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RELIGIOES J. HERCULANO PIRES ] AGONIA DAS RELIGIOES ‘ Paideia 3* Edigio 1989 — 3,000 exemplares Capa: ICARO Revisio: DEMTRE ABRAAG NAMI Direitos desta edicao reservados pela Editora segundo dispositovs legaie. Direitos de traducéo s6 poderdo ser cedidos pela Bditora. Pedidos a: EDITORA PAIDEIA LTDA. C.G.G. 48,054.506 /0001-00 Inscri¢do Estadual: 108.772.113, Rus Dr. Bacelar, 505 — 04026 — SAO PAULO — SP — Brasil Composto por! Linctipadora Auxiliar $/C, Lida. Rua Sigueira Bueno, n° 2.316 92-1200 — Sao Paulo — SP INDICE Capitulos Paginas ‘Tempos de Agonia (Introdugdo) .. Ix 1 — Agonia das Religiées .. 1 2 — Religiao como Fato Social u 3 — A Experiéncia de Deus 21 4 — Experiéncia no Tempo 31 5 — Deus, Espirito e Matéria 39 6 — A Criagdo do Homem 47 7 — Do Principio Inteligente . 35 8 — O Corpo-Bioplasmico . 67 9 — Davida e Certeza TB 10 — Magia e Misticismo . 79 11 — A Cura Divina . 87 12 — Rito e Palavra 7 13 — Revolugao Césmica 105 14 — 0 Problema da Violéncia 115 A Teoria do Conhecimento implica as areas eulturais da Ciencia, da Filosofia ¢ da Religido. Mas a partir do Renaseimento a Religido se destigou desse contexto. De- senvolvew-se a cultura leiga e as religides se encastelaram no conceito de sua origem divina, decorrente do dogma da Revelagao. A Cultura dividivse em duas éreas conflitivas: a religiosa ¢ a profana Descartes proclamou, no Discurso do Método, a existen cia de dois tipos humanos (homo sapiens): 0 dos homens mais do que homens, que recebiam a sabedoria do proprio Deus, ¢ 0 dos homens simplesmente homens, gue buseavam conhecimento através da razao e da pesquisa. Kant san- cionou, em sua Critiea da Razdo, essa distineao que real- mente se fazia necessdria. Quais foram as consegiiéncias desse episddio cultural na crise religiosa contempordnea? E qual a solucdo possivel para essa crise? Qual a situacao atual das religides? O inicio da Era Césmica jé produziu profundos abalos e modificagdes nos dois campos. Haverd uma possibilidade de reunificar-se a cultura geral da nossa civilizacao? Qual a razao das stibitas modificacdes nas religides tradicionais ¢ em suas préprias teologias? o que significam as tentativas de elaboracéo de um Cristianismo Ateu? INTRODUCAO TEMPOS DE AGONIA O desenvolvimento da humanidade tem sido mareado por fases de axonia ¢ de morte, seguidas de fases mais duradouras de ressurreieao ¢ reconstrugao. As forcas que determinam essa espantosa sucessdo encontram-se na pré- pria criatura humana. Seria initil buscarmos uma explicagdo celeste, fundada nos pressupostos da Ira de Deus ou da ustica Divina, como seria iniitil procurarmos enquadré-ta nas brilkantes teorias relativas influéncta dos ritmos telii ricos. A prépria doutrina aristotélica da geragdo e corrup- ‘edo ndo poderia dar-nos os elementos concretos do fenéme no. Segundo Toynbee, as civilizacées se desenvolvem nas linhas conceptuais de uma religidofundamentaleentramem agonia quando se esvai o poder vital dessas religices. A relacéo suciedade-religiéo parece perfeitamente valida, mas néio nos oferece o segredo dessa estranha mecénica da ago- nia, Os processos sécio-culturais de cada civilizagdo tm a sua fonie no homem, pois a sociedade se apresenta objeti- vamente como um conglomerado humano. Parece evidente que 0 ritmo agénico deve estar ligado as entrankas ¢ ao Psiquismo do hamem. Como estamos vivendo, agora, pre cisamente numa das curvas agudas desse ritmo — talvec a mais aguda por que jé passou a humanidade — 0 momento 6 propicio para examinarmos o fenémeno ao vivo, tocando com os dedos os seus elementos determinantes. A agonia atual das religides & geralmente considerada como resultante da situacao critica da sociedade em seu acelera- do desenvolvimento tecnolégico. O mundo do supérfluo, em contradi¢do com o mundo da escassez, na estrutura social em que viveros, levaria a civilizacao atual a um beco sem saida, Ag religides agonizam porque o edonismo soctal e 0 correspondente pedantismo cultural esvaziaram igualmen- x te as arcas de tesouros metélicos dos ricos, os basis de crencas e crendices dos pobres, as esperangas de sucesso das camadas medianas da sociedade, as fontes de riqueza do planeta e até mesmo o balaio de sonhos da Lua e as ‘esperancas de um céu conuertido em frios desertos siderais ‘em’ que rolam mundos dridos e despovoados. Inverte-se a tese de Toynbee. As religi¢es seriam pro- duzidas e mantidas pelas civilizacées, como o mel pelas comunidades das abethas. Deus, filho do homem, esté mor- to, segundo constatam os tedlogos mais avancados. E en- quanto 0s religiosos voltam a matar-se reciprocamente em nome do deus morto, as grandes poténcias da civilizagao sem perspectivas preparam os funerais atémicos da Terra. A opressito estatal esmaga 0 homem nas éreas capitalistas e socialistas. O Leviata de Hobbes ameaca o mar,a terrae o céu, Como decifrarmos 0 enigma destes tempos apocalipti- 0s, quando o préprio ato de pensar parece estar sujeito a controles telepaticos? Os defensores da liberdade transfor- mam-se em terroristas e seqdestradores ou em liricos distri- buidores de flores murchas, embalsamadas nas palavras mortas de paz e amor. A inocéncia das criancas desaparece na voragem da criminalidade infantil. E os velhos alque- brados, de olkios vazios, ndo encontram mais nos templos 08 signos da fé que 05 embalou na inféncia, na adolescéncia, na mocidade ¢ na maturidade. Os padres sem batinas e as freiras sem habitos, os monges sem escapulérios ¢ os santos cassados em sua santidade jé néo podem consolar os cren- tes, O que acontece pare que tudo se subverta dessa maneira total e violenta? Foi a morte de Deus que esvaziou 0 mundo ow foi 0 vazio do mundo que matou Deus? As estruturas sociais so cvercitivas, Do cla 4 tribo ed horda, e desta é civilizeeao, a lei do aglomerado humano é uma 86, mas se desenvolue num ritmo de pressao crescente. A coeredo aumenta na razdo direta da estruturagdo. Da cabana do pagé a sacristia a religiao segue esse mesmo ritmo, A massificagao do homem na sociedade moderna fez 0 caminko de retorno sobre as conguistas do individualis. mo ateniense. Esparta suprimiu Atenas. O sonho frustredo XI da Republica de Platéo jé prenunciava o Leviatd de Hobbes, O desenvolvimento tecnolégico aumento a pressdo social sobre o homem, como o desenvolvimento da institucionali zagao religiosa gerou 0 tatalitarismo eclesidstico das gran- des civilizagdes orientais, leviatds teocrdticas, e forjou a engrenagem férrea do milénio medieval. Os sonhos da Re nascenca, um instante para respirar, apagaram-se impo- fentes nas garras de aco da tecnologia contempordnea. A torqués social de moral ¢ da religido esmagou as geracdes em nome da utopia conjugada de liberdade ¢ civilizacdo. O desespero exisiencial de Kierkegaard ¢ a néusea de Sartre foram os frutos amargos da escamoteacdo da nature: 2a humana pela hipocrisia farisaica dos formalismos sociais ¢ religiosos. O homem formalizado perdeu a naturalidade ¢ 36 teve uma saida para a sua angustia existencial: matar Deus e rebelar-se contra a sociedade. O fato nao é novo. Repetiu-se na Histéria, com os episédios de repressao vio- lenta dos rebelados nas civilizagées teocréticas ¢ massivas do Bygito faradnico, da Mesopotémia, de Israel com suas leis de pureza, da Idade Média e da Era Vitoriana na Inglater. 7a. Os libertinos medievais, a prostituicéo romana, o nudis: mo de comunidades retigiosas que buscavam o estado de graca do paraiso perdido, o deslumbramento da Europa do Século XVI ante a suposta liberdade absotuta dos selvagens da América so antecedentes da era pornogréfica que assi- nala a libertinagem do nosso tempo. Bastam esses fatos para podermos tocar com os dedos a fimbria da verdade. Em Os Demonios de Loudun, Aldous Huxley oferece-nos um quadro portentoso das medidas ecle- sidsticas e das providénciasestatais, na Buropa dos séculos XVIe XVI, com repercussdes no Século XVI, paraaliviar @ pressio moral e religiosa no caldeiréo social. Informa Hiusley: “Os prelados franceses ¢ alemdes estevam acostu- mados a receber 0 cullagium de todos os padres ¢ infor mavam aqueles que nao tinkam concubinas que poderiam 12-las, se quisessem, mas que deveriam pagar para isso uma licenga, e mais, que essa licenca deveria ser paga mesmo pelos que ndo as tivessem.” O celibato forcado explodia de ‘tal maneira que era conveniente regulamentéclo, a fim de XII salvar-se pelo menos a aparéncia de santidade dos clérigos. Numa das notas de seu dicionério, Bayle conta como 0 Senado de Veneza tolerava os escéndalos do clero para desprestigié-lo na opiniao pitblica, em favor das convenién: cias do Estado. “A deformacao da criatura humana pelas exigéncias onti-naturais das religides dé-nos a chave do pracesso clcli- co da morte das civilizagaes. Isso néo quer dizer que tenha- mos de aceitar as teorias atuais de uma psicologia libertina, mas que devemos compreender o erro e 0 perigo das repres- sdes extremas em nome da moral e das religiOes. Podemos compreender claramente que esse extremismo equivale & medicacao de disfarce, que esconde 0 mal permitindo 0 seu desenvoluimento seereto no organismo social. A Inglaterra da moral vitoriana esté hoje a bracos com a exploséo de si- tuagées incontroldveis. O seu Parlamento majestoso é leva- do é adogéo de leis e medidas deletérias, como as referentes aos problemas da homossexualidade juvenit. O ministério dos ciclos agonicos ¢ facilmente decifrado quando levantamos a mascara de hipocrisia das sociedades antinaturais, O mesmo se dé no tocante as religides repres- sivas, que acabam vencidas pela rebeliéo dos instintos na- turais, egonizando no descrédito ou sendo substituidas por outras. Acusa-se o Cristianismo de ser o responsdvel pela universalizacdo da hipocrisia, mas os préprios evengelhos atestam a atitude racional do Cristo em face dos que pre- tendiam lapidar a muther adltera, No caso de Zaqueu, 0 Cristo aceita a sua hospitalidade quando ele promete de. volver aos pobres 0 fruto impuro dos seus roubos. Madalena arrependida tornow-se a seguidora dedicada e a escothida para sera primeira a velo depois da ressurreigdo. Nao hé dévida que og excessos repressivos do Cristianismo néo foram determinados pelo Cristo mas pelos seus apdstolos judeus, contaminados pela hipocrisia farisaica e de outras seitas judaicas. O Apéstolo Paulo, 0 que melhor compreen- deu a posigdo do Cristo em tantos aspectos, ndo conseguiu escapar aos prejuizos do judatsmo, de sua formacdo judai- ea, quando se referia aos processos de repressdo, tornando- os ainda mais agudos na religido nascente. XU Explica-se o atitude paulina ante os abusos e excessos das religioes pagas, mitolégices, em que as praticas félicas, 08 rituais dionisiacos, toda a heranca da velha Suméria, da Mesopotdmia, da libertinagem da Gréeia e de Roma conta- minavam as ingénuas comunidades cristas, ameacando com 08 seus excessos 08 principios espirituais da religido nascente. Paulo, extremamente zeloso, apegava-se aos resi- duos da sua formacao farisaica, agindo com violéncia para impedir que 0s cristdos retornassem as praticas da irrespon- sabilidade moral, Mas hé enorme distancia entre as medi- das enérgicas de Paulo, que nao usava a méscara da hipo- crisia, e as medidas repressivas que mais tarde judaizaram as religies cristas. Ele, que combateu sem cessar os apésto los judaizantes, incidiu no mesmo erro que tanto conde- nara, mas justificado pelas circunstdncias de uma época de ignorancia e de costumes geralmente condendveis. 0 ponto crucial do problema religioso chama-se hipo- crisia. Ea hipocrisia resulta das atitudes egoistas, da falta de compreensao do verdadeiro sentido da Religido, que ‘caminho e ndo ponto de chegada da espiritualizacéo do homem. Os religiosos que pretender atingir a santidade do dia para a noite, que se revestem de pureza exterior, enco- brindo a podridao interior, sdo os hipécritas condenados veementemente no Evangelho. A solucdo desse grave pro- blema, que responde pela morte ciclica das civilizacées, esta na compreensdo da verdadeira natureza do homem, do pro- ‘cesso natural do seu desenvolvimento espiritwal. Os arti- ficios purificadores s6 servem para mascarar os individuos pretensiosos. As praticas ascéticas ndo podem ser forcadas. As paixdes e 08 instintos do homem sito manifestagées de forcas vitais que, sob o controle da. razdo e do sentimento, podem e devem guiar 0 espirito nos rumos da. transcen- déncia. ‘Repetimos agora os ciclos agénicos do Oriente, da Grécia e Roma, de Israel, da Europa Medieval. a exploséo porno- grafica sobrepde-se aos instintos vitais ¢ aos controles s0- clais. E a agonia das religibes anuncia a morte da civiliza- ofo tecnolégica. Nao obstante, hd uma esperanca para a brithante civilizagéo condenada. As forgas do espirito rea XIV gem contra a derrocada moral, Como na queda de Bizéncio, enquanto os clérigos cantam e pregam em meio d derrocada AG vigias de uma nova era espreitando o futuro nas almena- ras. E 0 que procuro demonstrar neste livro, num répido confronto das estruturas envethecidas com as novas estru- turas que nascem da propria terra, sab os nossos pés. Polul- da, envenenada, devastada, ameacada, a Terra dos Ho- ‘mens, nossa mae, convida-nos a subir com Saint-Exupéry para novas dimensées de uma realidade em que estamos perdidos. CAPITULO I AGONIA DAS RELIGIOES As Religides estdo morrendo. Bate é um dos fatos marcantes do nosso tempo, mais precisamente do Sé- culo XX. O poder das Religiées nao é mais religioso, mas simplesmente econdmico, politico e social. Asigre- jas se esvaziam, os seminarios se fecham, a vocagio sacerdotal desaparece, 0 clero de todas elas recorre no mundo inteiro aos mais variados expedientes para manter seus rebanhos, fazendo-lhes concessdes peri- gosas. Mas todos os expedientes mostram-se incapa- zes de restabelecer o prestigio e o poder religiosos, ser- vindo apenas de remendos de pano novo em roupa velha, segundo a expresséio evangélica. Comegam entéo a aparecer os sucedéneos, milhares de seitas forjadas por videntes e profetas da ltima hora, na maioria leigos que se apresentam como mission4rios, taumaturgos populares, misticos improvisados e de olhos mais voltados para os bens terrenos do que para 08 tesouros do Reino dos Céus. Esses bastardos do espirito, que pululam por toda parte, caracterizam 0 fendmeno sécio-cultural da morte das Religides. O fato 6 bem conhecido dos que estudam @ Sociologia da Cultura, Quando um sistema institu- cional esvazia-se no tempo, tragade na voragem das mudancas culturais, os aproveitadores invadem os do- minios abandonados e socorrem a seu moda os 6rf403 2 J. HERCULANO PIRE em desespero. As grandes revolugdes politicas ¢ 60- ciais mostram-nos como os tiranetes do populacho as- sumem as fungées dos nobres decaidos, substituindo a autoridade tradicional pelo mandonismo dos clas res- suscitados. Podemos aplicar ao caso uma parddia da explicacdo metafisica do horror ao vacuo, dizendo que as sociedades tm horror ao caos e preenchem a falta de autoridade legitima (ou pelo menos legitimada) pe- lo autoritarismo dos satrapas, Esse evidente sintoma de agonia das instituicdes tradicionais est presente em toda a Area religosa do nosso tempo. E o carisma das fases de mudanga. Nao ha davida, portanto, de que as Religides agonizam. E o responsavel por esse fato alarmante, como sempre, é a propria vitima, que pela imprevisdo, pelo abuso do poder, pelo apego &s comodidades institucionais, dei- xowse levar na iluso de sua indestrutibilidade. As proprias Religides cavaram a sua ruina no desenrolar do processo histérico. Acomodadas em sua superiori- dade, confiantes no privilégio de sua origem e nature- za sobrenaturais, recusaram-se a integrar-se na cul- tura natural, marginalizando-se a si mesmas. A evo- luge cultural alargou progressivamente o fosso entre a Cultura ea Religifo, tornandoirreversivel a situaco das instituicdes religiosas. Assim, dialeticamente, 0 conceito arbitrario do sobrenatural, que era o funda- mento de sua seguranga, tornou-se 0 motivo de sua decadéncia. No Ocidente, os primeiros sinais da crise religiosa contemporanea surgiram em plena Idade Média, com © episédio trégico-romantico de Aberlardo, prenun ciando a Idade da Razao. Essa nova fase, que se ini- ciou com o Renascimento, traria a revolugdo cartesia- na, Rousseau, Chaumette e o Culto da Razdo na Re- volugdo, ¢ posteriormente Augusto Comte e a Religifio AGONIA DAS RELIGIORS 3 da Humanidade, No ano da morte de Augusto Comte, em 1857, Denizard Rivail iniciaria na Franga o movi- mento da Fé Racional. Assim, a Franca, que centrali zava o processo cultural no Mundo Moderno, apre- senta uma seqiiéncia de tentativas para a integracdo da Religido no sistema cultural em desenvolvimento, sempre rejeitadas pela soberania eclesidstica apoiada no conceito do sobrenatural. Paralelamente aos mo- vimentos renascentistas da Franga, desencadeou-se na Alemanha, no Século XVI, o movimento da Refor- ma, iniciado por Lutero. No Oriente a reacdo as religides tradicionais foi mais lenta ¢ tardia, menos precisa ¢ definida, com menores conseqiiéncias, que 86 se acentuaram no Sé- culo XIX. Nem por isso deixou de produzir efeitos que se intensificaram no decorrer desse século até o pre- sente sob influéncias ocidentais. Na Russia, sob a inspiragio francesa de Rousseau, Tolstoi promoveu a revolugdo religiosa do Século XIX, na linha luterana de yolta ao Cristianismo Primitivo, fazendo uma nova tradugao dos Evangelhos em sentido mistico-racional. Todos esses movimentos revelam a insatisfacdo cultu- rai no tocante 4 soberania das Religides, fundada no conceito do sobrenatural, que as mantinham desliga- das do processo cultural, Ainda no Século XIX a obra de Renan, na Franca, assinalava a tendéncia do espi- rito francés, no plano da Historia do Cristianismo, no sentido de estabelecer a verdade sobre os primérdios da Religiao dominante e retird-la do campo suspeito do sobrenatural, ‘Temos, nesse esboco de um vasto panorama histé: rico, a visio objetiva dos processos que vinham prepa: rando, desde os fins do milénio medieval, a derrocada das Religides. Em nosso século, o desenvolvimento acelerado das Ciencias, a laicizacao do Estado ¢ da 1 4, HERCOLANY Hines Educacao, a desagregacao da familia, a expansio cul tural e a rapida modificacao dos costumes ¢ do sis- tema de vida pelo impacto da Tecnologia — abran- gendo praticamente todo o mundo — fortaleceram a concepedo pragmatica e materialista, dando o golpe de misericordia no sobrenatural e nos sistemas religio- s08 que nele se apéiam, A ctiologia da decadéncia das Roligides torna-se palpavel. Seria simples tolice querer negada, Nao obstante, o sentimento religioso do homem nao foi aniquilado. Pelo contrario, ele subsiste e vem sendo considerado, particularmente nos paises da Area dominada pelo Marxismo, como um residuo do pas- sado que tera de desaparecer totalmente com 0 avanco irresistivel da cultura. A propria URSS, que se des- mandou em campanhas violentas contra a Religiao, viu-se obrigada a fazer concessdes significativas a0 chamado pio do povo. Nos Estados Unidos o Prag- matismo de William James ¢ o Instrumentalismo de John Dewey temperaram a situagdo permitindo uma espécie de trégua na qual segundo Rhine, as concep- cées antipodas do homem — a religiosa e a cientifica — podem encontrar-se 20 pé do leito de um moribun- do sem estardalhago, Mas as atroeidades da I Guerra Mundial geraram na Alemanha um movimento de reforma radical das Teologias tradicionais, que se pro- jetou nos Estados Unidos e vem penetrando sutilmen- te em toda a América, através de tradugdes de livros dos noves tedloges, que anunciam a morte de Deus e pregam a novidade do Cristianismo Ateu. Os teilogos mais uma vea se enganam. A teoria da Morte de Deus, que eles procuram inutilmente ex- plicar como um acontecimento atual, do nosso tempo, nunca se verificou nem pode verificar-se. Deus nao é um ser nem é mortal, porque é 0 Ser Absoluto, o Bem, AGONIA DAS RELIGIORS 5 segundo Platao, a Idéia Suprema de que derivam to- das as idéias ¢ portanto todasascoisase tadosos seres. Os tedlogos da chamada Teologia Radical da Morte de Deus, e seus companheitos de outros ramos teoldgicos subsequientes, sofrem de um processo de alucinacao por transferéncia. Quem esté morrendo nao é Deus, so eles mesmos € suas Teologias, cles e as Religides formalistas e dogmaticas. Acconcepeao nova de Deus, que nasce dos escom- bros da coneepeao antropomérfica do pasado, é a de uma Inteligéncia Césmica que preside a toda a reali- dade possivel. Os cosmonautas soviéticos, depois de umas voltas ao redor do grao de areia da Terra, decla- ram euforicos que Deus no existe, pois nao tiveram o prazer de encontré-lo nos mieroscopicos subirbios do nosso planeta. Fizeram como o estudante de Kea de Queiroz, em A Cidade, que, para provar a inexistencia de Deus, tirou o sou relogio-patacao do bolso do colete, diante de colegas, e deu 0 prazo de alguns minutos para que Deus 0 fulminasse. Como nao foi fulminado, declarou que estava provada a inexistencia de Deus ¢ guardou 0 patacdo no bolso. Esaas piadas servem ape- nas para mostrar-nos o estado de ignorancia em que ainda nos encontramos. E para provar, isso sim, que estamos mortos em nossa estupidez diante da gran- deza do Cosmos. Dizer que Deus morreu é como dizer que a vida se extinguiu. 0 fato de estarmos vivos fazermos essa afirmagao jé prova o contrario. Os teblogos radicais sao Lao radicais que naoadmi- tem a nica explicagao possivel para a sua teoria da Morte de Deus. Essa explicagao seria a de que o Deus convencional das religises morreu, como idéia hoje inaceitavel. Mas eles se opdem a isso e dao explica- des que ninguém pode entender, pois s) entendemos o que é racional, O problema é mais s¢rio do que pensam 6 4. HERCULANO PIRES os tedlogos, que fazem piada dizende colocar 0 Cristo provisoriamente no lugar de Deus, do que resulta 2 Cristianismo Ateu, dltima novidade das Religides no Século XX. "Apesar de tudo isso, verifica-se que o que eles pretendem € colocar o problema da existéncia de Deus vey termos mais acessiveis A azo, Essa pretensio Coineide com os objetivos do pensamento francés. na Seqiencia historica mencionada acima. £ pena que sees tedlogos atuais néo tenham a facilidade de ex pressio ea lucidez que caracterizam @ pensamento Rigneds, Se entre eles houvesse um tedlogo gaulés, certamente lhes explicaria que 0 conceito celta de Deus Govia satisfazt-los, Os celtas, que eram izm povo mo- otelsta como og hebreus e viveram na Antingtlidade, Toderiam corrigir os toOlogos atuais ¢ dar ligoes de Togiea a8 Religides em agonia. Foram considerados Dabaros sofreram na pele a barbarie dos civilizados romanos, mas Aristoteles afirmou que eles eram 0 {nico povo filésofo do mundo. De todo 0 exposto parece evidente que a agonia atual das religides nada tem a ver coma Religido, Sim, purge a Religiao € uma das caracteristicas funda’ vyentais da natureza humana, Parodiando a teoria ristotélica do animal politico, podemos dizer que o famem @ um animal religioso. A falsa teoria do es: panto do mundo como origem da Religiao, que até peremo Van Der Leuw ainda sustenta, nao pode man- terse em pé diante da prova antropologica de ane dunea exieti no mundo um poyo atew, desde os ho: one da caverna até os nossos dias. A idéia de Deus ¢ hata no homem, como Descartes afirmou, depois de aaontracia no fundo misterioso do cogito. & uma idéia evidente por si mesma e indispensavel & compreensao de nés mesmos ¢ do mundo. AGONIA DAS RELIGIOES 7 Cortas pessoas opiniaticas, muito ciosas de si mes- mas, costumam dizer que Deus nao existe porque nin. guém pide provar a aua existéncia, A prépria Ciencia ensina que a causa se prova pelo efeito. Basta-nos olhar uma flor ou um grao de areia para sabermos que Deus precisa existir, que existe necessariamente. © que nao podemos aceitar é 0 Deus das religides, poraue esse Deus ~ il6gicoeabsurdo, como d ia Avis. Be les, Pe pertence a um passado remoto em que a umanidade necessitava dele. A esséncia da Religiao constitui-se de apenas um nucleo e uma particula, co- mo 0 dtomo de hidrogénio. O nicleo é a idéia de Deus ¢ a particula o sentimento religioso, A Religiao verda deira, que jamais agonizou e nunca morre, tem nesse tomo simples e puro a sua raiz simbélica, ment lae; Pata que a Religidopossa desempenhar livre inte o seu papel fundamental na evolucde humana, & necessério que a reintegremos na Cultura Geral, como uma de suas areas mais importantes. Para 1i- vrar 0 Conhecimento da disperséo produzida pelas especializagdescienificas, foi necessio riarse a Fk: josofia da Ciencia. Para livrar a Religido da pulveriza- Gao sectiria 6 indigpensavel libertévla do formalismo dogmatico, do profissionalismo religioso, do fanatis- mo igrejeiro. A ugonia das religies ¢ determinada fla asfisia das estruturas antiquadas, do irraciona- lame busendo no eoncelte do wbrenatuzale da Reve lscdo Divina. Os dois tos de religiae anaisados por Bergson, o socal e o individual, ever fundirse na sintese da Religido do Homenn, que ressaltahistoriea prente las aspiragie francesas e mereceu do poeta hengali Rabindranath Tagore wm ostudo ido eric. © Gonheciments & um todo, ¢ global. Teoria e prética a @ reverso de um mesmo processo, O home piens © o homo faber sho uma e a mesma coisa: 0 8 J. HERCULANO PIRES homem. As especializacdes so simples formas de di- visdo do trabalho, de acordo com as diferenciagbes de tendéncias individuais. Ciencia e Técnica, Filosofia e Moral, Metafisica ¢ Religiio sao apenas divisdes me “todolégieas do campo do Saber, formas disciplinares do pensamento e da acho. A Era da Comunicagao de Massa, que segundo Meluhan, fez da Terra uma aldeia global, estourou 0 mundo chines do pasado, de muralhas e mandarina- tos. A dicotomia kantiana, que negou a impossibili- dade do conhecimento extra-sensorial, foi superada pelas conquistas fisicas e psicoldgicas de hoje. O so- brenatural mudou de nome, é apenas 0 natural desco nhecido que a investigacao cientifica vai rapidamente integrando no Conhecimento Global da realidade una Temos de adaptar-nos as condigdes novas e as novas dimensdes do homem e do mundo. As proprias igrejas estao abrindo as portas dos conventos ¢ dos mosteiros para nao morrerem asfixiadas. As Ciencias rompem ‘com o passado, a Filosofia se livra dos sistemas para enfrentar com desenvoltura a problematica do pensa- mento, os tabus sao esmigalhados pelo homem novo, ‘os mestres e gurus se fazem disefpulos da iinica fonte real de sabedoria que ¢ a Natureza. O sacerdocio é uma espécie em extingdio, Os tedlogos foram confun. didos por Deus, que nao quis entregar-se em suas maos inabeis. Se quisermos salvar a Religido, nese maremoto das transformagoes que afligem os passadistas, faca. mos urgentemente a liquidacdu das religiées em agonia e mandemos os seus artigos de fé, seus icones ¢ suas medalhas para o Museu do Homem, como simples testemunhos de um tempo morte. Tudo isso 6 aflitive para os espiritos rotineizos & acomodaticins, como a mensagem crista era esednda- AGONIA DAS RELIGIOES 9 Jo para os judeus e espanto para gregos e romanos, Mas os espiritos flexiveis, corajosos, lucidos, empe- nhados na busca da Verdade — essa relacio direta do ‘pensamento com o real — ndo se atemorizam, antes se rejubilam com a libertagie do homem., Esta é a ver- dade flagrante do momento que vivemos: 0 homem se liberta de seus temores, da