolvimento de habilida-
formação funcional do objeto com os comple- des a eles relacionadas. No entanto, quando se
mentos da interação entre os participantes. Foi passa do nível do contato com objetos concre-
necessário primeiro canalizar a atenção das tos e manuseáveis para o nível abstrato das
alunas para a pesquisadora, desenvolvendo relações e interações entre indivíduos da mes-
assim a atenção compartilhada e, só depois, ma espécie e do conteúdo cultural, verifica-se
apresentar o objeto de referência. Com isto, que o grau de acesso pelos surdocegos altera-
evitou-se a interação privilegiada entre sujeito se. Esta alteração evidencia a necessidade de
e objeto presente no comportamento apresenta- adaptação que promova as condições adequa-
do pela 7G, e introduziu-se a importância do das de aprendizagem. Este resultado confir-
outro na exploração do objeto do conhecimen- mou o que a literatura da área evidencia como
to. uma das principais implicações da surdoce-
Durante a pesquisa foi possível constatar gueira: acesso à comunicação expressiva e
que as alunas demonstravam motivação para a receptiva (Watkins e Clark, 1991; Wheeler e
conversação, sendo os movimentos coordena- Griffin, 1997).
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