ilusdo de sua fragilidade existencial, do confinamento planetario, do embuste e da hipocrisia para viver a vida como ela é, na pleni- tude das suas potencialidades corporais e espirituais. © homem se emancipa e toma consciéncia da sua natureza csmica. Diante dele esta o futuro sem limite, a imortalidade dinamica e demonstravel que se opde ao conceito limitado da imortalidade estatica e hipo- tética. Sua heranga nao €0 pecado nem a morte, mas a vida em nova dimenaao. CAPITULO U RELIGIAO COMO FATO SOCIAL O homem contemporéneo, vivendo numa fase de crise universal, determinada por mudancas rapidas em todos os campos de sua atividade, defronta-se com um grave problema subjetive: ser ou ndo ser reli- gioso. Os estudos sobre a origem e 0 desenvolvimento da Religido, sua natureza, sua significacéo para o comportamento humano, seus efeitos na dindmica so- cial e nos processos de renovacao das estruturas eco- némicas e administrativas da sociedade, bem como no desenvolvimento cultural e mais especificamente das pesquisas cientificas, oferecem-lhe opgdes contradito- rias que nao levam a nenhuma solucdo, agravando a crise com o levantamento de novos conflitos aparen- temente insandveis. Calturalmente marginalizada, a partir do Renas- cimento, a Religido se transformou numa questiio opi- nativa, Para og materialistas e ateus ¢ apenas um residuo do passado supersticioso; para os pragmatis- tas, uma questo de conveniéncia; para os espiritua- listas, um problema vital, do qual depende a propria sobrevivencia da Humanidade. As posicées opiniati- as, em todas essas areas, geram a desconfianca e a indiferenca no seio das massas populares, desprovi- SS ee TT, 2 J, HERCULANO PIRES das de elementos para uma avaliagao do problema, e muito menos para a sua equacio. O que hoje se convencionou chamar de Ciencia da Religido, abrangendo varios aspectos da questo reli- -giosa em diversas perspectivas cientificas, fora do campo religioso, apresenta-se como andlise fria do proceso religoso, com hase nos dados objetivos da Historia, Mesmo a Psicologia das Religides vé-se obri- gada a pairar no plano das estruturas das escolas psicol6gicas, sem mergulhar na esséncia do fenémeno religioso, sob pena de perder a sua quaificagao cienti- fica. Acontece com a Religido o mesmo que verificamos no tocante ao problema da vida, cuja solugao se busca no pressuposto de que o impulso vital se origina no campo dos aminodcidos, A matéria, considerada como a fonte de toda energia — apesar da comprovacdo cientifica atual de que é 0 produto da acumulac&o energética — mantém-se na posicdo de geradora da vida. Assim também se busca o segredo da Religiaonas suas formas de manifestacdo, na sua estrutura e no seu funcionamento, como se ela se originasse das en- tranhas do homem e nao das profundezas do seu psi- quismo. A vida, a alma, o sentimento eo pensamento nao seriam mais do que epifendmenos, efémeras eclo- ses do fendmeno organico, destinadas a desaparecer com este. Nao pretendo promover uma revolugdo copérnica no assunio, mas apenas mostrar, se possivel, a conve. niéncia de uma mudanga de posicdv, Basta encarar- mos a Religiéo como um fato social, sexundo a tese de Durkheim, sem nos limitarmos aos aspectos puramen- te estruturais e funcionais do fato em si, para que as, perspectivas da andlise se tornem mais amplas ¢ flext- veis. Religiao e Sociedade se mostram conjugadas in- AGONIA DAS RELIGIOES 3 dissoluvelmente no plano histérico. Se tomarmos co- mo exemplo 0 cla judaico de Abrado, do grupo étnico dos Habiru, na Caldéia, veremos que ali se formava ao mesmo tempo uma nova sociedade e uma nova religiao que iriam exercer papel fundamental no desenvolvi- mento da civilizacdo. Ambas, sociedade e religio, nas- ciam no seio de outra sociedade e outra religiao, orga- nizadas, tradicionais, ¢ delas se distinguiam pelas ca- racteristicas étnicas e pela destinacdo historica tipi- camente carismitica, determinada pela tendéncia mo- noteista do cla, sob o impulso de crengas que se corpo rificavam nas manifestacdes de entidades mitolégi- cas. Abrado, Isac e Jacé assumiram a direcao do cla e 6 levariam, através do Egito, as terras de Canad, na Palestina, na sangrenta epopéia dos relatos biblicos. ‘Temos de distinguir no caso dois elementos conju- gados que provocam o nascimento da nova religiéo: primeiro, 0 elemento étnico, determinante do agrupa- mento social; segundo, elemento mitico, determinan- te da nova orientagao religiosa. Este dltimo nao se mostra como subjetivo, mas caracteriza-se pela sua objetividade. & a intervencao ativa de influencias ex6- genas na vida do cla, provenientes de manifestagdes coneretas de entidades espirituais. Por mais que isso possa repugnar aos adeptos da interpretagao psicold- gica dos fatos, que s6 aceitam as manifestacdes espiri- tuais como de ordem subjetiva, os resultados das pes- quisas modernas e contempordneas no campo das Ciencias Psiquicas, atualmente confirmadas pelas pes. quisas parapsicolégicas, com a anterior comprovagao das pesquisas metapsiquicas, mostram que a inter venga espiritual poderia ter sido objetiva, segundo a descric&o dos relatos biblicos. Admitindo-se a realidade dessa manifestacao con- creta, que corresponde a milhares de outras verifica- J, HERCULANO PIRES das em todas as latitudes do planeta, podemos chegar A concluséo de que as religides se originam de uma conjugaco de fatores humanos e espirituais, nenhum deles podendo ser excluido da andlise honesta do fato social, sem que se pratique uma violéncia contra a rea- lidade mundialmente comprovada. Os fendmenos pa- ranormais aparecem entéio como o elemento basico do fato social a que chamamos religido. E nao é possivel, nas condigées atuais do desenvolvimento das Cién- cias, mesmo no plano da Fisica, opor a essa realidade o simples desmentido dos argumentos, sem provas cientfficas evidentes de sua impossibilidade. Assim, a colocagao do problema religioso de ma- neira opinidtica, em termos materialistas, pragmati- cos ou espiritualistas, nesta altura de nossa evolugao cultural, corresponderia a uma verdadeira heresia cientifica. Nao obstante, 0 desenvolvimento das reli- gides e sua institucionalizacio, em todo 0 mundo, ofe- recem motivos de suspeita aos espiritos objetivos, que pretendem analisé-las no seu estado atual. Nesse pro- cesso histérico inserem-se naturalmente os elementos do psiquismo comum, em suas manifestagées pura- mente subjetivas ¢ nao raro de ordem patologica. In- serem-se também os elementos psicoldgicos, hoje bem conhecidos, que determinam a criacao do sectarismo religioso e das ordenagées institucionais, cujos objeti- ‘vos sao caracteristicos dos interesses sociais. Posigdes psicologicas individuais ou de grupos, tradicoes, interesses politicos, preconceitos, supersticdes, interes- ses imediatistas, as vezes até mesmo pessoais ¢ outros sdo elementos que se mesclam no processo de institu- cionalizagao das religides, nao raro a partir de proprio momento ¢ da propria fonte em que elas nascem. Mais do que dificil, é quase impossivel distingui-los e preci- sar a importancia que tiveram no processo histérico. AGONIA DAS RELIGIOE! sty As religides se dividem em duas categorias funda- mentais: as reveladas ou naturais e as inventadas ou artificiais. Independentemente das classificagdes exis- tentes, podemos dispé-las nessas duas linhas de ana- lise. A religido natural, neste caso, é a que surge es- pontaneamente, entre os povos primitivos ou civiliza- dos, a partir do ensino de wn mestre. As artificiais sio criadas no meio civilizado, em momentos de crise reli- giosa, como no caso do Culto da Razao, de Chaumette, ow da Religido da Humanidade, de Augusto Comte. As reformas religiosas nao criam tipos novos, apenas mo- dificam os j4 existentes om virtude de divergéncias ou da verificacdo de distorgdes havidas no processo de institucionalizagao. A religitio individual, da tese de Bergson, que corresponde a Moralidade da tese ante- rior de Pestalozzi, nao se enquadra nesse panorama por constituir uma superacao do plano social e uma libertacao total de todo condicionamento institucio- nal. Nao obstante, pela sua conotagao inevitavel com a realidade social em que se insere, embora individual- mente, no escapa A classificacaio geral de fato social Temos assim uma possibilidade maior de esclare- cer o que se pode entender por religido como fato social. ‘Nao 6 apenas um fato isolado que ocorre na dindmica de uma sociedade, mas um-fato que brota da realidade social como expressao de sua propria alma, de suas tendéncias e suas aspiragées, na forma de uma sintese conceptual que engloba, nas suas representagées sim- bélicas ena sua estrutura racional, os elementos basi- 0s do todo social concreto e 08 vetores ou direcdes do psiquismo coletivo. Sem essa compreensio intuitiva, e portanto global, do fato social da religido, todas as formas de encarar ¢ interpretar o fendmeno religioso nos levarao fatalmente a condicionamentos restriti- YOS e esquemAticos, que s6 poderdo aumentar a con- 16 J. HERCULANO PIRES fusdo e agravar os erros cometidos na colocacao do problema. Essa complexidade do fendmeno religioso parece explicar de maneira mais profunda a marginalizagdo cultural a que a Religido foi relegada a partir do inicio do mundo moderno, Confinada nas institui- bes igrejeiras, abastardada pelo profissionalismo cle- tical, transformada em dpio do povo e sustentaculo de situacdes sociais profundamente injustas, catalogada entre os produtos espirios das fases de ignorancia su- persticiosa, revertida condicao de promotora de guer- ras, massacres e asfixia das liberdades humanas, utili- zada como arma poderosa nasmaisdesumanasguerras ideolégicas, responsabilizada pelas mais cruéis defor- magies da criatura humana, a Religido se constituiu em barreira de todo o progresso cultural e foi excluida do mundo da Cultura como indesejavel. Nao obstante, gragas ao poder subjacente nas es- truturas formais das religides e A conotacao vital dos sous principios com as exigéncias naturais da cons- ciéncia humana, sua posic3o no processo cultural mo- derno e contemporaneo caracterizou-se pela ambiva- Tencia. Sua exclus&o nao pode ser total, nem mesmo nas areas politicas dominadas pelo materialismo ideo- Jégico. Encarada ao mesmo tempo com ddio e respeito, numa estranha mistura de desconfianga e temor, en- controu na interpretacdo pragmatica, utilitaria, de mal necessario, 0 salvo-conduto que Ihe permite a circula- gio tolerada nos meios culturais da atualidade. Por outro lado, sua presenga nos meios culturais & sempre conflitiva. Nao ha possibilidade de harmoni- zacao perfeita entre cultura religosa e cultura secular, a nao ser no plano da religiaio individual, que rompe o AGONIA DAS RELIGIOES Ww envoltério formal das religides sociais e ¢ encarada por estas como uma aberracdo. O resultado mais nega tivo dessa situacdo conflitiva foi o aparecimento de outro mal necessario, a implantagio mundial da Edu- cagdo Leiga, que frustrou as possibilidades de reela- boragao da experiencia religiosa pelas novas geracies e determinou a sedimentacao interesseira da sua posi. gdo de ambivaléncia no mundo contemporaneo. Como ndo podia deixar de acontecer, essa posig¢do ambigua, indefinida e contraditoria em si mesma, levou a pro- porcées catastvoficas a crise das religides em nossos dias. Felizmente a natureza vital da Religido, as suas profundas raizes Gnticas (e nao apenas ontologicas) e asua inelutavel condicdo de sintese de toda a realidade social, determinaram 0 aparecimento de uma sintese cultural em que a Religiao, reunifieada a revelia da fragmentacdo institucional das religides, ressurge en- tranhada na substdncia do progresso cultural. Nao podemos tratar da crise das religides em nosso tempo sem enquadra-la nas dimensdes desse fato cultural, onde todos os seus problemas se esclarecem de manei- ra coerente e profunda. As pessoas integradas no for malismo cultural do século, apegadas a principios ex- clusivistas ¢ alheias a recomendagio cartesiana con- tra o preconceito e a precipitacdo, certamente rejei- taréo como negativa e parcial a posigio que assumo. Mas a coincidéncia com a verdade historica (simples- mente incontestavel) com a conflitiva realidade cultu- ral dos nossos dias e com as perspectivas cientificas abertas por essa sintvse cultural e ja em parte reali zadas, asseguram a validade desta interpretacdo, aci ma de qualquer facciosismo. Nao seria possivel des: Prezar a evidencia dos fatos e das conotagées de prin Cipios filoséficos e cientificos com 0 panorama real, 18 J, HERCULANO PIRES: objetivo, das mudancas que se verificam dia-adia aos nossos olhos, apenas para satisfazer a determi- nadas normas convencionais. Acima das convencdes transitérias e das conveniéncias de acomodacao ao impreciso espivito da época, deve prevalecer 0 amor & verdade. Acelera-se 0 processo das mudancas. Ampliam-se 08 conflitos entre 0 velho e 0 novo em todas as areas das atividades humanas. Descontrolam-se os siste- mas de seguranga em todas as instituigées. As reli- gides até ontem mais sélidas e poderosas agonizam em seus leitos de riquezas milenarmente acumuladas. As teologias até ontem inabalaveis, como estrelas fi- xas do pensamento religioso, estremecem como a uni- dade pitagérica para desencadear a década de novos universos. Rasgam-se as fronteiras do tempo e do es- pago. O homem se equilibra, nervoso ¢ inquieto, na fimbria tenuissima da crosta planetaria, entre dois infinitos que se escancaram nos abismas do microcos- mo e do macrocosmo. Nao é essa hora de concessies a ignordncia (ilus- trada ou nao) nem o momento de cachimbadas liricas ao cair do crepfisculo. Estamos na hora da verdade, das proposigées claras e precisas, da posigdo deste- mida de alerta e vigilancia, Precisamos ver, sentir, perceber por todos os nossos sentidos e além dos sen- tidos, através da intuicdo e da percepedo extra-senso- rial, que as pecas envelhecidas do xadrez cultural estao sendo mudadas no taboleiro do mundo, Nao ha mais lugar para as contemporizacoes tranqiilas do passado, que acobertavam piedosamente os germes dos confli- tos atuais. Agora os conflitos explodem e temos de enfrenta-los face a face. Encarando a crise das religides como um processo socio-cultural integrado na realidade imediata, nao AGONIA DAS RELIGIOES 19 podemos escamotear a verdade das solucdes que jé foram propostas para ela com grande antecedéncia hist6rica. Trata-se, por sinal, de um processo ciclico bastante conhecido dos estudiosos da Histéria. 86 ha uma novidade na crise atual: a violenta ampliacdo das dimensées da crise, que se abre para visées dan- tescas do passado e do futuro. No passado, deparamos de novo com as regides infernais percorridas pelo genio de Dante; no futuro, com as revoadas angélicas da criacdo artistica de Gustave Doré, Nao hé o que temer. O passado agoniza e 0 futuro nos arrebata, pelas maos de Beatriz, as regives celestiais. Estamos pisando no limiar da Era Césmica e as constelagées jé brilham aoa nossos olhos. CAPITULO. Hl A EXPERIENCIA DE DEUS Sacerdotes e pastores, homens de fé, sinceros € bons procuraram demonstrar-me que as religides nao estdo em crise, Sustentaram que a crise ¢ do homem e ndo das instituigdes religiosas. As religides continuam vivas e atuantes no coragao dos crentes — disseram — mas os homens mundanos, que se entregam a loucura do século, conturbam a paisagem terrena. E necessa- rio que os homens busquem a Deus, que tenham a experiéncia de Deus. E essa experiéncia s6 é possivel quando o homem se desliga do mundo para ligar-se a Deus através da oracdo e da meditacao. Falaram de milhares de pessoas que, no torvelinho da vida contem- Pordnea, procuram todos os dias, a horas certas, 0 refdgio dos templos ou de um quarto solitério para tentar um encontro pessoal com Deus. Muitas dessas pessoas j4 conseguiram a audiéncia secreta com o Todo Poderoso. Sao criaturas felizes, luminadas pela graca divina, que sustentam com sua {6 inabalavel a continuidade das religides ¢ garantem a sua expan- sao, E bom que existam pessoas assim, dedicadas ves- tais que zelam pelo fogo sagrado. So 08 tiltimos aben- cerrages do formalismo religioso, flores de estufa cul- tivadas na penumbra das naves sagradas. Cuidam da £8 como jardineiros especializados que cultivam uma 2 J, HERCULANO PIRES: espécie vegetal extremamente delicada. Acreditam que 0s seus canteiros floridos darao sementes para semea- duras ilimitadas por toda a superficie da Terra. Nao percebem essas almas eleitas que cultivam exclusiva. mente a si mesmas, ocultam na aparéncia piedosa seus conflitos profundos e nada mais fazem do que fugir da realidade escaidante da vida. Nao escondem a cabeca na areia, pois mergulham de corpo inteiro no sonho egcista da salvagio pessoal As praticas misticas do passado provaram mal a sua eficdcia. Do Oriente ao Ocidente, multiddes de ge- rages de crentes desfilaram sem cessar, através dos milénios, pelos templos de todas as religides. convic- tas de haverem alcangado a salvacéio pessoal, enquan- to hordas ferozes ¢ exércitos em guerras de exterminio brutal cobriam 0 mundo de ruinas, cadaveres inocen. tes, sangue e lagrimas. Os que ouviram Deus em audiéncia particular nao se recusaram a pegar em armas para estracalhar seus irméos considerados co- mo réprobos e infiéis. Santos Bispos e Padres, pasto- res calvinistas, orentes populares, fidelissimos e hu- mildes, nfio acenderam suas lampadas votivas para iluminar as noites trevosas, Preferiram acender foguei- ras inquisitorias e, quando o sol raiava, submeter pie dosamente og hereges 4 morte redentora do gareote- vil, réplica religiosa guilhotina profana, Lembro-me do episédio historico de Jerénimo de Praga. Depois de haver assistido, pelas grades da pri- sio, seu mestre Joao Huss ser queimado vivo em praca piblica, foi também glorificado com a graga especial de uma fogueira semelhante. No momento em que as chamas comecavam a iluminar a sua figura estranh: caridosamente amarrada ao palanque do suplicio (pa. ra salvagao de sua alma rebelde) viu uma pobre velhi nha aproximar-se da fogueira com uma acha de lenha AGONIA DAS RELIGIOES 2B e atira-la ao fogo. Era a sua contribuigao piedosa para a salyagao do impio. Jerénimo exclamou apenas: “Santa simplicidade!” Pouco depois estava reduzido a cinzas, para gloria de Deus, e suas cinzas foram lanca- das ritualmente nas aguas do Reno, Todas as formas de culto, todos os ritos, todos os sacramentos, todas as ceriménias religiosas, todos os cilicios foram empregados nos milénios sombrios do fanatismo religioso, para a salvacao da Humanidade, E eis que agora chegamos a um tempo de descrenca generalizada, de materialismo e ateismo oficializados, de hipocrisia pragmAtica erigida em sustentacuio das religibes fracassadas. Deus falava diretamente com seu servo Moisés no deserto, falava-lhe cara a cara, ordenando matancas coletivas, genocidios tenebrosos, destruico total dos povos que impediam 0 acesso dos hebreus a terra dos cananeus, que seria tomada a fio de espada, Deus continua falando em particular a seus servos em nossos dias, pura a sustentagdo das igrejas, enquanto o Diabo no perde tempo e alicia milhdes de almas perdidas para as praticas do terrorismo, para a matanga de criancas e criaturas inocentes, para assal- tos e estupros em toda a face da Terra. A experiéncia de Deus sustenta os crentes privile giados e sustenta suas igrejas salvacionistas. E en- quanto nao chega a salvagio, catolicos e protestantes matam se gloriosamente nas lutas fraticidas da Irlan- da, em plena era das mais brilhantes conquistas da inteligéneia humana. Que estranha experiéncia es- 8a, que no revela os seus frutos, que ndo ptova a sua eficdicia? Deus estaria, acaso, demasiado velho para nao perceber a inutilidade dos seus métodos de salva- $0 pessoal em audiéncias privadas? E os seus servi- dores, os clérigos investidos de autoridade divina para implantar na Terra o Reino do Céu, porque nao avi- 24 J. HERCULANO PIRES sam 9 velho monarca da inutilidade milenarmente provada de sua técnica de conta-gotas? ‘Nao seria mais certo tentarmos a revisdo dos con- ceitos religiosos que nos deram a heranca de tantos . fracassos e tao espantosa expansao do materialismo ¢ do ateismo no mundo? Todas as grandes religiées afir- mam a onipresenca de Deus no Universo. Nao obstan- te, todas consideram 0 mundo (criado por Deus) como profano, regio em que as trevas dominam e 0 Diabo fax a incessante cagada das almas de Deus. E curioso lJembrar que nos tempos mitolégicos o mundo era con- siderado sagrado, a vida uma béncdo, os prazeres naturais ¢ as leis da procriagao eram gracas concedi- das pelos deuses aos homens. O monoteismo judaico, desenvolvido pelo Cristianismo, impregnou o mundo com a onipresenca de Deus e o mundo tornou-se profa- no. Se Deus esta presente num grio de areia, numa folha de relva, num fio dos nossos cabelos e numa pena das asas de um passaro, como, apesar dessa impreg. nacdo divina, o homem se defronta com a impureza do mundo? Por que estranho motivo necessitamos de ri tos especiais para purificar a inocéncia de uma crian- ca, se Deus est presente no seu olhar puro e limpido, no seu choro, na meiguice do seu rostinho ainda n&o marcado pelo fogo das paixdes terrenas? E porque pre- cisa o cadaver de recomendagao, com aspersdo de Agua benta, se a ressurreig%io dos mortos se faz, como ensi na o Apéstolo Paulo na I Epistola aos Corintios e como Jesus exemplificon na sua propria morte, no corpo espiritual e néo no corpo material? Sao esses ¢ outros muitos problemas acumulados hos erros milenares dos tedlogos que levam 0 homem contemporaneo a deserenca e aomaterialismo, ao ateis: mo € ao niilismo. So todos esses erros que colocam as religides em crise ¢ as levardio a morte sem ressurrei- AGONIA DAS RELIGIOES 25 do. Considerando-se, porém, esse estranho panorama religioso da Terra numa perspectiva historica, a luz da, razdo, compreende-se facilmente que oserros de ontem, até hoje sustentados pelas religides, foram titeis e ne- cessdrios nos tempos de igndrancia, em que os proble- mas espirituais nie podiam ser colocados em termos racionais. Ha justificativas vélidas para opassado re- ligioso, mas ndo justificativas possiveis para oseu pre- sente contraditorio ¢ absurdo. A tese, mais do que absurda, do Cristianismo Aten, com que tedlogos re- beldes procuram hoje remendar as vestes esfarrapa- das das igrejas, 6 vem acrescentar maior confusao a0 momento de agonia das religiées envelhecidas. © problema da experiéncia de Deus poderia ser resolvido com um minimo de reflexao. Se Deus est em 6s, e por isso somos deuses em poténcia, segundo a propria expressiio evangélica, porque necessitamos de uma busca artificial de Deus para termos a experién- cia da gua realidade? Se fomos criados por Deus e se Deus pés em nés a sua marca, como afirmou Descar- tes — a idéia de Deus em nds, que é inata — j4 nao trazemos; a0 nascer, a experiéncia de Deus? E se, no desenvolver da vida humana, o homem nada mais fez do que cumprir um designio de Deus, assistido pelos Anjos Guardides, porque tem ele de buscar a Deus através de uma pratica artificial e egoista, procurando preservar-se sozinho num mundo em que a maioria se perde irremediavelmente? Moisés supunha ter ouvido © proprio Deus no Sinai, mas o Apéstolo Paulo expli- cou que Deus Ihe falara através de mensageiros, que siio anjos. As pessoas que buscam hoje a experiéncia de Deus em audiéncia privada serdo mais dignas do que Moisés, néio estardo sujeitas a ouvir a voz de um anjo, que tanto pode ser bom quanto mau, pois as Préprias igrejas admitem que os anjos decaidos an- 24 4. HERCULANO PIRES sam o velho monarca da inutilidade milenarmente provada de sua técnica de conta-gotas? Nao seria mais certo tentarmos a revisdo dos con- ceitos religiosos que nos deram a heranga de tantos . fracassos ¢ tiv espantosa expansao do materialismo e do ateismo no mundo? Todas as grandes religiées afir- mam a onipresenca de Deus no Universo. Nao obstan- te, todas consideram 0 mundo (criado por Deus) como profano, regio em que as trevas dominam e o Diabo faz a incessante cacuda das almas de Deus. £ curioso lembrar que nos tempos mitolégicos 0 mundo era con- siderado sagrado, a vida uma béncdo, os prazeres naturais ¢ as leis da procriagao eram gracas concedi- das pelos deuses aos homens. O monoteismo jndaico, desenvolvido pelo Cristianismo, impregnou 0 mundo com a onipresenca de Deus eo mundo tornow-se profa: no, Se Deus esta presente num gréo de areia, numa folha de relva, num fio dos nossos cabelose numa pena das asas de um péssaro, como, apesar dessa impreg- nacio divina, o homem se defronta com a impureza do mundo? Por que estranho motivo necessitamos de ri- tos especiais para purificar a inocéncia de uma crian- ca, se Deus est presente no seu olhar puro e limpido, no seu choro, na meiguice do seu rostinho ainda nao marcado pelo fogo das paixées terrenas? E porque pre- cisa 0 cadaver de recomendacao, com aspersio deagua benta, se a ressurrei¢do dos mortos se faz, como ensi na o Apéstolo Paulo na I Epistola acs Corintios e como Jesus exemplificou na sua prépria morte, no corpo espiritual e nao no corpo material? Sao esses ¢ outros muitos problemas acumulados nos erros milenares dos tedlogos que levam 0 hamem contempordneo a descrenga eao materialismo, ao ateis- mo e ao niilismo. Sdo todos esses erros que colocam as religides em crise e as levarao 4 morte sem ressurrei- AGONIA DAS RELIGIOES 25 cdo. Considerando-se, porém, esse estranho panorama religioso da Terra numa perspectiva historia, aluzda razo, compreende-se facilmente que os erros de ontem, até hoje sustentados pelas religides, foram Gteis e ne- cessrios nos tempos de ignorancia, em que os proble- mas espirituais no podiam ser colocados em termos racionais. Ha justificativas vélidaa para o passado re- ligioso, mas no justificativas possiveis para oseupre- sente contraditério e absurdo, A tese, mais do que absurda, do Cristianismo Ateu, com que tedlogos re- beldes procuram hoje remendar as vestes esfarrapa- das das igrejas, 86 vem acrescentar maior confusao a0 momento de agonia das religides envelhecidas. O problema da experiéncia de Deus poderia ser resolvido com um minimo de reflexao. Se Deus esta em n6s, € por isso somos deuses em poténcia, segundo a propria expresso evangélica, porque necessitamos de uma busca artificial de Deus para termos a experién- cia da sua realidade? Se fomos criados por Deus e se Deus pés em nds a sua marca, como afirmou Descar- tes — a idéia de Deus em nés, que é inata — jé nao trazemos, ao nascer, a experiéncia de Deus? E se, no desenvolver da vida humana, 0 homem nada mais faz do que cumprir um designio de Deus, assistido pelos Anjos Guardides, porque tem ele de buscar a Deus através de uma priitica artificial e egoista, procurando preservar-se sozinho num mundo em que a maioria se perde irremediavelmente? Moisés supunha ter ouvido © proprio Deus no Sinai, mas 0 Apéstolo Paulo expli cou que Deus Ihe falara através de mensageitos, que 3&0 anjos. As pessoas que buscam hoje a experiéncia de Deus em auditneia privada sero mais dignas do que Moisés, nao estardo sujeitas a ouvir a voz de um anjo, que tanto pode ser bom quanto mau, pois as Proprias igrejas admitem que os anjos decaidos an- 6 J. HERCULANO PIRES dam a solta pela Terra procurande roubar para 0 In- ferno as almas de Deus? Quem estaré livre, na sua piedosa tarefa de salvar-se a si mesmo, de ser tentado pelo Diabo, que tentou o proprio Jesus nas suas medi- . tages solitérias no Deserto? As préiticas misticas do passado no servem para a era da razdo, em que nos encontramos na antevés- pera da era do espirito. Orar e meditar & evidente- mente um exercicio religoso respeitavel e necessario em todos os tempos. A oracao nos liga aos planos superiores do espirito ¢ a meditagéo sobre questies elevadas desonvolve a nossa capacidade de compreen- sao espiritual. Mas o dogma da experiencia de Deus através de um pretensioso coléquio direto © pessoal com a Divindade é uma proposicdo egoista e vaidosa. Se Deus é 0 Absoluto e nds somos relativos, a humil- dade nao nos aconselha a ter mais cautela em nossas Telagdes pessoais com a Divindade? Sao ntuitos os casos de perturbagées mentais, de obsessdes perigosas, de lamentaveis desequilibrios psiquicos decorrentes de exageradas pretensdes das criaturas humanas no campo das praticas religiosas. A Historia das Reli- sides é marcada por terriveis experiéncias nesse sen- tido. Basta lembrarmos os casos de perturbagoes cole- tivas em conventos e mosteiros da Idade Média, onde 98 excessos de misticismo transformaram criaturas piedosas em vitimas de si mesmas, sujeitando-as nao raro a propria condenagdo da igreja a que pertenciam € a que procuravam servir. Os dogmas de f6, que formam a estrutura concep- tual das igrejas, sdo as pedras de tropeco do seu cami- nho evolutivo. Partindo do principio de que a Revela- ¢ao Divina é a propria palavra de Deus dirigida aos homens, as igrejas se anquilosaram em seus dogmas intocaveis, pois a exegese humana no poderia alterar AGONIA DAS RELIGIOES: 7 ag ordenagdes a0 proprio Deus, Na verdade, a altera- go se verificou em varios casos, apesar disso, mas decisdes conciliares puseram a altima pa de cimento nos erros cometidos. As estruturas eclesiasticas torna- ram-se rigidas e as igrejas confirmaram, no seu espi rito, a ossatura de pedra de suas catedrais. Vanglo- riam-se ainda hoje da sua imutabilidade, num mundo em que tudo evolui sem cessar. Os resultados dessa atitude ilusdria e pretensiosa 96 poderiam ser nefas- tos, como vemos atualmente no lento e doloroso pro- cesso de agonia das religides. Incidiram assim no pe- cado do apego, contra oqual os Evangelhos advertiram os homens, Apegaramrse de tal maneira & propria vida, que perderam a vida em abundancia que Jesus prometeu aos que se desapegassem. As liberalidades atuais chegaram demasiado tarde. A palayra dogma é grega e seu sentido original ¢ opiniao. Adquiriu em filosofia e religiao o sentido de principio doutrinario. Nas Escrituras religiosas apa- tece algumas vezes com o sentido de édito ou decreto de autoridades judaicas ou romanas. Entre o dogma teligioso e 0 filoséfico ha uma diferenca fundamental. O dogma religoso é de f6, principio de f que nao pode ser contraditado, pois provém da Revelagao de Deus. O dogma filoséfico é racional, dogma de razao, ou seja, principio de uma doutrina racionaimente estruturada, sentido religioso superou os demais por motivo das conseqiténcias muitas vezes desastrosas da sua rigi- dez ¢ imutabilidade. Se falarmos, por exemplo, em dogmética, esse termo 6 geralmente entendido como designando a estrutura dos dogmas fundamentais de uma religido. Por isso, a adjetivagda de dogmatica, Que implica também o masculino, como nas expres- Ses: pessoa dogmitica, posicde dogmética ou homem dogmatico, significa intransigencia de opinides. O 28 J. HERCULANO PIRES mesmo acontece com 0 substantive dogmatismo, que designa um sistema de opiniées intransigentes. Estas influéneias religiosas na semAntica revelam a intensidade da rigidez a que as igrejas se entrega- ram, através dos séculos e dos milénios, na defesa da suposta eternidade de seus principios basicos. Temos, portanto, no dogma de fé, um dos motivos fundamen- tais da crise das religiGes em nossos dias, No Espiritis- mo, como em todas as doutrinas filoséficas, existem dogmas de tazao, como o da existéncia de Deus, o da reencarnagéo, o da comunicabilidade dos espiritos apis a morte. Muitos adeptos estranham a presenca desea palavra nos textos de uma doutrina que se afir- ma antidogmatica, aberta ao livre exame de todos. os seus principios. So pessoas ainda apegadas ao senti- do religioso da palavra. Nao ha nenhuma razo para essa estranheza, como ja vimos, do ponto de vista cultural. problema da religiio no Espiritismo tem pro- vocado discussdes ¢ controvérsias infindaveis, porque essa doutrina nao se apresenta como religido no sen- tido comum do termo. Allan Kardec, discipulo de Pes- talozzi, adotava a posicdo de seu mestre no tocante a classificacao das religides. Pestalozzi admitia a exis- téncia de trés tipos de religido: a animal ou primitiva, a social e a espiritual. Mas recusava-se a chamar esta ltima de religido, dandolhe a designagao de mora- lidade.Isso porque a religiau superior on espiritual, segundo ele, s6 era professada individualmente pela criatura que superava o ser social e desenvolvia em si © ser moral. Kardec recusou-se a falar em Religiao Espirita, sustentando que o Espiritismo é doutrina cientifica e filoséfica, de conseqiléncias morais. Mas deu a essas conseqiiéncias enorme importancia aocon- siderar o Espiritismo como desenvolvimento historico AGONIA DAS RELIGIORS es) do Cristianismo, destinado a restabelecer a verdade dos principios cristios, deformados pelo proceso na- tural de sincretismo-religioso que originow as igrejas, cristas. Essa posigdo espirita manteve a doutrina e 0 mo- vimento doutrinario em posicéo marginal no campo religioso, Para os espiritas, entretanto, a posigdo da doutrina nao é marginal, mas superior, pois 0 Espiri- +tismo representaria 0 cumprimento da profecia evan- gélica da Religiao em espirito ¢ verdade, que se desen- volveria sob a égide do proprio Cristo. A religiao espi- rita no se organizou em forma de igreja, ndo admite sacramentos nem admitiu nenhuma forma de autori- dade religiosa de tipo sacerdotal. Nao ha batismo, nem casamento religioso no Espiritismo, nem confis- sdes ou indulgéncias. Todos esses formalismos sao considerados como de origem paga e judaica. Entende- se 0 batismo como rite de iniciagdo, que Jesus substi- tuiu pelo batismo do espirito, sendo este considerado como a iniciagdo no conhecimento doutrinario, feita naturalmente pelo estudo da doutrina, sem nenhum ato ritual, Admite-se também que o batismo do espi- rito, segundo o texto do Livro de Atos dos Apéstolos sobre a visita de Pedro & casa do centurido Cornélius, no porto de Jope, pode completar-se, nos médiuns, quando se verifica espontaneamente, com o desenvol- vimento da mediunidade. Essa posicdo espirita no campo religioso causou numerosas dificuldades aos espiritas no tocante as telagdes de instituigies doutrinarias com os poderes oficiais, particularmente para a declaragao de religiio em documentos oficiais, para o resuardo dos direitos escolares em face do ensino religioso, para a decla- Tagdo de religiao nos recenseamentos da populagao, até que medidas oficiais reconheceram esses direitos. 30 J. HERCULANP PIRES Em compensacao, o Espiritismo ficou livre das conse- qUéncias da erise religiosa, que nao o atingiram. De- monstrarei nos capitulos seguintes a posicao da Reli- gido Espirita em face dessa crise, que é evidentemente uma posicdo de vanguarda. Sua contribuicdo para a racionalizacao dos prine\pios religiosos, para a reinte- gracao da Religiao no plano cultural, particularmente no tocante aos problemas cientificos da atualidade, & realmente substancial. No campo filosético a posigao espirita é também vanguardeira, pois desde o século passado sua filosofia se apresenta como livre dos pre- juizos do esptrito de sistema, conservando-se aberta a todas as renovagdes que decorrem de descobertas cien- tificamente comprovadas. Livre da dogmatica religio- sa e da sistematica filos6fica, apoiada inteiramente ‘na pesquisa cientifica, a doutrina esta de fate a cava- leiro nas crises da atualidade. CAPITULO IV EXPERIENCIA NO TEMPO O homem realiza a experiéncia de Deus no tempo, ao longo de sua evolugdo natural. Nao se pode ter uma. experiencia artificial de Deus em alguns minutos ou algumas horas de meditagao, Essa experiéncia é na- tural — e de natureza vital — faz parte integrante da vida ¢ da existéncia humena. Podemos lembrar a ex- pressio de Descartes: A idéia de Deus no homem éa marca do obreiro na sua obra. Descartes foi o precur- sor de Kardec, como Jodo Batista o foi do Cristo. Te- mos, assim, uma curiosa correlagao historica entre 0 advento do Cristianismo e 0 advento do Espiritismo, que se completa em numerosos outros aspectos. Lembrando a teoria da reminiscéncia em Platao, em que as almas nascem na Terra marcadas pela recordaciio do mundo das idéias, compreenderemos mais facilmente a existéncia da idéia inata de Deus no homem. Essa idéia inata nao € apenas marca, mas também 0 marco inicial e 0 pivd em torno do qual se Processa todo o desenvolvimento espiritual da criatu- ta humana. Podemos acompanhar esse processo des- de a addvagdo dos elementos naturais pelo homem Primitivo (a partir da litolatria, adoragdo da pedra e de outras formacies minerais) até & eclosio do mono- teismo, com a idéia do Deus Unico, que Kant conside- Tou o mais elevado conceito formulado pela mente 32 d, HERCULANO PIRES humana. E vemos ent&o que a idéia de Deus repre: senta, histérica e antropologicamente, uma espécie de marca-passo de toda a evolucao do homem. No episédio do Cégito, da cogitacao de Descartes sobre # realidade ou nao da existéncia, temos 0 mo- mento em que ele descobre, no mais profundo de si mesmo, uma idéia estranha, que é a da existéncia de um Ser Absoluto e portanto absolutamente perfeito. Essa idéia nao podia ter sido originada pelas suas experiéncias de ser relativo e imperfeito. Deseartes a considerou estranha porque s6 poderia vir de fora dele, da existéncia real dese Ser Absoluto. Descobria as- sim que tivera uma experiéncia de Deus, inteiramente independente de todas as suas experiéncias terrenas. A importancia desses fatos historicos e culturais foi negligenciada pela cultura leiga que se desenvol- veu na Renascenga e deu forma ao mundo moderno. O predominio crescente das conquistas materiais da Civilizacao Ocidental asfixiou essas conquistas do es- pirito, O homem se esqueceu do significado desses fatos, desses episédios culminantes da cultura hun na, ¢ as religides dogmaticas transformaram a idéia de Deus em simples crenca desprovida de raizes expe- rimentais. Coube ao Espiritismo restabelecer a ver dade e colocar a experiéncia de Deus no seu devido lugar, no vasto panorama da evolugde da Humani- dade. Trata-se da mais importante ¢ profunda expe- riéncia do homem, uma experiéncia vital que dever levé-lo a compreensio da sua verdadeira natureza edo seu verdadeiro destino, Impossivel reduzila a uma conquista particular e eventual de algumas criaturas que hoje se entregam a prAticas de meditacao. Claro que com isso no pretendo negar nem dimi- nuir o valor da meditacdo como disciplina mental ¢ como recurso de elevacao espiritual. Sustento apenas AGONIA DAS RELIGIOES 33 que a meditacao ¢ 0 produto e nao a produtora da experiéncia de Deus, pois essa experiéncia j4 marcava o homem muito antes que ele houvesse adquirido o poder do pensamento abstrato e pudesse meditar. A vivencia religiosa, pelo simples fato de ser vivéncia e nio reflexdo, é inerente ao homem desde o seu apare- cimento no planeta. Essa é uma questdo que hoje se coloca de maneira evidente. A concepgao espirita vai mais longe e mais fundo, negando ao homem atual o direito de isolar-se do mun- do para buscar a Deus, e portanto de buscar a Deus ou aos poderes espirituais através de processos arti- ficiais. O meio natural de evolugio, para o homem € para todas as coisas e todos os seres, é a relacao. Se nos afastamos do relacionamento social cultural pa- ra nos eleyarmos, estamos nos colocando em posicao errada ¢ tomando um caminho ilusério. A busca soli- taria de Deus é um ato egocéntrico e preferencial. O mistico vulgar nao mergulha em si mesmo para en- contrar em Deus a relacdo com o mundo, como o fez Descartes, mas, pelo contrério, para desligarse do mundo e ligar-se isoladamente a Deus. Nao é guiado pelo amor & Humanidade, mas pelo amor a si mesmo. Prefere elevar-se acima dos outros para encontrar em Deus o refiigio e a fortaleza em que poderd construir ¢ usufruir sozinho a sua felicidade particular. Prefere a fuga ao mundo, em termos de superioridade pessoal e Portanto egoista, anti-religiosa, 4 ligacéo com o mun. do e com Deus para a realizagao da unidade global que € 0 objetivo da religiao. A diferenca absoluta entre a posi¢ao do Cristo ¢ a Posigdo do Buda e das chamadas religides orientais Precisamente essa. Enquantoo Buda abandonaomun- do para buscar a Deus na solidao, o Cristo mergulha no mundo para religar 03 homens a Deus. A agao do’ 34 J. HERCULANO PIRES Buda é subjetiva e contraria a experiéncia do mundo, enquanto a aco do Cristo é objetiva, considerando a experiéncia do mundo como necessaria ao desenvol- vimento da experiéncia de Deus no homem. Meio mi- Iho de pessoas entregues a meditacdo para tentar a ligacao pessoal de cada uma delas com Deus no re- presenta um esforco coletivo de unidade — uma agao religosa — mas a simples coincidéncia de esforcos particulares e isolados, como vemos na busca do ouro nas regides auriferas. No se trata, pois, de uma aco coletiva e sim de milhares de agées individuais e egois- tas. Nao quero de maneira alguma negar o valor espi ritual do Buda, euja posicao correspondia & necessi- dade de orientagao de uma comunidade de almas es- tranhas A Terra, exiladas em nosso planeta, que ti- nham por objetivo a volta aos seus mundos de origem. Nesse caso, a negagio individual do mundo (do nosso mundo) tornava-se coletiva em virtude do objetivo co- mum do retorno ao paraiso perdido. A teoria espirita da migragao entre os mundos — apoiada na teoria crista das muitas moradas da Casa do Pai — 6a chave indispensdvel & compreensao desse problema A evolucio de cada mundo atinge 0 momento em que a sua populacdo se divide em dois campos bem diferenciados, como vemos hoje na Terra, Um deles evoluiu © suficiente para integrar uma humanidade planetaria superior, o outro continua em estado infe- rior. A populacio desse campo inferior precisa ser transferida para outro mundo que esteja no seu nivel evolutivo, a fim de que as criaturas refagam ali o tempo perdido. Quando essa populagdo atingir ali, no outro planeta o nivel de evolugao necessdrio, voltard ao seu mundo de origem. Nessa situagio, a vivencia isolada nas prdticas solitérias da meditacao constitui AGONIA DAS RELIGIOES 35 uma recapitulacao de aprendizado. Era a essas almas emigradas que o Buda dirigia a sua mensagem supe- rior, como outros haviam feito antes dele. ‘Em nossa humanidade terrena somente a acio do Cristo — vencendo o mundo, segundo suas proprias palavras — impulsionou-nos ao aceleramento evolu- tivo que vem transformando a Terra nfo sé nas Areas cristds, mas em toda a sua extensao. O Cristianismo institucional, igrejeiro, absorvendo elementos espiri- tuais das religides orientais, que se opunham aos prin- cipios de entrega ao mundo das religides mitologicas, merguihou no ascetismo das ordens monasticas do Oriente e no isolacionismo da concepeao aécio-céntri- ca de Israel. As seitas cristas fecharam-se em si mes- mas, desde a comunidade apostélica do Livro de Atos dos Apéstolos, estabelecendo uma divisao arbitraria entre os escolhidos de Deus e os abandonados por Ele. A pratica do batismo do espirito, do tempo de Jesus, que dava a criatura a experiéncia direta da realidade espiritual, converteu-se nas formas de evocacao ritual @ privilegiada do Espirito Santo, que da ao crente a ilusdo de uma separatividade conferida pela graca. As igrejas cristas transformaram-se em ilhas de santida- de e pureza em meio A impureza do mundo, como a Israel antiga no mundo mitologico. A experiéncia de Deus, pessoal ¢ intransferivel, substituiu a experién- cia de Deus no mundo, a vivéncia universal do ensino e do exemplo de Jesus. E por isso que os cristios de hoje se formalizam em grupos séciocentricos fecha- los. Ao contrario disso, a revelagao espirita considera a graca simplesmente como a forca que Deus concede a0 homem de boa-vontade para vencer as suas imper feicées, seja ele desta ou daquela religido ou de nenhu- ma delas. O batismo exclusivista e sectdrio € substi- 36 J. HERCULANO PIRES tuido pelo antigo batismo do espirito, acessivel a to- dos, nao segundo o critério eclesidstieo mas segundo o critério de Deus. Nada exemplifica melhor essa ques- tao do que 0 episddio de Atos em que o Apéstolo Pedro, em Jope, se recusa a atender o centurido Cor- nélius, mas advertido pelo mundo espiritual o atendee descobre o sentido universal do batiemo do espirito. Pedro, ainda imbuido dos principios isolacionistas do Judaismo, nao podia entender que Ihe fosse permitido socorrer uma familia de romanos impuros em que a mediunidade eclodia. Foi necessério que 0 Espirito advertise — a ele que seguira ¢ ouvira o Cristo até 0 momento da prisio — de que Deus nada fizera de impuro, para que a sua consciéncia se abrisse A verda- deira compreenséo da mensagem crista. © egocentrismo humano, essa centralizagio do homem em si mesmo, que gera e alimenta 0 orgulho, € uma decorréncia natural das fases de formagao da consciéncia, de formacdo do individuo como uma uni- dade espiritual especifica, oposta a pluralidade e con- fusio do mundo. Mas esse egocentrismo, que deve. abrir-se em altruismo na proporgao em que 0 homem. amadurece, ¢ alimentado pelo anseio de privilogios que as igrejas satisfazem com as sitas concessées ilu- s6rias aos fiéis. Tudo tem a sua utilidade em seu tem- po, mas depois se torna indtil e até mesmo prejudicial. No proprio meio espirita essa tendéncia a conservar posicdes do passado ainda eubsiste, particularmente no plano institucional, onde os postos de comando reacendem no espirito'a chama de velhas e desvai- radas ambicdes. O homem, espirito encarnado — en- volto na neblina da carne, como ensina Emmanuel — est sempre e inevitavelmente propenso a reincidir em seus erros do passado. A volta as condicées da vida material o coloca de novo ante a possibilidade de des- AGONIA DAS RELIGIOES a7 frutar as oportunidades que lhe foram ateis ou agra- daveis no passado. As ilusdes renascem no seu cora- cdo humano. As perspectivas espirituais se perdem no nevoeiro, Nas religides formalistas esse apelo do pas- sado adquire muito mais forca. A luta contra os residuos do passado exige oracao e vigiléncia, como Jesus ensinou, Nao obstante a idea- lizagao do Diabo, como personificacao mitolégica do Mal, todas as grandes religides reconhecem que a ten- tagdo esta dentro de nés mesmos. Muito mais que a influencia dos espiritos inferiores, o que nos arrasta de volta aos velhos caminhos do erro aio as préprias ten- déncias que trazemos em nosso intimo. A oracdo cons: ciente, feita com sinceridade e f6, areja 0 nosso intimo, langa a sua luz sobre as escuras paisagens interiores da alma, fazendo-nos discernir o contorno real das coisas. Nada se modifica em nés, mas iluminamo-nos por dentro, E se mantivermos a nossa vigilancia na intencao verdadeira de acertar, facilmente veremos 0 que nos convém e 0 que no nos convém. Poderemos entao repetir com Paulo: Tudo me licito, mas nem tudo me convém. E, seguindo assim 0 caminho que a pradéncia esclarecida nos indica, tudo modificaremos para melhor em nés mesmos, tornando-nos aptos a auxiliar os outros a se melhorarem. ‘Temos a cada instante, a cada minuto, diariamen- te em nossa vida a experiéncia de Deus. Porque a propria vida 6, em si mesma, essa experiéneia. Desde o momento em que nascemos até o instante final da nossa existéncia estamos em relacdo permanente com Deus, nao o Deus particular desta ou daquela igreja, mas 0 Deus em espirito e matéria que se manifesta numa haste de relva, na beleza gratuita de uma flor, no brilho de uma estrela, num perfume, numa voz, numa nota musical isolada, num aperte de mao e prin- 38 J. HERCULANO PIRES cipalmente numa idéia, num sentimento, numa aspi- raciio que brota do anseio de transcendéncia da nossa. alma. O que nos falta é estar mais atentos, mais des- pertos para a pereepcao consciente desses miltiplos e infindaveis milagres da vida cotidiana. 0 homem sem Deus & somente aquele que se nega a aceitar a pre- senca de Deus em si e em seu redor. Para esse homem, a meditacdo é um ensaio no campo da frustragdo, um mergulho no mundo opaco do sem-sentido. CAPITULO. Vv DEUS, ESPIRITO E MATERIA Para melhor entender-se a expressio Deus, em espirito e matéria, que usei no capitulo anterior, — e melhor entender-se também o problema da experién- cia de Deus no tempo — julgo necess&rio tratar dos principios da cosmogonie espirita, na qual se integra a teoria da génese e formacio do espirito. O contra- senso da afirmacao biblica de que Deus criou o mundo do nada, que tanto trabalho deu aos teblogos, é explica- do na revelacdo espirita pela teoria da Trindade U: versal. Deus, 0 Ser Absoluto, é a fonte de toda a Cria- so. Existindo essa fonte solitéria, é logicamente ne- cessdrio admitir-se um meio em que ela existia. Esse meio, que seria o espaco vazio, foi considerado 0 nada. Para tratar do Absoluto num plano relativo, como 0 nosso, & preciso usar expressdes relativas. Acconcepcdo espirita do mundo nao admite a exis- téncia do nada. O Universo é pleno — é uma plenitude = nao havendo nele nenhuma possibilidade de vacuo. Essa teoria espirita da plenitude esta hoje sendo con- firmada pela pesquisa cientifica do Cosmos, As re- ides siderais que poderiamos julgar vazias mostram- se como campos de forcas, carregadas de energias que escapam aos nossos sentidos. Esse pré-universo ener- Kético seria o que Buda definiu como o mundo sempre existente, que nunca foi eriado, Pitdgoras, em sua filo- 40 J. HERCULANO PIRES sofia matemética, considerou Deus como o nimero 1 que desencadeou a década. O UM, nimero primeiro, existia imével e solit4rio no Inefavel (naquilo que para nés seria 0 nada) ¢ nesse caso o nada seria a imobili- dade absoluta. Houve em certo momento cosmico, ndo se pode saber como nem porqué, um estremecimento do niimero 1, que assim produziu 0 2 e a seguir os demais numeros até 0 10. Completando-se a década, tivemos 0 Todo, a Criagao se fizera por si mesma, 0 Universo surgira e com ele o tempo. E claro que nao dispomos de recursos para investigar as origens p: meiras, e essas teorias nao passam de tentativas de explicagdes légicas, destinadas a nos proporcionar uma base alegorica ou hipotética para uma possivel concepciio do mistério da Criagao. 0 Espiritismo sustenta a possibilidade de conhe- cermos a verdade a respeito, quando houvermos de- senvolvido as potencialidades espirituais que nos ele- varao acima da condicéo humana. Enquanto nao che- garmos ld, essas hipoteses devem servir para mostrar- nos que dispomos de capacidade para ir além dos mites do pensamento dialético, além do conhecimen- to indutivo baseado no jogo dos contrastes. Assim sendo, nao podemos aceitar a alegoria bi- blica da Criagdo ao pé da letra, como verdade reve- lada, nem contesté-la orgulhogamente com a arrogan- cia do materialismo. Na posicéo do crente temos a ingenuidade e na posicao do materialista temos a ar- rogancia do homem, esse pedacinho de fermento pen- sante, como dizia o Lobo do Mar de Jack London. O espiritualismo simplorio e o materialismo atrevide s40 os dois pélos da estupidez humana. O bom-senso, que ¢ a regra de ouro do Espiritismo, nos livra da estupidez e nos oferece a possibilidade de chegarmos A sabedoria sem muito barulho e disputas initeis. AGONIA DAS RELIGIOES: 1 Partindo do pressuposto de que o mundo deve ter uma origem e aceitando a idéia de que foi criado por Deus — pois assim o afirmam todos os Espiritos Supe- riores que se referem ao assunto e que revelam uma sabedoria superior A nossa — o Espiritismo admite que a fonte inicial ¢ uma inteligéncia césmica. Mas Porque uma inteligéncia e ndo apenas um centro de forcas casualmente aglutinadas no caos primitivo? Porque 0 Universo se mostra organizado inteligente- mente em todas as suas dimensdes, até onde podemos observé-lo. Seria ilégico, absurdo, supormos que essa inteligéncia da estrutura universal, que se manifesta em minucias ainda inacessiveis a pesquisa cientifica, desde as particulas atOmicas até aos genes biolégicos e seus cédigos admiraveis, seja o resultado de um simples acaso. Nenhuma cabega bem-pensante pode- via admitir isso. A teoria espirita — teoria e nao hipé- tese, pois esta jé provou a sua validade através de todas as pesquisas possiveis — pode ser resumida nes- te axioma doutrinario: Ndo hé efeito inteligente sem causa inteligente, e a grandeza do efeite corresponde & grandeza da causa. Colocando assim o problema, sua equagdo se tor- na clara, O Espiritismo a elabora em termos dialéti- cos: a fonte inicial, Deus, existindo num meio ao inefa- vel, constituido de matéria dispersa no espaco, emiteo seu pensamento criador que aglutina e estrutura a ma- téria. Temos assim a Trindade Universal que as reli- gides apresentam de maneira antropomérfica. Essa trindade ndo é formada de pessoas, mas de substan- cias regidas por uma possivel Inteligencia, constituin- do-se assim: Deus, Espirito ¢ Matéria. espirito que a constitui nao é uma entidade de- finida, mas o pensamento de Deus que se expande no Cosmos em forma de substancia. Essa substancia espi a2 J, HERCULANO PIRES ritual penetra o oceano de matéria rarefeita, dispersa, € aglutina suas particulas, estruturando-as para a for- macio das coisas e dos seres. Da tese espiritual ¢ da antitese material resulta a sintese do real, do mundo eriado por um poder inteligente. Qual a razdo de ser, 0 objetivo, a finalidade e 0 sentido dessa Criagéio? O Espiritismo admite que ndo podemos conhecer tudo isso em nosso estagio de de- senvolvimento, mas podemos, através da nossa inte- ligencia humana, indagar, perquirir, pesquisar e che- gar a resultados logicamente possiveis, Os dados cien- tificos da Geologia, por exemplo, nos mostram a Terra como o resultado de um longo processo de formagao, no qual é evidente a intengao de atingir um tipo de perfei¢dio em todas as coisas e todos os seres. As for- mas imprecisas e grotescas das primeiras idades do planeta vo se aprimorando ao longo do tempo, numa sucessiio nitida de fases de elaboragdo caprichosa. Os dados da Antropologia nos revelam o aprimoramento do homem nas civilizagdes sucessivas, a partir das selvas. Os dados da Psicologia nos desvendam os anseios da alma humana, na busca incessante de transcendéncia, de superacio do seu condicionamento organico-material. Os dados da Estética revelam-nos © anseio de beleza, perfeico e equilibrio que rege 0 desenvolvimento individual e coletivo, 0 individuo e a espécie. Gustave Geley, em seu livro Do Inconsciente ao Consciente, propde-nos uma visao dialética do mundo em que as coisas se transformam em seres e estes avancam em diregdo A consciéncia. £ a mesma visio da teoria dialética de Hegel. Oliver Lodge considera o homem atual como um processo em desenvolvimento. © Existencialismo, em suas varias escolas, encara 0 ‘homem como um pro-jecto, um vetor que se langa na AGONIA DAS RELIGIOES 43 existéncia em busca da transcendéncia. Para Sartre, o homem se frustra nessa busca e se nadifica na morte, se reduz a nada. Para Heidegger, o homem se realiza no trajeto existencial e se completa na morte. Para Jaspers, 0 homem consegue transcender-se em dois sentidos: 0 horizontal, na relacdo social, e o vertical, na busca de Deus. Para Léon Denis, todo o processo de transformacao se explica por esta frase genial: A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal @ acorda no homem. Para Kardec, a transcendéncia humana nos leva ao plano da angelitude, pois os anjos nada mais sio do que espiritos que superaram as con- digdes inferiores da humanidade. Temos assim 0 Universo, com a multiplicidade de seus mundos rolantes no espace sideral, de seus sdis e suas galaxias, como um fluxo permanente de forcas em transformacao incessante, objetivando a formacio dos seres e a elevaciio destes a condi¢des divinas, Sé a hip6tese de Sartre admite a inutilidade como finalida- de universal. Os Espiritos Superiores, em suas comunicagées, desmentem e rejeitam essa hipétese negativa, susten- tando a natureza teleolégica do Universo. Consideram 8 Criagdio como um gigantesco processo que 86 pode ser definido como o fiat em sua fase inicial, quando a Mente Suprema emite 0 seu pensamento para unir essa emanagao do seu espirito A matéria dispersa. De- pois desse instante criador desencadeia-se 0 tempo ¢ nele que o processo criador vai desenvolver-se lenta- mente através dos milénios. Ea superioridade desses Espiritos nao é avaliada por medidas ou métodos mis- tieos, mas por verificagées racionais. Os Espiritos Su- Periores néio ensinam apenas através de idéias, mas também de fatos. Provam, através da producto de fendmenos paranormais, que possuem uma citncia 44 J. HERCULANO PIRES muito superior a nossa, um conhecimento da espirito da matéria que estamos longe de atingir e uma com- preensdo de Deus que supera de muito as nossas inter- pretagdes antropomérficas da Inteligéncia Criadora. Além disso, as suas previsdes se confirmam de ma- neira rigorosa, demonstrando que possuem recursos de futurologia muito mais avangados e seguros que os nossos. Suas proposi¢ées sao ainda relacionadas com 0s nossos conhecimentos, completando-se na medida em que o nosso adiantamento permite que nos falem a respeito sem provocar diividas ou confusdes em nossa mente. A relacdo de Deus com o Universo nao é apresen- tada em termos de mistério, mas de realidade verifi- vel. Na Terra, 0 homem representa 0 ponto culmi- nante do processo evolutivo, A criagao do homem a imagem e semelhanga de Deus explica-se em termos espirituais. Porque o homem é o Gnico ser terreno que possui mente criadora, pensamento produtivo e conti- nuo, psiquismo refinado € complexo, capacidade de percepgao e de intuicdo que lhe permitem penetrar na esséncia das coisas, ultrapassando a aparéncia ilus6- ria. Feito assim, como um reflexo da divindade, o ho- mem se liga a Deus nao apenas pelos lacos do ato criador, mas também por afinidade psiquica e espiri- tual. E um herdeiro de Deus ¢ co-herdeiro de Cristo, como escreveu Paulo, que se prepara para entrar na heranga do futuro. A telacao de Deus com o homem comega, portan- to, muito antes que ele se defina como criatura huma- na. Desde o momento em que o pensamento de Deus se une & matéria para modelicla, ¢ nas fases subseqiten- tes, em que espirito e matéria se fundem nas formas substanciais de que tratou Aristételes, a relagao de Deus com o homem se desenvolve em progressao cons- AGONIA DAS RELIGIO 45, tante. Quando se estrutura a consciéncia humana no ser em evolucdo, a marca de Deus ali esta presente, na lei de adoracdo que é 0 sentimento inato de sua filia- cdo divina e se manifestaré no sentimento religioso, base de todas as experiéncias religiosas da Humani- dade. Temos de dividir 0 conceito da experiéncia de Deus, em que tanto se apdiam as religides formalistas, em dois tipos bem definidos de experiéncia: a de Deus, que comega no fiat, como elemento ontogenético (ele- mento constitutive da prépria génese do homem) e a religiosa, que corresponde as tentativas de uma toma- da de consciéncia de Deus através de formulagdes religiosas por meio de rituais, instituicao de igrejas, sistematica litargica e sacramental, organizacao cle ical, ordenacdes e elaboracdo dogmatica. Confundir a experiéncia genética de Deus com a experiéncia for- mal da vivéncia religiosa é caracteristica do pensa- mento superficial, que facilmente se acomoda no jogo aparencial das instituigses humanas. Deus, espirito ¢ matéria formam o triangulo fun- damental de toda a realidade. A onipresenca de Deus no implica o mistério de uma pessoa sobrenatural que se dispersa nas coisas, mas a participacae do pensamente criador de Deus em tudo, desde a forma- go do atomo até a formagao da consciéncia, Com- Preendendo que espirito e matéria sAo os dois elemen- tos estruturais da realidade, compreendemos que Deus esteja presente em todas as particulas do Universo, como o poder criador, onisciente, controlador e mante- nedor de todo o equilihrio universal. Deus penetra o mundo ¢ esta nele, como a seiva no vegetal, mas nado 8¢ reduz a ele, pois permanece inalteravel como a fonte de que tudo emanou. A Ciencia atual est& chegando rapidamente a es- sa constatacdo. Dizia 0 fisico nuclear Arthur 46 J. HERCULANO PIRES Compton, em seu ensaio sobre o lugar do homem no Universo, que descobrimos a energia por tras da ma- téria, mas jé comegamos a perceber que por tras da energia existe algo mais, que parece ser pensamento. A unidade, a coeréncia, a perfeicdo dessa concepcio es- pirita do mundo e do homem passam despercebidos no tumultuar das teorias absurdas que, como escreveu Charles Richet, atravancam o caminho da nossa Cién- cia. Mas parece j4 préximo o momento em que o cami- nho se tornard livre, ‘Nao ha lugar, nessa concepedo admiravel, para 0 equtvoco da contradicao Espiritualismo-Materialismo em que até agora nos debatemos. Espirito e matéria aparecem sempre unidos, interligados e interatuantes, na dialética da Criacao. E a negagao de Deus, como observou Descartes, é tio absurda como pretendermos tirar o Sol do Sistema Solar. capituLo VI A CRIACAO DO HOMEM Concedo-me o direito de abstrair-me do problema de Deus para cxaminar a questéo da criacdo do ho- mem. Os cientistas se colocaram precisamente nessa posi¢ao e admitiram a existéncia de um processo evo lutivo no qual 0 homem aparece como o resultado de uma filogenese fantastica. Dos animais inferiores até 08 superiores, num desenvolvimento progressivo e complexo, as forcas naturais modelaram formas su- cessivas de vida que deram como resultado o apare- cimento da espécie humana na Terra. A superioridade do homem ante as espécies animais de que ele pro- cederia suscitou davidas e debates que permanecem até hoje. Simone de Beauvoir, discipula e companhei- ra de Sartre no campo da concepedo existencialista sem Deus, admitiu que a palavra espécie nao pode ser aplicada & humanidade, que nao é uma espécie ani- mal, mas um devir, algo em auto-evolucdo constante e irrefreavel. Alfred Russell Wallace, émulo de Darwin no campo evolucionista, op6s-se a0 materialismo biol6- gico daquele, sustentando uma posicao espiritualista. De Spencer a Bergson a concepe4o evolucionista con. Seguiu firmar-se como a mais elevada interpretacdo da realidade, apesar da insisténcia das correntes dog: maticas-religiosas ¢ das correntes irracionalistas em combaté-la, considerando-a simples teoria metafisica sem bases cientificas. 48 J, HERCULANO PIRES ‘Apés a segunda guerra mundial e em conseqtién- cia das atrocidades a que grandes nagies civilizadas foram conduzidas, 0 pessimismo levou 0 homem a novas formas de divida. Passou-se a falar em mudan “eas nao em progresso ou evalugio. Produto do susto ¢ da decepeaa, esse recuo esta sendo superado pelo pré- prio avango cientifico, em que os processos da evolu- cdo se confirmam continuamente. Kardec jé advertia, no século passado, que o mal das interpretagdes huma- nas esta na falta de uma visio mais ampla e profun- da da realidade. Os homens véem apenas um Angulo do quadro geral da Natureza e se apegam a essa per cepgdo restrita para a elaboracao de seus pensamen- tos. Exemplo tipico dessa restri¢ao mental ¢ a tentati- va, hoje renovada, de separar a evolugdo biolégica, considerada inegével, dos demais aspectos do proces- so evolutive universal. Uma restricdo arbitraria, ca- racteristica da orientagao analitica da pesquisa cien- tifiea e oposta a visio de conjunto dos métodos conclu- sivos da reflexao filoséfica, Na Ciéncia, como em tudo, temos de reconhecer a oposiggo dos contrérios. O método analitico 6 uma faca de dois gumes. Por um lado nos faculta a preci- so objetiva no conhecimento de uma realidade espe- cifica, por outro lado nos impede a visdo de conjunto. Foi exatamente por isso que se tornou necessario, apos © aparente desprestigio da Filosofia, ante as conquis- tas inegaveis da pesquisa cientifica, recorrer-se a Filo- sofia das Ciéncias para evitar-se a fragmentacdo total do Conhecimento. $6 no plano filoséfico se tornou possivel reajustar as conquistas cientificas num qua- ‘dro geral de interpretacdio da realidade. Mas existe outro fator determinante da desconfianca cientifica em relagao dos principios espiritas, que é o instinto de conservagdio, agente preservador da integridade do AGONIA DAS RELIGIOES 49 homem e das suas realizagées, Esse instinto, bem ma- nifesto no sdcio-centrismo das instituicdes cientificas ou de qualquer outra natureza, reage contra tudo 0 que possa modificar o saber j4 considerado como adquiri- do. Recentemente, o Prof. Remy Chauvin, do instituto de Altos Estudos de Paris, denunciou a existéncia no campo cientifico de uma alergia ao futuro, responsé- vel pela rejeicdo liminar, sem exame, de toda novida- de, mesmo que sustentada por cientistas categoriza- dos. Essa neofobia tem produzido muitos martires no campo cientifico e cultural em geral. Pouco a pouco, porém, ¢ hoje mais rapidamente do que no passado, essa posi¢ao acomodaticia vai sendo vencida pelas préprias exigencias do progresso, da ‘evolu¢ao cientifica. Em nossos dias, a descoberta da antimatéria, as pesquisas cOsmicas, o reconhecimento dos fendmenos paranormais através da Parapsicolo- Bia, a recente descoberta do corpo-bioplasmico do ho- mem e de todos os seres, o éxito, ainda incipiente mas JA significativo das pesquisas sobre a reencarnagao, a constataco da existéncia de outras dimensées da rea- lidade, a evolucao do conceito de universos-paralelos para o de universos-interpenetrados, a aceitagdo da Pluralidade dos mundos habitados ¢ da escala evolu- tiva dos mundos — proposta hé mais de um século pelo Espiritismo — est4o arrancando as corporagies, cientificas de suas cOmodas poltronas académicas e langando-as decisivamente em érbita, nas rotas gira- torias do progresso. Lembro-me de um poema de Rainer Maria Rilke, em que ele se compara a um falcdo que gira em cir- culos crescentes em torno a uma torre secular, simbolo de Deus. & uma imagem feliz da evolugio, que se Processa em espiral. O retorno a barbarie na segunda Guerra mundial nao representa retrocesso da evolugao 30 4. HERCULANO PIRES: humana, mas apenas uma curva decrescente da espi- ral que tocou os residuos barbaros do homem — a regido subterranea dos instintos animais — para uma espécie de catarse coletiva, Mas tudo serve para a exploracdo dos que se entregam a0 comodismo e dos que ainda nao conseguiram desprender o seu pensa- mento dos objetos materiais. A Historia da Matemé- tica nos mostra que o pensamento dos primnitivos era de tal maneira apegado ao conereto que, nas tribos selvagens, a contagem das coisas nfo excedia ao nii- mero de dedos das maos, indo quando muito até a soma dos dedos dos pés. A posigdo dos anti-evolucionistas atuais assemelha-se, guardadas as distancias cultu- vais, A dos selvagens presos aos seus proprios dedos, ‘Temos a prova da evolugéio em nés mesmos e em tudo © que nos rodeia, mas os espiritos sistematicos ¢ opi- nidticos querem as favas contadas onde nao ha favas. O Espiritismo ensina que tudo se encadeia no Uni- verso, numa seqiléncia constante de relacdes. No item 540 de “O Livro dos Espiritos”, obra fundamental da doutrina, encontramos esta proposicéo: Tudo se enca- deia na Natureza, desde 0 dtomo primitivo até o Ar- canjo, pois ele mesmo comecou pelo étomo. Assim, do tomo nasce o minério, deste o vegetal, deste o animal, deste o homem e deste 0 Anjo, 0 Arcanjo ¢ quantas criaturas espirituais quisermos enumerar. Por isso, 0 sobrenatural desaparece quando admitimos 0 proces- so continuo da evolucéo. A Natureza nos mostra as duas faces da concepeao de Espinosa, com sua teoria da Natureza naturata e da Natureza Naturans, equi- valente ao conceito de mundo sensivel ¢ mundo inteli- givel, do pensamento de Platdo, interligados e intera- tuantes. O que poderia existir fora da Natureza? Deus? Mas ja vimos que a fonte originaria, pelo fato mesmo. de ser a origem de tudo est ligada ao Todo e nele se AGONIA DAS RELIGIOES 51 insere. Podemos, como os druidas (os sacerdotes celtas das Gélias) imaginar 0 Universo formado por tres circulos: o de Gwinfid, em que Deus permanece; o de Abred, em que vivemos as nossas vidas carnais: o de Anunf, correspondente as regides inferiores do plano evolutivo. Mas na concepcao materialista 0 cireulo de Gwinfid nao pode existir, uma vez que Deus foi exclut- do. Como podemos considerar a criagéo do homem sem a aco de Deus? EF 0 que tentaremos expor agora A unido de dois principios fundamentais, forca e matéria, existentes no caos primitivo, determina oapa- recimento das estruturas atémicas, Os dtomos se aglu- tinam em formacées diversas ¢ produzem os elemen- tos minerais. Mas estes elementos nao estio mortos, ndo sao estaticos. No seio da sua aparente placidez os toms continuam em permanente agitacdo e produ- zem, quando as condigdes se tornam favoraveis, as primeiras formas vegetais. Nestas formas temosonas- cimento da sensibilidade rudimentar, que vai desen volver-se até a produgiio das primeiras formas ani- mais. A atividade atémica transmite-se a essas for- mas produzindo a motilidade, a capacidade de movi- mentacao prépria, que arranca os animais do solo e os submete as experiéncias vitais. A sensibilidade se agu ¢@ e se aprimora através de milénios. Os cérebros rudimentares se desenvolvem e se enriquecem, o siste- ma nervoso (desenvolvimento do sistema fibroso vege- tal) estrutura-se numa rede sensivel, permitindo a or- ganizacao de um aparelho cerebral que capta e reela- bora os estimulos exteriores. Os animais evoluem até o aparecimento dos primatas, que assinalam osalte qua litativo do cérebro animal para 0 cérebro humano. Eis, em linhas gerais, nesse esquema superficial, 0 rocesso de criacdo do homem. Quanto mais simples esse esquema, mais facil para compreendermos a len. Be J. HERCULANO PIRES: ta elaboracdo da criatura humana a partir da noite dos primérdios. f de supor-se que essa criatura gros- seira, elaborada a partir do mineral, ndo tenha qual- quer outra experiencia além das que enfrentou no pro- cesso de sua formacao. Mas acontece que o homem se mostra dotado de uma inteligencia criadora, capaz de desenvolvimento sem limites da sua imaginacaoe—o que mais assombra — dotada de um anseio crescente de elevar-se além da sua condicao humana e atingir uma posigao superior de que ele jamais podia ter tido algum vislumbre. Quanto mais se desenvolve, mais se acentua nele o contraste entre a sua condicdo primi- tiva — de bicho da Terra to pequeno, como escreveu Camses — 08 seus anscios insopitaveis de clevaciioe comunicagao com planos e seres superiores, que ele nunca podia ter visto. De onde vem tudo isso? Supsem 08 materialistas que se trata de produtos da imagina- do excitada pelo medo, num desejo natural de alcan- car a seguranga através de criagées imaginrias. Mas como explicar a coeréncia dessas criagdes arbitrarias ‘com os fenémenos paranormais, cuja existéncia esté hoje cientificamente provada? Que dizer de uma idéia primitiva, como a de uma duplicata do corpo material que pode projetar-se A distancia, que Spencer atribuiu simplesmente ao sonho, quando esse corpo hoje se confirma através da pesquisa cientifica no campo da Fisica e da Biologia, por pesquisadores materialistas? Exse 6 0 momento em que temos de voltar a ideia de Deus inata na criatura humana — 0 Ser perfeito de Descartes encontrado no fundo da sua propria imper- feigdo — A lei de adoraco assinalada por Kardec e que exerceu papel decisivo na orientacao do homem para a sua humanizago. O acaso da concepgio materialista transforma-se necessariamente numa inteligéncia cos- mica a desafiar, por sua grandeza e sua inegavel sabe- AGONIA DAS RELIGIONS 5 doria na construcdo universal, a miseravel inteligén- cia humana, capaz de tudo atribuir a um jogo de for- ‘gas cegas no seio de uma nebulosa. Nao precisamos nem mesmo pensar nas formagdes complexas do ho- mem ou do anjo. Podemos ficar nos primérdios, exa- minando apenas a estrutura do 4tomo, a construcio infinitesimal dese universo microscépico, ou melhor, infra-microsc6pico. Mas se olharmos para cima e pen- sarmos nos sistemas aolares, na galaxia e nas super- galaxias, o absurdo da concepcdo materialista se tor- nara simplesmente monstruoso. Sentiremos as orelhas de Midas substituirem, peludas e agudas, as nossas delicadas orelhas humanas. E 0 que dizer da experiéncia de Deus procurada através de artificios religiosos, depois dessa imensa extensdo percorrida pela humanidade através dos mi- Jenios, numa experiéncia natural e vital em que as forcas da vida vao brotando do chao da planeta projetando-se as profundidades césmicas? & como se miliondrios ensandecidos resolvessem juntar-se num quarto escuro, de portas ¢ janelas fechadas, para con- tar 03 niqueis do bolso do colete a fim de avaliar quanto possuem, para terem a experiéncia do dinhei- ro, Basta isso para mostrar-nos a razio da crise reli- giosa do presente. Os homens comegaram a descobrir que possuem muito mais do que as igrejas thes podem dar, Criado do limo da terra, segundo a alegoria hibli- ca, arrancado das entranhas do reino mineral, segun- doa teoria evolucionista espirita, o homem esta ainda em formagdo, em desenvolvimento, amadurecendo nas experiéncias que enfrenta na existéncia corporal. O corpo € 0 seu instrumento de evolugao. Um instrumen- to vivo e ativo que ele precisa controlar pela forca do espirito. Na proporedio em que avanga, o espirito se 54 I. HERCULANO PIRES impde ao corpo ¢ 0 domina. A dialética da evolugao torna-se nele um processo consciente, E 0 responsavel Gnico pelo sucesso ov fracasso do seu destino. Deus esté nele como um poder mantenedor e orientador, mas nao punitivo. Ele mesmo se castiga ante o tribu- nal da sua consciéncia. Quando se dispde a progredir, © prémio que recebe é a graga que 0 fortalece para que possa vencer o mal. Ninguém pode perdoar os seus erros, apagar as suas faltas, Dispde da jurisdicdo de si mesmo e supe¥a o seu condicionamento determinista pelas decisdes do seu livre-arbitrio. Juiz ¢ réu ac mes mo tempo, pode julgar-se com pleno conhecimento de causa, CAPITULO VII DO PRINCIPIO INTELIGENTE Tratei até agora da relacdo direta do pensamento de Deus com a matéria, Essa relagao ¢ necessaria, da mesma mancira que é necessaria a relacdo direta do pintor com o quadro que ele executa, e portanto do trabalho que ele realiza no quadro, orientado pelo seu pensamento. Na verdade, 0 seu pensamento se projeta no quadro ¢ ali se materializa, passa do plano do inteligivel para o plano do sensivel. Ao completar sua obra, cessa a relacio direta ou ativa, mas permanece a relagdo passiva ou indireta. Assim, a relacdo direta caracteriza 0 ato de pintar, ou de criar. Pode-se alegar a existéncia de intermediarios: as mos, a palheta ¢ 0 pincel, a tinta. Mas convém lembrar que todos esses instrumentos fazem parte da obra em execugao, sobre a qual 0 pensamento do pintor atua diretamente. Na ado de Deus sobre a matéria 0 processo 6 0 mesmo. O pensamento divino aglutina a matéria, dan- dodhe estrutura, através da qual temos a passagem do Pensamento do plano do inteligiuel para o plano do sensivel, Uso a divisio de Platao neste sentido: o inte ligivel & 0 intelecto divino e o sensivel é 0 plano do Sensério, das sensacdes humanas. Dessa maneira, Deus maierializa 0 seu pensamento para atingir a sensibilidade do campo material em que o homem vai ser criado. No fiat ou ato inicial da criaco temos a 56 J. HERCULANO PIRES agdo direta e ativa do pensamento divino estruturan- do a matéria. Uma vez formada essa estrutura, surge um elemento novo que é designado pela expressao principio inteligente. O pensamento divino ligado a matéria adquire autonomia, sem com isso desligar-se da fonte que o alimenta. Transforma-se na mdnada, elemento bésico e estrutural da matéria, de que sao compostas as proprias particulas atémicas. A palavra ménada procede de Pitagoras, foi empregada por Pla- tao como idéia e desenvolvida modernamente por Lei- bniz e Renouvier como uma substancia inteiramente simples (pura indivisivel e refrataria a qualquer in- fluéneia exterior. A ménada é dotada de uma forca interior que a transforma, de potencialidades que se desenvolvem continuamente e de capacidade de per- cepcao e vontade. As ménadas sao diferentes entre si no tocante a essas potincias internas. Estas correlacdes filos6ficas sio necessérias para entender-se o que € 0 principio inteligente da concep- cdo espirita, Trata-se, como se vé, do principio basico de toda a realidade, responsavel pela formacao dos reinos da Natureza, pelo desenvolvimento da vida ede todas as faculdades vitais e animicas dos seres. O admiravel poder de intuigdo dos gregos captou nao 86 1 existéncia dos 4tomos, como também a das ména- das, que a Ciéncia atual ja esta conseguindo atingir nas profundezas da misteriosa estrutura da matéria, na pesquisa sobre as particulas atémicas. A teoria espirita do principio inteligente € explicada de ma- neira sintética no “O Livro dos Espiritos”. No item 23 dessa obra lemos o seguinte: Que é o espirito? Eo principio inteligente do Universo. Seguem-se outras explicagées nas quais a inteligéncia se define como um atributo essencial do espirito. Geralmente confui dimos a substancia (espirito) com a inteligéneia, que é seu atributo. AGONIA DAS RELIGIOES BT Colocado assim o problema, parece-me explicada a razio pela qual os Espiritos Superiores néo esmiu- garam essa quest4o fundamental. Na propria tradicio filosofica, desde bem antes da era crist, 4 dispunha- mos dos elementos necessarios de intuigdes capazes de nos fornecerem os dados para uma equacdo futura. Faltava-nos, porém, o desenvalvimento, que s6 mais tarde poderia ocorrer, das pesquisas cientificas em profundidade. Atualmente j4 podemos compreender com mais clareza a dinamica do processo criador. A teoria filoséfica da ménada, que antes poderia ser considerada como simples hipétese inverificavel, ad- quire hoje a condicao de uma teoria cientifica ao al- cance da comprovagao pela pesquisa. Teorias como a do fisico inglés Dirac, por exemplo, segundo a qual o Universo esta mergulhado num oceano de elétrons livres, ou a dos fisicos soviéticos, de que esse oceano parece ser de uma luz violacea proveniente dos primér- dios da criacdo, mostram-nos as possibilidades novas que as pesquisas espaciais esto abrindo nesse campo. O mesmo se pode dizer da teoria dos campos de forea. que preenchem todo o espaco sideral. F evidente que, diante dessas novas posigdes con- ceptuais, toda a nossa cultura entra em crise, prenun- ciando 0 advento de um novo mundo. A inteligéncia humana se abre para dimensdes mais amplas e pro- fundas da realidade universal, exigindo a reformula- $40 de conceitos e estruturas culturais envelhecidas. Nao podemos mais pensar em Deus como uma figura humana, nem do ponto de vista formal, nem do subs- tancial. $6 podemos consideré-lo como o Ser Absoluto, como a Inteligencia Suprema, mas assim mesmo sem Ihe atribuir nenhuma das limitacdes humanas. Os tedlogos do Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da Morte de Deus, sentem isso na propria pele, mas fal- 58 J, HERCULANO PIRES tam-ihes os dados para uma equagdo mais positiva do problema. Divagam através de suposi¢ées ameacado- ras e caem irremediavelmente num torvelinho de con- tradigdes. Se tivessem a humildade de consultar a Filosofia Espirita, essa pedra rejeitada da parabola evangélica, encontrariam nela a pedra angular da no- vo edificio a construir. O Espirito a que a Biblia se refere em numerosos tépicos ¢ que nos Evangelhos toma o nome de Espirito Santo é o Espirito de Deus em sua manifestagao uni- versal. A Criacdo tem dois aspectos, 0 material ¢ 0 espiritual. O sopro de Deus é 0 espirito criado no fiate 0 homem de barro, o Adio terreno, o apice da criacdio nos mundos em desenvolvimento, como a Terra, 0 sopro de Deus nas ventas do homem de barro, para infundir-lhe o principio da vida e da inteligéncia, é a ligagdo do espixito com a matéria na formacao da ménada, No pensamento divino todo 0 quadro da eria- cdo estava presente desde o principio, E tudo era per- feito. A perfeicdo do ideal constitusa o modelo da rea dade (o mundo da rés, das coisas) que devia projetar-se no Infinito. Por isso, as ménadas diferenciadas, com caracteristicas especificas, seriam semeadas no espaco ara a germinagdo lenta, mas Segura e continua, dos eonteddos essenciais de cada uma delas. A monada é a semente do ser, da criatura humana e divina que dela surgira nas dimensdes da temporalidade. Nao se pode conceber, em nossa relatividade hu- mana, mais grandiosa e perfeita concepgdo do ato criador. Podemos perguntar porque Deus, que 6 0 su- remo poder, precisa do tempo para realizar essa obra gigantesca. Mas o Espiritismo ensina que a nossa re- latividade decorre de necessidades nossas e nao de Deus. O que para nés so séculos e milénios, para AGONIA DAS RELIGIO. 59. Deus pode ser apenas aquele instante que, para Kier. kegaard, era o encontro do tempo com a eternidade. Um instante de profundidade e extensio imensas, que resume para o homem todas as suas existéncias nas duas dimensdes do Universo que hoje nos sido acessi- veis: a espiritual e a material B, sem davida, espantoso pensar, como Gustave Geley, que tudo quanto consideramos inconsciente, desde o gréo de areia aos mundos que giram em torno dos sdis, possui a potencialidade da consciéncia em desenvolvimento no seu interior, Mas quando com- Preendemos que a ménada, sintese de espirito e maté- xia, é uma unidade infinitesimal, sobre a qual se apdia toda a realidade — 0 que corresponde & concepcao atémica da Ciéncia em nossos dias — nossa mente comeca a abrir-se para um entendimento superior. Se © poder do atomo nos espanta, a potencialidade da ménada nos aturdiria. E ambos esses poderes nada maie so do que fragmentos do poder de Deus. Quando pensamos nisso, a teoria do principio inteligente co- mega a revelarnos a grandeza da doutrina espirita. E no entanto os seus fundamentos esto nos prin- Gipios evangélicos, sobre os quais milhares de tedlo 05, filésofos, misticos e pregadores escreveram e fa- Jaram sem cessar, numa catadupa de paginas e pala- vrérios ao longo de dois mil anos! Essa opacidade da inteligéncia humana, esse embotamento da capaci- Gade de compreenséo poderia fazernos descrer das potencialidades do principio inteligente se nao sou- dessemos que o instinto gregario do homem o leva & imitacao ¢ a repeticao dos papagaios, Quando Kardec #¢ atreveu, utilizando.se de todos os recursos de sensa- tez e equilibrio, apoiando-se na cultura do Sécuio XIX — para nao provocar reagdes precipitadas que lhe 60 J, HERCULANO PIRES prejudicariam a obra — a publicar “O Livro dos Espi- ritos”, todos os.anétemas da Religido, da Ciencia eda Filosofia cairam sobre ele como as bombas norte-ame- ricanas sobre o Vietna. Somente agora se abre uma . perspectiva favordvel, em todos aqueles campos rea- cionarios, para uma possivel compreensdio do seu gi- gantesco trabalho de reposicao das coisas em seus lu- gares. Mas entéo aparecem os que pretendem refor- mar, atualizar e tecnilizar as suas obras ao invés de estudé-las e aprofundar-Jhes o sentido. Isso nos prova quanto necessitamos do tempo para que a ménada oculta se abra e se atualize em nos, ‘Todas as coisas tém sua origem no mundo das idéias, como Platao, levado pelas maos de Sécrates, percebeu claramente. Nos planos superiores do Uni- verso nao se usa a linguagem articulada das hipésta- ses inferiores. Fala-se do pensamento, na linguagem telepatica pura, Socrates descobrin essa linguagem ao encontrar 0 conceito no fundo de cada palavra. Pode- mos assim conceber que a linguagem de Deus seja puramente mental. Na mente divina a idéia do Uni- verso delineia-se perfeita, mas a projecdo dessa idéi no plano inferior da matéria tem de vencer os obsta- culos ¢ as resisténcias da materialidade. Foi o que Hegel viu ¢ desereveu com precisdo em sua teoria esté- tica, mostrando a Inta do belo para se sobrepor, no tempo, as imperfeigdes materiais. O mesmo se d com o principio inteligente, que, para vencer a opacidade da matéria, para inteligen: cid-la, segundo Kardec, tem de lutar na temporali- dade. Mas, podemos perguntar, porque Deus nao fezem condicSes transparentes a matéria, ao invés de opa- ca? O Espiritismo explica que a matéria se torna transparente na proporgdo em que visualizamos os pla- nos superiores, de tal maneira que a confundimes com AGONIA DAS RELIGIORS 61 cespirito. Isso nos mostra que a técnica dos contrastes desaparece naquilo que Buda chamou de Nirvana e que a nossa apoucada inteligéncia considerou como o Nada, Kant teve razao ao localizar os limites da razao humana no momento em que cessam as contradigdes dialéticas. Mas nesse momento, nessa linha divisoria entre o mundo real e 0 mundo ideal, comega a razao angélica, Os homens transformados em anjos — nao com asas nem com estrelas na fronte —~ mas com a mente e 0 coracdo purificados, passam a ver e a com- preender a realidade pela intuigao direta e global. Nes- se momento descobrem a perfeicao do Universo, aque- la perfeicéo que, desde o principio, estava na con- cepeao ideal de Deus, mas que nas hipdstases mate- riais tornava-se irreconhecivel como a Venus de Milo coberta de terra ¢ lama quando a arrancaram do sub- solo. 0 proprio tempo desaparece nese momento, Nao ha mais necessidade do véu de [sis da temporalidade para encobrir a verdade das coisas o dos seres. Mergu thamos no eterno, que nao é estéitico e inerte como 0 supomos, mas tem a dindmica e a lucidez de que o pensamento nos pode dar um vago exemplo. Kardee verificou, em suas pesquisas espiritas, que a esque- matizacdo do sensério humano, com a divisio das faculdades sensoriais em orgaos especificos ¢ rigida- mente localizados no corpo, nao existe para os espi- ritos libertos das impressdes materiais. Os espfritos percebem, véem e sentom de mancira global, por todo © seu ser em sintonia com toda a realidade. As des- localizacées e transferéncias das sensagies nas pra- ticas hipnoticas comprovam, em nosso plano, a ver: cidade dessa descoberta efetuada nas suas pesquisas mediiinicas, Seu ensaio sobre a sensacao nos espiritos, que se encontra no livro bAésico da doutrina, é uma 62 J. HERCULANO PIRES peca de esclarecimento lacido e didAtico desse proble- ma. As pesquisas atuais da Parapsicologia, que até agora s6 puderam refazer 0 caminho percorrido por Kardec, representam uma confirmagao da validade das suas afirmagdes de mais de um século. Apesar disso, © no interesse inferior da defesa de posicoes sectarias, toda uma multidao de falsos cientistas se empenha na tarefa ingrata de desmentir o Espiritismo através de capciosos argumentos temperados na pa- nela da mentira ou nos caldeirdes da trapaga diabé- lica, Mas nada disso impedira que a verdade triunfe, pois a verdade é, existe por si mesma e nao pede li- cenga a nenhum censor religioso ou ateu para se reve- lar como ela é, aos olhos de todos os que se fizerem dignos dela, CAPITULO VIL O CORPO — BIOPLASMICO Quando falei pela primeira vez do corpo-bioplas- mico na televisdo, uma senhora estrangeira telefonou ac estiidio do Canal 13 (Sao Paulo) para me fazer uma adverténcia. Achava que a descoberta desse corpo do homem, dos animais e das plantas, feita por fisicos ¢ bidlogos soviéticos, ndo passava de uma nova armadi- Iha dos materialistas russos na luta contra a religiao, com objetivos certamente politicos. Dizia que conhece. ta de perto a manha dos soviéticos, sofrera na pele a sua crueldade ¢ nao queria me ver enganado por eles, servindo como inocente til para propagar as suas mentiras no Brasil. Respondi-the tentanto explicar que se tratava de um problema cientifico ¢ nao politico, que por sinal nos chegava através de informacées universitarias procedentes dos Estados Unidos. Pro- curei mostrar-Ihe que uma manobra dessa espécie se- nia hoje impossivel, diante da dindmica atual da co. municacdo ¢ da possibilidade de comprovagées ou des- mentidos de meios universitarios de todo o mundo Nada disso convenceu a senhora, que insistiu de ma- neira angustiosa na sua adverténcia. Depois dela, vi- rios outros telespectadores, na maioria estrangeitos, telefonaram-me e procuraram-me pessoalmente para fazer adverténcias semelhantes. Isso equivale a uma demonstragao da faléncia cultural do nosso tempo. 64 J. HERCULANO PIRES: Nao obstante todo o nosso avanco cientifico e teenolé- gico, a praga da mentira na religido, na politica, na administracéo e em todos os setores de atividades piblicas leva as pessoas a duvidarem de tudo, a verem spor toda parte o perigo de manobras com intengies ocultas. No programa de televistio que deu origem a este livro, no mesmo Canal 13, a apresentadora Xenia in- sistiu na necessidade de sermos francos ao tratar dos assuntos em pauta, Chegou mesmo a declarar que alguém ali devia ter a coragem de dizer a verdade sobre o motivo da crise religiosa dos nossos dias. Se- undo pensava, essa crise decorria simplesmente da. mentira, como explicou num programa posterior. Na verdade, a mentira ¢ um dos motivos da crise, mas nao © motivo basico. Se eu pensasse assim, nae teria ne- nhuma razo para contornar a situacdo. E que as mentiras pregadas pelas religides nem sempre sao mentiras, mas enganos decorrentes de falta de com- preensao dos problemas essenciais do homem. Seria levar muito longe « desconfianga na natureza huma- na, acreditar que pessoas crentes em Deus organizas- sem as religides com a finalidade de embair o povo. Mas essa também uma prova do clima de descon- fianca da nossa epoca, Encontramos nas religides muitas pessoas cultas, inteligentes, honestas, que acre- ditam piamente nas coisas mais absurdas por aceita- rem a infalibilidade dos dogmas e das interpretacdes escrituristicas. O problema da descoberta do corpo — bioplasmico situa-se de tal maneira no quadro dos avancos atuais da Ciencia, representando mesmo uma consequéncia logiea desses progressos, que n&o poderia suscitar di- jas em ninguém medianamente informado. A desco- berta da antimatéria, as pesquisas parapsicologicas, o AGONIA DAS RELIGIOES 65 desenvolvimento da medicina psicossomStica, as son- dagens cosmicas da astronautica e outras prodigiosas conquistas do nosso tempo conduziam naturalmente o homem a descoberta da sua propria natureza, Ima- gine-se um mundo em que a Ciéncia houvesse provado a indestrutibilidade de todas as coisas mas continuasse aceitando o dogma materialista da destruig&o total e absoluta do homem pela morte. Imagine-se a cultura aberta desse mundo endossando o pessimismo doentio de Sartre que prega a nadificacdo do homem, a sua frustragéo total na morte e considera a doutrina da evolucdo, do pensamento de Heidegger, como uma que- da no misticismo vulgar. O espetaculo do pensamento sartreano, to rico em intuicSes filoséficas e tao de- cepcionante na sua conclusdo ontolégica, esse espeta- culo desnorteante da cultura contemporanea seria um pingo d4gua ante esse possivel absurdo de ambito universal. O equivoco marxista do materialismo ja foi ultra- passado pelo desenvolvimento cientifico e filos6fico de nosso tempo. Nao hé mais lugar,na cultura stual, para os dogmas. religiosos e os dogmas materialistas. Entre os cientistas soviéticos é evidente a existéncia de mui tos dissidentes do oficialismo tipo século XIX. O inte- resse atual da URSS pelas pesquisas parapsicologicas € um indicio claro, indicio que a China Vermelha se incumbe de confirmar ao reagir violentamente contra ele. Todos sabemos que o Prof, Raikov e outros pes- quisadores soviéticos, na Universidade de Moscoueem muitas outras da URSS, entregam-se a pesquisa cientl- fica da reencarnagao, embora disfarcando-a em ano- malia mental que tem de eer esclarecida no campo psi- quiatrico. A verdade se revela em toda parte e, mais hoje, mais amanhi, tornar-se-A evidente. 66 J. HERCULANO PIRES: As cAmaras kirlian, de fotografias sobre campos imantados de alta freqiiéncia elétrica, foram desco- bertas por acaso pelo casal Kirlian, e os cientistas soviéticos mais atilados logo perceberam o seu alcance. * Adaptando-a a poderosos microscépios eletrénicos conseguiram descobrir, no interior dos corpos vivos de vegetais, animais, ¢ homens, uma estrutura de plasma fisico, constituida de particulas atomicas, que se apre- sentava como um corpo basico e sustentador da vida e das atividades vitais e psiquicas do corpo material. A importancia dessa descoberta é de tal aleance que nao poderia ser negligenciada, pois representa uma verda- deira revolucdo copérnica na Fisiea, na Biologia ena Antropologia, para s6 ficarmos nesses trés campos fundamentais. Mas é bom lembrarmos de passagem 0 que ela representard para a Psicologia, a Medicina, a Psiquiatria ¢ a Psicoterapéutica em geral. Basta dizer que 0s soviéticos jé chegaram a descobrir que 0 corpo bioplasmico fornece elementos para a verificacio do estado geral de satide do corpo fisico, permitindo tam- bém a prevengfio de doengas e distirbios nos seres vivos de qualquer natureza. Por outro lado, as pes- quisas realizadas nos Estados Unidos confirmam a descoberta soviética Desde o século passado, varios cientistas se empe- nharam na descoberta de meios para provar a existén- cia no homem do chamado corpo espiritual ou duplo- etéreo. Em 1943 Raoul Montandon publicou na Suica um curioso livro intitulado De la Béte @ I Homme (Do Animal ao Homem) relatando pesquisas psicolégicas que mostram semelhancas significativas entre o reino animal € 0 hominal e pesquisas cientificas que prova- vam a existéncia nos animais de um corpo energético. Exsas pesquisas so relatadas no capitulo intitulado Sobrevivencia animal, Varias fotografias batidas com AGONIA DAS RELIGIORS filmes sensiveis @ luz infra-vermetha, de grupos de gafanhotos c insetos mortos com éter, revelavam ao lado dos animais mortos uma sombra semelhante ao corpo morto, enquanto ao lado dos que nao haviam morrido, mas estavam em estado letargico, nao apare cia a mesma sombra. No capitulo das fotografias psi quicas, batidas vecasionalmente ou em sessdes medit. nicas experimentais, os anais espiritas apresentam im- pressionante volume de casos significativos, cercados de todos os recursos de garantia da autenticidade do fenomeno. ‘No caso atual das pesquisas soviéticas, com apa- relhagem técnica de precisiio, a demonstracdo da exis- tancia desse corpo extrafisico (para usarmos a expres- sdo parapsicoldgica atual) foi decisiva. Os soviéticos, operando em comissio cientifica oficial, na Universi- dade de Alma-Ata, no Casaquestao, fizeram experién- ‘cias com moribundos e conseguiram verificar a retira- da total do corpo — bioplasmico dos mortos, cujos cor- pos materiais 86 ento se caduverizavam. Nao tendo sido possivel fotografar esse corpo depois do seu des: prendimento do cadaver, empregaram a técnica de pesquisa por meio de detectores de pulsacies biolégi- cas e verificaram, surpreendidos, que as pulsagies cap- tadas indicavam a presenya do corpo — bioplasmico no ambiente, Bastam esses dados sumarios ao objetivo deste ivro. Dados mais completos e minuciosos j foram divulgados entre nos com a edicao da traducao do livro de Sheila Ostrander e Lynn Schroeder, pesquisa: doras norte-americanas que entrevistaram os cientis- tas soviéticos na URSS, ¢ cujo trabatho foi editado pela imprensa da Universidade de Prentice Hall (USA) € posteriormente pela editora Bantam Books, de Nova lorque. A descoberta do corpo-bioplasmico constitui 68 J. HERCULANO PIRFS uma confirmacdo cientifica, proveniente do campo ma- terialista, da teoria do perispirito. Segundo o Espiritis- mo, 0 perispirito é 0 corpo espiritual de que tratou 0 Apéstolo Paulo na | Espistola aos Corintios. Sua fun- » cdo & servir ao espirito como instrumento para a sua manifestagao nos planos materiais. & através dele que o espirito se liga a matéria no processo da encarna- do. Durante a Vida terrena ele é 0 agente das ativi- dades orgénicas. Mantém a vida do corpo e serve de campo padronizador durante 0 desenvolvimento des- te, a partir da fecundacdo, regendo a formagao do embrido. Na morte, 0 perisptrito se desliga progressi- vamente do corpo material, que s6 se cadaveriza com 0 seu desligamento total. Na maioria das pessoas 0 ne- rispirito, ap6s a morte, permanece nas proximidades do cadaver por tempo mais ou menos longo, em virtu- de da atracdo que os despojos exercem ainda sobre 0 espirito. Esse corpo é considerado na doutrina espirita, como semi-material, constituido de energias materiais © espirituais em integracao. f o corpo da ressurreigdo, conforme ja afirmava o Apéstolo Paulo. Todas essas caracteristicas do perispirito 40 con: firmadas pelas observacées dos cientistas soviéticos, que consideraram esse corpo como material, constitu do por um plasma fisico formado de particulas atomi- cas. Mas um fato intrigante aparece nas pesquisas so- viéticas: esse corpo 86 pode ser visto e fotografado en- quanto esta ligado ao corpo material. Uma vez des- prendido, nao esta mais ao aleance das cdmaras kir- lian. Somente os detectores de pulsacées biolégicas podem constatar a sua presenca no ambiente. As cd- maras kirlian, como jA vimos, s6 podem agir sobre campos materiais imantados por correntes elétricas de alta freaiténcia, Desligado do corpo material, 0 cor- po-bioplasmico ou perispirito nao oferece condigdes AGONIA DAS RELIGIORS 69 para isso. Parece-me evidente 0 motivo por que ele, ento se torna inacessivel. Nao est mais revestido de um campo material, emhora contenha em sua propria estrutura energias materiais. O proprio nome cienti- fico dado a esse corpo — bioplasmico, mostra a sua fungdo vital ea sua natureza plasmica. Esse problema entretanto, nao € somente fisico. Na proporcdo em que © espirito, liberto da matéria, vai se integrando no mundo espiritual, seu perispirito vai se libertando dos elementos materiais. A descoberta desse corpo pelos materialistas re- presenta a maior vitéria do Espiritismo e a0 mesmo tempo a conquista mais importante da nossa era cien- tifica, pois com ela a Ciéncia terrena da o primeiro passo para a sua futura fusdio com a Ciéncia espiri- tual. Este é 0 mais significativo sinal de que estamos entrando na Era do Espirito, Oliver Lodge referiu-se ao tanel meditinico, uma via de ligagéo do mundo ma- terial com o mundo espiritual, acentuando que esse ti- nel vern sendo eavado dos dois lados pelos homens e pelos espititos. Quando os trabalhadores daqui e do além se encontrarem, o tunel estara aberto e a comuni cagéo entre os dois planos se tornaré tio facil como as comunicagées entre as varias regides da Terra. Até agora somente os espiritas trabalhavam do lado de ed. De agora por diante, os cientistas também darao a sua cota de servico. A descoberta do corpo-bioplasmico e os estudos s0- bre as suas fungdes e a sua estrutura vém também contribuir para que os enganos das religides cristas sejam corrigidos. Poueo a pouco a verdade se impde ea mentira vai sendo afastada. A Religiao, que constitui, como a Filosofia e a Ciéncia, uma das grandes provin- cias do Conhecimento, esta prestes a retomar o seu lugar no plano cultural. Mas para isso as religides 70 AGONTA DAS RELIGIONS sectarias deverao seguir aquela adverténcia de Jesus: perder a sua vida individual para fundir-se na vida coletiva, num proceso livre de religiosidade universal que nos dara a Religidio em Espirito e Verdade. Foi essa a profecia de Jesus a mulher samaritana. Nao ha nenhuma outra saida para a crise reli- giosa do nosso tempo. As teologias artificiais, como a da Morte de Deus, sito ensaios de veo cego num céu vazio, nublado pela divida, A realidade é uma 86, A confirmagae positiva da existéncia do espirito, atra- vés da Ciéncia em desenvolvimento acelerado, pora um ponto final nas especulagdes religosas. B nao hé nenhuma outra plataforma, na Terra, para aexecugao dessa reintegragdo da Religido no campo cultural, além da obra de Kardec. Os homens do futuro ficarao estarrecidos ao verem que tivemos todos os dados nas mos para fazer essa integragiio em nosso tempoe nao conseguimos fazé-la. Perguntardo a si mesmos 0 que nos faltou e talvez alguém Ihes diga: humildade. capitulo Ix DUVIDA E CERTEZA A davida é uma encruzilhada nos caminhos da razao. Quando o pensamento se lana na busea de um objeto e depara com dois caminhos divergentes, pode ficar indecise, Essa indecisao ¢ a diivida, Para Sexto Empirico a davida é a hesitacao entre afirmare negar, © que vale dizer entre aceitar e rejeitar. Descartes fez da divida a condicao primeira da busea da verdade, considerando-a como uma suspensdo do juizo para verificar-se se ele est certo ou errado, Para John De- wey a divida nasce de uma situagdo problematica estimulando a pesquisa. Dessa maneira, Dewey con- firma a posigéio de Descartes, que iniciou a filosofia moderna coma pratica da divida metédica. Mas como a divida criou muitas dificuldades ao pensamento dogmatico, as religides dogmaticas acabaram por con- dend-la como de origem diabélica. A frase de Tertu- Kano: eredo quia absurdum (creio mesmo que absurdo) teve longo curso no combate as heresias. Como os dogmas eram considerados de origem divina, pontos fundamentais da revelacio feita por Deus aos homens, estes nao tinham o direito de duvidar, mesmo que os dogmas fossem aparentemente absurdos. Ainda hoje essa posigéio 6 comum em numerosas, seitas ¢ religides, até mesmo entre pessoas cultas. Ale- ga-se que a sabedoria humana é loucura para Deus, 2 J. HERCULANO PIRES como Paulo afirmou, o que vale dizer que a sabedoria divina pode parecer loucura para os homens, No Espi- ritismo a ddvida ¢ considerada como condigao neces- séria A busca da verdade. Kardec a aconselha como método de controle das manifestagdes meditinicas e de “estudo dos principios doutrinarios. Tendo mostrado que os espiritos so criaturas humanas desencarna. das, libertas do corpo material pela morte, e que mui- tos deles se manifestam para sustentar ainda opinides erradas que esposaram na Terra, aconselha a analise constante e o exame atencioso das manifestacées, que devem ser rejeitadas quando revelarem conceituagbes absurdas. A critica se torna, assim, elemento basico da filo- sofia e da pratica espirita. Mas 6 evidente que deve ser exercida por pessoas que tenham condigdes de cul- tura e bom-senso para eriticar. Descartes afirmou que 0 bom-senso é a coisa mais bem repartida do mundo, mas advertiu que o emprego do bom-senso depende de boa orientacao do entendimento, Kardec oferece, em toda a sua obra, instrugdes e exemplos para 0 uso do bom julgmento ¢ aconselha a consulta, em casos de dificuldade, a pessoas reconhecidamente capazes de resolver problemas com lucidez.. Nao havendo no Espi ritismo dogmas de /é, tudo pode ser apreciado e dis- cutido em termos de bom-senso ou boa razio. Descar- tes aconselhava a evitar-se dois elementos perigosos a0 raciocinio, que sto 0 preconceito e a precipitacdo, Kardec acrescenta a necessidade de vigilancia no to- cante vaidade humana, que leva pessoas cultas ou incultas a considerar-se capazes de reformulagdes dou- trinarias com base apenas em suas opinides pessoais. Estabelecendo 0 consensus gentium, de Aristéte- les, como regra pata aceitacdo de revelagies espiri- tuais, ndo 0 fez no sentido aristotélico do termo, mas AGONIA DAS RELIGIONS 73 em sentido espiritual, com o nome de consenso univer- sal. A aplicagio desse consenso nao implica a aceita- cio da vox populi ou da opinida das gentes como verdade, mas apenas a coincidéncia de manifestagdes meditnicas sobre 0 mesmo tema, por médiuns diver- sos, desconhecidos entre si, em locais diversos e no mesmo tempo. E esse um meio de controle a ser usado sob as condigées de verificagdo racional do tema e de confronto do mesmo com os conhecimentos j adqui- ridos no meio espirita e na cultura geral. Levantou assim uma barreira 4 autoridade individual de um médium isolado que, por mais famoso e seguro que tenha sido em suas atividades, nem por isso esté livre de se deixar empolgar por idéias erréneas. De um crité- rio de verdade que era evidentemente de natureza opi- nidtica, Kardec extraiu uma norma inegavelmente v- lida para facilitar 0 uso do bom-senso pelos espiritas. A necessidade de certeza na orientagao do conhe- cimento, num mundo em que tudo se passa no plano das relagdes, exige um critério cientifico de avaliacao dos dados obtidos na pratica doutrinaria. Ao nao acei- tar a revelagio espiritual de maneira gratuita, mas submetendo-a ao controle da razéio, Kardee nao vio- lentou a intengao dos Espiritos superiores, que deseja- vam dele precisamente essa atitude. Tanto assim que desde 0 inicio 0 estimularam nesse caminho, escla- recenco que a Humanidade terrena atingira a matur dade suficiente para libertar-se do ciclo de revelagses essoais e locais, dadas sempre de maneira mistica, através de um mestre, profeta ou Messias, numa deter- minada regido ¢ a um determinado povo. A altima dessas revelagdes havia sido a do Cristo, que apesar de pessoal e local j se abria ostensivamente para a universalidade, escandalizando os judeus apegados a um sécio-centrismo milenar. A Terra entrava numa fase nova da sua evolucao, as civilizagées isoladas 74 J. HERCULANO PIRES deviam fundir-se através de processos mais amplos e eficientes de comunicaedo, o mundo greco-romano che. gava ao fim objetivado pelo seu desenvolvimento, um longo € doloroso processo de fustio de suas conquistas no cainpo do pensamento, do direito, da justica e da espiritualidade deveria iniciar-se no caldeirdo da His- toria que foi a Idade Média, segundo a concepgiio de Dilthey, Essa fusdo resultaria na Idade da Raziio com © Renascimento, preparando o desenvolvimento da Era da Ciéncia e da Tecnologia, que levaria o mundo .a um progresso cada vez mais acelerado. A influencia do Cristianismo impregnaria todas as latitudes do planeta, arrancando da apatia nirvanica as grandes civilizagdes orientais e obrigando-as a seguir os pa- dides ocidentais, Era necessério que a passividade mistica fosse substituida pela atividade racional, na luta dos homens em busca da compreensao de suas prdprias responsabilidades na diregao da vida huma. na. Cumprida essa programagao, a Terra jf estava, em pleno século XIX, em condigdes de receber as luzes renovadoras de uma doutrina de unifieagao espiritual, capaz de guidla aos objetivos mais elevados de sua integracao na comunidade césmica. Muitas inteligén. cias terrenas, aturdidas com as inquietagdes do nosso tempo, com as crises ameacadoras de uma fase de transi¢ao acelerada, e portanto violenta, perguntam se ndo estamos errados ao aceitar essa previsio his. torica. O mesmo aconteceu na fase de desenvolvimento do Cristianismo, Realmente, a Terra nao parece ainda preparada para o salto césmico que ja vem tentando. Mas podemos notar, ao longo da Histéria, que a téen: ca divina parece apoiarse num principio de tensao. maxima para fazernos avancar. A preguiga humana, a tendencia a acomodacao, o apego a vida como ela &, AGONIA DAS RELIGIOES 5 80 podem ser removides por meios compuls6rios, O chicote do Templo tem de ser vibrado contra os ven- dilhdes que o transformam em mercado, que nao pen. sam em Deus mas apenas no dinheiro. Sé pelo impacto da dor 0 homem se liberta das suas mazelas para encontrar a vida em abundancia de que Jesus falou, Os anos, os séculos, os milénios passam rapidos na diregao da eternidade sem limites. Nao podemos fer. mentar na Terra indefinidamente, como 0 fariamos se as leis divinas ndo nos forcassem a buscar com maior rapidez os objetivos reais de nossa existencia Todas ag religides atuais estao superadas pelo avango geral da cultura terrena. Todas as estruturas sociais do nosso mundo estao peremptas. A propria cultura, que nos parece to avancada, arrasta-se ain- da amarrada aos conceitos de um passado morto. A maioria da populacao do globo sofre o suplicio de Tan- talo. A miséria e as doencas consomem milhées te pessoas para que grupos de elites esbanjem fortunas colossais. Os gastos armamentistas sugam o suor ¢ 0 sangue dos povos. 0 egoismo no foi alijado dos cora- Wes @ 0 exemplo do Cristo é encarado como simples lenda mitoldgica. A idéia de Deus se apaga diante da enormidade das ameacas e das calamidades que as- solam as nacdes, mesmo as mais civilizadas. Seria absurdo pensarmos que essa situacao infernal pros- seguira indefinidamente. O principio da tensdo-maxi- ma est em fungio de sermos forgados a avangar para situagdes mais dignas, Kardec viu tudo isso com extrema lucidez, como podemos constatar na leitura das suas obras. Por isso nao converteu o Espiritismo numa nova religido esté- tica, segundo o conceito de Bergson, mas ligou-0 a todos os campos da cultura para que possa agit como uma religido dinamica, aquela religidio em espirito e 76 J. HERCULANO PIRES verdade de que Jesus falou 4 mulher samaritana. Nao hé razao alguma para que a religiao continue como um departamento estanque e privado, condicionada em sistemas arcaicos, marginalizada no campo cultural em favor de interesses sectdrios. A religiio é um dos campos vitais da cultura e deve integrar-se nesta em plenitude. Seus principios nao podem manter-se alheios ao progresso geral. Por isso, 0 Espiritismo fundou a Ciéncia do Espirito, que agora esta sendo confirmada pelas conquistas mais recentes das ciéncias da maté- ria. Chegamos tarde & complementagao do fiat da eria- cdo, mas estamos agora no momento em que o espirito se liga a matéria no campo das concep¢des humanas. A certeza, em nosso mundo, nunca pode ser abso- luta. E também relativa, mas corresponde ao maximo possivel de exatiddo. Esse maximo 6 indispensavel em todo o campo do conhecimento. Nao poderiamos ficar no terreno das hipéteses inverificdveis ao tratar de assuntos tao graves como a origem do homem, sua natureza intima e seu destino no sistema césmico. Kardec, & maneira de Descartes, pos em davida todo 0 conhecimento religioso. Os fendmenos espiritas, como ele mesmo observou, estavam na moda. Instigado por amigos que conheciam a sua capacidade cientifica, relutou a principio ~ pois duvidara da veracidade desses fendmenos — mas acabou aceitando o convite para comparecer a uma reunido, Ali constatou a reali- dade, mas nao aceitou a sua interpretacao espiritual. Procurou explicar a chamada danca das mesas como possivel efeito de forcas conhecidas: a cletricidade, a gravidade, o magnetismo, um suposto poder emanado das pessoas reunidas para aquele fim e assim por diante. Mas nao ficou nas hipéteses. Pos-se a pesqui sar. Seu encontro com as meninas da familia Boudin, uma de 14 € outra de 16 anos, médiuns excelentes AGONIA DAS RELIGIORS permitiu-lhe uma série de experiéncias decisivas. Foi com elas que recebeu todo o texto de “O Livro dos Espi ritos”. Pelas maos dessas duas mocinhas nasceu o Bs- piritismo. E renasceu Allan Kardec, 0 druida das Ga- lias antigas, para substituir o Prof. Denizard Rivail (scu nome verdadeiro) o discipulo emérito de Pesta- Jozi e sucessor do mestre no desenvolvimento de sua Pedagogia Filantrépica. Dali por diante, numa seatién- cia de 15 anos, as pesquisas prosseguiram, dos quais 12 na Sociedade Parisiense de Estudos Espiritas, por ele fundada e dirigida. Nesse perfodo de 15 anos Kar- dec elaborou os cinco volumes da Codificagao do Espi- ritismo, trés volumes de introduedo a doutrina, um manual de introdugao & pratica meditnica, numero- 808 artigos para a imprensa e os doze volumes da Revista Espirita, contendo em média 400 paginas ca- da volume. Em todos esses trabalhos ele foi sempre orientado pelos Espiritos superiores, como se pode ver nas suas anotacdes de Obras Péstumas, E sua conduta de pes: quisador foi louvada pelo proprio Richet, o fisiologista do século, que discordava das conclusées de Kardec mas reconhecia, em seu Tratado de metapsiquica, 0 valor do homem que iniciara as Ciéncias Psiquicas na Franca eno Mundo. Partindo da davida, Kardec che- gara a certeza psicolégica da sobrevivencia do homem morte corporal. Richet fizera um caminho paralelo, o da sua especialidade cientifica, para chegar a certeza fisiolégica dos fendmenos espantosos de materializa- 40. Depois dele, outros muitos comprovariam a sta descoberta mas ndo ficariam em meio do caminho. Avangariam como Crookes, Notzing, Zollner, Ochoro- wicz, Gelei, Osty, Aksakov até a certeza final de Kar- dec. Estava aberta nas Ciéncias a fronteira da imor- talidade. Dali. por diante, os que pretendem reduzir 0 J. HERCULANO PIRES homem a ossos e cinzas lutariam sem cessar — até mesmo nas religides — contra a maior ¢ mais fecunda certeza cientifica da cultura terrena. Do Espiritismo nasceram todas as ciéncias do paranormal, até a Pa- rapsicologia contemporanea. Mas os inimigos da cer. teza ainda continuam, em nossos dias, diante da evi- dencia fulminante das dltimas descobertas cientificas ~ fisieas, biologicas, psicolégicas ¢ astronduticas — a insuflar com suas bochechas em faria o fantasma superado da diivida antimetédica. Fingem nao perce- ber que esse fantasma é um bali furado e de mecha queimada, A superacdo da divida no Espiritismo nao se fez através dos métodos subjetivos da meditacao religiosa © do éxtase mistico, mas do método cientifico de pes- quisa. Foi o que Richet reconheceu e louvou em Kar. dec, como se vé logo no inicio do Tratado de Meta- psiquica. Integrado na tradi¢éo da busca metodols- gica, que vinha do século XVI, com a revolucdo cienti- fica de Bacon e Descartes, Allan Kardee encarou 0 problema espiritual de maneira objetiva ¢, numa po- sigdo tipicamente existencial, criow o método apropri do a pesquisa dos fendmenos espiritas. Ao contrario do que alegam até hoje os sens contraditores, de Mmonstrou de maneira exaustiva que os fenédmenos es- Piitas podem ser repetidos quantas vezes for necessa. rio para a confrontacao dos resultados experimentais, como os grandes cientistas da época iriam comprovar Jogo em seguida e como as pesquisas parapsicolégicas atuais novamente comprovaram ¢ demonstraram. . Essa subverséio metodologica no campo do conhe- cimento espiritual, até entao submetido aos prineipios da f, despertou violenta reagato que ainda hoje nao se extinguiu. Kardec partia do homem vivo, do homem no mundo, da criatura de carne e osso para elevar-se a AGONIA DAS RELIGIORS 19 Deus através da inducdo logica, desprezando os pro- cessos dedutivos da tradicdo. Atrevia-se ainvestigar 9 espirito des mortos e dos vives com a mesma natura. lidade, sustentando que @ alma nada mais era do que o espirito que anima um corpo. E ousava dar uma nova explicacdo da Génese que ineluis a criacdo do homem por Deus como um fato natural, dialeticamente expli- cavel. A morte perdia 0 aspecto misterioso alimentado pelas religides ¢ 03 videntes e profetas eram consi- derades como criaturas em que uma faculdade huma na natural, a mediunidade, havia se desenvolvido de maneira mais intensa. Pacientes ¢ incessantes pesquisas — e nao revels gdes misticas — levaram Kardee A descoberta cient fica da natureza espiritual do homem. Fa prova de que realmente o levaram foi dada posteriormente pe- las pesquisas cientificas desencadeadas em todo 0 mundo e hoje confirmadas até mesmo pelo avanco das investigacdes materiais, por cientistas modernos que alargam as dimensdes das Ciencias, assim que a divida sobre a continuidade da vida apés a morte foi vencida pela certeza no campo das investigacdes espi ritas. As religiées que ignorarem esse fato eulminante da evolucio humana na Terra acabarao asfixiadas, por falta do oxigénio da verdade, em seus circulos estreitos de fanatismo ¢ exclusivismo. Nao ha somen- te crise nas religides. ha sinais evidentes de ago- nia. CAPITULO. x MAGIA E MISTICISMO O homem primitivo nao via o mundo, mas a ma- gia da Natureza. Nao tendo ainda o pensamento de- senvolvide, 0 raciocinio metodizado, nao podia sequer conceber 0 mundo, Tinha mais sensagdes do que emo- des € mais emocdes do que idéias, Seus sentimentos germinayam no plano larvar dos instintos. E os ins- tintos animais o dominavam, sem dar lugar aos ins- tintos espirituais. Era mais corpo que alma. Kardec assinala dois seres na estrutura humana: o ser do corpo e o ser espiritual, No homem atual esses dois seres se equilibram e a sua psicologia pode ser medida pela predominancia de um ou de outro ou pela sua equivaléncia, As pessoas em que predomina o ser do corpo estao mais proximas do primitivismo, Aqueles em que os dois seres se equivalem apegam-se mais as, coisas materiais e tém dificuldade em conceber a reali dade do espirito. As pessoas em que predomina o ser esptritual dao mais importancia as questées espiri- tnais, As primeiras estdo apegadas ao passado huma- no, as segundas A pragmatica do presente ¢ as ter ceiras tendem para o futuro. Mas entre uma e outra dessus posigées evolutivas existem numerosas varia- Ges que podem ser classificadas em fases interme- diarias de miltiplas nuancas. A escala espirita de “O Livro dos Espiritos” oferece-nos um quadro psicoli- AGONIA DAS RELIGIOES 81 sgico geral dessas talvez inumeraveis variagaes tipol6- gicas. A percepeaio magica do mundo (restrita ao am- biente tribal ou do cla) levou o homem Primitivo as praticas magicas. Seu pensamento se desenvolvia na experiencia, revelando-lhe progressivamente as rela- des existentes entre as coisas e os seres. Podemos supé-las assim, como simples dados exemplificativos: vida-alimento, bicho-mato, peixe-dgua, ave-céu, fruta- drvore, flecha-caca-inimigo, homem-mulher-crianca, dia-sol, noite-escuro-lua. Essas relagdes primarias lhe davam a possibilidade de agir com eficiéncia no meio fisico. Através delas ele comecou a agir instintiva- mente no plano espiritual e nasceu a magia simpdtica ou simpatética, a arte incipiente de atingir 0 inimigo através de reprodugées de sua figura em barro ou ma- deira e de evocar as foreas benéficas através de simbo- los correspondentes a elas. Nascia 0 feitico e conse- qlentemente 0 feiticeiro. E de ambos nasceriam mais tarde os idolos, os sacramentos, os sacerdotes e as religides com seus rituais, Esses processos rudimenta- reg arrancavam 0 homem da selva e do gelo eo lanca- vam na direcdo da civilizacao, Um longo caminho a percorrer no aprimoramento dessas técnicas primiti- vas através dos milénios, Mas os homens nao estavam sos nem abandona- dos a si mesmos em nenhuma dessas fases. A idéia de Deus pairava obscura sobre o fundo nebuloso de suas experiéncias filogenéticas e a lei de adoracdo os leva- va a reverenciar 0 mistério da terra, das éguas, do céu estrelado, das montanhas coroadas de nuvens. Do fun- do escuro das matas surgiam 0 bem ¢ 0 mal, as forcas © 08 geres benéficos e maléficos, Muitos desses seres nao tinham a consisténcia das criaturas de carne e osso. Apareciam e desapareciam como as chamas no- 82 J. HERCULANO PIR turnas dos fogos-fatuos, Uns os auxiliavam e eram considerados deuses benfazejos. Outros os ameaga- vam e eram os deuses malfazejos. Espiritos hons ve- Javam pelas tribos e orientavam os seus chefes. Pagés e xands tinham o dom de evocd-los ¢ consulté-los. Como nas cidades cosmicas da Grécia areaica, de que tratou Durkheim, homens e deuses conviviam numa. espécie de intermindio. Essa situagéo perdurou nas civilizacdes agrarias, no ciclo das grandes civilizagdes crientais, no mundo classico, gerando as religides mi- toldgicas com seus oraculos e suas pitonisus, No Ju- daismo e no Cristianismo temos a sua continuidade, o que se pore verificar pelos textos biblicos ¢ evangé- licos. J4 no Paganismo encontramos as priitieas mis- ticas dos chamados Mistérios, com rituais especificos para levar os iniciados a relagao direta com » mundo ritual e especialmente com Deus, No Egito antigo e nas religides dos impérios americanos dos aztecas, maias ¢ incas havia o emprego de sumos vegetais que originariam as drogas atuais como a mescalina eo Acido-lisérgico, para a producao do estado de éxiase, que é o fenédmeno central dessas praticas. Pelo éxtase, provocado ou espontaneo, o mistico se desliga de toda, a realidade sensivel, do mundo material, e mergulha no inteligivel, no mundo espiritual. © Misticismo tem suas origens remotas no éxtase dos paxés, que em meio as selvas procuravam 0 con. tato direto com os espfritos protetores das tribos. O pressuposto do misticismo nas eras civilizadas é a possibilidade humana de supera¢io dos sentidos e da raz3o para obter-se 0 conhecimento superior nas fon tes divinas. Esse pressuposto conduz os homens a uma fuga da realidade, No Espiritismo as praticas misticas sa condenadas por dois motivos fundamen- AGONIA DAS RF IGIOES: Ky ©) porque o homem esta no mundo para viver 0 mundo com o fim de desenvolver na experiencia da vida de relacdio, as suas potencialidades internas; 2.°) porque a ligacdo do homem com Deus se faz através do amor ao préximo, na pratica da caridade (que é 0 amor em agao) € de maneira natural, sem a necessi dade de praticas rituais ou do emprego de excitantes de qualquer espécie. As pessoas que consideram 0 Es- piritismo como doutrina mistica confundem a feno- menologia mediinica com ag praticas do misticismo. Nao sabem que a mediunidade — como hoje esti con- firmado peias pesquisas para psicologicas — é simples. mente uma faculdade humana natural que permite a todos o exercicio da pereepcay extra-sensorial. O mis- ticismo nasccu das manifestagbes naturais dessa fa culdade e da falta de condicdes culturais para o sew estudo racional. A mistica experiéncia de Deus das religides dogmaticas depende das praticas misticas © de uma concepcao anti-racional do mundo e da vida. Por isso Ranzalii propée « limitacio do termo misti- cismo as filosofias religiosas, substituindo-o no campa fitos6fico geral por expressdes como irracionalismo intuicionismo ou sentimentalismo. O Cristianismo — que os arabes chamaram reli giao do livro — utilizou-se em sua origem da mediuni- dade, mas sua posicao em face das religides anteriores foi nitidamente racionalista. Todos os ensinos de Je- sus, mesmo quando ele se referia a Deus, chamando-o de Pai, sao racionais. Sua condenagio constante do irracionalismo judeu foi sempre seguida de explica- g0es racionais, através de exemplos em forma de pard bolas tiradas da propria vida diaria do povo. Ao tra tar do dogma judaico da ressurreigao ele se referia claramente ao nascer de novo, usando exemplos his. toricos como a volta de Elias reencarnado em Joao 4d. HERCULANO PIRES: Batista. Suas referéncias As potencialidades divinas do homem eram exemplificadas pelos fendmenos pro- duzidos por ele mesmo e pelos seus seguidores. Nunca falou da sua ressurreicéio como um privilégio, mas ligando-a 4 ressurreicao de todos. O Apéstolo Paulo incumbiu-se de formular a teoria racional da ressurrei- cdo, ndo da carne, mas do espirito, explicando que o corpo espiritual do homem, hoje descoberto pelas cién- cias como corpo-bioplésmico, € o corpo da ressurtei- co. Esse racionalismo foi posteriormente prejudicado pelas influéncias pagas e judaicas do misticismo, que atingiriam nas igrejas cristés um refinamento inte- lectualista paradoxal, opondo 0 intelecto a si mesmo. Todo 0 esforco de Jesus no combate a mitologia foi anulado pelos teélogos, que transformaram ele mesmo em novo mito, fazendo de sua natureza humana uma espécie de simples manifestaco pragmatica da sua divindade. O Espiritismo retoma a tradicdo raciona- lista do Cristianismo primitivo e, da mesma maneira que os antigos cristZos, prova na pritica os ensinos tedricos de Jesus através das manifestagdes esplritas, da prova concreta das materializagdes e das apari¢des tangiveis (como a de Jesus para os apéstolos no cend- culo) dos fendmenos de voz-direta (como 0 da voz que so0u no espace na hora do batismo) e dos casos pes- quisaveis de reencarnacdo, hoje em pauta na pesquisa cientifica mundial. Nada disso se refere a misticismo, 8 praticas misticas através de processos magicos, de excitantes especificos e de tentativas antinaturais de transformar 0 homem vivo em um morto-vivo que ne- ga o mundo para viver como espirito desencarnado, desligado dos processos necessarios da razdo, O ho- mem é deus em poténcia, nao em ato, e nao pode querer antecipar a sua atualizacdo fugindo aos com- AGONIA DAS RELIGIOFS 85. promissos e experiéncias da vida terrena. Seus deve Tes estdo aqui, neste mundo, por enquanto, ¢ suas possibilidades de evolugdo, de transcondéncia, nao se encontram na alienagao, na fuga, mas na integracdo consciente em suas tarefas sociais. © tempo das igrejas esté chegando ao fim. como, chegou 0 dos Mistérios na Antigtidade. Elas foram necessarias ¢ tanto serviram como desserviram a Hu- manidade, revelando sua estrutura imperfeita como a de todas as obras humanas. Em vao se arrogaram in- vestiduras divinas. A mente humana se abre hoje pa- ra novas dimensées ¢ as igrejas ndo tém condicées para acompanhé-la nesse avanco. A luta sem tréguas que sustentaram e ainda sustentam contra o Espiritis- mo e em especial contra a mediunidade provou a sua capacidade para enfrentar os novos tempos. A dina mica da concepcao espirita se opée A mecanica ritnal das igrejas como a Fisica moderna se opée a Fisica do passado. Na propor¢4o em que as camadas retrégra- das da populacdo terrena vau sendo afastadas do pla- neta, na sucesso inevitdvel das geragdes, cresce 0 esvaziamento das igrejas e os semindrios vio sendo fechados por falta de alunos. Foi o que aconteceu com as religides mitolgicas do mundo greco-romano, Para poderem sobreviver, as igrejas tém de desigrejar-se, suprimindo o profissionalismo sacerdotal, a8 suas dog- maticas absurdas, as liturgias vazias de sentido. An- tes que possam pagar esse preco demasiado elevado, as forcas da evolugao as vareerao da face da Terra. Isto nao é uma profecia espirita, ¢ uma profecia evan gélica de Jesus, no episédio com a mulher samaritana. Que ninguém me acuse de responsavel por essa previ sGio que elas mesmas, as igrejas, por dois mil anos fizeram ler no Evangelho em seus cultos sem a enter derem. Também nao entenderam a questo das mui- 86 J, HERCULANO PIRES tas moradas da Casa do Pai, nem a do batismo espi- ritual, nem a do nascer de novo, nem a condenacdo das exigéncias rituais dos fariseus. O que podem espe- rar ou reclamar agora? Respeitaveis pensadores religiosos, reconhecida- mente cultos, no conseguem ainda libertar-se da ma- gia das selvas, cujos residuos impregnam de misticis- ‘mo as religides em agonia, Esse apego os impede de socorrer as instituicdes religiosas no momento crucial, Desesperados, acusam 0 Espiritismo e os espiritas de incapazes de compreender as sutilezas da {6 ¢ exigi- tem provas materiais do que nao é material. Chegam mesmo a considerar como profanacéo a pesquisa espi- rita dos fenémenos meditinicos. De outras vezes acusam o Espiritismo de praticas primitivaseoconiun- dem com as formas do sincretismo-religioso afro-bra. sileiro. O materialismo, proclamam, leva os espiritas a quererem materializar espiritos. Percem a perspectiva cultural do nosso tempo e mergulham no passado, acusando-nos de uma posicao retrégada no campo do Espiritualismo. Nossas ligagdes com a selva realmente existem ¢ sdo as mesmas que constatamos nas religides em ago- nia, mas hé uma diferenca fundamental entre a nossa posicdo ¢ a delas: a reelahoracdo da experiéncia, Essa reelaboracdo nao foi feita pelas religides, que se limi- taram a refinar as priticas selvagens e cobri-las com 0 verniz da civilizaedo, Até mesmo a tentativa de sub- meter a Divindade ao poder misterioso dos pagés so- brevive em sacramentos das igrejas, dando aos sacer- dotes 0 poder (que foi negado aos anjos) de obrigar 0 proprio Deus a materializar-se em substéneias mate- tiais do culto, bem como o poder de obrigar o Espirito Santo a manifestar-se nos adeptos para o batismo do espirito. AGONIA DAS RELIGIOES 87 No Espiritismo, 0 que sobrevive das selvas 6 0 fendmeno, o fato natural da manifestagao dos espi- ritos através da mediunidade, como todos os fenéme- nos fisicos e quimicos, botanicos e biolégicos ou p: quicos sobrevivem obrigatoriamente nasciéncias. Mas ¢ Espiritismo nao permanece apegado as superstigées da experiéncia selvagem, reelabora essa experiéncia & Juz da cultura e descobre as suas leis para poder usa- las em fungiio do progresso. A capacidade humana de conhecer n&o tem limites ¢ a divisio absoluta entre espirito e matéria ja foi superada nas pesquisasfisicas. O materialismo morreu por falta de matéria, como afirmou Einstein, e as religides agonizam, come pode- mos ver, por falta de espirito. HA mais apego a maté- ria nas praticas e nos conceitos das religides em ago- nia do que nos ritos selvagens, pois nestes a crenca ingénua e instintiva manifestava-se naturalmente, en- quanto naquelas é puro artificio, tentativa de racio- nalizagao psicolégica de herancas atévicas. AGONIA DAS RELIGIOES oc) ‘CAPITULO XI A CURA DIVINA Para as camadas pobres da populagdo e a gente simples dos bairros elegantes, onde a ignorancia anda sobre tapetes de luxo, o Espiritismo néo é mais do que uma seita de terapeutas obseuros, de curandeiros bron- cos. Acredita-se que a dnica finalidade do Espiritismo 6 curar por meio de processos magicos. Mas a cura divina nao é privilégio de ninguém, Encontramoa em todas as religides e seitas religiosas do passado e do presente. E mais ainda a encontraremos no futuro, mas entao jé reconhecida como um processo cientifi- camente explicdvel e ndo mais sujeito A exploracao dos missiondrios por conta propria que hoje, nas gran- des cidades, enriquecem-se 4 sombra da ignorancia ilustrada e da miséria analfabeta, tendo por patrono 0 orgulho botocudo da alta medicina e 0 comodismo ceiminoso da burocracia dos orgaos oficiais de assis- téncia social. Ligo o rddio as 4 da manha e ouco 0 locutor anun- ciar o programa de um missionario da cura divina. O migsionério se apresenta declinando o seu titulo auto- concedido, Sua voz ¢ suas expressdes revelam o tipo de ignorancia radiofonizada. E um ex-trabalhador bracal que descobriu em si mesmo o meio de superar sua condicao inferior. Fala em nome de Jesus-Cristo e faz desfilar pelo microfone varias criaturas dos bair- ros humildes que relatam as curas divinas com que foram agraciadas. A linguagem de todos ¢ pitoresea e emocionante. Revela ao mesmo tempo a pentiria cultu- ral e a fé ingénua do povo. Algumas pessoas se cura- ram com 0 programa de radio, outras com o disco de preces do missionério, outras nas reunides tumultuo- sas da igreja, outras, levando pegas de roupas de cer- tos doentes ao recinto sagrado, conseguiram curé-los, £ um desfile impressionante de sofrimento e mi ria, de ignorancia e erendice pelos canais de comu- nicacdio da tecnologia moderna, As vezes, isso aconte- ce também na televisdio, embora em programas even- tuais, 0 que acentua o contraste dos desniveis cultu- rais da nossa época. Nao se pode condenar essa reve- lagdo natural da realidade em que vivemos. O mais chocante é que nao se pode nem mesmo condenar a indGstria e o comércio dos missionérios espertalhdes, que bem ou mal atendem As necessidades de milhares de pessoas desamparadas. A cura divina — hoje eura paranormal — é uma realidade inegavel em todo o mundo. Mesmo os cien- tistas de cabeca-dura reconhecem a sua existéncia e procuram explicd-la através dos processos psicosso- maticos, da influéncia de energias psiquicas sobre 0 fisico. Essa influéncia pertence, segundo o Espiritis- mo — ¢ agora segundo as pesquisas parapsicolégicas e a descoberta do corpo-bioplasmico pelos fisicos e bidlogos soviéticos — a propria estrutura psicofisica do homem. A vida se revela aos nossos olhos, nestes dias, como o resultado da acao do espirito sobre a matéria, e isso em todas as suas manifestagées, come j& ficou evidente no capitulo sobre 0 corpo-bioplas- mico. Nao se trata de nada excepcional ou sobrenatu- ral, mas, pelo contrario, de um fato simplesmente na- tural. E precisamente por isso o problema da cura divi- na exige atencSo imediata e acurada da Ciencia, para 90 que ela seja retirada das maos inéptas e em geral gananciosas dos missiondrios por conta propria. Se isso nao for feito, se os cientistas nao levarem o assun- to a sério e os médicos e sas associacdes profissionais nao puserem de lado os seus preconceitos, enfrentando corajosa e dignamente o problema, serao vas todas as tentativas repressoras por meios policiais ¢ ages ju- diciais. Um fato deve ser encarado como fato e nao ‘como Ienda ou supersticdio, Temos de usar a cabeca ¢ livear-nos da estapida pretensao de superioridade cul- tural em area que nfo conhecemos. A terapéutica espirita existe e vive em luta inces- sante em duas frentes. De um lado é atacada por asso- ciagdes médieas e de outro lado pelas igrejas. A burvice © 0 interesse profissional estfio presentes nessas duas frentes. Entretanto, a terapoutica espirita nao se apéia em pressupostos ingénuos nem se serve dos processos do curandeirismo. Suas bases tebricas sao cientificas ¢ seus métodos psicoterapéuticos, como demonstrou Jean Ehrenwald, superam og da psicoterapia cientifi- ca da atualidade. O que a prejudica aos olhos dos especialistas ndo est nela, mas neles: é0 preconceito, a negacdo aprioristica e portanto anticientifica da in- terferéncia de influencias estranhas no psiquismo hu- mano. Esse tipo de influéncias ja nao pode ser negado por ninguém, depois dos avancos cientificos do nosso tempo. Somente pessoas desatualizadas cien camente podem ainda insistir na negacdo de realid des cientificamente demonstradas e aceitas nos meios universitarios mais conceituados do mundo. Muitos dos casos relatados no programa de radio do missionério a que me referi, apesar das circuns- tancias simplorias em que se deram, sdo perfeitamen- te enquadraveis na terapéutica paranormal, admitin do-se ou nao que o missionario seja um sujeito para, normal, Outros casos se explicam pelas proprias teo- AGONIA DAS RELIGIORS a rias da psicoterapéutica cientifiea, sem necessidade dos dados da paranormalidade, Kardec utilizou-se va- rias vezes da contribuicao de médicos para a verifica- cdo de casos da chamada mediunidade-curadora, co- mo se pode ver pelas suas relagies com o Dr. Demeure, relatadas minuciosamente na Revista Espirita, A mé- dium observada pelo referido médico, em sua clinica, era uma jovem que curava pelos processos tipicos do curandeirismo mais grosseiro, através de beberagens produzidas com ervas, mas sob a orientagao de espi- ritos que a assistiam, O proprio Kardee foi médico ¢ clinicou em Paris, eomo se pode ver pela sua recente biografia de André Moreil. Discute-se o problema da sua graduacio em medicina, que nao se conseguiu provar, mas seu contemporaneo Henri Sausse, que foi também o seu primeiro bidgrafo, afirma que ee defen- deu brilhantemente sua tese de doutoramento, O que nao se pode negar é que conhecia profundamente cién- cias médicas ¢ lecionou-as em Paris, ‘A terapéutica espirita ndo pretende superar a m¢ dicina, mas to-somente contribuir para torné-la mai eficiente. O nimero de hospitais espiritas cxistentesem nosso pais e 0 seu aumento constante, apesar das restrigdes e da ma-vontade que encontram de parte dos poderes oficiais, ¢ prova disso, Os hospitais espi ritas nao sao construidos por uma igreja poderosa nem segundo um plano estadual ou nacional. Sao ini- ciativas de pequenos grupos ou instituigées doutrina, rias, geralmente desprovidas de recursos financeiros, que agem com absoluta autonomia. O mével dessas iniciativas é o desejo de estender a todos os recursos da terapautica espirita em conjugacéo com a medi- cina, Chega a ser emocionante 0 empenho nesse sen- tido, quando se sabe que os médicos nav-espiritas, che mados a trabalhar em hospitais espiritas, eriam difi- culdades ao seu funcionamento e os servicos oficiais 92 J. HERCULANO PIRES proibem os simples passes e até mesmo as preces no recinto hospitalar. No caso dos hospitais psiquiatricos 0 que se passa merecia um longo estudo. O oficialismo médico ¢ governamental, embora consciente das defi- cigncias da medicina para curar a maioria dos doen- ‘tes, fecha-se numa rigidez irracional, negando aos es- Piritas o direito de socorrer aqueles doentes com seus recursos préprios, que, no maximo, seriam inécuos. As alegagdes tebricas em contrario nao resistem ao volu- me de fatos favoraveis aos espiritas e particularmente As conquistas atuais das ciéncias no tocante A reali- dade espiritual, A finalidade do Espiritismo nao é terapeutiea, mas cultural. No seu aspecto cientifico, no campo especi- fico da Ciencia Espirita, o que importa é a descoberta das leis naturais do espirito, que nio esto ao aleance das pesquisas materiais nem das indagagdes teolbgi- cas. Descobrir essas leis pela pesquisa espirita e os processos de sua relacdo com as leis dos fendmenos materiais é um objetivo que hoje se impie como neces- sidade do proprio desenvolvimento cientifico. A des- coberta da antimatéria pelos fisicos mostrou a exiatén- cia de outro mundo ligado ao nosso por um sistema evidente de interpenetracdo, A descoberia docorpo-bio- plasmico mostrou que esse mundo antimaterial pode ser habitado por seres humanos dotados de corpos diferentes dos nossos. As pesquisas parapsicoligicas mostraram, particularmente através dos fenémenos téta (relacionados com a morte e as manifestacdes espiritas) a existéncia de relagies entre essas duas populacdes, © Espiritismo antecipou de um século as Pesquisas sobre esses problemas, que sio de interesse vital para toda a Humanidade. A terapéutica espirita resulta naturalmente desse conhecimento antecipado, a que somente agora as ciéneias estao encontrando acesso. Ela nao decorre, AGONIA DAS RELIGIORS 93 portanto, de supersticdes, hipéteses ou préticas traa- cionais de cura envoltas em mistério, sustentadas por crencas populares, Seus fundamentcs sao racionais e cientificos. E prova de ignorncia lamentavel confun- dir-se a terapéutica espirita com o curandeirismo ou com as praticas religiosas que se apéiam apenas nos estimulos da fé irracional. Ja vimos que a propria fé encontra no Espiritismo explicagaéo e definicdo di- versas das que lhe so dadasna cultura materialista e na cultura religiosa. A fé ndo age nos casos de cura, como um poder atuante, mas como uma base em que se apdiam os poderes do espirito para agirem com eficacia. O conhecimento dos fatores causadores da doenca e a descoberta das leis que permitem a aplica- do de processos eurativos eficientes sio os elementos essenciais da terapéutica espirita. Justamente por isso ela pode e deve complementar os recursos médicos, como a experiéncia secular tem provado. Vejamos um caso tipico de contribuicao espirita em plano concreto. Richet, fisiologista e médico, pré- ‘mio Nobel de sua especialidade, descobriu o ectoplas- ma dos processos de materializacao. Geley, também fisiologista — e espirita — deu prosseguimento as pes- quisas de Richet. Ambos provaram, secundados por outros cientistas eminentes, entre os quais Crookes e Zéllner, que o ectoplasma ¢ uma emanagdo do corpo do médium em forma de um plasma leitoso. Schrenk- Notzing, na Alemanha, conseguiu porcdes de ecto- plasma, colhidas em sessées meditinicas experimen- tais, e submeteu-as a exame histolégico em laborat6- rios de Berlim e Viena, comprovando a sua natureza organica, Varias manifestagdes espiritas aludiram a possibilidade de aplicagao terapéutica desse elemento para a reconstituicdo de tecidos vivos afetados ou des- truidos por processos cancerosos. Experiéncias reali- zadas atualmente em sessdes de materializacdo deram 94 J. HERCULANO PIRES resultados animadores. Infelizmente nao foram feitas em instituicdes cientificas. Mas os médicos participan- tes dessas experiéncias entendem que, se pesquisado- res categorizados tratarem do assunto abrirdéo uma Aova era no tratamento das recuperacées considera- das impossiveis. Pietro Ubaldi, que apesar de médium nao era es- pirita, admite em suas obras que o ectoplasma pode ser um ensaio de nova forma de reprodugo da ospécie, um novo sistema biolégico em desenvolyimento, que substituiré o sistema animal de reproducao sexual. Todas as pessoas envolvidas nessas duas hipdteses sao dotadas de cultura cientifica. Nenhuma delas ape- lou para explicagées sobrenaturais do fendmeno. As campanhas clericais contra o Espiritismo, apoiadas muitas vezes pelas corporacées cientificas, alimentaram o preconceito antiespirita numa socie- dade fechada, cuja cultura rigidamente estruturada nao admitia incursdes estranhas, nem mesmo quando lideradas por expoentes dessa mesma cultura. A luta de Pasteur contra os cabecas-duras do seu tempo 6 suficiente para mostrar as barreiras que se levantam quando uma novidade aparece no campo cientifico. ‘Mas hoje essas barreiras ja foram de tal maneira der- rubadas deniro da propria fortaleza cientifica que po- demos ter alguma esperanga. Parece nao estar longe 0 dia em que o sonho de Kardec sera realizado: as cién- cias do espirito e da matéria se conjugarao. Estamos as portas de uma revolucdo cultural deci- siva. A terapéutica espirita exerce uma fascinagao crescente sobre os cientistas ¢ os médicos arejados, de mente aberta para as possibilidades novas. Que fario as religides dogmaticas em face das transformagées radicais que jé abalam suas velhas estruturas? Conti- nuarso apegadas aos seus dogmas envelhecidosou flu- tuardo no vacuo das reformas teulégicas baseadas em AGONIA DAS RELIGIONS. sofismas brilhantes? E qual a doutrina, quai a concep. cAo do mundo que apresenta essas condigdes gerais de unificac’io do conhecimento e ampliagao das dimen- sées da vida e do homem, além do Espiritismo? © problema da experiéncia de Deus e 0 da cura divina se confundem, tanto em sua origem quanto em seu desenvolvimento hist6rico, em seus pressupostos ¢ em sua pratica. Suas raizes se entrelacam no chao das herancas atévicas, ambos tém a mesma procedéncia remota, derivam das formulas mAgicas ¢ passaram pelos mesmos processos de elaboracdo mistica nas coor. denadas do tempo e do psiquismo em desenvolvimen- to. Fundam sua eficécia na fé ingenua que brota do sentimento religioso intuitivo (ou instinto espiritual) e requerem posturas corporais especificas e elementos materiais como veiculos da graga celeste. As religides formalistas se acomodam nesses processos da tradi- cdo milenar, esquecidas de que o homem ja superou 0 uso de instramentos rudimentares nas relacdes com Deus. © complicado aparato das religides magicas, que auxiliou no passado 0 pensamento humano a despren- der-se das entranhas da terra, atualmente impede esse mesmo pensamento de atingir a autonomia de que necesita para librar-se #08 planos superiores da ver- dadeira vida espiritual. Enquanto os clérigos ilustra- dos retém os seus adeptos no emaranhado das prati- cas rituais, impossibilitando-lhes a compreensao ver dadeira dos principios evangélicos, os missiondrios por conta prdpria capitalizam habilmente os resulta- dos dessa retengao indébita através do comércio da cura divina. £ uma espécie de conluio inconsciente, de que uns ¢ outros nao tém a percepgio clara, e cujos resultados, Oteis no plano especifico da pratica, sio entretanto prejudiciais no plano geral da evolucao hu- mana. 96 J. HERCULANO PIRES Imantar 0 psiquismo das camadas ingénuas da populacdo, através de excitagdes emocionais, ao cam- po hipnético dos mitos é 0 mesmo que incentivar 0 uso de psicotrépicos a pretexto de socorrer o desespero humano. Na prépria Biblia, os clérigos atuais (uma espécie social em vias de extincao) encontram a ligao arrepiante de Moisés, que preferiu mandar passar a fio de espada os israclitas apegados a idolatria ea magia egipcia, a comprometer o futuro cspiritual de Israel. Hoje ndo precisamos dessa violencia assassina, basta um pouco de boa-vontade e raciocinio para se com- preender que as taizes amargas do passado podem ser extirpadas com ensinos e exemplos de renovagao men- tal. O sentimento religioso do homem responde pelo impulso de transcendéncia que as filosofias existen- ciaig so unanimes em reconhecer no devir humano, no instinto evolutivo da espécie. O desenvolvimento da lei de adoragao, atestado pelas pesquisas antropo- logices, o confirma. Nao ha mais tempo a perder com artificialismos superados. CAPITULO XI RITO E PALAVRA 0 formalismo das igrejas caracteriza-se principal- mente pelos seus rituais. Mas todo rito implica 0 uso da palavra. Trata-se de uma conjugacao de dois sis- temas complementares de comunicagao. A eles se jun- ta o instrumento, na explicagdo classica da evolucio humana, Foi gracas ao rito ¢ a palavra que o homem ascendeu do primata ao sabio. Mas, para dar mais aleance ao processo de comunicacao, o homem teve de inventar o instrumento. O fogo, a fumaca, penas de aves nas rvores, estacas no chao foram os precur- sores de todos os meios de comunicagao a distancia de que hoje nos orgulhamos. Mas pouca gente sabe, além dos circulos restritos de especialistas, que os anirais também se utilizam de ritos e até mesmo de palauras em seus processos de comunicaciio. No tocante aos instrumentos, eles os trazem no proprio corpo, 0 que nao impede que animais superiores se utilizem tam- bém de instrumentos naturais, como pedras e varas. Remy Chauvin, bidlogo e entomologo francés da atua- lidade, em seu livro Les Societés Animales, oferece-nos abundantes informacdes sobre este assunto. A teoria da evolucdo criadora, de Henri Bergson, propée-nos a tese da infiltragéo do impulse vital na matéria em duas direcdes: uma que leva a0 desenvol- vimento dos insefos sociais, outra que resulta no apa- recimento das sociedades humanas. Chauvin chega 98 AGONIA DAS RELIGIORS. mesmo a referir-se @ civilizacdo das abelhas, adver- tindo naturalmente que se trata de civilizacao de in- setos endo humana, Ortega y Gasset discorda do uso do termo social para os insetos, mas Chauvin, que pesquisou 0 problema a fundo, nav encontra explica- cdo para o fato de ndo haverem os insetos sociais alcangado o plano do pensamento criador. Chega mes- mo a supor que talvez em outro planeta o tenham feito, ‘Tudo isso pode ser pouco lisonjeiro para o orgulho humano, mas nem por isso deixa de ser significative para os estudiosos da evolucéo humana na terra. Chauvin é diretor de pesquisas do Instituto de Altos Estudos de Paris. Menciono esse dado da sua ficha para mostrar a sua qualificacao cientifica. © que nos interessa neste problema é verificar, através de dados cientificos, que 0 formalisme religio- 80, como o social eo das chamadas sociedades ocultas, ndo provém de uma revelacao divina, mas do impulso vital que, passando através das espécies animais, pro- jetou-se ¢ desenvolveu-se no homem. O sacerdote que se paramenta para uma cerim@nia religiosa, o magom, que veste os seus simbolos para uma sesso da loja, o universitério que enverga a sua beca para a forma tura talvez nao saibam que repetem processos anti- quissimos — evidentemente refinados pela tradi¢éo humana —, que procedem de ritos animais demilhées de anos antes da aparicdo do homem no planeta. Isso pode desapontar a nossa vaidade, mas servira para nos lembrar a humildade. Nao somos seres privile- giados na Terra. Somos os altimos rebentos de uma evalucdo multimilenar daquilo que, no Espiritismo, chama-se principio inteligente, 0 espirite que estru- tura a matéria e através dela se desenvolve, desper- tando suas potencialidades ocultas e fazendo-as pas- sar de poténcia a ato, de possibilidade a realidade. Num trabalho curioso sobre a origem dos rituais, na Igreja e na Magonaria, Helena Blavatsky explica J. HERCULANO PIRES a procedencia agraria dos ritos principais das rel ¢ das ordens ocultas. Os estudos de James Frazer, Frangois Berge, René Hubert ¢ outros mostram a re- lagdo direta dos ritos humanos com os ritmos da Na- tureza: a sucesso dos dias e das noites, dos anos, das estacdes, das geracdes. Esses ritmos naturais parecem refletir-se nos mecanismos da vida em formagao e da inteligéncia em desenvolvimento. O instinto de imi- tacao produz os idolos grotescos das tribos e mais tarde as imagens artisticas das igrejas, enriquecidas pela imaginacao criadora. Pestalozzi tinha razio em dividir as religides em duas categorias: as animais € as sociais, que correspondem as primitivas e as ci- vilizadas. Nas primeiras ainda imperam os instintos animais, nas segundas as forcas centripetas da agluti- nacao social, gerando o s6cio-centrismo das culturas antigas. Todas essas religiées so de elaboragao teli- rica, ligadas aos ritmos da terra. Mas Pestalozzi, mes- tre de Kardec, admitia uma religiao superior, desliga- da dos elementos materiais, a que chamava apenas de Moralidade, para nao confundi-la com as anteriores Essa a religiao espiritual que seu discipulo iria for- mular, com base nas revelagées dos espiritos. Nela, por ger espiritual, nao ha ritos nem mitos, nem s: cerdotes nem altares, nem mesmo dogmas de fé, pois a religido espiritual se fundamenta na razdo e se liberta dos ritmos teluricos que impregnam a emotividade humana. Bergson colocou o mesmo problema em set estudo sobre as fontes naturais da moral e da religiao. Passar do rito a palavra é rodar no mesmo circu- Jo. Ambos pertencem ao campo da linguagem, Quando falamos de linguagem abrangemos todas as formas de expressiio. Se perguntarmos como nasceu a lingua gem, a resposta nos leva 4 mesma origem do rito. A diferenca 6 apenas de forma. Enquanto 0 rito pertence ao campo da mimica, da gesticulacdo e portanto das 100 AGONIA DAS RELIGIOES expresses por meio de sinais corporais, a palavra pertence ao campo do som, da voz articulada. Por isso, a partir das pesquisas de Pavlov sobre psicologia ani- mal e da formulagao tedrica de Watson sobre a psi- cologia do comportamento (Behaviotismo) predomi- nowa tese da linguagem corporal, segundo a qual nao falamos apenas com palavras, mas também com 08 movimentos do corpo. Nao obstante, a palavra con- serva o dominio da expressiio do pensamento, tendo a mimica e a gesticulacaio como elementos acessérios de expresso, Nao importa que a mimica ou a atitude de quem fala possa néo raro modificar o proprio sentido da palavra. No centro do proceso de comunicagao permanece a palavra como seu elemento essencial O problema da origem da palavra confunde-se com o da origem da mimica e do-rito. Se apontamos ‘com o dedo um objeto estamos nos referindo a ele. A palavra faz o mesmo: refere-se a um objeto. Surgiu, portanto, com o desenvolvimento da inteligéncia e a necessidade de comunicacdo. Cada palavra € um sig- no, um sinal, um gesto oral. Nao apareceu milagrosa- mente na Terra, mas pelo esforco do homem na ela- Doracéio dos seus instrumentos de comunicagio, As religides formalistas dao @ palavra um carater divino e consideram os textos religiosos como a Pala- vra de Deus. Mas é evidente que Deus, o Ser Absoluto, nao necessita dos meios relativos de comunicacao de que necessitamos, No Espiritismo considera-se a lin- guagem dos seres superiores como apenas mental. Os espiritos falam por telepatia. A linguagem telepatica é a do pensamento puro que costumamos traduzir em palaveas, Por sinal que a palavra telepatia nao quer dizer apenas transmisséio mental de palavras, mas transmissao do pathus individual de cada um, de seus pensamentos e suas emocies, de todo o seu estado psiquico num dado momento. Basta isso para nos J. HERCULANO PIRE’ 101 mostrar a riqueza da linguagem telepatica. A palavra de Deus, ou seja, a sua forma deexpressio, teria de ser ainda muito mais complexa e rica. Psicologicamente podemos figurar assim 0 meca- nismo da palavra: temos uma sensacéio provocada por estimulo exterior ou interior, essa sensacao produz em nosso intimo, em nossa afetividade, uma emocioe em nossa vontade uma volicdo, um impulso de expressi- -la, que provoca na mente uma idéia daquilo que senti- mos, um conceito que se traduz. em um ou varios sons articulados que constituem uma palayra. Se quiser- mos gravar essa palavra temos de recorrer as letras de um alfabeto. Servimo-nos assim da linguagem oral e da linguagem escrita para dizermos alguma coisa. O pensamento foi traduzido em sons e depois em letras, Como podemos aceitar que a palavra de Deus esteja num livro? Isso equivale a submeter Deus ao nosso condicionamento humano. Por outro lado, costumamos dizer que a palavra é criadora, tem o poder de criar. Por isso acredita-se que Deus criou o mundo pela palavra. Trata-se de uma alegoria, de uma simples imagem, mas as igrejas exi- gem que aceitemos essa imagem como realidade. A imagem é bela e podemos aceiti-la como imagem. Deus disse: Faca-se a Terra e ela se fez. Mas se tomarmos isso ao pé da letra caimos no absurdo. Deus fala em nossa consciéncia e em nosso coragaa, mas nao fala por palavras, nem em linguagem humana. Fala em sua linguagem divina, em sua linguagem de Deus. Podemos compreender isso? Sim, se prestarmos aten- co A voz de Deus em nés, que nos fala por intuigdes, pressentimentos, emocdes. Ele toca as nossas teclas internas e soamos como um piano. Mas quem poderia escrever 0 que Ele nos diz? Nos mesmos nao 0 pode- riamos fazer. Muitas pessoas ilustradas, doutoradas, ordenades em ceriménias religiosas nao compreendem isso. Es- 102 AGONIA DAS RELIGIORS J. HERCULANO PIRES. 103 peram a voz de Deus como a de alguém que falasse através da linguagem humana. E podem ouvir uma voz que lhes fala no siléncio, como milhdes de pessoas ouver diariamente. As pesquisas atuais da telepatia mostram que isso é possivel e até mesmo natural. Podemos receber comunicacées telepaticas de criatu- ras vivas e criaturas que jé morreram. E se esperamos a voz de Deus como voz humana, certamente aceitare- mos que Deus nos falou, Esse 0 perigo dos que pro- curam comunicar-se com Deus através de processos artificiais. Deus nos fala naturalmente, quando es- tamos em condicées de ouvir a sua voz. Mas 86 ele sabe quando estamos nessas condicdes. Os que que- rem ouvir a voz de Deus a qualquer prego geralmente acabam pagando o alto preco do fanatismo ou da obsesséo por uma voz de espirito inferior. Uma ex- periéncia de Deus que pode mandar-nos ao inferno das perturbagdes aqui mesmo, na Terra. Mas se estamos pensando em Deus, dird o leitor, como podemos ser assediados por vozes intrusas? Quando pensamos em Deus com pretensées descabi- das, desejando ser melhores que os outros, separar- -nos do rebanho dos impuros, arriscamo-nos a ficar sozinhos. Os fariseus orgulhosos oravam no Templo e nas esquinas das ruas, julgando-se os privilegiados de Deus, mas Jesus os chamou de hipécritas, sepulcros caiados e cheios de podridao por dentro. Deus ndo faz acepedo de pessoas. De nada valem os rituais pomposos que s6 nos lembram as épocas de falso esplendor dos homens que se diziam ungidos e coroados por Deus. De nada valea leitura dos livros sagrados para a nossa salvacao pes- soal, ajeitando-nos comodamente no carro particular dos eleitos. Deus ndo quer a fidelidade forcada dos filhos que ele criou para a heranca divina através das experiéncias da vida. Seu plano est evidente no espe- taculo do mundo. Passam as geragdes e as civilizagdes na roda das ilusdes, mas Deus espera paciente por cada um de nos. Precisamos compreender que somos criaturas em evolugdo e que se Deus nos colocou no mundo nao foi pelo pecado ingénuo de Adao e Eva, mas porque precisamos evoluir através das experién’ cias da vida. Todos nés fomos feitos do mesmo barro, segundo a alegoria biblica que o Espiritismo expliea de maneira tao grandiosa e to lgica. Somos partes da obra de Deus ¢ nio fomos destinados a perdicéo, mas a salvagao. Mas nao é através de ritos ¢ palavras que podemos livrar-nos de nossos erros. Temos de acertar, de corrigir-nos. Deus nos espera. Nao devemos extraviar-nos nas ilusdes da Terra, para ndo retardar a nossa evolugao para Deus. Entre essas ilusdes estdo a da santidade facil, a da hipocri- que nos leva a considerar-nos melhores que a maioria, a da pretensdo de podermos passar através de ritos e sacramentos ao mundo dos eleitos, a auda- cia de querermos ouvir a voz de Deus em particular, enquanto ela soa no mundo para todos ouvirem. O maior pecado é 0 da fuga vida, as experiéncias que nos desafiam. Nascemos para viver a vida e precisa- mos vivé-la sem apego as coisas do mundo, mas sem rejei¢o ao mundo, que é obra de Deus. Esse dificil equilibrio é 0 objetivo da nossa gindstica existencial. Jesus preferin Zaqueu e Madalena aos doutores do ‘Templo, ndo condenou a mulher adaltera nem a en- viou aos juizes do Sinédrio, aconselhando-a apenas a afastarse da vida desregrada, Nao adianta buscar mos a Deus em longas meditacées, recusando 0 ca minho que ele mesmo nos deu para irmos ao seu én: contro: o da vida honesta e cheia de amor e compreen sdo para todos os nossos companheiros da existéncie terrena. A Terra é a nave celeste que Deus nos dev para alcangarmos as muitas moradas da Casa do Pai CAPITULO XII REVOLUCAO COSMICA Em meados do Século XIX ocorreu uma abertura césmica para o homem em todos os sentidos. Trés séculos apés a Revolucdo Copérnica, que comecara a demolir o geocentrismo de Ptolomeu, Kardee rompia o organocentrismo da concepco cientifica do homem, que finha em seu apoio a tradigao religiosa judeu-cris- ta. Nicolau Copérnico escrevera em latim o seu trata- do De Reyoluciontbus Orbium Celestium (Das Revolu- des das Orbes Celestes) que s6 foi publicado em 1543, apés a sua morte, e condenado pelo Papa Paulo V. Kardee publicou “O Livro dos Esptritos”, em 1857, que também néo escapou a dupla condenacao da Igreja e da Ciencia, A concepgao da vida como inerente as estruturas orgénicas foi o ailtimo refiigio do geocentrismo. JA que a Terra nao era o centro do Universo, 0 homem sus- tentava a sua vaidade e o seu orgulho considerando- -se 0 centro da vida. Isso é evidente ainda hoje, trans- parecendo na luta desesperada das religides contra a concepgdo espirita do homem e na desesperada resis- tencia das Ciéncias @ evidéncia resultante de suas proprias conquistas. Na América e na Europa de hoje as declaragdes positivas de Rhine, Soal, Carington e outros sobre a existéncia de um contetido extrafisico nos seres humanos e de sua sobrevivéncia a morte orgdnica sao combatidas ferozmente ¢ classificadas 106 J, HERCULANO PIRES como ridiculas. E um curioso espetaculo na arena in- telectual, em que vemos 0 homem lutando, por orgu- Iho, para sustentar que nao é mais do que pé ecinza, Podem os clérigos argumentar que nas religiées niio se passa o mesmo, pois os principios religiosos sustentam a concepeao metafisica do homem. Entre- tanto, pode-se aplicar as religides a adverténcia de Descartes quanto ao perigo de fazer-se confusao entre alma e corpo. Enquanto para o Espiritismo a alma éo espirito que anima o corpo, havendo nitida distincio entre um ¢ outro, as religides admitem a unidade subs- tancial de alma e corpo, de tal maneira que a ressur- reigao se verifica no proprio corpo. A complexa teoria de matéria ¢ forma, de Aristoteles, deu muito pano para manga na teologia medieval, resultando na dou- trina da forma substancial, em que forma é substan- cia e substancia é forma. Em conseqiitncia, matéria e forma se misturam e nao se sabe como explicar 0 homem sem a sua estrutura orgdnica de matéria, pois chega-se mesmo a sustentar que o homem é pé ¢ em pé se revertera na morte. Oponde-se a essa posigdo restritiva, que reduz 0 homem a condic&o de bicho da terra, segundo a ex- presséio camoneana, o Espiritismo o reintegra na dig- nidade de sua natureza espiritual e reajusta a sua imagem no panorama césmico. A manifestacdo dos mortos, demonstrando que continuam vivos ¢ atuan- tes noutra dimensio da vida, e que continuam a ser 0 que eram apesar de nao mais possuirem o corpo mate- rial, nao deixa nenhuma possibilidade de divida so- bre a diferenga entre conteddo e continente, entre es- pirito e corpo. A confusao de forma e substéncia re- solvese com a demonstragiio da estratura triplice do homem: o espirito é a substancia, a esséncia necessa- ria, 0 ser do primado dntico de Heideggar, o perispi- rito (corpo espiritual ou bioplésmico) é a forma da AGONIA DAS RELIGIOES Lor hipétese aristotélica, o padrao estrutvral dos bidlogos soviéticos; 0 corpo & a matéria que nos da o ser exis- tencial. Essa é tese espirita dos dois seres do homem: © ser do espirito e o ser do corpo. E 0 ndo-ser, como queria Hegel, ndo é um ente especifico e auténomo, oposto ao ser, mas inerente ao ser de relacdo ou existencial, ligado a elena existéncia como contrafagao, determinado pela oposicdo da exis- tencia_ao ser. E o que vemos no problema da relacdo Deus-Diabo, em que a figura do Diabo sé é tomada em sentido mitolégico, nunca real, como personifigéo das forgas do passado, que pesam sobre o ser existencial, embaracandolhe 0 desenvolvimento. O ndo-ser & 0 que nao quer ser, ndo quer atualizar-se na existencia, ‘mas permanecer 0 que era, apegado aos residuos das fases anteriores ao ser. Uma das fungies do ser é absorver ondo-ser para leva-lo a ser, segundo a tese da assagem do inconsciente ao consciente, de Gustave ley. E assim que o homem se reintegra, pela concep- ¢&o espirita, na realidade césmica, Nao é mais um ser isolado na Criacdo, privilegiado pela inteligéncia e amesquinhado pela morte, nao é mais aquela paixdo indtil de Sartre que o tempo consome ¢ reduz a nada. O homem ¢ a sintese superior produzida pela dialética da evolucdo criadora de Bergson nos reinos inferiores da Natureza, « partir das entranhas da Terra. No seu curso de milhées e milhdes de anos, a partir da mona- da oculta na matéria césmica, impulsionado na ascen- siio filogenética das coisas e dos seres, passando pelas metamorfoses de uma ontogenia assombrosa, ele atin- giu a conciéncia e descobriu a marca de Deus em si mesmo, Herdeiro de Deus e co-herdeiro de Cristo, se- gundo a expresso do Apéstolo Paulo, o homem nao esta condenado a frustracao da morte, mas destinado & vida em abundaneia na plenitude do espirito. 108 J. HERCULANO PIRES Nao ¢ facil A mentalidade necrofila desenvolvida pelas religides da morte, sob 0 peso esmagador da escatologia judaica e da tragédia grega, compreender essa visdo nova do homem como um ser césmico. Por isso acusa-se 0 Espiritismo de reativar antigas supers- tigdes e voltar A concepedo da metempsicose egipcia elaborada pelo génio de Pitagoras, Nao percebe essa mentalidade que a teoria pitagorica da metempsicose impunha-se ao sistema do filésofo por uma intuigao do seu proprio genio e pela necessidade légica. O ho- mem pitagérico antecipou o homem do Espiritismo na medida possivel das grandes antecipacées histéricas. Era um homem césmico por antevisdo, ‘So integrado e entranhado na realidade universal que nao podia es- capar do circulo vicioso das formas se ndo desper- tasse em seu intimo os poderes secretos da ménada. O conceito do homem em Pitagoras é infinitamente superior ao das religides atuais e ao das filosofias do desespero e da morte em nosso século. Quando Pitégoras falava da misica das esferas nao se embrenhava nas supersticdes, mas abria a, mente de seus discipulos para a visdo real do Cosmos, que s6 em nosso tempo se tornaria acessivel a todos. Mais tarde, Jesus também anunciaria as muitas mo- radas do Infinite e ensinaria o prinefpio da ressurrei- cdo e.das vidas sucessivas, estarrecendo um mestre em Israel que ndo sabia dessas coisas, J4 numa fase mais avancada da evoluedo terrena, Jesus nao se refe- ria & metempsicose, mas a palingenesia do pensamen- to grego, a transformagdo constante dos seres ¢ das coisas no desenvolvimento do plano divino. Nesse mes- mo tempo, nas antigas Galias, os celtas, que para Aristételes eram um povo de filésofos, divulgavam esses mesmos principios pela voz dos seus bardos, poetas-cantores das triades sagradas. E entre eles, como um druids, Kardec se preparava para a sua missdo futura na Franca do Século XIX, AGONIA DAS RELIGIOES: 109, Vemos assim duas linhas paralelas na filogenese humana: de um lado temos a evolucao do principio inteligente a partir dos reinos inferiores da Natureza, onde a ménada, a semente espiritual lancada pelo pensamento divino, desenvolve as suas potencialida- des numa seqiiéncia natural em que podemos perceber as seguintes etapas: o poder estruturador no reino mineral, a sensibilidade no vegetal, motilidade do ani- mal, 0 pensamento produtivo no homem. A este esque ma linear temos de juntar a idéia do desenvolvimento simultaneo de todas essas potencialidades, num cres- cendo incessante, num proceso dialético de dinamis- mo t4o intenso e complexo que mal podemos imagi- nar. Foi isso que levou Gustave Geley, o grande su- cessor de Richet, a considerar a existéncia em todas as coisas de um dinamismo-psiquico-inconsciente que rege toda a evolucdo. Que abismo entre essa concep- cdo da génese universal que o Espiritismo oferece ea génese alegérica das religides! E mesmo em relacao A génese cientifica podemos notar a superioridade da concepedo espirita, que ndo se restringe a idéia de um processo dindmico de forcas desencadeadas no plane superficial da matéria, mas penetra nas entranhas do fendmeno para descobrir 0 niimeno, a esstncia deter- minante do processo ¢ os objetivos graduais e cons- cientes que sdo acessiveis & nossa percepcdo e com- preensao. A criagao do homem, a sua natureza eo seu destino tornam-se inteligiveis. Edipo decifra os mis- térios da Esfinge. 7 Apesar disso, ha criaturas que acusam o Espiri- tismo de doutrina simplotia, de simples abecé da Espi- ritualidade, curso primario de iniciagéo nos conheci- mentos superiores da realidade universal. Enganam- -se com a linguagem simples das obras de Kardec, através da qual o mestre francés colocow ao alcance de todos, gracas a um processo didatico dificilimo de se atingir e aplicar, os mais graves problemas que 08 u0 J. HERCULANO PIRES sGbios do futuro teriam de enfrentar, como estado en- frentando neste momento. A simplicidade de Kardec é téo enganosa como a de Descartes. A maneita do Dis- curso do Método, “O Livro dos Esptritos” é um desafio permanente a argicia e ao bom-senso dos sAbios do niundo. Esses dois livros nos lembram a simplicidade enganosa dos ensinos de Jesus, que os tedlogos enre- daram em proposicées confusas, ndo compreendendo © seu sentido profundo e impedindo os simples decom. preendé-lo. Mas voltemos as duas linhas paralelas da filoge- nese humana, para tratar da segunda, Na primeira tivemos 0 processo natural de desenvolvimento das potencialidades do principio inteligente, que podemos comparar ao crescimento da crianga e aos primeiros cuidados com a sua educacdo. Temos de aguardar 0 desenvolvimento organico da erianca para que as suas possibilidades mentais se revelem, E temos entao de orientar as sua: isposigdes naturais para o aprendi- zado escolar. © que vimos na primeira paralela foi exatamente esse processo. Quando as poténcias da monada atingiram o desenvolvimento necessario & sua individualizacdo definitiva, como criatura huma- ha, e a consciéncia mostrou-se estruturada, comecou entdo © processo da sua matura¢do e do seu apren- dizado. O cla, a tribo, a horda, a familia e as formas sucessivas de civilizacdo representam as etapas da se- gunda linha paralela, em que se verifica o desenvol- vimento cultural. A inteligéncia, ja formada, vai ser cultivada ao longo do tempo, nas geracdes sucessivas, As diferenciagses monddicas intu{das por Leibniz, co- mo as diferenciacdes na constituicdo atémica verifica- das pela Fisica atual, respondem pelas caracteriaticas diversas e diversificadoras das criaturas humanas em substancia e forma. Essas diferenciacdes nao sao ape- nas individuais, mas também grupais, determinando por afinidade os grupos familiais e raciais. Os ele- AGONIA DAS RELIGIOES ut mentos da natureza, do meio fisico, e as miscigena ces, as misturas raciais e culturais, contribuirao para acentuar as diversificagdes no decorrer do tempo. No- ta-se a existéncia de um dispositivo protetor das ragas e culturas em desenvolvimento, nas primeiras fases do rocesso, com o isolamento dos grupos afins nos com. tinentes. Mas esse dispositivo nao €é artificial, entrosa, -se naturalmente no processo evolutivo, em que todas as condigdes necessdrias decorrem das variantes evo. lutivas, Sao inerentes ao proceso, Quando os varios grupos amadureceram suficien- temente e conquistaram um grau relativamente ele- vado de civilizagio, inicia-se a fase das conquistas, da dominagao dos grupos mais poderosos sobre os mais fracos, numa longa e penosa elaboraao de novas con, dicdes de vida e cultura. Kerschensteiner coloca o pro. blema da cultura subjetiva e da cultura objetiva, a primeira correspondendo ao plano das idéias, da ela: boracdo intelectual, a segunda ao plano da pratiea, do fazer, das realizagdes materiais, E Ernst Cassirer mostra como a cultura objetiva conserva em suas obras materiais, gravadas nos obje- tos, as conquistas subjetivas de uma civilizacdo mor. ta, A Renascenca, por exemplo, revela como as con- quistas espirituais do mundo classico greco-romano foram arrancadas das ruinas e dos arquivos aparen. temente perdidos e reelaboradas pelo mundo moderno. Dewey, por sua vez, acentua a importancia da reela. boracdo da experiéncia nas geracées sucessivas. Mas quando chegamos ao ponto em que hoje es- tamos, prontos para um salto cultural de natureza qualitativa, ainda n&o podemos considerar-nos como obra concluida, Como observou Oliver Lodge, 0 ho- mem ainda no est acabado, mas em fase talvez de acabamento. Sim, talvez, porque o nosso otimismo oa nossa vaidade podem enganar-nos a respeito do nosso estagio atual de realizacdio. A propria situacao da Ter- 12 J, HERCULANO PIRES ta, isolada no espago e 86 agora tentando a expansio césmica, deve advertir-nos de que ainda nao estamos preparados para ingressar na comunidade dos mun- dos superiores. Somos ainda um obscuro e grosseiro subirbio da Cidade de Deus e 86 4 distancia podemos vislumbrar o esplendor da lumindria celeste na imen- sidade cosmica. Nossos proprios meios de penetracdo no espaco sideral so demasiado rudimentares e pre- cérios. Nossos corps animais nao nos permitem viver em condigées superiores As da Terra, O desenvolvi- mento de nossos poderes psiquicos esta ainda come- cando e nossa capacidade mental, condicionada por um cérebro de origem animal, néio vai muito além dos processos indutivos e dedutivos mal arranhando o li- toral esquivo do mundo da intuigéo. Como assinala Remy Chauvin, nem mesmo conseguimos atingir uma organizacao social superior, permanecendo ainda num plano de barbarie, estruturado em principios il6- gicos decorrentes da selva, com o predominio da forea sobre a direito. Nao obstante, estamos avancando mais rapida- mente do que nunea. E se a nossa vaidade e o nosso egoismo n&o nos cegarem por completo, se formos capazes de reconhecer no Espiritismo a doutrina que encerra 0 esquema do futuro, a plataforma espiritual, politica e social do nove mundo que temos de cons. truir no planeta — n&o mais a ferro, fogo e sangue — mas a golpes de inteligéncia, compreensdo e frater- nidade, ento poderemos atingir a maturidade huma- na, Caso contrario retornaremos a selva, recomeca- remos de novo 0 nosso aprendizado desde 0 principio, reiniciaremos 0 curso desperdigade das instrugdes su- periores. E nao teremos mais em nossa companhia os que souberam vencer, pois cabe-lhes 0 direito de se transferirem para os cursos universitarios da Cidade de Deus, em que o Pai certamente os matriculara. A escolha nos pertence, a decisdo é nossa. Deus nos AGONIA DAS RELIGIOES nB concedeu, com a consciéneia, o direito eo dever das opcdes. Kardec sabia 0 que fazia, quando evitava a con- fusdo do Espiritismo com as religiSes dogméticas ¢ formalistas, sem entretanto negar ao Espiritismo 0 seu aspecto religioso. Teve mesmo 9 cuidado de nao cortar em excesso as ligagdes da doutrina com a tra- digdo religiosa, pois sabia que a evolugdo no pode softer, sem graves perigos de soluedo de continuidade. O principio espirita do eneadeamento de todas as coi: sas no Universo estava presente em sua mente. Pou- cas obras revelam uma compreensio tao clara e pro: funda da natureza organica do Universo, como a Co- dificacdo. E por isso,e nao por sectarismo ou fana- tismo, que nao podemos fazer concessbes ao pasado no campo das atividades doutrinarias. Avancamos para um novo mundo que sé 0 Espiritismo pode modelar, pois s6 ele revela condicdes para isso em sua estrutura doutrindria. Mas se ndo procurarmos com- preendélo em toda a sua grandeza, 6 certo que o redu- ziremos a uma seita fandtica de crentes obscurantis- tas. Evitemos essa queda no passado, para nés mes- mos e para 0 mundo. Tenhamos a coragem de avancar sem muletas e sem temor para a Civilizagao do Es- Dirito. CAPITULO XIV O PROBLEMA DA VIOLENCIA Chamamos Civilizagao do Espirito aquela em que os poderes espirituais regerao a vida social. Para isso énecessirio que a sociedade seja constituida por seres morais, criaturas formadas nos principios da moral. ~consciencial. Essa moral corresponde ao que Hubert considera as exigéncias da consciéneia, Nao se trata, pois, de um conceito de moral metafisica, de uma for, miulacao utdpica de sonhadores. Mesmo que o fosse, a defini¢do da utopia por Karl Mannheim nos socorreria quanto a sua validade, Se as utopias sao, como quer Mannheim, percepcdes antecipadas de realidades fu- turas — possibilidade provada pelas pesquisas para. psicologicas — nem assim estariamos tratando de hi- Pdteses vazias. Mas quando aludimos a consciéncia estamos pisando na terra endo olhando para o céu. A conseiéncia é um dado positive, uma realidade antro polégica e social que ninguém se atreveria a contestar Ela rege a nossa vida, 0 nosso comportamento nas relacdes humanas e por isso se projeta de maneira inegavel no plano do sensivel Sabemos que a consciéncia varia de graus no to- cante a su estrutura e a sua coeréncia. E sabemos também quais os perigos concretos de uma conscién- cia imatura, ainda nao suficientemente definida, e portanto frouxa ou incoerente, contzaditéria, que pode produzir eatastrofes no Ambito da sua influéncia ou do 116 J. HERCULANO PIRES seu dominio. As variagdes da moral entre os grupos hhumanos e as proprias civilizagdes decorrem mais da posicdo da consciéncia dominante na sociedade do ‘que dos fatores mesolagicos ¢ suas conseqiiéncias eco- homicas. No plano religioso a consciéncia é um fator determinante da realidade religiosa. A consciencia ju- daica. de Saulo de Tarso fez dele um perseguidor san- guindrio dos eristéos primitivos, o lapidador eruel de Estavao. Mas, ao ajustar a sua consciencia aos prin- cipios cristaos, ele se transformou no Apéstolo dos Gentios e no maior propagador do Cristianismo. "As exigencias da consciéneia séio sempre as mes- mas em todos os homens. As variagées de graus ¢ de coeréncia decorrem do processo de maturacio e das condigies de meio ¢ educacao. A consciéncia amadu- rece na proporcao em que as experiéncias vao reve- Jando ao espirito o seu anscio latente de transcendén- cia. A vontade de poténcia, de Nietzshe, o primeiro jmpulso que leva o homem, ainda na selva, a querer sobrepujar os outros, elevarse acima das condigées gerais do meio. Esse impulso se prolongaré no proces- £6 evolutivo, O homem se envaidece com a sua capa- cidade de subjugar os outros, de mandar, de impor medo, respeito, submissiio aos demais. Sua conscién- cia se abre no plano individual, fechada nos limites de si mesma. £ 0 reconhecimento do seu poder que natu- talmente o embriaga eo levara a excessos perigosos. Mas na proporgao em que os liames do cla se desen- volvem, 0 parentesco, a simpatia e as afinidades se revelam, a embriaguez do poder vai sendo atenuada, contida pela percepcao dos limites inevitaveis. Depois, © esgotamento progressivo das forcas fisicas ¢ 0 perigo das doencas, das competigdes com iguais ou mais for- tes, e por fim a certeza da morte iro abatendo a sua arrogancia. Nas reencarnacées sucessivas essas expe- riéncias se renovam, mas o impulso de transcendén- cia se acentua, levando-o, a procurar outros meios de AGONTA DAS RELIGIONS ut superac&o: o poder social, a hipocrisia, a estratégia das posses materiais e das posigdes de mando. 86 lentamente, ao longo do tempo, sujeito as reagdes que o enredam em situagdes dificeis, muitas vezes tortu- rantes, sua consciéncia comeca a abrir-se para o res: peito aos direitos dos outros. A interaciio social, ne reciproca das obrigacdes e das necessidades, na trans- formagdo dos instintos em sentimentos, ira pouco a pouco despertando-o para novas dimensdes cons- cienciais, ‘A violéncia do homem civilizado tem as suas rai- zes profundas ¢ vigorosas na selva. O homo brutalis tem as suas leis: subjugar, humilhar, torturar, matar. © seu valor esta sempre acima do valor dos outros. A sua crenca é a tnica valida. 0 seu modo de ver o mundo e os homens é 0 iinico certo. O seu deus € 0 ‘nico verdadeiro, $6 0 que é bom para ele é bom para a comunidade. Os que se opdem aos seus designios de- vem ser eliminados pelo bem de todos. A violencia ¢ 0 seu método de acdo, justificado pelo seu valor pessoal, pela sua capacidade tnica de julgar. Tece ele mesmo a trama de fogo do seu futuro nas encarnagées doloro- sag que terd de enfrentar. As religides da violéncia fizeram de Deus uma divindade implacdvel ¢ os livros bAsicos de suas revelacdes estdo cheios de homicidios e genocidios em nome de Deus. ‘Nao obstante, misturam-se as ordenacées violen- tas estranhos preceitos de amor ¢ bondade. Sdo as ligdes de consciéncias desenvolvidas lutando para des- pertar as que, endurecidas no apego a si mesmas, asfixiam os germes do altruismo nas garras do egois- mo. £ um espeticulo dantesco ode uma alma vigorosa dotada de intelecto capaz de entender as suas proprias contradigdes, mas empenhada em negar a sua condi- 80 humana, rebaixando-se aos brutos ao invés de ‘buscar a elevagio moral a que se destina. Nos mo- mentos de transicdo, como este que estamos vivendo, ug J, HERCULANO PIRES a violencia desencadeada exige a oposicao vigorosa sacrificial dos que ja atingiram o desenvolvimento consciencial da civilizago. A cumplicidade com as praticas de violéncia, por parte de consciéncias es- clarecidas, retarda a evolucio coletiva e rebaixa 0 cémplice a posigées indignas. 0 mesmo acontece no tocante aceitacio de principios erréneos por con- veniéncia. O espirito se coloca entao em luta consigo mesmo, negando o seu propriv desenvolvimento cons- ciencial e ateando em si mesmo a fogueira dos re- morsos futuros. A Civilizacdéo do Espirito se torna, assim, 0 re- sultado de um parto doloroso. Mas, como todos os partos, tem de ser feito. E se acaso for possivel aborto, a civilizagdo se fechara sobre si mesma e todos os responsdveis mergulharo com ela nas trevas da miséria moral, As fases de transicao, na evolucdo dos mundos, so também fases de julgamento individual das criatures que os habitam. Dai o mito do Juizo Final, em que todos sero julgados. Mas nao havera um Tribunal Divino nas nuvens, porque esse tribunal est naturalmente instalado na consciéncia de cada individuo. A presenca do julgador ¢ onimoda e fatal, porque cada qual sera juiz implacével e inevitavel de si-mesmo. A agonia das religides é a agonia de um mundo. Por isso a Terra inteira participa dessa mesma ago- nia. A queda dos deuses mitologicos do mundo classi- co foi também a queda dos grandes impérios. Em vao César procurou desligar-se de Jdpiter e aceitar o Deus Unico. A conversdo do Império foi a sua propria mor- te. A Idade Média procurou restabelecer 0 reino da violéncia em nome de Jesus. Durou um milénio, pois a integrago dos barbaros na ordem crista exigia uma reelaboracdo demorada e um reajuste penoso das con- tradigdes culturais. 0 Renascimento marcou o adven- to do que parecia ser, na verdade, uma civilizacio AGONIA DAS RELIGIOES ug crist. Mas os residuos da violéncia continuaram a fermentar nas novas estruturas socio-culturais. A prova histérica de que a carga de violéncia era enorme esta hoje aos nossos olhos, na exploso de violéncias em todos os niveis do mundo contemporaneo. Nossa esperanca é a de que essa explosio seja a catars. final. © homo brutalis vai desaparecer. Mas para isso 6 necessiirio o despertar de novas dimensdes na cons- cigncia atual. Nao sera sustentando e justificando as estruturas religiosas envelhecidas, submissas as or- denagées do passado biblico, que facilitaremos » ad- vento da nova era, Muito menos pela negacao da pré- pria esséncia, do homem, através de ideologias ma- terialistas. A busca da intimidade pessoal com Deus, em termos fantasiosos, ou a negacao de Deus em nome de uma razao ilégica’ sto formas contraditorias de asfixia da consciéncia. A rejei¢do do Evangelho ou a manutengao de sua interpretacdo sectaria equivalem igualmente & negacdo dos valores espirituais do ho- mem, A estrutura moral da consciéncia esté delineada de maneira indelével nas paginas do ensino moral de Jesus. ‘Temos de aprofundar o seu estudo e procurar aplicé-lo em nossa vivencia social. A civilizagao Crie- td vai sair agora do tubo de ensaio, concretizar-se na forma real de uma Civilizagao do Espirito, em que 08 prineipios espirituais se encamardo nas normas de conduta, nas formas de comportamento do Novo Homem. O problema das relagées humanas, colocado em forma de etiqueta nas velhas civilizacées nobiliarqui- cas do Oriente e do Ocidente, formalizado ao extremo nos tempos feudais, e convertido em protocolo de con- veniéncias no mundo moderno e contemporneo, tera de voltar ao ponto de partida dos ensinos e dos exem- plos de Jesus. A regra Aurea do amor prevalecera num mundo regido pela moral consciencial. Porque « pri- meira exigencia da consciéncia humana é a do amor 120 J. HERCULANO PIRES a0 préximo, desprezada e amesquinhada nas socie- dades mercenarias a ponto de levar-nos ao seu contra- rio — 0 Odio, essa cegueira do espirito, que gera ¢ sustenta a violéncia no mundo, _ 0 pragmatismo das sociedades contempordneas coisificou 0 homem, o que vale dizer que o nadificou no plano moral. Pior do que a nadificacdo pela morte. da teoria de Sartre, é essa nadificagao em vida que reduz a criatura humana a objeto de uso. O homem retorna a condigdo dos instrumentos vocais de Cicero, um ins- trumento que fala. Pode ser incluido entre os titeis ou amanuais de Heidegger, objetos manusidveis. O pu- blic-relations de hoje é o famulo medieval aprimorado pela técnica, domesticado para sorrir e curvar-se em todas as ocasides, pois o que importa é sempre o lucro, o que vale é a relacao social em termos de vantagens, sempre que possivel, pecuniarias, Esse aviltamento total do homem abriu as comportas da violéncia rep: sada debilmente pelas barreiras artificiais da civil zac4o. Como estamos vendo no panorama mundial da atualidade, com exemplos gritantes diariamente di- vulgados pelos meios de comunicagao, a besta-fera das selvas arrombou as jaulas convencionais ¢ tripu- dia sobre a fragilidade humana. Contra essa realidade exasperante de nada valem os sermies, as pregagoes, as ladainhas e outras preces labiais. O mesmo individuo que se ajoelha diante das imagens, nos templos suntuosos, volta ao seu posto de mando para ordenar torturas canibalescas. Est certo que Deus o aprova, pois age em detesa da ci lizagdo crista, aviltando aqueles pelos quais o Cris- to morreu, segundo lembrou Stanley Jones. No comego do século, Léon Tolstoi ja advertia que estamos numa era de nova antropofagia, entdo requintada pelas téc- nicas modernas. Hoje, na era tecnolégica, os instru: mentos de opressao, tortura e aniquilamento do ho- AGONIA DAS RELIGIOES 121 mem atingiam a maxima perfeigdo diabélica. Tudo isso porque? Porque a deformacao da mente eo avilta- mento da cenciéncia desumanizou 0 homem. Seria loucura responsabilizar unicamente as reli- sides por essa calamidade. Mas seria hipocrisia querer isent4-las de culpa. Elas se apegaram A matéria em nome do espirito e asfixiaram este em suas estruturas pragmiticas. Cabelhes pelo menos metade da culpa, pois que se fizeram mestras e orientadoras da civili zac, participando ativamente dos maiores desman- dos através dos séculos, quando nao os ditigia. Esta- tizando-se ou nio, todas elas trocaram o mandato divi- no pelos poderes de César. Ese nfo se aniquilaram mutuamente, nao foi por piedade, mas porque joga- ram habilmente a sua sorte sobre a tinica do cruci- ficado e os dados romanos favoreceram a todas. Ape- sar dessa voracidade mundana, almas valentes como a de Lutero, humildes e piedosas como a de Francisco de Assis, irredutiveis como a de John Huss, Iimpidas como a de Maria D'Ageada sacrificaram-se para ten- tar salva-la e insuflarlhes a seiva crista de seus novos exemplos. Os martires da £ nao foram apenas perseguidos e esmagados pelos impios. Dentro de suas préprias con- fissdes religiosas, nos calabougos medievais que refle- tiam o Inferno na Terra, e até mesmo no mundo mo- demo, apesar dos tragicos exemplos histéricos, em nagGes profundamente marcadas pelo fogo do fanatis- mo religioso, milhares de mArtires continuaram s0- frendo as ameagas eos castigos do Deus biblico impla- cavel, através de seus estranhos ¢ temiveis capatazes. Ainda nao surgiu, infelizmente, o genio da Psicologia que deverd, mais cedo ou mais tarde, realizar a an4- lise assombrosa dos compiexos sem nome de misticis- mo, sadismo e barbarie que Freud apenas aflorou em 122 J. HERCULANO PIRES suas pesquisas da libido, Seré um balanco apocalipti- co da escatologia das religides da violencia. Nao proponho estes problemas em tom de acusa- ¢éo, mas de andlise. Os maiores mértires, na verdade, foram os proprios carrascos, que aviltaram primeiro a si-mesmos, condenando-se perante 0 tribunal da cons- ciéncia, cujas auto-sentencas brotam como labatedas das proprias entranhas do criminoso, digno de pie dade e perdao como todas as criaturas humanas. Mi- nha intengaoé apenas a de prevenir, sacudir e acordar os que continuam errando, na vaidosa ilusdo de uma investidura_divina contraria aos principios funda- mentais do Evangelho. A imortalidade do ser 6 a sua propria e irreversivel condenacao, ante as leis de Deus inscritas em sua consciéncia, A vantagem do Espiri- tismo, entre todas as doutrinas filoséficas do nosso tempo, é a de colocar os problemas do homem, mesmo no campo religioso, em termos de razdo e naturalida- de, climinando os residuos do subrenatural que pesa- ram esmagadoramente sobre o passado, sem cait noce- ticismo e no agnosticismo. Essa posicao suis generis do Espiritismo permite-Ihe preparar 0 homem atual para uma existéncia normal e digna no futuro, desde que os espiritas, tio sobrecarregados de herancas reli- giosas deformantes, nao venham a cair nas mesmas e nefastas ilusdes da investidura divina e da institucio- nalizagao hierarquica das religides da violéneia, Nao escrevi este ensaio com fins proselitistas, pois uma doutrina aberta, sem finalidades salvacionistas, fun- dada em métodos cientificos de observacdo e pesquisa, como 0 proprio Kadec afirmou, nao é uma cagadora de adeptos. O que lhe interessa ndo 6 combater as reli- gides ou tirar de guas fileiras os que nelas se sentem bem, mas apenas oferecer aos homens de bom-senso uma visio realista e por isso mais ampla e mais pro- funda do homem e do seu destino no espago e no AGONIA DAS RELIGIOES 123 tempo. S6 essa compreensdo racional e superior do Universo, em que homem aparece integrado nas leis naturais, poderé. modificar a mentalidade confusa e contraditéria do nosso tempo e preparar-nos para a Era Césmica, na qual a Terra s6 poder entrar com a Civilizac&o do Espirito. Nessa civilizagdo, que sera a ‘mica digna dessa classificag4o, a unica civilizagdo auténtica, os homens estarao investidos do tinico man- dato realmente divino (considerando-se 0 divino como uma categoria superior a do humano) que decorre das exigencias de sua consciéneia moral. René Hubert interpreta a Educagao, no seu Traité de Pedagogie Generale, como um proceso que tem por finalidade estabelecer na Terra a solidariedade de consciéncias, da qual resultaré uma estrutura politica e social que ele chama de Repiiblica dos Espiritos. & essa Repiblica, em que a rés nao se limita as coisas materiais, mas se estende sobretudo as consciéncias, proclamando o primado do espirito no planeta, que 0 Espiritiamo pretende atingir pelo trabalho e a com- preensdo dos homens. Porque a tarefa é nossa endo de entidades mitologicas de qualquer espécie. Se insisto na tonica do Cristianismo nao € por menosprezo as demais correntes de pensamento reli- gioso, mas porque a experiéncia histérica, apesar de todos os pesares j4 anteriormente referidos, prova que somente ele mostrou-se capa de reformular 0 mundo em sua globalidade. As energias espirituais e a orien- taco racional do ensino moral do Cristo, encerrado no complexo de mitos dos Evangelhos, 840, segundo entendo, os elementos que podem e realmente ja estao balizando o futuro da humanidade terrena. O impor- tante é chegarmos a esse futuro pelos meios adequados, com o minimo de conflitos criminosos e o maximo de compreensdo racional dos nosso objetivos. Como obser- 124 J. HERCULANO PIRES vou Gandhi em suas memérias, os meios que nos po- dem levar & verdade e a dignidade s6 podem ser ver- dadeiros e dignos. Esses meios nao precisam da justi- ficacdo dos fins, pois justificam-se por si-mesmos. FICHA DE IDENTIFICACAO LITERARIA J. HERCULANO PIRES, nasceu em 25/09/1914 na antiga provincia de Avaré, no Estado de Sio Paulo ¢ desencarnou em 09/03/1979, em Sao Paulo. Filho de José Pires Correa e de Da. Bonina Amaral Simonetti Pires. Fez seus primeiros estudos em Avaré, Itai Cerqueira César. Revelou sua vocacdo literaria desde que comegou a escrever. Aos 16 anos publicou seu primeiro livro, Sonkos Azuis (contos) ¢ aos 18, 0 segundo livro Coracdo (poemas livres de sonetos). Ji colaborava nos jornais e revistas das cidades de Sao Paulo e do Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores da Unido Artistica do Interior. Mudou-se para Marilia em 1940 onde adquiriu o jornal Didrio Paulista eo dirigiu durante 6 anos. Com José Geraldo Vieira, Zoroastro Gouveia, Osorio Alvesde Castro, Nichemja Sigal, Ana- thol Rosenfeld e outros promoveu, através do jornal, um movimento literdrio na cidade e publicou Estradas e Ruas (poemas) que Erico Veriasimo e Sérgio Millet comentaram favoravelmente. Em 1946 mudow-se para Sao Paulo e lancou seu primeiro romance, o Caminho do Meio, que mereceu criticas elogiosas de Afonso Schi- midt, Geraldo Vieira e Wilson Martins. Reporter, reda- tor, secretario, cronista parlamentar ¢ critico literario dos Didrios Associados onde manteve, também, por quase 20 anos, a coluna espirita com 0 pseudémino de Irméo Saulo. Exerceu essas funcdes na Rua 7 de Abril por cerca de trinta anos. Em 1958 bacharelou-se em Filosofia pela Universidade de So Paulo, e pela mes ma Universidade licenciou-se em Fiolosofia tendo pu- blicado uma tese existencial: O Ser e a Serenidade. Autor de oitenta e um livros de Filosofia, Ensaios, Historias, Psicologia, Espiritismo e Parapsicologia sendo a sua maioria inteiramente dedicada ao estudo ¢ A divulgagao da Doutrina Espirita, e varios de par- ceria com Chico Xavier. Langou, recentemente, a série de ensaios Pensamento da Fra Cosmica e a série de romances de Ficedo Cientifica e Paranormal. Foi dire- tor-fundador da Revista de Educacao Espirita publica- da pela Edicel. Em 1954 publicou Barrabas que mere- ceu Prémio do Departamento Municipal de Cultura de Sao Paulo em 1958, constituindo o primeiro volume da trilogia Caminhos do Espirito. Em 1975 publicou Lé- 2aro e, com o romance Madalena, editado pela Edicel em maio de 1979, a concluiu Ao desencarnar, deixou varios originais os quais vem sendo publicados pelas Editoras Paidéia e Edicel. RELAGAO DOS LIVROS PUBLICADOS POR ESTA EDITORA DE AUTORIA DO PROF. J. HERCULANO PIRES Agonia das Religides Adio e Eva (esg.) © Menino e 0 Ai Revisdo do Cristianismo Na Hora do Testemunho Qs Sonhos Nascem da Areia (esg.) O Tanel das Almas Ciéncia Espirita e Suas Implicagdes Terapéuticas Curso Dindmico de Espiritismo (O Grande Desconhe- cido) O Centro Espfrita A Obsessiio — O Passe — A Doutrinacao Vampirismo © Mistério do Ser Ante a Dor e a Morte Concepeao Existencial de Deus Tntroducao a Filosofia Espirita J.HERCULANO PIRES RELIGIOES

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